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CURSO DE FILOSOFIA B-LEARNING

1º ANO

DISCIPLINA DE FILOSOFIA DA CULTURA

A IDADE AXIAL

A emergência da transcendência

Aluno: José António do Amaral (nº 135 915 501)


1
ÍNDICE

1 - INTRODUÇÃO .................................................................................................... 5

2 A IDADE AXIAL: O QUE É E O QUE SIGNIFICA ................................................. 7

3 CIVILIZAÇÕES DA IDADE AXIAL: BREVE RESENHA HISTÓRICA ................. 10

3.1 Antiguidade: Grécia Antiga, Israel e Pérsia .............................................. 11

3.1.1 Grécia Antiga ............................................................................................ 11

3.1.2 Israel ......................................................................................................... 14

3.1.3 Pérsia ........................................................................................................ 15

3.2 Índia ............................................................................................................. 16

3.2.1 O Hinduísmo, o mais antigo ..................................................................... 17

3.2.2 Budismo, o homem que despertou .......................................................... 18

3.3 China ........................................................................................................... 20

3.3.1 Taoísmo .................................................................................................... 21

3.3.2 Confucionismo .......................................................................................... 22

3.4 Um fenómeno tardio associado: o Islamismo .......................................... 23

4 A CRÍTICA À EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE IDADE AXIAL ....................... 24

5 COMENTÁRIOS FINAIS ..................................................................................... 27

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Evolução das civilizações mundiais desde a Pré-história. .......................... 11

BIBLIOGRAFIA …………………….………………………………………………………...17

2
3
In the western world, the philosophy of history was
founded in the Christian faith. In a grandiose sequence
of works, ranging from Ste. Augustine to Hegel, this faith
visualized the movement of God through history. God’s
acts of revelation represent the decisive dividing lines.
Thus Hegel could still say: all history goes toward and
comes from Christ. The appearance of the Son of God
is the axis of world history. Our chronology bears daily
witness of the Christian structure of history.

But the Christian faith is only one faith. Not the faith
of mankind. This view of universal history therefore suffers
from the defect that it can only be valid for believing
Christians. But even in the West, Christians have not tied
their empirical conceptions of history to their faith. An
article of faith is not an article of empirical conceptions
of history, to their faith. For Christians sacred history was
separated from profane history, as being different in its
meaning. Even the believing Christian was able to
examine the Christian tradition itself in the same way as
other empirical objects of research.

An axis of world history, if such a thing exists, would


have to be discovered empirically as a fact capable of
being accepted as such by all men, Christians included.

K. Jaspers, “The origin and goal of World History”

4
A IDADE AXIAL
A emergência da transcendência

1 - INTRODUÇÃO
O período compreendido entre os anos 800 a.C. e 200 a.C. constitui um dos momentos
fundadores da sociedade humana moldando o fundamental do homem, como hoje o
conhecemos. Neste pequeno lapso de tempo, se olhado à escala da humanidade, de
pouco mais de 500 anos, uma plêiade de pensadores brilhantes e independentes,
irrompe em três regiões do globo – na Grécia Clássica, na Índia e China, e na Pérsia,
Palestina e Israel – mudando radical e absolutamente o modo de pensar o mundo e a
própria concepção do que é ser humano, lançando as fundações do que hoje
conhecemos como sociedade moderna.
A expressão Idade Axial, cunhada por Karl Jaspers1 no início dos anos cinquenta do
século passado, cujo conceito foi adoptado e aprofundado mais tarde, entre outros
filósofos e historiadores, por Samuel Eisenstadt2, postulando a existência de um ponto
de charneira do pensamento da humanidade, que só se observa em algumas
sociedades avançadas, sem que se conheça qualquer contacto óbvio entre elas, só
estas se projectando definitivamente no futuro, lançando a humanidade no caminho de
uma mesma futura civilização global e marcando de forma indelével o devir dessa
mesma humanidade, é sem dúvida muito poderosa e inspiradora. Existem
inquestionavelmente muitas e boas razões para atribuir a esse período tais qualidades,
mas a verdade é que não são menores as evidências de que há alguma boa vontade
dos autores no sentido de agrupar as civilizações da China, Grécia, Índia,
Israel/Palestina e Pérsia como fundadoras deste “movimento”, em detrimento por
exemplo das conquistas da Mesopotâmia ou do Egipto, muitos séculos antes do suposto
início desse período axial, ou ainda de outros progressos das civilizações da América
Pré-Colombiana, menos conhecidas e fora do que se poderia chamar o eixo
civilizacional.
Olhando agora para o entorno político e social imanente ao nascimento deste conceito,
sobretudo em Jaspers, em plenos anos cinquenta, emergindo do trauma do nazismo
recém-derrotado e cuja deriva anticivilizacional afrontara a própria noção de avanço
cultural, pode entender-se a necessidade de lhe dar resposta substantiva. Também uma
certa noção de irreversibilidade, que se associa inevitavelmente à assunção desta
tendência, representava à época um importante instrumento de redenção do “acidente”
nacional-socialista europeu e das suas consequências mundiais. Acresce o dealbar de

1Karl Jaspers The axial period, in The origin and goal of history, New Haven Yale University press
1953, pp. 1-25.
2 Eisenstadt, S. The Origin and diversity of Axial Age Civilizations, Ed. S.N. Eisenstadt (Albany

NY State Un. Of New York Press, 1986.

5
outros totalitarismos de índole leninista e a perspectiva da nuclearização do mundo, da
Guerra Fria e da aniquilação global, ensombrando o horizonte.
Todos estes factores poderão ter contribuído para esse olhar benevolente sobre deste
período relativamente curto, mas ainda assim de meio milénio, procurando evidenciar a
“transcendência” observada em algumas sociedades humanas avançadas, como factor
de desenvolvimento, ela que tão maltratada fora no passado recente e se perspectivava
que viesse também a sê-lo no futuro.
Procura-se neste trabalho, em diálogo com dois autores incontornáveis – Karl Jaspers
e Shumuel Eisenstadt – contribuir para compreender se esta notável coexistência e
coincidência de avanços civilizacionais tem efectivamente essa natureza marcante de
descontinuidade radical ou se, como argumentam os seus vários detractores – cujos
pontos de vista mais significativos são igualmente abordados, ainda que com menor
desenvolvimento – se trata pelo contrário, de uma transição não tão vincada, antes
temporal e geograficamente difusa, desprovida dessa óbvia diferença entre civilizações
axiais, as únicas que se terão projectado no futuro e as restantes, ditas míticas ou pré-
axiais, relegadas para um plano de subordinado contributo para o património cultural de
uma humanidade hoje sim, amplamente global.
Buscam-se finalmente, algumas pistas para compreender as razões pelas quais estes
avanços civilizacionais ocorrem nestas regiões e neste momento da história, e não em
outro qualquer, através da uma analogia com as ciências naturais e recorrendo à sua
metodologia de investigação.

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2 A IDADE AXIAL: O QUE É E O QUE SIGNIFICA
A palavra axial provém do vocábulo de raiz latina, “axe” que significa eixo, aposto do
sufixo nominal, também latino, “al”, axial designa o que é relativo ao eixo, com forte
acento na noção de charneira, de ponto de viragem.
Para K. Jaspers (1883 - 1969) médico psiquiatra e filósofo alemão do Séc. XX, muito
influenciado pelo pensamento de Heidegger, considerado o fundador do existencialismo
alemão, novos modos de pensar surgiram na Grécia Antiga, China, Índia, Pérsia e
Israel/Palestina, entre 800 a.C. e 200 d.C., originando o essencial do que hoje
conhecemos como religião e filosofia, propondo um caminho novo que viria a estruturar
o fenómeno religioso em torno das grandes religiões (budismo, cristianismo, hinduísmo,
islamismo3, jainismo, judaísmo e taoísmo) marcando definitivamente o rumo e o futuro
da humanidade, numa verdadeira revolução cujas consequências ainda hoje se fazem
sentir.
Esta noção é na realidade anterior a Jaspers, tendo sido proposta pela primeira vez por
Victor von Strauß (1859), seguido mais tarde por Ernst von Lasaulx (1870). Ambos
defendem existir um momento charneira na história antiga, situado cerca de 800 a.C. e
200 a.C. que marca o fim da idade mítica e o aparecimento e desenvolvimento das
grandes religiões e filosofias. É contudo com Jaspers que o conceito ganha corpo e se
afirma pela primeira vez, como uma verdadeira teoria substancial e credível, sendo mais
tarde retomada e ampliada por Shumuel Eisenstadt e pelos seus seguidores.
Para Jaspers, neste período temporal, concentra-se um conjunto de extraordinários
eventos4:
“(Neste período) …Confúcio e Lao-tse viviam na China, nascendo todas as escolas filosóficas
chinesas, incluindo as de Mo-ti, Chung-tsu, Lieh-tsu, e outras tantas; a Índia produz os Upanishad
e o Buda e, como na China, percorre toda uma gama de possibilidades filosóficas, do cepticismo
ao materialismo, sofismo e niilismo; no Irão, Zaratustra ensina uma visão desafiadora do mundo,
como uma luta entre o bem e o mal; em Israel os profetas fazem a sua aparição, de Elias,
passando por Isaías e Jeremias até Deutero-Isaías; a Grécia assiste ao surgimento de Homero,
dos filósofos – Parménides, Heraclito e Platão – dos dramaturgos, de Tucídides e Arquimedes.
Tudo o que estes nomes implicam se desenvolveu durante estes poucos séculos e quase
simultaneamente, na China, na Índia e no Ocidente5, sem que nenhuma destas regiões soubesse
das outras.”

