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ECLEA BOSI da Universidade de Ste Pano) ecm MEMORIA E SOCIEDADE i lembrancas de velhos eae ounce Zao is ste? a Fo een an BIBLIOTECA 1401049356 wna ball ‘Sto Paulo | CAPITULO IV A substéncia social da memoria “Then shuts the doors On her divine majority Obirude no more Unmoved, the notes the chariots peusing f At her love gate: : Unmeaved, an emperor be kneeling Memoria e interagio Quando relatamos nossas mais distantes lembrangas, nos referimos, em geral, a fatos que nos foram evocados muitas vezes pelas suas testemunhas. Pode-se recordar sem ter pertencido a um grupo que 0 — MEMORIA £ SoCTEDADE sustente nossa meméria? Estaremos s6s quando nos afastamos de todos para melhor recordar? hriesmos ¢ fechamos a porta, nfo raro estamos convivendo Outros seres ndo materialmente presentes. A alma escoihe sua o Panhia antes de fechar a porta, segundo o poema de Ei son. Mas, daria a meméria coletiva conta da explicagio de todos os | fatos de meméria, mormente do que chamamos a lembranga indi vidual? B 0 caso das imagens remotas, tlvez da mais antiga gu consigamos evocar primeira coisa que guardei na meméria fot um vaso de lous vidrada cheio de pitombas escondido atras de ums po a “Talvez nem me recorde do vaso: & possivel que a imagem, brilhante ¢ esguia, permanega por eu a ter comunicado a pessoas que a confitmaram, Assim, nko consérvo a lembranga de uma alfaia mas a reprodurdo dela, corroborada por individuos que contetido e a form: Se assim nao S80 © nos dei- © que é comum, quando nos dedicamos a pes. quisar lembrangas remotas. Aqui, ndo s6 a alfaia esquisita ¢ « mada em sua existéncia, mas se abre para outros pontos de Suas faces ocultas so reveladas por outros olhares ¢ a forma bi Ihante ¢ esguia, sustentada por outras atengées, ganha peso, novas facetas, ese fina no cho, para ser um fruto inesgotavel da memoria, Uma jovem, que era obsecad: Que ela nao conseguia localizar, Ihe disse: "— Eugenia, es Sonos no meio da folhagem, orelhas caidas e ongas como as de ana to de capa, que deita Agua pela boca, existe sim, pore parte também das recordagdes de minha infin uma alameda do Parque Siqueira Campos nderam sua fisionomnia. Os caminhos 50 abriram, a divorce deixaram coar 0 sol, o vento varreu as folhas da alamede de eens Pereorride pela menina em busca do fil animal que também ora uma fonte 1 Gracitiane Ramos, nfénei. Rio de Janie, est Olympia. 1953, p. 7, Quando entramos dentro de nés | ASUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA — 351 Somos, de nossas recordagies, apenas uma testemunha, que io eré em seus préprios olhos ¢ faz apelo.constante 20 ie cOnfirme a nossa visio: “Ai estd alguém que no me Orencontro com velhos parentes faz o passado reviver com um frescor que no encontrariamos na evocasio solitéria. Mesmo por. ie multe recordasies que insarpacamas a9 nosso passado no sto s foram _relatadas por_nassos parentes e se consti Tembraigr de 108 a anedota do menino com a Io avo. O mesmo deve ter a queda no tanque, jéndio que atemorizou o Sr. Antonio: sto acontecimentos que marcaram também a vida de outros mem. bros da familia, que os recontaram muitas vezes, {__Ecpreciso reconhecer que m tesmo_de_nossas.idgias, no sto of Dhiversas com os outros..Com_9 eotrer do tempo, clas pa | uma histéria dentro da gente, acompanham nossa vida e sio ent { gquecidas por,experitncias e embates. Parecem tio nosses que fica: “Flamos surpresos se nos dissessem o seu ponto exato da entrada em nossa vida. Blas foram formuladas por outrem, e n6s, simplesmente, 8s incorporamos a0 nosso cabedal. Na maioria dos casos creio que este ndo seja um processo consciente. Nao se trate do que opina Machado de Assis: “As idéias alheias, por isso mesmo que nao foram compradas na esquina, ‘trazem um certo ar comum: e & muito natural comegar por elas antes de passar aos livros emprestados, as galinhas, aos papéis falsos, A provincias, ete."2 Longe do sarcasmo de Machado, queremos apenas fazer pen- comunitiio de que nos servimos para constituir o que & ‘dual. De uma vibragio em unfssono com as idéias de lum meio passamos a ter, por elaboraglo nossa, certos valores que derivaram naturalmente de uma praxis coletiva. E reflexdes, que escutamos e que calharam bem com nosso estado de alma, estdo a tum passo da assimilagdo, e do esquecimento da verdadeira fonte. Nao se trata, femos, de uma rapinagem intelectual comtum nos meios térios em que as idéias tém alto “valor de troca”, semolhantes a mercadoria. Mas, de um processo eujas fases ‘do s2o elaboradas por nossa consciéneia. Os que menos tesistem imagin: ‘mae preta sendo muitas vezes repetida acontecido com as per 94 — MEMORIA ESOCIEDADE 4 sugestio, quando cedem a influéncia extema, eréemese livres ¢ qusdnomos em seus pensamentos e decisées. Determinar a origem de uma influéncia soci roblema dificil. Ela pode ser um onto de convergénci Correntes dé pensamento coletivo. Existem valores © diretrizes para a ago que as vezes no puderam desabrochar no meio primitivo em que os vimos forme lados. E possivel que limitegdes daquele grupo o fizessem gusrlcr ssa substincia valoratia em estado virtual. Um de seus membres, | depositério de sua substincia implicita, pode vir a realise co, outro grupo onde encontrou solo favorével. Mas, é possivel tansbemn tue esqueva as ratzes distantes de sua agdo atual, Seria preciso ce os membros do antigo grupo ainda estivessem perto dele, sere vando-the a memézia, Hi fatos que no tiveram ressonincia coletivae se imprimiram apenas em nossa subjetividade. E ha fatos que, embora nhados por outros, s6 repercutiram pro! emos: "Sé6 eu senti, s6 eu compreendi, {gesaparecimento de uma pessoa que consideramos de especial valor, Podemos guardar anos, teimosamente, sua lembranca, de que nec finlimos