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Segundo o editor inglês das obras de Freud, o termo Narcisismo teria sido
mencionado por Freud em novembro de 1909 em uma reunião da Sociedade Psicanalítica
de Viena, época em que era preparada a segunda edição dos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade. O termo narcisismo surge inicialmente para designar uma fase
intermediária entre o auto-erotismo e o amor objetal. Freud insere esse termo no campo
psicanalítico a partir do mito de Narciso1. É interessante observar a origem e os
desdobramentos dessa palavra: em grego Narkissos, cuja origem é Narkes que significa
torpor, inconsciência. A palavra narcótica deriva de Narkes e indica qualquer substância
que altera os sentidos, produzindo narcose (Brandão, 2009).
O ser humano possui dois objetos sexuais primordiais: ele mesmo e a mulher que dele
cuida, e com isso estamos pressupondo que em todo ser humano há um narcisismo
primário, que eventualmente pode manifestar-se de maneira dominante em sua
escolha de objeto. (Freud, 1914/2004, p. 108)
Para Lacan (1953-1954/1986), a expressão ele mesmo usada por Freud, diz
claramente respeito a sua imagem. Esse amor pela própria imagem é ilustrado por Ovídio
em seu poema sobre Eco e Narciso nos seguintes termos:
Enquanto tentava saciar sua sede naquela água, no mais profundo de seu ser, um outro
tipo de sede começou a crescer quando viu uma imagem na lagoa. Apaixonou-se por
aquela imagem sem corpo, e encontrou substância em algo que era apenas um reflexo.
(Ovídio, p. 63)
1
Narciso: filho do deus fluvial Cêfisos e da ninfa Leiriope que, punido por Afrodite por ter repelido Eco,
viu-se enamorado de sua própria imagem refletida nas águas de uma fonte; seu insucesso para aproximar-
se dessa imagem levou-o ao desespero e à morte, transformando-se na flor que traz seu nome (Ovídio,
2003).
1
É importante a conotação cantada por Ovídio e destacada por Lacan, ambos
colocam a questão do amor por si mesmo enquanto amor pela imagem de si. Mas para
Lacan trata-se de uma imagem que só pode vir do Outro.
O estado narcísico descrito por Freud aponta o quanto é fascinante para todo ser
humano deparar-se com esse ser fechado em seu mundo, satisfeito em si mesmo,
entorpecido de amar-se, em estado de completude. É assim que Narciso toma por corpo,
o que é sombra, e a sombra adora. A sedução desse encontro resvala na quimera de
completude que o adulto teria um dia vivido. Aprendemos com Freud que por essa via os
pais anelam por realizar por meio dos filhos seus sonhos e desejos não realizados.
Promessa que se renova ao mesmo tempo em que retira das garantias de sua
impossibilidade sua meia verdade. O narcisismo primário configura-se então como meio
para se tentar desconhecer a castração, a Lei e as consequências psíquicas que daí
derivam. Mas em meio a essa situação primitiva o eu deve advir, deve encontrar forma e
sofrer o início do processo de estruturação2.
2
O termo estruturação é introduzido por O. Mannoni em uma interlocução presente no Seminário: livro 1
no bojo da discussão acerca do Ideal do Eu e Eu-Ideal.
2
atribuições das quais o ele resiste em abrir mão, em direção à constituição do Ideal do Eu.
Nesse movimento o estado de narcisismo primário é perturbado pelas exigências do
mundo circundante às quais se ligam as questões do complexo de castração.
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também que está o ponto onde ele fala, no que ele fala, é no lugar do Outro (A) que ele
começa a constituir essa mentira verídica pela qual tem começo aquilo que participa do
desejo no nível do inconsciente” (Lacan, 1964/2008, p. 142/143). É ao falar e ser falado
que são realizadas as experiências perceptivas e pulsionais constitutivas do Eu. Processo
no qual o corpo real é tecido no sistema simbólico e adquire alguma consistência
imaginária na produção de si e do mundo a sua volta. Daí pode-se afirmar que o Eu é
efeito do Outro, ou o Eu é feito do Outro. Isso à medida que o pai, ou coisa que o valha,
comparece como suporte da Lei em sua dimensão simbólica. “É por intervir como aquele
que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como Ideal do Eu, e que, a partir daí,
não nos esqueçamos, o complexo de Édipo declina” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 201).
A análise que Freud deixou de herança ensina na pele que consentir a esse risco,
expor-se a ele, exige tentar, sem garantia alguma, apoiar-se na vida do lado da criação em
face da destruição. Mesmo se tratando de um movimento de báscula no qual Eros insiste
em lampejar na noite silenciosa, escuro domínio da pulsão de morte, pode-se de
objetinhos em objetinhos, ob-restos, insistir na vida, na arte e na criação. Nesse ponto,
pela via da análise, um sujeito pode se reconhecer não todo, mas nas sombras, nos traços,
aos pedaços. Para tal reconhecimento é necessário, ao contrário do destino de Narciso,
aceitar a origem narcísica de cada objeto de amor. Vida, arte e criação em báscula com
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a pulsão de morte comparecem na experiência subjetiva que pode ou não levar um sujeito
à situação de análise e, por vezes, ao desejo de tornar-se analista.
Parece que esse dever ser que de algum modo poderia regular, pelo menos
parcialmente, a relação com o semelhante não é suficientemente operante. A promessa de
completude é deslocada para o presente imediato e o discurso contemporâneo coloca –
ou recoloca – em cena “[...] outra estrutura ideal, a do sonho de ser do eu ideal” (Lesourd,
S., p. 35). Eu Ideal que, segundo Freud, está mais próximo ao eu prazer da primeira
infância. Dessa passagem, de um certo recobrimento do Ideal do Eu pelo Eu Ideal
depreende-se uma formatação subjetiva apoiada na exigência da satisfação imediata e na
crença da potência absoluta dos desejos. Vemos como o indivíduo desliza de seu
desamparo infantil para o amor de si mesmo, auto-estima que faz com que ele se ache
perfeitamente valioso. Freud explica que o indivíduo não está disposto a renunciar a sua
perfeição narcísica infantil, por isso “o que o ser humano projeta diante de si como seu
ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância, durante a qual ele mesmo era
seu próprio ideal” (Freud, 1914/2004, p. 112). Por isso realiza-se essa operação que se dá
pela via da projeção imaginária e da identificação primária com a mãe supostamente
onipotente.
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Em suma, para Freud (1914) tanto o Eu Ideal quanto o Ideal do Eu dizem respeito
a formações narcísicas, estão ligadas ao narcisismo propriamente dito. A diferença é que
na formação do Ideal do Eu o narcisismo é atravessado pela castração. E é só pela
castração que acontece a saída da posição do Eu Ideal, processo que o leva a deixar de
ser possuidor de toda perfeição de valor e a deparar-se com a formação do Ideal do Eu
em sua dimensão simbólica e com seu efeito regulador. Aqui a identificação não é mais
puramente narcísica, é com o pai da horda, descrito por Freud em Totem e Tabu, o pai
morto que é introjetado na forma da Lei. É essa ordem simbólica que promove, pelos
efeitos da castração, uma transformação no narcisismo, insere o sujeito na dimensão da
falta e estabelece a possiblidade do desejo.
Referências Bibliográficas
Brandão, J. S.- “O Mito de Narciso e Eco” in: Mitologia Grega, RJ: Vozes, Vol. 3,
1989.
______. Totem e Tabu (1913). Obras completas, In: Obras Completas, v. XIII. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.