Mas o que há de novo neste período e nestas sociedades que os distinga tanto de
outros? Para Jaspers inaugura-se neste momento único da humanidade, um novo tipo
de atitude e de pensamento: o homem torna-se consciente de si, do mundo e das suas
limitações; olha para dentro de si e interroga-se acerca de quem é e qual o significado
de existir; reconhece conscientemente os seus próprios limites, impondo-se ao mesmo
tempo os mais extraordinários desafios, estabelecendo metas nunca antes imaginadas;
mergulha nas profundezas do absoluto e busca a lucidez da transcendência. E tudo

3 O islamismo é na realidade um fenómeno tardio que não se enquadra na janela temporal de


Jaspers, mas que este entende estar aparentado e cujas raízes são as mesmas.
4 Jaspers, K. The axial period in The origin and goal of history, New Haven Yale University Press

1953, p. 2.
5 Nesta concepção Jaspers inclui no Ocidente países do Oriente Médio, como o Irão até à Bactria,

que se situa já no Afeganistão.

7
através da reflexão, a consciência ficando ainda mais consciente de si mesma, o pensar
tornando-se ele próprio o objecto.
Para Jaspers, é neste período que irrompem nestas três regiões do globo, os primeiros
conflitos espirituais, ou religiosos, acompanhados do esforço de uns em convencer os
outros das razões das suas preferências e isto unicamente pelo poder da argumentação
persuasiva, pela comunicação dialética do seu pensamento, transmitindo as suas
razões e experiências. Há divisão e confronto de pontos de vista, que apesar de
múltiplas e profundas divergências, coincidem no essencial do modo como transformam
o pensar do homem, que desde então não mais será o mesmo. É neste breve momento
que nascem as grandes categorias do pensamento que moldaram o pensamento tal
como hoje o entendemos e nascem e florescem as grandes religiões que ainda hoje são
o farol da maior parte da humanidade – budismo, cristianismo, islamismo, hinduísmo e
taoísmo.
Na verdade, no entender de Eisenstad e de Schwartz, se há algum factor comum
subjacente a estes movimentos axiais é a tentação da transcendência, uma espécie de
recuo para melhor projectar o olhar no futuro, uma reflexão crítica ou questionamento
da actualidade e uma visão nova do que está para lá. Discute-se aqui, evidentemente,
a vida consciente do homem axial, ou melhor, de pequenos grupos de homens desta
época, os profetas hebreus, os filósofos e sofistas gregos, os brâmanes da Índia, ou a
Sangha6 dos budistas, todos eles homens-sábios cujo número e impacto imediato pode
até ter sido irrelevante no início, mas cuja mensagem se revelará mediatamente de
enorme importância, condicionando o futuro dessas mesmas sociedades, projectando-
as no futuro.
A tensão entre a ordem mundana e a ordem transcendente difere substantivamente da
tranquilidade e auto-evidência das sociedades míticas pré-axiais7. Para estas o mundo
superior (de cima) era estruturado em função de princípios essencialmente semelhantes
aos da ordem mundana (do mundo de baixo), com termos semelhantes para Deus, os
deuses e os homens, cujas diferenças apesar de existirem não eram radicais. Para as
sociedades pré-axiais, a visão homóloga das duas ordens – mundana e transmundana
– inseria-se numa visão de tempo cíclico, em que passado, presente e futuro se
misturavam numa panorâmica indistinta, em claro contraste com as civilizações axiais,
em que há uma cisão radical entre a ordem do mundo e as altas instâncias
transcendentes, morais ou metafísicas, situadas para lá da ordem mundana.
Este afastamento levanta o problema da fractura radical entre as duas ordens citadas8,
o problema da articulação entre as questões do foro espiritual e mundano, e de quais
as consequências que daí advém para a ordem cósmica. A consciencialização da morte
e da inutilidade das acções humanas face ao poderio das forças que as condicionam, a
intuição do fim-do-mundo, determinam uma acrescida preocupação com os temas
escatológicos e a resolução do problema soteriológico torna-se central, na procura do

6 Entende-se por Sangha, do sânscrito, associação, assembleia, comunidade, o grupo monástico


de discípulos do Buddha que atingiram já algum estádio de iluminação e partilham um destino
comum;
7 No entender de Jaspers evidentemente, outros estudiosos não o entendem exactamente da

mesma maneira, não aceitando essa realidade.


8 Uma das questões mais debatidas e objecto de crítica em Platão, a descontinuidade entre o

mundo das ideias e o mundo sensível e a forma de ultrapassar esse abismo intransponível.

8
caminho para a salvação. É nessa procura de uma qualquer perpetuação, que permita
ultrapassar as arbitrariedades do presente, em direcção a uma qualquer forma de
imortalidade, que as sociedades axiais, todas com caminhos diferentes, se identificam
nessa busca racional, em flagrante oposição às sociedades míticas pré-axiais, cuja
busca da imortalidade se conforma com uma qualquer continuidade física da
materialidade actual, pela via mágica.
É neste período axial que se formam elites de um novo tipo nunca antes visto – de
intelectuais e clérigos – que investigam, debatem e espalham os novos modelos de
pensamento, como os profetas na Palestina e Israel, os sábios e ermitas errantes da
China, os brâmanes hindus e meditadores budistas na Índia, mais tarde os apóstolos
cristãos e os ulemas islâmicos, minorias iluminadas cuja mensagem se diferencia do
grupo e cria inicialmente grande tensão nas sociedades onde se inserem, mas que mais
tarde se virá a desenvolver inexoravelmente tornando-se a prazo a norma vigente
nessas mesmas sociedades. Estes intelectuais tornam-se parte activa e participante nos
processos, como novos e importantes actores sociais, determinantes na condução dos
destinos dos povos. Criam-se e desenvolvem-se colectividades culturais e comunidades
religiosas distintas, com elevado nível de compromisso ideológico e fora do quadro dos
grupos étnicos e políticos, qualitativamente diversas das tendências minoritárias
divergentes, das sociedades pré-míticas.
As grandes tradições axiais alastram do centro para a periferia, conquistando
rapidamente novos adeptos e dissolvendo as tradições anteriores. Os Deuses são
substituídos pelo Deus ético dos profetas, ou pela causa final dos hindus (Brahman),
pelo ser supremo (Ahura Mazda dos Zoroastristas), pelo Tao ou pelo esforço de fusão
com o Uno na experiência última do Nirvana. Em todas e cada uma destas sociedades,
o Mithos é derrotado pelo Logos, que se afirma como um novo e radical modo de olhar
a realidade. Os mitos são remoldados, tornando-se o material para expressar algo que
se quer significar, deixam se ser a própria razão de ser da vida, para se tornar apenas
um veículo, algo de estruturalmente diverso: a parábola.
Até então o que se podia entender como espiritualidade ou até mesmo transcendência,
isto é, o olhar humano na tentativa de ver para lá da pura realidade material, reduzia-se
essencialmente a uma sacralização da natureza e das suas forças e ciclos, deificados
em formas míticas, em que o grupo, a tribo, predominavam sobre o individual, conceito
aliás inexistente na maioria das civilizações míticas complexas da era pré-axial. O
entendimento da realidade não autorizava o pensamento independente fora dos
cânones do campo mítico, ontologicamente absoluto e necessário, fora do qual aliás
não podia existir realidade alguma, e qualquer tentativa nesse sentido era entendida
como um atentado à própria sobrevivência do grupo. O homem era refém dos humores
da galeria de deuses encarregues da regulação do mundo natural, vivendo o mito como
arquitetura básica e estruturante da organização social. Mesmo nas sociedades míticas
mais avançadas, como os Babilónios e Egípcios, bem-sucedidas no desenvolvimento
de tecnologias sofisticadas em domínios chave para a sobrevivência, como a agricultura
e a arte da guerra, as suas cosmogonias complexas e muito ricas, dotavam as
sociedades com explicações satisfatórias, reconfortantes ou terríveis, cujo valor era tão
significativo, quanto necessário à própria sobrevivência do grupo, mas não geravam em
si, as tensões necessárias entre as ordens mundana e transcendente capazes de
desequilibrar e fazer tombar o modelo mítico.

9
Civilizações como a Babilónica e Egípcia e outras como as que se desenvolveram no
vale do Indostão, ou as culturas nativas de algumas partes da China, apesar da sua
sofisticação e da magnificência das suas realizações e conquistas, parecem de certo
modo adormecidas, registando apenas manifestações pontuais e episódicas de
axialidade, como a Epopeia de Gilgamesh e Nimrod na Assíria, ou o Discurso do homem
com a alma cansada da vida, no Egipto, ou ainda os Salmos de Arrependimento
babilónicos. Trata-se todavia de empreendimentos isolados, que não dão lugar a
movimentos firmes e consistentes que se projectem no tempo e promovam a mudança
societária. São indiscutivelmente contributos de grande valor para a geração das
condições de aparecimento do movimento axial, modelos monumentais do que de
melhor a espécie humana produziu, alguns, como o Gilgamesh, influenciando
fortemente as concepções axiais, que se virão a desenvolver em civilizações, contíguas
posteriores.
Quanto aos povos mais exteriores aos movimentos axiais que irrompem nestas três
regiões do globo, permanecem no seu estado mítico primitivo, como os Eslavos ou
Germanos no Ocidente, ou os Japoneses, Siameses e Malaios no Extremo Oriente,
civilizações atrasadas que serão dissolvidas pela intensidade e poderio da mensagem
axial, assim que com ela contactam, passando assim a integrar a comunidade que virá
a tornar-se o que hoje conhecemos como mundo global.

3 CIVILIZAÇÕES DA IDADE AXIAL: BREVE RESENHA HISTÓRICA

Do ponto de vista histórico todas as sociedades que se descrevem seguidamente


partilham a existência de uma multiplicidade de cidades, ou reinos, alternando fases de
grande prosperidade e vigor, com episódios de destruição, conflito e guerras violentas,
internas ou com o exterior. Pequenas cidades-estado multiplicam-se na China, à revelia
dos Imperadores da dinastia Chou impotente para as subjugar; na Índia multiplicam-se
os pequenos reinos independentes, enquanto na Hélade as cidades-estado atingem
elevados níveis de desenvolvimento material e espiritual, disputando entre si a primazia
económica, militar artística e filosófica; na Pérsia a personalidade de Zaratustra e os
seus ensinamentos são suficientes para criar a tensão necessária à irrupção dos
movimentos sociais necessários à geração das tensões entre as ordens mundana e
transcendente e com isso, influenciar o caminho do progresso da civilização humana.