o nico depositari fel, tendo como expectativa um grupo 0. porque temos certeza de que esse valor neyado pelo grupo {fem uma significagio que o transcende ¢ que podera ser exp. citada por nés um dia, em melhores condigdes, para outros homens ara quem nosso amigo desaparecido seré familiar, caro, inspi, rador. da meméria de D. Brites com relagdo a io. Ela relata sua pristo, sua tentativa de fuga, sua le da sepultura, o protesto contra integral composto pela mie © pela irma, que, se fol apagede do cemitério, revive aqui em sua lembranga ¢ se perpetua cone eit inhas. D. Brites esta consciente da militincia de sua momo, "Esses slo fatos que se vivem apaixonadamente na época. Devois que passou poe-se ums pedra por cima, Eu ainda giarao isso para ter uma meméria viva de alguma coisa que possé senrs juém.” Uma meméria partir de lagos de_| convivéncia familiares, entretém a me- ‘moria de seus membros, que acrescenta, u iferencia, corrige © Passa a limpo. Vivendo no interior de um grupo, softe as vieiat Kolia Faust EES eee eee eee eee lee ee ss esua demoligao, ASUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA — 333, tudes da evolugio de seus membros ¢ depende de sua interacio. ‘Quando sentimos necessidade de guardar os tragos de um amigo desaparecido, recolhemos seus vestigios a partir do que guardamos dele e dos depoimentos dos que o conhecerath. O grupo de colegas ‘mal pode constituir um apoio para sua lembranga, pois se dispersou ¢ cada um se integrou num meio diverso daquele que conheceu. Como salvar sua lembranga sentio escrevendo sobre ele, fixando assim seus tragos cada vez mais fugidios? Fui colega de classe de lara Lavelberg, cuja vida e morte precoce ¢ tragica impressionaram nossa geragio. Ela estudou ¢ for- mou-se conosco, recteio, discutimos idéias nas aulas. Muitos se lemt fa magra, de um louro quei- mado, sua vou iva. E um trabalho rduo esse, de recompo- sigo, porque muitos tragos de sua fisionomia requerem, para se completar, que se revivam nossa época de estudo, nossos ideais, rnossos mestres, nossas leituras. Cada um de nés guardou dela uma conversa, um gesto, uma pequena lembranga preciosa, Procurei seu igio em caminhos que iam dar no sertio, em escarpas que ela subiu a pé; e que alegria senti numa venda a beira de estrada a0 ‘ouvir suas palavras repetidas por uma mulher que nunca a esque- ceu! Que interesse terdo tais elementos para a geragio atual? Enconirarei uma linguagem que comova as pessoas de boje, para as °. quais seu nome pouico significa? As lutas pela meméria, eis algo de que todos temos conhecimento de causa, _corda. Ele'é 0 meuiotizador e das camadas do passado a que « ‘Hcesso pode reter cativos dentro de um D. Brites ¢ D. Lavinia souro comu: chegou em casa e foi acordar o pay porque acordei e ouvi.” E D. Lavi Primeira Guerra, foi uma coisa sem grande repercussio, mas sino que em casa, onde © ambiente era absolutamente franct houve alegria.”” 3 ~ MEMORIA E SOCTEDADE Foi ume garga- fancia.”” 3s fatos afloram lembrando a meméria-sonho. Penso que os fatos que a meméria de D. Lavinia selecionou —o primeito livro, 0 pprimeiro filme, o primeiro movimento de rua — sto ordenados pelo hoje. Sei que cla é, acima de tudo, uma mulher de agao, e foi desde Sempre. Nio se lembra de cangSes de roda ou de pregses, como a irma, mas de suas lagrimas ao avistar, do bonde, os anarquistas passando com faixas na rua, em protesto pelo desaparecimento de na, je de (fi estava orientada para ser a 4 que é: cai em pranto quando lé Os miserdveis em cinco volumes, que a admirével D. Aninha, lavadeira e grande lei- tora, conseguiu emprestados. A primeira caso Dreyfus. Sua autobiografia est pont diante da injustiga, A‘ da visita rica espera sob a chuva, 1a com 0 “Eppur si mi contado pela professora. E admirava o autor de seu livro de Geogra. fia, Reclus, que era anarquista, 56 comia pio porque era o que a humanidade pobre podia comer. D. Brites dé seu depoimento sobre a irmi em virios'pontos da sua narrativa: “Lembro-me do susto que nos deu Vivina, que era 1 terrivel. (...) Foi sempre diferente das outras, era 0 inte anos comprou o primeiro dicionario na com oitenta anos tem 0 ‘agora a mesma Que era aos leza impressionante de Vivin« t & deserita, “Brites foi sempre fechada, isolada. Donita, mas triste.” também nos impressionou) O que as recordagées tenham em comum, ou em paralelo, 60 ue esperévamios, mas 0 que nos chama a atengo sto as diferengas ‘ASUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA — 235 de observagies sobre o mesmo fato ¢ esses lembrangas em contra otto que embelezam ainda mais duas vidas jé em si-t2o belas. a Para Halbwachs) cada meméria individual 6 um ponto de vist sobre a meinoriz-cbletiva, Nossos deslocamentos alferaii esse ponto ‘sta: pertencer a novos grupos nos faz. evocar lembrangas signi- luz explicativa que convém & agio atual, O que nos parece unidade € miltiplo. Para localizar uma Jembranca nao basta um fio de Ariadne; é preciso desen ‘mieadas diversas, pois ela 6 um ponto de encontro ‘nhos, € um ponto complexo de convergéncia dos muitos plan nosso passado. Como transmi outra cidade, soterrada embaixo da atual, se no velhas casas, as drvores, os muros as rios de outrora? Subindo a rua onde morei, lembro-me de que ela se unia & Avenida Rebougas por uma transversal de calcadas altas, com de- graus. O encontro de um amigo que se tenha sentado nos mesmos degraus nos traz uma espécie de eut r de ser, por um momento, 0s visiondrios da cidade antiga que s6 existia em nés, © que, de repente, ganha a sangio de uma teste- muna: passa a ser uma lembranca coletiva, portanto uma reatidade social. O mapa de nossa inféincia sofre continuos retoques & medida que nos abrimos para outros depoimentos. Passei por essas ruas levada por outras pessoas que me