Do espiritualismo grego com raiz platónica, ao modelo cósmico marcado pela


interioridade que caracteriza as religiões orientais, o afastamento das ordens mundana
e transcendente caminha progressivamente em sentidos opostos, determinando com
isso, o desencanto com a sacralidade da natureza e a busca desse mesmo sagrado na
superação do mundo natural. Esse caminho de afastamento é evidente em todas as
civilizações referenciadas, cada uma com os seus referenciais próprios, em todas o
mundo assumindo progressivamente propriedades malignas, constituindo o universo do
engano, do apego e da ilusão, um mundo do qual o homem sábio se afasta, refugiando-
se na sua interioridade, onde se encontra ao abrigo do desejo.

10
Discutem-se nos parágrafos que se seguem, os aspectos mais marcantes das
civilizações axiais, valorizando as suas características comuns, mas também as
diferenças que as fazem únicas.

Na figura seguinte apresenta-se um esquema simplificado da evolução diacrónica das


principais civilizações mundiais, desde a Pré-história até aos nossos dias.

América Europa Russia Islão Índia China África Outras

Extinção
Idade da Ciência e
Tecnologia

Ocidente Bizâncio Islão Fim c/ integração


no período axial Perú
México
Período Axial

Préhistória tardia
Oriente-Ocidente Índia China

Povos primitivos

Civilizações Antigas Povos sem escrita na


órbita de civilizações

Mesopotamia Egipto Índia China (Hwang-Ho)

Pré-história

Origem única da humanidade

Figura 1 – Evolução das civilizações mundiais desde a Pré-história9.

3.1 Antiguidade: Grécia Antiga, Israel e Pérsia


3.1.1 Grécia Antiga
No processo de axialização da Grécia Antiga, repara-se desde logo na superlativa
diversidade das escolas de pensamento, cada uma propondo a sua mundivisão muito

9In Jaspers, K. The axial period in The origin and goal of history, New Haven Yale University
Press 1953, p. 27.

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particular, num leque tão vasto e diversificado, que abrange quase todo o campo de
possibilidades, que desde então constituem os caminhos que trilha o espírito humano.
É na Grécia Antiga que nascem a filosofia e as ciências naturais, tal como as
conhecemos hoje; que se desenvolvem de forma nunca antes experimentada a
matemática, a música, a astronomia e que se afirmam as principais escolas do
pensamento, do empirismo, ao idealismo.
Os avanços civilizacionais da Hélade são tão radicais e profundos que se pode afirmar,
sem receio de arrogância, que de entre as várias civilizações que compõem este eixo
fundador da história da humanidade, a Grega é a que mais longe chega na
conceptualização do Mundo, estando ainda na origem de grande parte dos conceitos
filosóficos que hoje constituem o património universal da humanidade.

É aqui, entre o extremo sul-oriental da Europa e a Ásia Menor que nasce um novo modo
de pensar, progredindo na compreensão do que são as coisas e das suas razões de
ser, tarefa que passa a ter sentido “em si”, não carecendo de uma narrativa que lhe dê
significado. A inteleção da natureza e dos seus “segredos” passa, desde então a ser “o
propósito”, constituindo uma mudança de qualidade determinante na atitude perante os
fenómenos naturais, que começam a ser objeto de observação apurada e crítica, e
tentativamente explicados, ainda que recorrendo muitas vezes a formas distantes do
que hoje entendemos como Ciência.

É o prenúncio da derrota do velho “Mithos”. E se se pode falar de um símbolo dessa


nova atitude, esta será sem dúvida a busca da arkhé das coisas do mundo natural, no
seu sentido cosmológico mais forte, isto é, aquilo que possibilita, que sustenta, o “Ser”.
É assim para um dos primeiros novos pensadores, Tales de Mileto (624-548 a.C.) para
quem tudo é feito de água, o sustentáculo metafísico do mundo natural; para
Anaxímenes (588-524 a.C.), que atribui essa função ao “ar”; para Pitágoras (570-? a.C.)
que concebe o “número” como sustentáculo do mundo; para Empédocles (490-444 a.C.)
que define os quatro elementos – água, ar, terra e fogo – que ainda hoje fazem parte do
olhar não científico sobre a natureza; para os fundadores da escola atomista, Demócrito
(500-? a.C.) e Leucipo (460-400 a.C.), os primeiros a conceber uma partícula indivisível
e eterna a partir da qual toda a matéria é construída10; é assim enfim, para os restantes
protagonistas desta época fascinante.

Não que este novo modo de pensar obliterasse os antigos mitos e crenças11, apenas
passou a conviver com estes e desde então os Deuses tiveram que passar a coexistir
com um campo paralelo, que busca sentido na própria intelecção das coisas e na
explicação das suas causas, sem recorrer, para o efeito, a uma narrativa de cariz
antropomórfico.

Olhemos agora para Platão (428-348 a.C.) o pensador que mais longe terá levado a
distância entre as ordens mundana e transcendente. Vulto cimeiro da história universal,

10 Note-se que o átomo de Demócrito e Leucipo pouco tem a ver com o conceito da física
contemporânea, à excepção talvez do nome, como adiante se verá.
11 Eisenstadt, S. The Origin and diversity of Axial Age Civilizations, pp. 30-31.

12
Platão encara a natureza como o mundo do devir, um reflexo imperfeito do mundo das
ideias, que é imutável e eterno. Introduz um dualismo radical, impondo uma cisão radical
entre as realidades sensível e inteligível, que considera de ordens diferentes. O saber
verdadeiro – episteme – que se ocupa do Ser e da sua natureza, opõe-se à opinião –
doxa – sobre as coisas mundanas em constante mutação. O saber verdadeiro assume
em Platão um carácter absoluto, constituído por verdades universais, eternas e
imutáveis. Já a ordem mundana, sujeita ao devir e à mudança, é desvalorizada como
simples sombra do verdadeiro mundo.

Platão não mantém sempre esta visão radical, cuja fractura entre o sensível e o
inteligível tornava difícil a compreensão da teoria da participação. A esta concepção
inatista radical, proposta na República, que poderia mesmo apodar-se de inatismo
gnosiológico12 e deve ser lida no contexto da política ateniense, já que visava em grande
medida combater o relativismo reinante de Protágoras, ou os cépticos como Górgias,
sucede-se um Platão mais moderado e optimista do Timeu, propondo o artífice criador
do mundo, o Demiurgo, ao serviço do bem, e a que não serão alheias as duras críticas
do seu discípulo Aristóteles, cuja visão se autonomiza da do Mestre, propondo uma
maior dignificação do mundo sensível.

Em Aristóteles a ciência abre-se ao mundo sensível, amenizando-se a fissura aberta


por Platão entre episteme e doxa, ainda que a sua concepção da ciência seja puramente
demonstrativa, partindo de premissas universais e verdadeiras adquiridas por indução
educada e crítica, para chegar a conclusões universais e necessárias13. O saber sobre
o mundo sensível, desvalorizado por Platão, que Aristóteles acredita ser possível, torna-
se também objecto de ciência, que passa a investigar as propriedades constantes das
coisas, estudando os seus nexos de causalidade e o seu movimento (no sentido geral
de modificação ao longo do tempo). Aristóteles funda os diversos ramos das ciências
do mundo natural tal como hoje as conhecemos: biologia, geologia, astronomia, etc. e
a intuição estabelece-se como o seu princípio,14 cada domínio fundando as suas
premissas e princípios próprios. Para Aristóteles todas as ciências partem de axiomas
que suportam a demonstração, havendo alguns contudo, comuns a todas as ciências e
válidos para toda a forma de pensar enquanto tal. Aristóteles propõe um realismo
moderado que admite a superioridade do entendimento sobre a sensação, em que o
saber o “porquê” das coisas se sobrepõe à simples verificação do “quê”, reconhecendo
que a universalidade é uma forma da mente. O papel deste grande filósofo não se cinge
à filosofia e ciência. Em 343 a.C. torna-se tutor de Alexandre da Macedónia, cujas
conquistas contribuirão em grande medida para a expansão desta nova forma de pensar
o mundo.

A força do radicalismo grego, na oposição dos mundos sensível e inteligível, tem


reflexos profundos na futura modelação do mundo, expandindo-se para a Europa
Ocidental, pela via do gnosticismo de inspiração platónica e contribuindo decisivamente,

12 Ibidem, 4ª Lição, Diferença entre Ciência Clássica e Ciência Moderna a partir de uma leitura
de Bernard Lonergan, pp 3-5.
13 Dimas, S. Lições de Epistemologia, 4ª Lição, Diferença entre Ciência Clássica e Ciência

Moderna a partir de uma leitura de Bernard Lonergan, pp. 6-14.


14 Aristóteles, Analíticos Posteriores, A10, 76b.

13
juntamente com as metafísicas de raiz judaico-cristã, para o racionalismo moderno e
para a concepção do que virá a ser a ciência tal como hoje a conhecemos.

Refira-se ainda como grande legado da Grécia Antiga, o modelo das instituições de
ensino do futuro, que serão alicerçados na Academia de Platão ou no Liceo de
Aristóteles, onde investigação e ensino, gozando de grande liberdade de
questionamento e um verdadeiro gosto pelo debate dialético, constituem uma
verdadeira singularidade, num mundo antigo ainda fortemente marcado pela
superstição e obediência.

3.1.2 Israel
Em muitos aspectos as manifestações de axialidade na Palestina e Israel em pouco
coincidem com as que vimos para a Antiga Grécia, opondo-se até em algumas
vertentes.
É preciso entender a natureza muito própria do território da Palestina, local de passagem
e de trânsito, um enclave no seio de poderosos impérios, habitado por tribos de enorme
variedade, de nómadas, a viandantes, mercadores, pastores, camponeses e cidadãos
das grandes urbes, onde tudo se funde num autêntico cadinho cultural, em que todos,
interagindo em profícuo intercâmbio, propiciam a emergência de novas ideias, trocas de
saberes e confronto livre de opiniões. É neste contexto que se assiste ao
desenvolvimento da necessária tensão entre a ordem mundana e a ordem
transcendente e à geração de elites esclarecidas, indutoras do potencial axializante,
suscitando a emergência de avanços civilizacionais importantes no seio de um
emaranhado confuso e algo desorganizado de tribos nómadas, de agricultores, pastores
e homens citadinos, com uma forte dinâmica de interacção.
Por outro lado o que se poderá chamar desde então o sentimento israelita, mais por
oposição às restantes tribos de nómadas que habitavam o território, do que
propriamente por identificação territorial e patriótica, conduz à progressiva
autonomização de uma visão conceptual de povo - as Tribos de Israel - que mais do
que habitar um determinado território, se identifica num património imaterial comum. A
ausência de fronteiras políticas, a permeabilidade territorial e uma certa anarquia
organizacional nas relações entre israelitas, são igualmente factores determinantes para
a criação das condições necessárias ao surgimento do movimento axial.
A característica chave da axialidade israelita consiste no aparecimento de uma
concepção monoteísta de Deus, enquanto Ser transcendente que criou o universo por
Sua vontade, devendo os seres criados obedecer à sua lei, veiculada pelos
mensageiros. Deus que reclama o tributo de todos os povos e não apenas do povo que
elegeu para com ele estabelecer um pacto, no qual se ordena um conjunto de preceitos
éticos e práticas cujo respeito abre o caminho para a felicidade eterna. Esta concepção
transcendente consiste numa des-magização e des-ritualização, no sentido da
afirmação de um culto transcendente orientado para os valores, ancorado na moralidade
e na ética e na dimensão espiritual da experiência religiosa, no que se assemelha
fortemente ao processo que ocorre na Índia. Para Eisenstadt:
“… em íntima relação com esta orientação desenvolve-se aqui, um tipo especial de
multiplicidade de orientações culturais e religiosas – cultuais, com várias instruções rituais; e uma

14
forte enfâse nas regras legais e injunções éticas. Cada uma destas orientações religiosas e
culturais, poderia provavelmente ser encontrada entre os povos vizinhos, mas a sua combinação
é provavelmente única em Israel. Esta singularidade conecta-se com a concepção de um Deus
único - no começo, provavelmente um Deus tribal ou nacional – de um tipo que mutuamente se
pode provavelmente encontrar em muitas civilizações, mas que se transformou, como se afirmou,
numa concepção mais dinâmica de um Deus transnacional. Esta concepção estava também
estreitamente ligada ao conceito da relação entre Deus e as Tribos de Israel, como sendo não
cativa, mas antes de tipo “contratual” que se focava no pacto com Deus, enquanto foco central
da confederação das tribos15.”

Os portadores desta mensagem, são os Padres, os Levitas e, acima de todos os outros,


os Profetas, sem esquecer os líderes políticos e magistrados e, mais tarde, os Reis, que
se constroem enquanto federadores das tribos esparsas pelo território, empreendendo
a epopeia de definir uma delimitação territorial própria a uma nação.
Os profetas a quem se atribui a autoria da Bíblia Judaica, o Antigo Testamento para os
cristãos, condensam neste conjunto de livros, escritos em aramaico, cujo número varia
em função da tradição (24 na hebraica, a Tanakh e 46 na cristã), os registos da relação
do povo eleito com Deus e a legislação litúrgica e religiosa. A Torá ou Pentateuco é o
nome dado aos cinco primeiros livros, descrevendo a história sagrada do povo de Israel,
a partir da criação do mundo até a ocupação da Terra. Tradicionalmente, a Torá (ou Lei)
é atribuída a Moisés, sendo concluída por Josué, após a morte de Moisés.
Entre os profetas que anunciam a vinda do Messias, daquele que anunciará a
instauração na terra do reino de Deus, Isaías é o mais afirmativo e eloquente, clamando
pelo primado da ética e bradando contra um culto que só serve para mascarar as
injustiças que se cometem no quotidiano, uma falsa religião assente na prece sem
consequências reais e na oferenda como compra da redenção, revoltando-se Isaías,
contra a injustiça social:
“Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais
espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país.” (Isaías, 5:8).”

A axialidade da tradição israelita parece evidente, na etificação da religião e na


ampliação da dignidade divina, que se torna universal e regulador do mundo. O mito já
não é a vida e passa a mitologia e a parábola é o veículo dos profetas para a transmissão
dos valores e da mensagem. A entrega e dedicação a Deus, enquanto caminho para a
salvação, praticando o Bem como valor em si, constitui uma radical mudança na vivência
das comunidades, com reflexos profundos no futuro das civilizações europeias, no
contexto da tradição judaico-cristã, matriz fundadora da sociedade ocidental, pela via
greco-romana e também das futuras civilizações islâmicas do Médio Oriente.

3.1.3 Pérsia
As manifestações de axialidade na civilização persa não são tão óbvias como as que se
acabam de expor para Israel. Na realidade, em muitos aspectos, a evolução da
sociedade iraniana cumpre apenas os mínimos na geração dos movimentos sociais e
religiosos necessários à sua consideração como civilização axial. Não obstante, o
surgimento de Zaratustra (Zoroastro para os gregos) a dimensão ética dos

15 Eisenstadt, S. The Origin and diversity of Axial Age Civilizations, 1986, p. 128.

15
ensinamentos do Zoroastrismo, as consequências que engendram e a sua influência no
curso da história, são razão suficiente para a considerar como tal.
Em termos de prática religiosa, a era pré-Zaratustra da Pérsia, era assinalada pelas
semelhanças com a tradição védica indiana, a que não será alheia a origem próxima de
ambos os povos. Praticava-se uma religião politeísta, focalizada no sacrifício de animais
e consumo ritual de haoma, bebida com propriedades alucinogénicas.
Adoravam-se dois tipos de divindades, ambas com características positivas e papéis
diferentes, ainda que de certo modo sobrepostos: Ahura (os Senhores) e Daiva (os
Deuses).
Zaratustra terá vivido cerca do Séc. VI a.C., exercendo funções sacerdotais do culto de
Ahura, até ter experimentado a visão de um ser de luz que se lhe apresentou como
Vohu Manah ("Bom Pensamento") e conduziu de seguida à presença de Ahura Mazda,
a divindade e de outros cinco seres luminosos, Amesha Spentas. Este é o primeiro de
uma série de encontros, durante os quais Deus lhe foi revelando a sua vontade.
Enfrentando forte oposição, e mesmo perigo de vida, Zaratustra virá a fixar-se na corte
do rei Vishtaspa na Báctria (atual província do Afeganistão na fronteira com o Irão) que
o acolhe e se converte ao zoroastrismo.
Zaratustra escreverá durante o seu longo apostolado, dezassete hinos, os Gathas, que
compõem o essencial do livro sagrado, o Avesta. A principal característica do Avesta é
a transformação do culto tradicional, introduzindo a noção de oposição radical do bem
e do mal, o primeiro representado pelos Ahura e o segundo pelos Daiva, que na tradição
eram igualmente vistos como seres positivos.
Mais do que o fundador de uma nova religião, Zaratustra terá antes reformado o culto e
as práticas religiosas indo-iranianas, promovendo uma mudança de paradigma e
introduzindo a visão dualista e monoteísta, onde antes predominava o monismo
politeísta. Elevaria ainda Ahura Mazda ("Senhor Sábio") ao estatuto de divindade
suprema, criador do mundo e único digno de culto.
Na sua essência, o pensamento dualista expresso pelos Gathas, reflecte-se no plano
ético enquanto liberdade de escolha entre o bem e o mal, e no plano cosmológico,
olhando para o mundo como um campo de batalha entre as forças do bem e as forças
do mal. Este dualismo deve reflectir-se igualmente, no plano interno de cada um,
enquanto escolha pessoal.
Apesar da dimensão limitada do fenómeno do Zoroastrismo, a sua proposta de radical
oposição entre o bem e o mal, jogando-se o futuro dos povos e da salvação pessoal na
escolha livre e responsável do caminho a seguir, tem consequências importantes não
só para as grandes religiões do livro, como também para o maniqueísmo e gnosticismo,
imprimindo de forma indelével a marca axial nos povos persas da época.

3.2 Índia

As manifestações de axialidade na Índia podem ser encaradas na perspectiva


puramente religiosa, essencialmente ancorada na tradição hindu e no seu registo
escrito, os Veda e Upanishad, ou na visão marcadamente filosófica e racional, ainda
que entendida hoje como religiosa, do Budismo. São estes os dois grandes polos que

16
definem os sinais de tensão entre as ordens mundana e transcendente, que se geram
na sociedade indiana e que propiciarão a criação de condições que favorecem o salto
para a frente.
A primeira realidade a ponderar quando se discute a natureza do fenómeno axial na
Índia, é o entendimento que se trata de um vasto território, abrangendo a quase
totalidade do subcontinente indiano, com elevada densidade populacional, muito
superior à observada à época, em outras latitudes. Dispersos um pouco por todo o
território, os reinos dos Marajás disfrutam de grande autonomia, não só em matéria
económica e de administração, mas também em termos de culto e religião. Entre estes
reinos deambulam ascetas16 e viandantes, solitários ou aglomerando-se em torno de
seitas mais ou menos organizadas, praticando cultos muito diversificados e propondo
caminhos diversos para a vida e diferentes visões do que está para além desta.