ensi- rnaram a ver com seus olhos. Subi a pé, pela primeira vez, minha rua pela mao de meu av; foi ele quem me chamou a atenglo sobre a bacia de pedra no alto da rua, na confluéncia da Rua da Conso- lagdo com a Avenida Dr. Arnaldo, onde, na sua juventude, os cavalos bebiam. Na época em que a conheci, o negro Bahia lavava com aqucla Agua os automéveis ali estacionados. Outras tantas veves subi a rua com amigos que me chamaram a atengio para ‘outros aspectos dela. Se refago hoje o percurso, como posso me dizer be pretender ver s6 com meus olhos 0 que vejo? Os pontos de vista dos que subiram comigo a rua tornam minha evocago miltipla e profunda e alicergam minhas visbes. As testemunhas que retificaram uma lembranga no conse- ‘guem sempre fazer-nos revivé-la. Podemos escutar, surpresos, 0 relato de uma cena de nosso passado sem conseguir 7 ccrevem nossa atuagdo e nos sentimos estranhos 4 narrativa. Se fal- tamos nés mesmos entre as testemunhas a lembranca nfo se realiza. s outros podem precisar, mas também podem confundir nosses wf — MEMORIA ESOCIEDADE fat ‘ASUBSTANCIA SOCIALDA MEMORIA ~ 337 reconstrai ie, seadfo onde esquecemos nossa atuagio, podemos. | ge que nossos passos afundam. Dificil transpor a fancia e chegar Teconstrub-lo, aceitar nossa parte nele, mas nio nos enxergamos sjuventude, Aquela riquissima gama de nuangas afetivas de pessoas, fundo desse espeino embagado, queremos sondé-lo e ele ndv devel ‘e vozes, de lugares... Veja-se o jardim de D. Brites, recordado flor nosso rosto. j por flor, arbusto por arbusto. Pode as vezes a pessoa fixar-se no ose {auvorts da memria se nos idenuifcamos com ele @| | ponto de vista ds um certo ano de sua vide, Ouaenn oe Fazemos nosso seu passado.. Quando o grupo é efémers ¢ logo se dis — “As pequenas, Brites (com nove Sa, como uma classe para o professor, terocardierea ‘uiomar (com quatro), davam-se muito bem” — 6 0 seu iomia de cada aluno, Para os alunos as lembrangas s80 mais olhar dos quinze anos que esté observando as irmis metores, solidas, pois tais fisionomias ¢ caracteres sto sue conviveneia de 44) Fanos a fio. O grupo de colegas de uma faculdade € em geral duradouro, constitus, pouco a pouco, uma © um passado gomuns, nto raro se definindo por alguma maneira de atuar ne sociedade que caracteriza sua geragio, 0 te trio da juventude ja 6 transposto com 0 passo mais desembaragado, A idade madura com passo rapido. A partir da | dade maduira, a pobreza dos acontecimentos, « monctons eecrsaa i das horas, a estagnagao da narrative no sempre igual pode fazer-nos Outros fatores interferem na meméria, como o lugar que | pensar Tui’ remanso da correnteza. ‘Mas, no: € 0 tempo que se alguém ccupa na consideracdo de seu grupo de convivencie alate Precipita, que gira sobre si mesmo em circulos iguais e cade vex mais sprees O nandade de pontos devise, uma repartiviodesigual de | ‘PYSuPie Que gra Sobre si apreco. O membro amado por todos terd suas Palavras e gestos ano- tados ¢ verd com surpresa, anos depois, seus menores aie lente. dose . Palavras de afeto, gests de solidariedade que par. ciosamente guardados e agradecidos. Outror sects Chama-nos a ateneéo com igual forca a sucessto de etapas na meméria que ¢ toda dividida por marcos, pontos onde a significacao, ‘mais nobres, outras palavras mais doces do colega menos qrvoe fe ips crm Rata a i fsa de gue dem calr no es er dados como insignificant artcips, como o is recordadas que a Grape, tetinene eer dado como insgniicantes plo | fo Tamla arp, como o Nat formaturas, anversirios.. A sucesso de etapas no trato do passado é patente na memoria de D. Risoleta: quando ela diz dos seus “o resto esto todos enterrados 1a no Arraial dos Sousas” percebemos que a inféincia terminou, suas testemunhas se dispersaram, esto enterradas no Arraial, es frutas perderam 0 gosto, nio hé m da perdiz, da codorna, ‘Eu tenho lembrado §& passow.” As lembrangas grupais se apéiam umas is outras formando tum sistema que subsiste.enquanto puder-sobreviver 2 meméria grupal. Se por acaso esquecemos, no basta que of outros testes munbem 0 gue vivemos. & preciso mais: & preciso estar sempre confrontando, comunicando ¢ recebendo impressdes para que nossas Kembrangas ganhem consisténcia. Imagine-se um arquedlogo que= tendo reconstituir, a partir de fragmentos pequenos, um vaso an. i seiso mais que cuidado e a 1m esses cacos; & Comega uma etapa de trabatho na casa dos 8, ainda se pean amen teal teoo tale pen ooe ne E cuvem as violas de Sto Benedia no erick nae oe af Se Berlenoeu A qu fulo sev na vide daquels psoas? Tey ‘MST ats ud dome Oe re tas som fsa cede ae penotar 388 notes que es erietavam, facet um econheg, | A morte do mario sea o fim da juventude ¢ de sues eope taento de suas necesidades, ouvir 0 que Ii nde € sete ce rangas: “A gente eoquese 2" idede madre co Fecomporemos o vase ¢ conheceremos 50 fol Wont Nn fencerra coma frase que resume. irda eriagho dos fs sossego ¢ expressa no iiitimo periodo da hist6ria de D. Risoleta: imagem de S. Benedito, que fora de sua mae e que nunca deixou inha, desloca-se para a sala em que a velhinha medita, reza e fica “burilando seu espirito”, Convém refletir sobre a divisto s horas do relégio e impée uma duragio dividir-se em antes e depois de um: floral... eu criei toda essa cria." E finalmente, a idade da contemy Tempo e meméria Uma forte impressio que esse conjunto de lembrangas nos deixaéa | wiso do tempo que nelas se opera. A infancia é larga, quase sem wargens, como um chao que cede a nossos pés e nos dé a sensara | [ASUBSTANCIA SOCIALDA MEMORIA — 338 |. um lapso de abandono e de medo para a erianga, (que vé as ruas se esvaziarem, para o doente ou o asilado, A duragdes diferentes para o trabalhador bragal, para a dona-de-casa, para o escolar. As jornadas operdrias em turnos alternados seman: afetam a coeréncia da vida da roubam 0 passado e o futuro. | Inipedemi os projetos ¢ a sedimentagao das lembrangas, langam_o trabalhador num tempo mecdnico, homogénee, onde qualquer onté pode ser o de origem, onde no hi marcos de apoio. : O velho ritmo do estémago, aprendido desde a primeira infan- ia, € violentado. O ritmo do sono, do sistema netvoso sio violen- tados para seguir os vetores desse tempo sem margens. O operdrio ‘mergulha na vertigem do tempo vazio em que sua vida se decompse tembran ei ficando... NEo tem uma coi para que o objeto da indistria se integre ese componha, entendcs, nag gp ‘l~ Voo8compreendsu, mca Gabe Pate Com o oth i 7 f : ar Perdido no pi ‘Sébado, dos dido no patio do asito, o Paes Sando soy 2H, io 0 jomal que cee Atioso confess: Jost Io uteS Velhinhos © assim vas ee 882: £1 NAO gosto de pa assando o Losaa Se Passa ese tempo," Pastando 0 tempo, Mas | io, Cada grap re dilrentem en tempo da © tempo da escola, o tempo do escritro... Em meios diferentes ele no corre com a mesma exatidio, portance Hi tempo da igreja, em que a pressa fica mal, nao se deve ter gia; a gente if nenet™® | prossa de rezer... H4 0 tempo do coméreio, em que a pressa vale i ouro. O tempo do comprador nao é 0 do flanador nas ruas. Nem 0 tempo da visita intima & 0 da vista de ceriménia, H4 meios em que a Bente desconta a exatidio de outros, nto querendo saber do relogio, afrouxando ¢ recusando todo ritmo. Hi cicios, mensais e anuais Para as relagSes afetuosas... © periodo de rever um amigo & dile- rente do de rever um parente chegado. Ha um quadro orientador do bom uso do tempo social. Pertencem a esse quadro o ano litargico fico conver. ; ‘ Sey ( © tempo social absorve o tempo individual que se aproxima “Lembro vagamen Mac Tsé-Tung: ahem 0 bombardeo de Peguim, da vitori do & Lembro da reveluese com a Perda de uma pessoa amada. diferente do ano escolar, diferente do ano do lavrador... Esses anes ae eros ay (Prefissional, 0 casamento ‘trident tem ocasives de plenitude, de vazante, de recesso, de vazio. Lembre- ta de'um tompo eae IMEX Conseguimos fixer ean s¢ a sucessio das horas de trabalho penoso na oficina do St. Amadou Te gor, Quando as marés de nose ue slo, por assim dizer, de uma violenta monotonia se comparadas fa a at 8 Sabor das correnter com 0s feriadose as festas, hort! visio que nos cons. Cada geragio tom, de sua cidade, a meméria de aconteci- nvvio mals caro atvettUd® pela maturidsgey mentos que permanecem como pontos de demareagio em sua his. Faoepetes de orientagaa que trences, °° "MPO Social marcas toria. O caudal das lembrangas, correndo sobre o mesmo leito — a fazem ceder A convengin, adem nossa vontade'e nos cidade de So Paulo —- guarda esses epis6dios notaveis, que ouvimos sempre retomados na fabulagdo de seus moradores. 2S srl ee ‘Mo — MEMORIA E SOCIEDADE, fstas sto recordadas om detathes on mene Si Independéacis, em 1922, com seus fogos, sua An aesend "gada do rei da Béigica. Alguns chegaram a ver os fogos de oc volaram para devia coma sve O cee! "arro descoberto, D. Brites e o Sr. Antonio estas notves foram também o C i a, Vitra, o Quarto Centenario ds Sao Puloue at leas ce iro, conto as de Sto Vito ede Nossa Senhora Aguerople ao Bais je aa Avena Da crOnica policial ficou o crit éripécis ico lado’ Gino Amito Meneghett, que toibons os sons der a8 pobre, aa opinitounénine des memorials te 7 paoeaee fe do Sr. Amadeu, do Sr. Anténio, do ein ats i made gee eset Heeb cuategemauc more obbpe ve pti apis Goa noarSeaerogate Bin peo "As vezes ha desii . See eee ‘oa aan ae do cometa de Halley, as caperiénciss do Ta can aegis aerate com os acontecimentos extras a ae primeiro bonde, o primeiro a ‘do cinema falado, a travessia do Atlantico em avido, 0 véo a A {orca da evocacao pode depender ic av; soto Tatra dfaein, om tae meee sao ds gue ran roids por gap anya une outs de um processo de destiguragio, pois a meméria ela ta de memérias individuais. Conhecemos a tendéncia da 7 mid remodelar toda experiéncia em categorias nitidas, cheias Ge sent’ ts para o present, Mal ena 8 peep lembrangas j4 comecam a modifix exper ias, habitos, afe ne éenvendies vo tabalar « matéra da membre. Um dejo de expla at sobre o presente abe o pea intra as ros sas pes Gus pon aurea ua 0 Tembrangas com um “deseo decaplcan sere Peneea as _ASUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA —241 Bartiett, num experimento, reuniu sujeitos no gabinete de Paicologia, em Cambridge: a cada um mostrava-se um quadro ¢ ‘bava-se um conto para ler. Com intervalos variados de tempo pedia- fe sua reproducdo. Ele sempre achou lacunas nas descrigSes ¢ c-uma tendéncia da meméria a gravitar em torno de um certo Sho: em sua busea de significado os sujeltos agregam o material numa configuragao mais simples ¢ de contelido mais claro. A elabo- Tacdo com eumento de complexidade € raza: em geral se esque- Inatiza mais do que se elabors. Pode, no entanto, um aspecto ori final acentuar-se, em detrimento de outros que se apagam, seguindo Fina dos interesses, preconceitos © preferéncias do individuo. Quando Bartlett usou cadeias de sujeites que reproduziam em série 1p nas sucessivas verses 0 mesmo tipo demudanga vidual operava, porém em grau mais acelerado. ‘sujeito viu) houve sempre um encontro face a face viu falar, a desfiguracao & mais rapida, porque se um membro da série cai num erro de identificagzo teste se acentua a medida que se difunde. Voltando & passagem do cometa de Halley: ela é deserita em ormenores concretos pelo sujeito que viu, apesar da grande a temporal. Jé suas conseqliéncias mais romotas, de que se uvit falar, como guerras ou a proximidade do fim do mundo, s80 Gescritas vagamente: “Houve uma época em que os jornais diziam {que o mundo ia acabar em fogo e revolugio, As pessoas faz