3.2.1 O Hinduísmo, o mais antigo


O hinduísmo é uma corrente religiosa que evoluiu organicamente através de um
vastíssimo território, marcado por uma enorme diversidade étnica e cultural,
invulgarmente permeável a tradições e cultos externos, que tende a incorporar. Daqui
sucede uma grande variedade de tradições religiosas, que vai de cultos menores e
simplistas, ao cânon tradicional do hinduísmo, com centenas de milhões de fiéis
espalhados por todo o subcontinente indiano. Esta pluralidade determina que se possa
frequentemente incorporar na tradição hindu, religiões como o jainismo, e o próprio
sikhismo17 e o próprio budismo, que partilham com este, muito dos seus concentos
fundamentais. Para Huston Smith18
" … o hinduísmo é um estado de espírito, uma atitude mental dentro de seu quadro peculiar,
socialmente dividido, teologicamente sem crença, desprovido de veneração em conjunto e de
formalidades eclesiásticas ou de congregação: e ainda substitui o nacionalismo".

Apesar desta diversidade, a generalidade dos hindus tende a aceitar alguns conceitos
fundamentais e fundadores: o dharma, ou caminho para a sabedoria; a samsāra,
contínuo ciclo do nascimento, morte e renascimento, veiculando a ideia de
aprisionamento no mundo; o karma, ou princípio de acção-reação, postulando que as
acções do passado determinam os acontecimentos do futuro; e os iogas, constituindo
os manuais com práticas diárias de exercícios e meditações, com vista a preparar o
praticante para receber os ensinamentos.
A tradição hindu remonta a cerca de 1.500 a.C., idade atribuída às escrituras mais
antigas, ou Veda19, que são o substrato do sistema de escrituras que é vastíssimo e se
estende ao longo de mais de dois mil anos. Os veda fundamentais são quatro – Rigveda,
Yajurveda, Samarveda e Atarvaveda, reunindo vários tipos de textos, cujo núcleo é
formado pelos mantras com hinos, orações, encantações, mágicas e fórmulas rituais.

16 Entre os ascetas viandantes distinguiam-se os sadhus, termo comum para designar um


místico, praticante de ioga e os monge andarilhos.
17 O sikhismo é uma religião monoteísta tardia (fins do Séc. XV) do Punjab, fundada pelo Guru

Nanak habitualmente retratada como o resultado de um sincretismo entre elementos do


hinduísmo e do islamismo sufista.
18 SMITH, H., A Essência das religiões, 6ª Ed., Lua de Papel, Lisboa, 2014.
19 A palavra Veda (do sânscrito) significa conhecer, conhecimento.

17
A grande maioria dos hindus aceita a imortalidade da alma, espírito ou “eu” verdadeiro
– atmân - e entende que esta é eterna. O princípio de atmân é indistinguível de Brâman,
o espírito supremo (o equivalente a Deus no Ocidente) que pode assumir-se como um
ser único irrepresentável, ou pelo contrário assumir várias personalidades que segundo
as tendências pode ser venerado como Vishnu, Brahma, Shiva ou Shákti, todos
manifestação do mesmo ser supremo.
Os Upanishad, que surgem mais tarde, precisamente durante o período axial, podem
ser entendidos como o corpo de escrituras que comenta e fundamenta teológica e
filosoficamente, estes primeiros escritos, originando o hinduísmo que hoje conhecemos.
Contém reflexões sobre a natureza de Atman e Brahman, que é simultaneamente
transcendente e imanente, o somatório de tudo o que foi, o que é e o que será. Não é
um Deus no sentido monoteísta, antes um princípio, um motor de tudo.
Afirma o Upanishad Taittiriya no capítulo nono:
“Aquele que conhece a felicidade de Brahma, de onde retrocedem todas as palavras e a
própria mente, sem nunca alcançá-lo, não tem medo de nada. Ele não se aflige com o
pensamento: "Por que não o fiz certo? Por que cometi o pecado?". Quem quer que saiba isso
considera-os a ambos como Atman: aprecia certamente que ambos são Atman. Este, assim, é
o Upanishad, a sabedoria secreta de Brahman.”

Os Upanishad são talvez, o reflexo mais evidente do espírito axial que emerge do
hinduísmo, procurando respostas para as questões fundamentais da existência:
"O que é a minha mente e como ocorre o pensamento?" "A vida tem um propósito, ou ela é
meramente governada pelo acaso?" "Qual é a origem do cosmos?"

Os sábios hindus procuram na reflexão e nos intensos debates que suscitam na sua
comunidade, as respostas para estes e outros mistérios da existência, mostrando
especial preocupação com o estudo dos estados de consciência, analisando sonhos,
procurando respostas com recurso à faculdade da razão.
Uma das marcas do hinduísmo consiste na tolerância religiosa e na capacidade de
incorporação de elementos novos, adaptando-se às reformas políticas, sociais e
científicas ao longo da história, esta religião tem sabido manter uma jovialidade notável,
atendendo a que se trata talvez da mais velha religião do mundo, com uma idade
superior a 3.500 anos.

3.2.2 Budismo, o homem que despertou


“O budismo começa com um homem. No fim da sua vida, quando a Índia estava incendiada pela
sua mensagem e os próprios reis se curvavam perante ele, as pessoas procuravam-no, tal como
procuravam Jesus, para lhe perguntar o que era.” “… “
“- És um Deus? perguntavam. Não. - Um anjo? Não. Um santo? Não.
- Então o que és?

O Buda respondia: - Estou desperto.20”

20 SMITH, H., A Essência das religiões, 6ª Ed. Lisboa, p. 6.

18
Nascido príncipe, rico belo e adorado por todos, Siddharta Gautama em 563 a.C., era
filho do rei do clã dos Sáquia e a sua vida está envolta em mistério e adoração. Diz-se
que com vinte anos, depois de descobrir a feiura, a doença, o sofrimento e a morte, que
lhe tinham sido escondidos desde tenra idade, se despiu de todo o luxo e riqueza e
partiu em busca da resposta aos porquês dos males da existência mundana. Deambulou
com os ascetas e meditadores hindus, praticou todas as fés, jejuou dias a fio, mas ainda
assim não encontrou as respostas que procurava, considerando o ascetismo fútil e sem
sentido. Abandonada a via da mortificação dedicou a sua atenção à concentração
mística e ao pensamento rigoroso, característicos do raja yoga. Até que um dia, perto
de Gaya, cidade no noroeste da Índia, sentou-se à sombra de uma figueira, decido a
não mais se levantar enquanto não encontrasse a resposta para as suas inquietações.
Resistindo a todas as perturbações e tentações de Mara, o Maléfico, chegou enfim ao
fim do seu caminho, atingindo a Iluminação, Passou então o resto da sua longa vida a
transmitir a boa nova, fundando uma ordem de monges e de monjas e tornando-se no
Buda, aquele que despertou do sono mundano e atingiu a iluminação transcendente.
Não tendo escrito uma única linha, foram os seus discípulos que registaram os seus
ensinamentos e mensagem. O Buda pregou uma filosofia, mais do que uma religião,
desprovida de autoridade ou ritual, avessa à especulação, ao sobrenatural e à tradição,
fundada no esforço pessoal de cada um. O budismo original era essencialmente
pragmático e empírico, com finalidades terapêuticas, dirigindo-se às necessidades
objectivas do indivíduo. Funda-se nas Quatro Nobres Verdades:
A primeira Nobre Verdade consiste na constatação da Dukka ou a verdade da existência
do sofrimento, traduzido no trauma do nascimento; no surgimento da doença; na
decadência da velhice; no medo da morte; na sujeição ao que nos desagrada e na
separação do que se ama, os Skandas. Todos estes Skandas, que são o que compõe
a vida, são dolorosos. Para se poder curar Dukka é necessário saber qual a sua causa.
E a causa é Tanha, o desejo de realização pessoal, que constitui a segunda Nobre
Verdade. É este desejo que destrói, enquanto por oposição, o altruísmo liberta e dá
felicidade. A terceira Nobre Verdade é o caminho que o Buda aponta para a libertação
do desejo egoísta de satisfação pessoal, e esse caminho é o domínio desse desejo.
Finalmente a quarta Nobre verdade descreve o modo como empreender o caminho da
libertação de Tanha, o Caminho Óctuplo ou as Oito Vias para a libertação.
Como um médico que faz um diagnóstico e aponta a prescrição para a cura do doente,
o Buda analisa a vida mundana, faz o diagnóstico dos seus males e receita a prescrição.
As oito vias são: adoptar as visões certas, seguindo as boas linhas de orientação; ter a
intenção certa em cada pequena rotina diária; escolher sempre o discurso correcto,
olhando a verdade como um bem ontológico; seguir a vida certa, com uma ocupação
que melhore a vida da comunidade; fazer o esforço certo, aplicando-se com a máxima
vontade no alcançar dos bons objectivos; ter a consciência certa e bons pensamentos
e finalmente adoptar a concentração certa, trabalhando arduamente nas técnicas de
meditação que permitem atingir estados elevados.
Observem-se agora alguns conceitos budistas básicos: o primeiro e fundamental é a
noção de Nirvana, considerado o mais alto destino que o espírito humano pode ansiar.
Significa literalmente extinção, não no sentido de desaparecimento, mas antes de
superlativa fusão com o Uno, imersão no espírito universal, como cessação do ciclo
permanente da reencarnação.

19
A boa definição do que é o Nirvana dá-a Nagasena, discípulo do Buda, que questionado
sobre o que é o Nirvana por um estudante lhe responde:
“- O vento existe?
- Sim venerável Nagasena.
- Por favor mostra-mo, pela sua cor ou forma, ou diz-me se é espesso, ou fino, comprido
ou curto.
- Mas não é possível mostrar o vento, venerável Nagasena, pois a mão não pode segurar
o vento ou tocá-lo, mas no entanto ele existe.
- Ora, se não podes mostrar-mo então não acredito que exista.
- Não, não venerável Nagasena, tenho a certeza que existe, sinto-o muitas vezes na
minha face.
- Pois assim é o Nirvana, não é possível mostrá-lo mas existe.”