festas, se embriagavam com vinito, muitos se jogavam do Viaduto do Ché, Ouvi comentar, no vi com meus olhos ninguém se joger.” (Sr. Ariosto) “Logo depois que minha mae morreu, lembro de uma estrela que apareceu e foi muito comentada, o dia que a terra tremeu € 0 Papa morreu. Todo mundo saiu pra ver a estrela ¢ meu pai dizia: —Sinal nocéu é sinal de guerra, Mas a guerra acabou agora mesmo, fao vai ter mais guerra. E (eve. Era uma estrela bonita e a cauda dela pegava longe, parece que tinha luz na cauda inteirinhe. Apa- eced do lado do por-do-sol, & noitinha, uma vez. s6. Todo mundo fazia alarido: — Olha a estrela de cauda, o mundo vai acabar se 0 sol bate 7 Naturalmente, 0 grupo que assistiu ao fendmeno ajudou a reter o fato com seus comentarios ¢ ao mesmo tempo o acrescentou Je outras conotagees, bem ao gosto de D. Risolela, que quis apro- xximar tais prességios da morte de sua mie. Serf a meméria i quanto a pervepeéo origin fem certos limites porque ele viu o fendmeno. Mas entiam na érbita de outras motivagbes. Se a mem! 38 — MEMORIA E SOCIEDADE softer 0s preconceitos e tendéneias do gra; um confronto ¢ uma correcio dos relatos i salva-se de espelhar apenas os interesses © A meméria pode percorrer um longo caminho de volta, remando contra a corrente do tempo. Ela corre o perigo de desviar-se quando encontra obstaculos, correntes que se cruzam no percurso, So as -madangas, os deslocamentos dos grupos, a perda de um meio esté- vel em que as lembrangas pudessem ser retomadas sempre pelos as viveram. As transformagdes profundas por que passa a fami aperda ea chegada de novos membros sto pontos de partida. deles os caminhos se perdem, descontinuos, apagados, A crianga ouve com prazer os episédios da inféncia dos avés ‘que, & forga de serem evocados, chegam a formar um quadro com certa harmonia. Os nossos memoriosos narram com freqiléncia fatos da vida dos av6s, e até anteriores a eles, como 6 0 caso do Sr. Abel: “Aqui no asilo s6 converso com meu companheiro de quarto, meu Anténio, que também tem muito boa meméria, Tenho co- mentado com ele coisas passadas, a So Paulo de sessenta anos atris. E de um tempo ainda:mais antigo, que eu lembro ainda melhor, de uma festa no Largo dos Curros em que dangou o Conde - Raul de Carapebus.”” . Quando mortem as vozes dos av6s, sua 6poca nos apare- ‘ce como um caminho apagado na distincia. Perdemos os guias ‘que 0 percorreram e saberiam conduzir-nos em suas bifurcagdes € atalhos. E o que D. Brites lamenta com a perda de sua irma mais velha: “Minha irméo Preciosa, que tinha meméria de anjo, falava dos bondes puxados @ burro que subiam a Rua Maria Anténia..."” soe Curiosa € a expressio meu tempo usada pelos que recordam. Qual é 0 meu tempo, se ainda estou vivo € nao tomei emprestada minha época a ninguém, pois ela me pertence tanto quanto a outros, ‘meus coetineos? Essa expresso despertou também a curiosidade de Simone de Beauvoir: “Aragon no Blanche ou 'oubli notou a bizarrice dela. O ‘tempo que © homem considera como seu, & aquele onde ele concebe executa suas empresas... A 6poca pertence aos homens mais joyens ue nela se realizam por suas atividades, que animam com seus rojetos. Improdutivo, inefieaz, o homem idoso aparece a.si mesmo como um Sobrevivente. E por esta razio que ele se volta to praze-” “Fosatiente para o passado: 6 tempo que pertenceu a ele, onde ele” a | | |ASUBSTANCIA SOCIALDA MEMORIA — 345 seconsideraya um individu inteizo, um viyo."? Achamos pessimista a visdo de Simone, pois nao $¢ a eee D. Brites afirma, categérica, que “meu fempo foi 0 tempo a ra, que tive o convivio das eriangas”. i aera 1a ser de seu tempo “Se wx ogra mn ee ligo: — Foi naquele tempo que Jesus andava no mundo (...) 2 Fe ne es wer eration ou fea Sc a recordar.” : bra O Sr, Anténio reflete melancolicamente sobre seu. ae Teo cheb ea Ba) Oe dos ae me A Mas o Sr. Amadeu continua na ativa: “Sou aposentado mas, ainda fago alguma coisa daquilo que. Fea a en repo 7) ae ms ‘ el confessa: “Passel ar de tudo 0 que tem softido, 0 Sr. Abs pelo Santa Cruz, um inferao de loucos ealcoélatras, onde ela me ‘ernou, mas sou ums Homem inteiro ainda. ; sn opinito do neto, D. Risleta superou as pessoas mais jovens:"-- Mamie, voc esté muito atrasada. Voc8 sabe que a vo {2th duzentos anos na sua frente?" Hittite "Se eu enxergase'™, ela nos disse, “queria ir até os com anos nao tinha importéncia ni. Eu nao me sinc vey me sinto mos Tahal" Vivero tempo parece de fato para cla uma experiéncia yer mais transiécida. on D. Lavinia alravessa_nosia époce como poucos: “Vive, 0 recente, o futuro, $6 agora fiquei voltada para o passado, (Ela q Sher aa ‘Aida 60 presente. (..) A vide € uma 1a i ‘espiritualment sempre tango, Perse que ia ter uma velhiceespritualmente cr Pg gente continua dando murros em ponta de faca. Sempre remel contra a corrente.” 3 Laviilesse, p48. 44 — MEMORIA E SOCIEDADE Este sempre vem da infanci sempre: desde menina, A gente nfo sabe em que idade comega Srresontimento que ver da separagao de classes, que ev nao pude Sunca compreeader. (...) Estou com oitenta anos. (,..) Trabalho agora em auxilio dos refugiados. Na luta pela ar falitices vou, mas nao acredito que haverd anistia. Vivo sinda esperando algo de bom.” Guardar intacta no plano da asdo essa experanga, que um co mostra ser quase sem fundemento, af esta, pare injustiga social me calov exame” ci ‘Simone Weil, a propria esséncia da coragem. Desses exemplos nos fica a idéia de uma apreensio do tempo dependente da agao passada e da presente, diversa em cada pessoa. Um tempo que fosse (0 € a-social nunca poderia abarcar lembrangas € nao constituiria a natureza humana. E esse, ‘ouvimos, tempo represadoe cheio de contetido, a cia da meméria. NN Lembrangas de familia forma a substin- As lembrangas do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de seus membros € cot uma meméria a0 mesmo fempo una e diferenciada. Trocando opinides, dialogando sobre fo, suas lembrangas guardam vinculos dificeis de separar. Os tos podem persistir mesmo quando se desagregou o néicleo ide sua historia (eve origem, Esse enraizamento num solo comum transcende 0 sentimento individual, ‘Quem penetra um grupo familiar, através do matrimonio, por exempio, encontrara uma atmosfera a qual deve adaptarse; uma nidade e coesdo que se defende o quanto pode da mudanca. Essa luimosfera propria, essa forga de coesio the vém do fato de que ela Tepresenta uma mediagio entre a crianga e 0 mundo. Todos os acontecimentas de fora chegam até a erianga tados pelos parentes. Hoje se meios de comunitacéo. D. Bi portio fechado, nés viviamos ali dentro e entrava s6 quem nossa inde achava que podia entrar, que devia entrar. Agora nao, voc? esté fechada dentro de casa e cata pelo ar tudo quanto é anéincio. Voce do tem mais uma casa fechada.”” ‘que agora conhecemos ¢ restrita ao grupo conjugal & ‘geral poucos; inclui cada vez menos parentes, agre- sgados e protegidos. Uma larga parentela de tios, primos, padrinhos, fava de tal maneira o nGcleo conjugal que cle se sentia parte de Nos moldes de hoje a familia — em estrito senso — roa cca que | |ASUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA ~ 345 roma contra a maré de uma sociedade concorrencial, onde a perda Ge um de seus pouces apoios é absolute ¢ irreme: Falta-Ihe 0 Savolvimento da grande familia de outrora em que o bando de primes fazia as vezes de irmaos, ¢ onde tios, parentes ¢ agregadas acompanhavam a crianga desde 0 ber¢o. ‘O adolescente atual nao alcanga compreender a ansiedade dos pais quando ele se afasta¢ dra: “Para gue me querem em case se ree tranco no quarto para ler ou ouvir mésica?” Essa pouca pre Tanga, quase auséncia do filho sob o mesmo teto ja trez um certo Sentimento de ndo estar s6e seguranca a triade famitiar. ‘Quando a familia estaciona e j@ nao dispde de meios para serescer, nao esquece os membros que a deixaram e procura det lerrando-se aos elos que os ligavam. Sao os velhos ills e sobrinhos, ficam evocando seus primeiros ‘observa Halbwachs, sempre espera a volta do filho comportando-se como quem o esqueceu. fia desenraizada nos centros urbanos ainda possui uma wo capaz de integrar pessoas de diferentes classes forga de ot Conbmicas, credos politicos ¢ religiosos opostos. Um erenca reli- giosa tera 0 peso que ela The confer membro de si. Quanto & distincia fis Jproximagio: o membro distante pode tornar-se uma figura mitice, soreda de forma especial. Enfim, das oposigdes exteriores pode & familia tirar forga para o estreitamento de seus vinculos. Na Roma antiga 2 terra pertencia para sempre & familia que & cultivava, que nela enterrava seus mortos ¢ erigia 0 altar dos deuses Tenet Terres familia, religito comungavam no mesmo espirito. Na eee ge eulkivavam 0 alimento e a meméria dos vivos € mortos, Chuvas, sementeiras, poda, colheita eram ciclos 4: sm as festas, 0 rejuvent “como na Roma antiga, seus « fo, nao se pode negar que tenha um Sspinito seu, uma maneica de ser, lembrangas e segredos ave nko Gisam das paredes domésticas. E tem suas figuras exernp\a Pisjelos, cuja fisionomia se procura reconhecer nos mais jov avés lendarios it seus um trago distintiro, Qualidades e def Satisfagdo: “Temos mfo-aberta em noss distrafdos e impulsivos". A histéria da fa crianga, se Ha epishdios antigos que gostamos de repetir, pois a atuagio de uni parente parece definir a natureza i ft fica Sendo uma atitude-simbolo. Reconstituir 0 episodio é tra serpal do grupo ¢ inspirar os menores. Podemos reconstri ¢ pode, ou nao, afastar um é as vezes, um fator de Ho — MEMORIA ESOCIEDADE, periodo a partir desse episédio. Tocamos sem querer na Histor hos quadros sociais do passado: moradias, roupas, costumes, guagem, sentimentos, como fez D. juando vejo aquele fando do Largo do Arouche lembro tudo isso. Do quadro do Flor sua barba de tran viva a Repilblical 1a Alice com set avental engomado observa as casas . as donas de batas entremeadas com rendas ag chaves no c6s da saia, medindo tudo; porcelana, como se dizia — na janela. O ambiente podia ser-the propicio ou adverso (entio ela ¢ trancada na dispensa, onde recebe o prato de comida). Sen quartinho de telha-va ccontrasta com 0s palécios onde sua mae trabl ras cheias de cantigas e brincadeiras. As ruas per ériangas pobres que ndo tinham jardimi, €5 bons vizinhes prolongs: ‘vam 0 carinho doméstico. ‘As salas onde a jovem Risoleta s6 pode permanecet de pé, ‘como negra, sdo as mesmas em que o jovem Abel via conviver seus parentes. E nbs temos o ambiente descrito por dois pontos de vista Zmmulténeos. Muitas lembrangas, que relatamos como nossas, mer- gulham num passado anterior a nosso nascimento © nos foram eontadas tantes vezes que as incorporamos 20 nosso cabedal. Entre Glas, contam-se feitos dos avés, mas também nossos, de que aca- amos “nos lembrando", Na verdade, nossas primeiras lembrangas pao silo nossas, esto ao alcance de nossa mio no relicdrio trans rente da familia. De onde vem, a0 grupo familiar, tal fora de cocsio? Em fortemente ; se filho, tornar-se vineulo que o ata & sua fami ‘Jodo do Pedro, 0 “meu Francisco” para a mie. Apesar dex de destino nas relagdes de parentesco, nao hi lugar ‘onde a personalidade tenha maior relevo. Se, como dizem, @ comu: nidade diferencia 0 in Como a familia valorizar tanto a diferenga de pessoa a pessoa. ‘Examinamos criticamente, longamente, nossos parentes. Vi se formando de cada um, em nés, uma imagem complexa ¢ rica de fnuangas, capaz de abranger mudangas de comportamento que pare- cem inexplicaveis aos de fora. et ‘a, Vow me chamava de minha mulata quando eu | ihas. © papagaio iuo, menhuma