Outro conceito fundador do budismo é Annica, ou a impermanência do mundo sensível.


A impermanência marca a existência no mundo, tudo tendo um início e um fim e nada
sendo permanente ou imperecível. Esta contingência do mundo do devir, sempre em
mutação, constitui o fundamento da perda e do sofrimento, que o budismo se propõe
combater.
O terceiro conceito a ter em conta consiste no Karma, a lei da causa-efeito e um dos
muitos conceitos que partilha com o hinduísmo, postulando que a cada acção realizada
no passado, corresponde um efeito consequente no futuro. Para o budismo, o ciclo
eterno da reencarnação, determina que as acções virtuosas garantem ao homem um
futuro melhor, o inverso ocorrendo quando os seus actos são perniciosos e nocivos,
levando à regressão na escala da vida. O homem pode assim e antes de tudo,
congratular-se pela forma humana, a única que permite aceder ao conhecimento
necessário à fuga da lei da eterna reencarnação, adoptando o caminho das oito vias
que se seguido com total esforço e convicção, permite aceder ao estado de Arhat, o
ente sagrado que extinguiu todo o desejo. Não é claro se para o Buda o estado de Arhat
é o que acede ao Nirvana e vive para sempre fundindo-se no Uno, já que nunca
responde objectivamente a esta questão.
Para o budismo o ser humano não tem alma, o antman (de an-atman, não alma). Esta
teoria budista nega a noção hindu de atman enquanto substância espiritual residente no
corpo, como fantasma espectral que anima o corpo e lhe sobrevive.
A doutrina budista, que mais tarde se virá a converter numa verdadeira religião, com as
suas práticas e escolas perfeitamente consolidadas, influenciando a vida de milhões de
fiéis na Ásia e também recentemente na Europa e Américas, constitui indubitavelmente
uma extraordinária visão da vida e do mundo. A liberdade na responsabilidade proposta
pelo Buda, apontando um caminho de verdade pessoal e de dignificação do humano
constituem todavia propostas de grande exigência pessoal e abnegação, que muito
poucos conseguirão verdadeiramente seguir e respeitar.

3.3 China
Uma das características marcantes da civilização chinesa consiste na oposição, de certa
forma harmoniosa, entre a visão do Taoísmo, que valoriza a componente individual, em

20
detrimento do grupo e o Confucionismo, que pode ser olhado como uma teoria política,
mais até do que uma filosofia, que preconiza a moralização da vida em sociedade,
ambos interpelando-se e interpenetrando-se dinamicamente, modelando a vida chinesa
por mais de 2.000 anos.
O Taoismo enfatiza a espontaneidade, propondo um caminho para a libertação do
espartilho e da manipulação da pessoa pelas instituições humanas (a ordem mundana),
pela linguagem e por todos os tipos de práticas culturais. Sugere a ideia de que não
precisamos de nenhuma orientação centralizada, e à semelhança das outras espécies
naturais, que seguem os caminhos mais apropriados, devemos assumir a nossa
condição natural, interferindo o mínimo possível com o ambiente que nos rodeia. Para
o taoísmo em vez dos processos que visam a aquisição de normas e orientações para
o comportamento em sociedade, poderíamos viver simplesmente em paz, fazendo uso
do princípio da não-reacção, como as canas ao vento que dobram, mas nunca partem.

3.3.1 Taoísmo
O caminho do Tao é um caminho que não se constitui como tal. A primeira e fundamental
noção do taoísmo é a crença em que o verdadeiro Tao é o que não se pode pronunciar,
porque indizível e não nomeável, já que o Tao que se pode dizer e explicar não é o
verdadeiro e eterno Tao.
A tradição aponta Lao-Tse (560 a.C. – 421 a. C.) como autor do Tao-Te-King, conjunto
de escritos considerados fundadores do taoísmo, contendo um conjunto de 81 aforismos
e pensamentos. É um documento extremamente conciso e propositadamente ambíguo,
que pretende confundir a mente do estudante, no sentido de nela despertar o que há de
natural e de não pensado. Lao-Tse terá trabalhado longo tempo como bibliotecário real,
mas desiludido com a vida de intriga e maledicência na Corte, ter-se-á dirigido para a
Índia, a caminho do exílio. Chegado à fronteira um guarda tê-lo-á reconhecido,
solicitando-lhe que o deixasse ser seu discípulo e anotando todos os seus ensinamentos
que compilou no que viria a constituir o livro sagrado do Taoísmo, o Tao-te-King.
O princípio fundamental do Tao é o pensar sem pensar, o agir sem agir, isto é: o
praticante do Tao deve procurar esquecer a forma de fazer as coisas até que elas se
tornem tão naturais como respirar. Para Lao-Tse o pensamento deve ser tão natural e
intuitivo como a respiração ou o andar. Quando ando ou respiro, não penso nesses
actos, são intuitivos e processam-se naturalmente. Assim deve ser a nossa acção na
vida, impensada, não no sentido de irreflectida ou atabalhoada, mas antes natural como
respirar ou andar. Lao-Tse dá o exemplo de quando pretendemos lembrar-nos de um
nome ou uma palavra e fazemos um grande esforço de memória, não conseguindo
contudo os nossos intentos. Todavia no minuto seguinte, tendo já esquecido essa
preocupação, esse nome, ou essa palavra, parecem surgir na nossa mente, saídos do
nada. Esse é o pensar sem pensar, do Tao.
A ética taoista consiste em alguns preceitos absolutamente fundamentais e cuja prática
deve ser quotidiana no sentido de se conseguir atingir uma vida plena. São eles a
serenidade, o wu-wei, ou princípio da não acção, o esvaziamento do desejo, a
simplicidade, a espontaneidade, a contemplação da natureza e a prática dos Três
Tesouros, que são a compaixão, moderação e humildade.

21
Após o desaparecimento de Lao-Tse e mais tarde de Chung-Tsu, considerado o
segundo pai do Taoísmo, diversas escolas se foram desenvolvendo na China até aos
dias de hoje, misturando crenças e práticas e incorporando elementos do panteísmo
tradicional chinês. Alguns conceitos do Taoísmo, como a noção de Yin e Yang,
tornaram-se e são hoje património universal.

3.3.2 Confucionismo
Fundado por Kung-Fu-Tse (571 a. C. – 479 a.C.) ou Confúcio como é conhecido no
ocidente, o Confucionismo é um corpo de ensinamentos com instruções éticas e
políticas muito precisas, propondo um caminho filosófico que se preocupa
fundamentalmente com as questões da existência neste mundo, visando melhorar a
vida do homem em sociedade. O confucionismo ao contrário da maioria das filosofias e
religiões estudadas, não tem uma dimensão transcendente evidente, que na sociedade
chinesa é preenchida essencialmente pelo Taoísmo, ainda que este conflitue em alguns
aspectos com a mensagem ordenadora de Confúcio.
Para Confúcio, os homens possuem os mesmos direitos, mas nascem todos diferentes,
e a forma como se desenvolvem é fortemente condicionada pelos ensinamentos (bons
ou maus) que vão recebendo, assim como pelas suas experiências de vida. É
necessário por isso, reforçar as suas boas características, que devem em princípio
predominar sobre as más, valorizando-as com um ensino adequado para a cidadania.
Confúcio acredita que esta prática, se seguida consistentemente, pode conduzir a
sociedade humana no caminho da felicidade terrestre.
Os ensinamentos do Velho Mestre, como também era conhecido, estão condensados
no Livro dos Analectos, publicação doutrinal que contém o essencial dos seus
pensamentos e dos seus seguidores, entre os quais Mêncio, conhecida no ocidente
como a Bíblia Chinesa. Trata-se de um conjunto de escrituras com aforismos e
ensinamentos escritos numa linguagem fortemente simbólica cuja hermenêutica é
duplamente complexa, dada a natureza pictórica e alegórica do mandarim antigo. Sendo
a humanidade o centro das preocupações do filósofo, esta é examinada recorrendo a
um conjunto de conceitos simples conhecidos como Wuchang, que contém por sua vez
cinco elementos: Ren (humanismo, Yi (justiça), Li (ritual), Zhi (conhecimento) e Xin
(integridade). Estes são complementados com outros quatro, o Sizi, com quatro
elementos: Zhong (lealdade), Xiao (piedade filial), Jie (continência) e Yi (justiça). De
todos estes elementos o Ren (humanismo) e o Yi (justiça) são, acima de todos os outros,
os que devem predominar no bom governante e aqueles que o devem nortear na sua
governação. Se um governante é ausente de Ren, então é natural que os seus súbditos
também não mostrem a mais pequena humanidade e um rei autocrático e desumano
corre o risco de perder o Mandato dos Céus.
A dimensão ética e política da mensagem de Confúcio faz com que ainda hoje, não só
no Oriente, mas igualmente nas restantes partes do globo, seja apreciada e estudada

22
como um modelo de ética e filosofia política, sobretudo na sua dimensão humanista de
preocupação com o bem comum e com o futuro das gerações mais velhas21.

3.4 Um fenómeno tardio associado: o Islamismo

A referência aqui ao Islamismo, fundado pelo mensageiro de Deus, Maomé (ou


Mohamed) em 610 d.C. e muito posterior portanto, ao espaço temporal considerado por
Jaspers (entre 800 a.C. e 200 a.C.) resulta de se alicerçar na tradição abraâmica, mas
constituir uma realidade separada do Cristianismo, partilhando com este e com o
Judaísmo uma herança comum. Há portanto necessidade de referenciar a forma como
a axialidade se manifestou nesta importante civilização, cujo contributo para o avanço
da humanidade é igualmente significativo.

No islamismo a revelação é o veículo privilegiado de Deus que encarrega os profetas


da missão sagrada de dar a conhecer aos homens a vontade divina, entregando-lhes
igualmente a escritura revelada. Cada profeta está incumbido de levar a revelação à sua
comunidade, a lista de profetas começando em Adão (Adam), Abraão (Ibrahim), Moisés
(Mussa), Jesus (Issah) e Maomé (Mohamed), sendo este o Último Mensageiro,
carregando a mensagem final de Deus a toda a humanidade sob a forma do Corão (Al-
Quoran).

O Islão assenta em cinco pilares fundamentais que constituem verdadeiros deveres para
o bom muçulmano:

1. a leitura de aceitação da crença (Shahada);


2. a oração cinco vezes ao longo do dia (Salah);
3. o dízimo (Zakah);
4. o jejum no período do Ramadão (Siyam);
5. a peregrinação a Meca (Hajj) se as condições financeiras e de saúde o
permitirem.

Os muçulmanos, nome pelo qual se designam os que professam a fé islâmica, creem


num Deus único e eterno, cuja grandeza é incomensurável, sendo o propósito do
homem a sua adoração. Acreditam igualmente que a sua fé é a mais perfeita, mais
perfeita que as outras religiões do livro, nascidas anteriormente, já que assenta na
revelação directa que Deus faz a Maomé.

É preciso compreender que o islamismo nasce num contexto muito particular, de forte
conflito na península arábica, em que Maomé defronta e vence as elites corruptas da
Arábia, instaurando um sistema que tenta repor alguma equidade numa sociedade
constituída por rudes tribos do deserto, legislando sobre matérias tão diversas como a
saúde, a guerra, o sistema bancário ou o cuidado com o meio ambiente e a agricultura.

21 Esta componente de respeito pelos mais velhos e do compromisso com os cuidados de que
necessitam na velhice, constitui uma das primeiras manifestações racionais e objectivas de
instituir uma regulação, ainda que primitiva, de segurança social.

23
A Constituição que Maomé faz promulgar na cidade de Medina, para onde se muda,
depois de realizar a viagem sagrada, conhecida como Hégira e que determina a
contagem do tempo para a comunidade muçulmana, estabeleceu um conjunto de
valores essenciais que ainda hoje norteiam a sociedade islâmica22. Valores como a
proibição da violência e do porte de armas, a segurança das mulheres, a instituição de
relações tribais estáveis dentro de Medina, um sistema fiscal para apoiar a comunidade,
ou um sistema judicial para a resolução de litígios, em que os não-muçulmanos também
poderiam usar as mesmas leis, foram algumas das notáveis conquistas de Maomé,
impondo o primado da lei sobre a força, às tribos selvagens do deserto.

4 A CRÍTICA À EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE IDADE AXIAL

As objecções e críticas a esta visão axialista da história, a que já se fez referência na


Introdução, são muitas e algumas contundentes, como seria de esperar para uma teoria
que parece privilegiar algumas civilizações e as suas conquistas, em detrimento das
restantes. As críticas vêm desde logo e em primeiro lugar do próprio Jaspers que,
parecendo querer antecipar o que mais tarde ase viria a desencadear, confronta a sua
teoria com o essencial das objecções que se podem levantar a uma tal visão da história.
As objecções de Jaspers podem resumir-se ao seguinte:
1- As semelhanças observadas nas diversas civilizações ditas axiais (o elemento
comum de Jaspers) são factuais e podem ser objectivamente definidas, ou não
passam de meras coincidências inerentes à evolução sofrida por diversos
credos em diversas partes do mundo?

Para Jaspers o que está em causa na análise é precisamente o elemento


comum, que é a marca de água da axialidade, e se manifesta de muitas e
diversas maneiras, mas está sempre presente nas civilizações ditas axiais, não
ocorrendo com a mesma nitidez nas restantes culturas, ainda que estas
possam possuir algumas características axiais, não tendo contudo a totalidade
das manifestações que determinam a materialização de um salto para a frente;

2- Trata-se mais de um julgamento de valor baseado no preconceito, que valoriza


mais umas conquistas de determinadas sociedades, em detrimento de outras.

Jaspers responde argumentando que o entendimento em matéria espiritual


envolve sempre uma valoração, mas é precisamente esta valoração que
permite que se conclua pela existência da singularidade da idade axial.
Sentimo-nos tocados pela natureza destes movimentos e necessariamente
envolvemo-nos emocionalmente com eles, já que estão na origem do que
somos hoje. Não existe forma de estudar a história e os seus fenómenos sem
este envolvimento e valoração;

22 Aliás um dos graves problemas de desadequação do islão aos dias de hoje resulta
precisamente de se orientar por legislação, que à data era muito avançada, mas hoje constitui
uma realidade desfasada do mundo contemporâneo.

24
3- O paralelismo encontrado e que caracteriza estas sociedades axiais, não é um
verdadeiro encadeamento dialético de acontecimentos, uns levando aos
seguintes, etc.

Para Jaspers esta objecção é semelhante à que foi feita a Hegel e à sua
proposta de evolução dialética da história, olhando a China, Índia e o Ocidente,
como passos de uma mesma sequência evolutiva. Ora a visão axial é
precisamente oposta a esta, já que se constata não haver contacto entre estas
civilizações, pelo que o fenómeno não é olhado como diacrónico, mas antes
como essencialmente sincrónico.
Revejam-se agora as objecções dos egiptologistas, como Jan Assman, que entre outros
argumentos destaca a evidência objectiva de que o pensamento com raiz directa no
Antigo Egipto, ainda permanece connosco nas sociedades contemporâneas, através da
tradição Hermética, como veremos mais à frente, e por isso esta grande civilização
antiga deve ser olhada imperativamente, como membro de pleno direito do movimento
axial.
Desde logo, Assman não nega que a história do pensamento possa ser estabelecida
em termos de crítica do Mito e incremento da reflexividade, individualidade, interioridade
e intelectualização, mas deve ser contextualizada e vista à luz da evolução da literacia.
Destaca que as marcas referidas não são um exclusivo das civilizações ditas axiais,
existindo também abundantes evidências da presença desse pensamento nas
civilizações da Mesopotâmia, durante o último terço do terceiro milénio e no Egipto, mais
propriamente nas civilizações do baixo Nilo, durante o segundo milénio. Para Assman a
emergência da literacia marca uma charneira, na medida em que permite a consciência
do tempo passado relativamente ao presente, contribuindo para a desmitificação do
passado, entendido como o tempo da Idade do Ouro em que homem e deuses
conviviam e partilhavam o cosmos. Se Heródoto é o pai da história, a verdade é que o
próprio Platão atribui aos Egípcios a paternidade do registo histórico escrito. Como a
história também a religião muda e evolui com o registo escrito, sendo aqui que reside,
para Assman, o centro de onde evolui o movimento de axialização, não fazendo sentido
por isso colocar uma civilização avançada como a egípcia fora desse contexto.
Acresce que Assman contesta a noção de progresso que Jaspers associa ao conceito
de axialidade da história, referindo o exemplo do recuo civilizacional tremendo que
constitui o fenómeno nazi, que recorre ao Mito enquanto veículo fundador de uma nova
sociedade, cujas premissas são na essência eminentemente anti-axiais e promotoras
de uma nova barbárie tecnológica.
Para Assman não faz sentido estabelecer o período compreendido entre 800 a.C. e 200
a.C. como uma época privilegiada em que irrompem os movimentos axiais,
argumentando que em outras épocas anteriores e posteriores e em outras civilizações,
ditas não axiais, tais ocorrências são perfeitamente patentes, citando como da prova
existência de traços axiais na civilização. São eles a propagação das ideias religiosas
de raiz egípcia através da tradição hermética, veiculada pela tradição greco-romana, a
presença de Hermes Trimegisto, que será na verdade o antigo deus Toth, do qual se
encontram referências até hoje e é relevante para Pico della Mirandola e S. Tomás de
Aquino; a importância dos textos egípcios no mundo antigo, que eram vistos como
escritos de saber; as realizações das civilizações desenvolvidas desde o 3º milénio
(Novo Império), cujo clímax ocorre entre 1500 a.C. e 1070 a. C., destacando-se a

25
arquitectura e urbanismo, a extacção mineira, a agricultura, a construção dos primeiros
navios, a concepção de sofisticados sistemas de irrigação, o desenvolvimento de uma
complexa rede de comércio. E ainda grandes realizações nos campos da arte, da
matemática e astronomia, da literatura e da política, destacando-se a assinatura do mais
antigo tratado de paz conhecido.
Em suma, o egiptologista considera que a legitimidade da inclusão da civilização egípcia
é óbvia e a sua eliminação decorre unicamente da necessidade de Jaspers de conter o
período axial dentro de fronteiras temporais razoáveis. Na verdade, a inclusão das
civilizações do Baixo-Nilo neste campo, alarga para uma extensão demasiado
prolongada o período axial, razão pela qual Jaspers não terá assim classificado os
egípcios. Assman entende ser legítimo o reconhecimento da importância do advento da
escrita na história, e do seu impacto na religião, que é uma marca fundamental de
axialidade, uma vez que história escrita implica espírito crítico e reflexão e distingue-se
do Mito, sendo um espelho do entendimento da diferença entre verdade e opinião. Para
a religião o cânone escrito sobrepõe-se ao oral e a sua autoridade é maior, os textos
passam a ter uma graduação de autoridade e há que distinguir textos mais e menos
autorizados, passando intactos pelas gerações. Assman não aceita contudo a
consideração de um tempo axial de duração tão limitada, restringindo a marca de
axialidade a algumas civilizações sincrónicas, em detrimento de outras, cujas marcas
são muito semelhantes, mas que ocorrem antes.
Vejamos finalmente o que afirma um cientista político contemporâneo, Anthony Black.
Não deixando de reconhecer legitimidade em atribuir ao período e civilizações em
apreço, responsabilidade pelos avanços experimentados posteriormente, em tudo o que
respeita à mente humana (geistlich), entende que:
“A coincidência no tempo é flagrante entre o que aconteceu na Grécia e na China, durante os
sexto e quarto séculos a.C.. Contudo, enquanto a atenção de Jaspers se concentra
especialmente na religiosidade transcendente, os fenómenos nessas regiões não foram só
religiosos e até, por vezes, foram predominantemente seculares. Já a ideologia israelita tinha
sido formulada muito antes e não vejo razão para considerar os seus desenvolvimentos muito
mais fundamentais do que as severas transformações que ocorreram mais tarde, no seio da
tradição judaica, sendo-o provavelmente, até menos23.”