comunidade consegue |ASUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA ~ 247 Segundo Halbwachs, em nenhum outro lugar da vida social a convengao importa menos. Julgamos um parente pelo que ele € na vida diaria endo por seu status, dinheiro, prestigio. A face que ele ‘mostra a outros grupos nao é a mesma que s¢ expoe a0 julgamento conereto dos seus. Exprimindo essa duplicidade hi um ditado francés: “oie des rues, douleur da la maison" ou 0 acre ditado brasileiro: "Quem no te conhece que te compre”. ‘Temos de um parente a imagem prescrita pela sociedade com seus respectivos papéis: o irmlo, a m&e, o pai, com regras de ‘desempenho que devem ser seguidas. E outra imagem mais esponta nea ¢ sensivel, sempre em reconstrugio. No é raro que as duas concepgées se confrontem e uma faga ver as deficiéncias da outra. A imagem social jé fixada pode ser minada pela escavacio de uma ‘experiéneia pessoal mais rica e profunda. Os parentes se afastando e morrendo, as testemunhas desaparecendo, a imagem empalidece, as Tacunas creseem. Em cada fase da vida vio se alterando de leve os tragos do parente em nossa lembranga. 7 ‘A imagem de nosso pai caminha conosco através da vida. Podemos escolher dele uma fisionomia ¢ conserva-la no decurso do tempo. Ela empalidece se no for revivida por conversas, fotos, Ieituras de cartas, depoimentos de tios e avés, dos i freqientava, de seu meio profi 1» Tudo isso nos ajuda a cor wras derradeiras? Ou recuarei no tempo jagem mais juvenil? Vejo que sua figura no cessa de "ela caminha ao meu lado ¢ se transforma comigo. Tragos afloram, outros se apagam conforme as condigbes da vida presente, dos julgamentos que somos capazes de fazer sobre seu fempo, Nos velhos retratos, o impacto da figura viva vai-se apa- gando, ou vai sendo avivada, retocada. ‘Tal como as plantas, que na estagao da seca se imobilizam ¢ brotam nas primeiras chuvas, certas lembrangas se renova ¢ em certos periodos dio uma quantidade inesperada de folhas novas. Como planta que se fortalece com a enxertia — outros ramos se nov rutrem de suas raizes e fru movado, chamando para sia seiva dos galhos originais — a enxertia social nao deixa que as lembrangas se atrofiem, E se desaparecessem todos 0s meus parentes? Durante muito tempo conservaria, mescladas & minha, suas lembrangas de episd- dios familiares. Mas, se todos os parentes se extinguissem nio fencontrariamos, por acaso, outras pessoas que conheceram noss0s ueridos ¢ para quem seus nomes ainda queiram dizer alguma Goisa? E egsas pessoas no poderiam contar, ainda, algum episédio HS — MEMORIA ESOCIEDADE. de suas vidas? Se nossos mortos recuam, se a distancia se alonga entre nés, a culpa nao é do tempo, mas da dispersio do grupo onde viveram e que sentia necessidade de nomed-los, de chamé-los de vez em quando. « A figura materna pode ser descrita morais, ou mesmo através do seu trabal , mas a vida era muito sofrida, crianga de trés anos, ou mesmo majorzinha ado da filha, ajudando a criar os netos, D. cago. (© Sr. Amadeu desereve sua mie, que “era franzina, mitida, clara, cabelos pretos, olhos castanhos. Era muito calma,.tinha ‘ieou doente de desgaste, muitos filhos, nuit i 1a turma, gostava mi i zinho, mas minha mae era mui historias para a gente dormir. ‘A mie do Sr. Ariosto € evocada no seu trabalho caseiro: acendendo o fogdo a lenha, regando 0 jardim, contando hist6rias, dangando com 0s ‘Mas, as lembrangas giram sobretudo em ‘torno da aliment {0 fundo do quintal assava pao num forno redondin! os. (...) Ela fazia as pagnottas redondas e quando ‘2 gente tinha fome ela cortava no brago uma fatia, cortava 03 pao, com sal e azeite estrangeiro. A gente | tomatinhos e pun; comia com prazer.” “Eu estava sempre na saia de minha mae.”” ‘O Sr, Abel descreve em répidos tragos a cabeleira negra de sua mie, 0 cidime que tinha de seus namorados, 0. mimo que dela recebeu na juventude, 0 excesso de protecdo: “Lembro que fui com minha mae, de carro aberto, & festa do Centenario, em 1922. Ela 1p8s éculos e echarpe. Chovia pra burro, ¢ minha mae, coitada, se ‘molhando e fazendo tudo pra eu nto me molhar."" clara, gorda, mas se movimentava mi ‘nunca apanhamos dela, mas mex castigos.” Lembra 0 Sr. Antonio, que se vé ainda engatinhando: “Lembro que eu arrastava meu corpo todo no pedregulho. Ai entio minha mie me socorria."” Essa mie enérgica, que jogava o lampiio na rua quando se reuniam jogadores de baralho em sua casa, ‘emerge As vezes de angustiantes cenas domésticas. D. Lavinia evoca a trabalheira de sua mie, doente, casa e da criagio dos filhos quando 0 marido se ausentav era profundamente boa”. “Minha mae era uma pessoa trangiil que sabia acomodar tudo. Conosco também mame mio criava problemas: nunea sentimos sua predilegzo por um filho. Ela’ era ta da + iemas: — Deus me |ASUBSTANCIA SOCIALDA MEMORIA — 349 as vezes desconfiava que ela estava fazendo uma estava sentada, quieta, concentrada”, Eis como a vé Tolerdncia, bondade, firmeza sao tragos descritos do carater dessa matrona que nio admitiu missa de 7° dia para o'marido, livre-pensador. “Em 1919 isso foi um escndalo. Ele néo botou vela, ‘na mo dele, nio mandou encomendat 0 corpo nem vir padres para oenterro, eera ci ...) Mamie era nosso esteio ¢ a falta desse esteio foi terti ‘Uma mie doente, fraquinha, dentro de casa, todo mundo respe Eu dizia a minhas elas para defenderet outros. Tudo isso a me formaram: foram meu pai, minha m muito austefo.”” E através de seu trabalho que D. Risoleta fala da mae: “Minha mae fazia farinha de mandioce, de milho, tudo para vender ajudar meu pai criar os filhos. Ele era um homem doente, ja no podia mais trabalhar. Minha mie lavava roupa pra fora, dessa familia dos Penteado de |. Et i que meu pai, mas era boni laranja, tachadas de goiabac mie era carinhosa com os filhos