Para o autor:
“A tese inicial de Jaspers foi apresentada no dealbar da Guerra Fria. Seria uma das suas
intenções, encontrar a de que fornecia uma abordagem não materialista da evolução histórica?
O seu artigo começa com a afirmação extraordinária de que a filosofia da história no mundo
ocidental se alicerça na fé cristã: esta exigência será mais compreensível como uma maneira de
contraditar o marxismo. Porquê ignorar Tucídides e Políbio, senão tendo em vista uma
interpretação que vai demasiado longe? Apesar disto tudo, este argumento sempre tem o mérito
de repor na história a importância do individual e do fenómeno mental. Quanto mais comparamos
a história intelectual das várias partes do mundo, mais claro se torna que a contribuição da Grécia
Antiga foi única (como muita gente disse que era, desde a Renascença até aos Vitorianos); e
que sem ela o mundo seria um lugar diferente. Quanto mais olhamos para o desenvolvimento
intelectual, mais difícil se torna pensar que o mundo não teria sido profundamente diferente sem

23BLACK, A., The axial period. What was it and what does it signify, in The review of Politics, nº
70, 2008, p. 39.

26
Sócrates ou Confúcio. Se eles tivessem morrido à nascença, teria havido alguém capaz de
influenciar o mundo como eles o fizeram?24”

5 COMENTÁRIOS FINAIS

É certo que as mais diversas civilizações se puseram as perguntas fundamentais da


existência, sejam elas da ordenação do mundo físico ou do foro ontológico e da
estupefação do Ser. E todas encontraram nas suas respostas – melhor ou pior – o
caminho para a sobrevivência das suas sociedades, para a estruturação da sua vida
comunitária e desenvolvimento de organizações sofisticadas. Servindo-se do Mito como
arquitetura básica e estruturante da organização social, sociedades avançadas como
os Babilónios e os Egípcios, foram bem-sucedidas na criação de cosmogonias
complexas e muito ricas, dotando a sociedade de explicações satisfatórias,
reconfortantes ou terríveis, cujo valor é tão significativo, quanto necessário à própria
sobrevivência do grupo. A vida dos Deuses era a outra face da vida do Homem,
emulando as suas virtudes e defeitos.

É por outro lado deslumbrante, imaginar um grupo de homens corajosos, das colónias
gregas da Ásia menor, à Atenas de Péricles e Sócrates, desbravando um mundo novo,
libertando o Logos do Mhitos, descobrindo uma nova era e renovando o modo de
pensar, como se de um golpe de génio ou de uma mutação intelectual, florisse o que
havia de ser a pedra basilar da civilização ocidental. Ou pensar o Buda (O Desperto)
como um belo príncipe, transformado por vontade própria, em pobre viandante dos
caminhos, capaz de meditar num estado de morte aparente, sob uma árvore hoje
milenar em Bod-Ghaia, durante 24 dias e 24 noites, lutando denodadamente com o
engano e a mentira da ilusão e do apego, até finalmente ver a luz e atingir a Iluminação,
partindo na sua epopeia de anunciar ao mundo a via para a cessação do sofrimento. Ou
ainda conceber Abraão, recebendo as tábuas da lei da mão do Divino Criador, iniciando
uma geração de eleitos, com a nobre missão de preparar a chegada do Messias, todos
eles predestinados a mudar o mundo definitiva e radicalmente.

Sobre ambas as visões, que marcam o absoluto da diferença entre as sociedades


míticas pré-axiais e as futuras sociedades avançadas, alicerçadas no Logos, é preciso
operar uma hermenêutica rigorosa e exercer um poderoso espírito crítico, no sentido de
distinguir o que constitui o verdadeiro significado, a essência destas duas realidades, e
o que na mensagem é apenas a ganga característica do modo alegórico do emissor nos
fazer chegar a sua ideia.

O que parece resultar claro todavia, de tudo o que ficou dito até aqui, é que existe algo
de marcante, que sucede nas três áreas geográficas mencionadas e com uma
similaridade singular, e notável simultaneidade, se atendermos à extensão relativa da
história. Algo que todos, mesmo os opositores à radicalidade do conceito, reconhecem.
Pode discutir-se se é legítimo, ou antes uma conveniência exagerada, excluir do cunho
da axialidade algumas civilizações mais antigas, como a babilónica ou a egípcia, ou se

24 Ibid. p. 39.

27
há uma maior inclinação de Jaspers para a valorização da componente religiosa, no
salto qualitativo que caracteriza os avanços registados neste período. Mas o que é
inegável é que a humanidade, após este período de pouco mais de 500 anos, entre 800
e 200 a.C., não é mais a mesma e que é nessa época extraordinária que surgem
homens que marcam, de forma absolutamente indelével, o futuro dessa mesma
humanidade. Homens como Confúcio, Lao-Tse ou Chung-Tsu; os anónimos autores do
Upanishad; o Buda, Zaratustra, Isaías e Jeremias e toda a restante plêiade de profetas
israelitas e “last but not least”, Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Arquimedes,
Heródoto, …, uma galeria impressionante de filósofos gregos que moldam o essencial
do que somos ainda hoje, a quem pedimos emprestados diariamente termos,
significados e palavras que empregamos no dia-a-dia, mesmo que disso não nos
apercebamos.

Mas será que o facto de se poder situar no tempo e no espaço o surgimento de uma
nova forma de pensar o mundo e de o interrogar, dotando-se de poderosas ferramentas
de dissecação do real, permite afirmar que aquele grupo de intrépidos navegadores do
pensamento deu à luz a Razão, ou a Iluminação, como se de uma revelação se
tratasse? Seriam esses homens os verdadeiros “inventores” da modernidade, elevando-
se acima de todos os outros homens, predestinados a marcar a história com uma
descontinuidade absolutamente radical?

Recentrando agora a discussão em torno das noções essenciais que interessam à


filosofia da cultura, como o conceito de progresso cultural25, enquanto incremento
gradual, no tempo, do produto da actividade humana, pode pelo menos afirmar-se que
o período em questão é uma charneira, um instante mágico em que a humanidade
adquire uma consciência de si como jamais a havia pensado. Nasce um novo tipo de
atitude. Através da reflexão, essa consciência recém-adquirida, progride na percepção
de si mesma, o próprio pensar tornando-se o objecto do pensamento. Nas palavras de
Leonardo Coimbra, o homem procura saciar a sua “… fome de imortalidade …”, auto
resgatando-se da sua condição de mero mortal e transcendendo a pura condição
biológica.
Recorrendo a uma analogia com um conceito físico amplamente utilizado pelas ciências
da natureza, de grande utilidade para compreender a brusquidão de alguns desastres
naturais26 – a noção de massa crítica – a viragem axial parece apresentar alguma
similitude com o que se poderia classificar como acumulação de massa crítica cultural
e civilizacional, ao longo do extenso tempo pré-axial, que se precipita subitamente, em
vários pontos do globo, neste curto período de meio-milénio, dando lugar a um novo
paradigma que rapidamente desequilibra as restantes culturas quando com elas
contacta, transformando-as radicalmente e acabando mesmo por absorvê-las.
Assim, partindo da indiferenciação do pensamento simbólico, característico das
sociedades míticas primitivas (primeiro estádio de desenvolvimento), passando pelo

25 LONERGAN, B., Topics in Education, Vol. 10.


26 Nas ciências da terra estuda-se a ocorrência, que é vulgar, de grandes deslizamentos de
terras, de forma súbita e violenta, depois de um acumular de condições desfavoráveis ao longo
do tempo (que pode ser longo) de forma não imediatamente perceptível. Isto deve-se à
ultrapassagem, em determinado momento, do valor crítico de resistência necessária para suster
as terras, desencadeando-se então o fenómeno, geralmente com consequências devastadoras.

28
sentido comum diferenciado de algumas grandes civilizações antigas, como a Suméria,
Babilónica ou Egípcia27, correspondente ao segundo estádio, a quantidade de saber
acumulado nas regiões do globo onde ocorre o fenómeno axial em primeiro lugar, terá
sido suficiente para precipitar essa verdadeira revolução, com relativa simultaneidade,
nos locais de concentração das sociedades mais avançadas, cuja evolução até aí, terá
tido o tempo e as condições suficientes para amadurecer e criar as condições
necessárias para o salto.
Seguir-se-ão, já no estádio axial de consciência diferenciada, característico do período
clássico grego na Europa e dos seus equivalentes no Oriente Médio e Extremo Oriente,
o pensamento medieval, até à era moderna e contemporânea, da consciência histórica,
marcada pelo desenvolvimento científico, industrial e tecnológico.
Parece pois legítimo concluir que este punhado de homens extraordinários, cada um no
seu modo muito particular e absolutamente único, sonhou e levou adiante a
possibilidade de um novo mundo imaterial, o mundo do espírito, homens cuja
criatividade, inteligência e coragem intelectual lhes permitiu vencer as sombras que se
reflectiam no fundo da caverna e decididos, ascenderam à superfície, acendendo a luz
do conhecimento que iluminará para sempre todos os seus afortunados descendentes.

Pelo aluno,

José António Amaral (nº 135 915 501)

27 Poderiam também citar-se outras, como as do vale do Indo ou de Hwang-Ho, na China.

29
BIBLIOGRAFIA

1. ARISTOTE, Métaphysique, traduction (éd. de 1953) de Jean Tricot (1893-


1963). Éditions Les Échos du Maquis (ePub, PDF), v. 1.0, Janvier 2014.

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positive dans la Grèce archaïque. In: Annales Économies, Sociétés,
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