cera mais severo que ela: ela também respeitava muito ele.” ‘Um exemplo da complexidade da lembranca é 0 da sua morte jade com as filhas dos ‘Nao foram os livros que ‘9 modo de vida de casa enquanto preparava farinha de milho. Nao vou transcrever aqui trechos da deserigao, remeto novamente & sua Ieitura, pois consi 'D, Risoleta medita dero 0 ponto alto de toda a meméria que coll ‘sobre o produto da faina de sua mae sendo vendi pessoas inconscientes, que nao avaliam o sacrificio ali contido. Estendendo aqueles panos alvos na grama, mexendo o tacho no fogaréu, dando beijus para os filhos, acudindo a farinha Teodora ia trabalhando ¢ morrendo. Na narragio da filha mis- turam-se os planos de seu trabalho e de sua morte, os panos da fatinha e os lengbis da agonizante, A figura paterna é alvo de uma apreensio de tragos espiri- twais, no fisicos, também, como acontece com a figura materna. Creio que isso se 48 pela presenca mais concreta da mae na vida do Jar, onde 0 contato corporal mie-crianga constitui as primeiras relagdes afetivas, Salvo em D. Alice, que viveu s6 com a mie, as foutras mulheres descrevem a figura paterna como central. Essa 4289 — MEMORIA BSOCIEDADE, figura foi realmente 0 eixo que norteou a vida de D. Lavinia, e D. Risoleta desereve graciosamente esse pai inspirado, cantador, curador, que quando queria sé falava em versos. ‘0 Sr. Abel mio conheceu seu pai, bacharel que morreu de hemoptise antes dele nascer. O Sr. Anténio evoca o pai com ressen- ‘imento; tinha impetos de defender a m&e mas ainda nfo nha forgas para enfrenté-lo: “Eu gostava mesmo é de minha mae, mais que de meu pai. Mas também nunca odiei meu pai. Uma ocasito ele se bateu tanto que quase me matou.” (0 Sr. Ariosto lembra com ternura o mestre de caligraf pintor que o Tevava pela mio quando ia vender seus qua: ante de um lar as vezes faminto.. Como o Sr. Ariosto, o Sr. Amadeu comove-se com as lides do alfaiate que trabalhava quatorze, quinze horas por dia e que faleceu 1925 de uma dleera no estémago. O bondoso e sensivel irmao sais velho assume entfo 0 papel de pai. Sobre irmaos € preciso notar que na mai fixados na infaneia e que depois sua figura empalidece © apenas sobrevive no menino ou menina que foram. Sua personalidade se delineia na infancia e permanece assim. Entre os parentes evocados — pai, mae, itmaos, avés, tos ¢ primos — seria preciso notar que a figura do avé e da av6 pode ter tum relevo tho grande quanto 0 dos pais. O siléncio dos narradores sobre os avs é devido a quebra das raizes familiares pela imigragao; eles no conheceram os avés, que ficaram na Europa. Mas, para D. Alice, a/av6 faz as vezes de mae enquanto a das vezes so 1a @ 0 Sr. Abel, 0 avd é a grande figura da infancia, a mais, jamente recordada. “Meu pai e minha avé foram escravos, yendidos como se vende porco. Quando tinham sorte eafam nas maos de um sind que ‘do judiava deles, Conheci bem « mae de minha mae, Marcelina Maria da Conceig%0, que acabou de criar todos nos. Quand su ficamos precisando de afeto ¢ ela era uma velhinha ” recorda D. Risoleta. ‘era meio bravinha, queti fizesse suas coisas mas nunca vi bater em ninguém conta da criangada porque minha tis também trabalhava, como nha mie." Mais adiante: “Todas as pessoas daquela ruarinha rabalhavam na fabrica. Eu ficava com minha av6, que ra, que a olhava por ASUBSTANCIA SOCIAL DA MEMORIA — da Hist6ria, viv seu boné de batalha furado por descendo até o peit enérgica, ela gostava da gente empurrando, seca com os netos.” Se D, Brites nao recorda tanto o avé paterno quanto a irma é porque o perdeu muito nova, mas guarda ao pé de seu leito a cadeirinha que ganhou dele ha setenta anos. Essa av6 seca, que “gostava empurrando”, a velhice vai tornar complacente com os altimos netos, sem perder contudo a verve maliciosa. Chora de rir quando a neta senta sobre as cartas do jogo de baralho, aninha as criangas no cole para contar historias: “Ela prendia 0 cabelo s6 com pente; a gente tirava o pente da cabega de vyovd e penieava, penteava... (...) Vov6 era muito engrasada, falava pouco mas com dose certa e com veneno certo. Tinha sempre uma ‘quadrinha pronta,” Aparece ainda na janela apostrofando Ruy Bar- D. Brites fugia para a casa de seus avés: do que da minha casa, tanto que sentia angést despedir, quando tinha que voltar.” A figura do avd é jostava mais de 1a ‘na hora de me bel, desde 0 até seus tltimos anos, quando revive em seu filho menor. O dltimo filho do Sr. Abel pergunta: ““— Pai, quem 6 que gosta mais do senhor? = Acho que é voc8, meu fitho. “— Eantigamente, quando o senhor era pequeno, quem é que ‘ostava mais do senor? Bra meu av6. “— Mas é Tégico que era seu avb, porque eu sou seu avd.” Ainda hoje, no asilo, o Sr. Abel no dorme sem pedir-Ihe a béngdo. Se a avo aparece brevemente em sua lembranga, 0 avd aparece como heréi, o sabio que fala todas as linguas, aquele que 0 etiou. Dorme até trés anos na sua cama, dos quatro em diante no seu quarto, © s6 depois que o av 0 abengoa. Esse avd jogador que chora seus pecados aos pés da cama do menino é a tinica certeza de sua vida, o que esconjura as sombras que ho de vs — V6, eu sonhei outra ver, o Santa Cruz era um hospit estava Internado Ta, era ut tinha uma descida com um porto enorme que se bata, batia, batia, ¢ quando abria, a gente tina que correr, corre, correr pulando... B 382 — MEMORIA SOCIEDADE 4 minha mesa era a dltima... E eu i Dei Por isso, na hora do urutau-au-au, na hora do saci ¢ da mula-sem-cabesa, espera até tarde o barulho, plop, plop, do seu sapato, voltando. woe Os amigos ¢ parentes que se perderam aparecem fixados na sua idade jovenil ou no gesto de amizade que fizeram um dia, Deles se escolhe uma face ideal que se perpetua: 0 irmo travesso, 0 amigo

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