Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
Rádio Comunitária: cenários de resistências e possibilidades alternativas
Cristóvão Domingos de Almeida
Gisele Souza Neuls
Joel Felipe Guindani
Resumo
A proposta deste artigo é compreender em que medida a rádio comunitária Quilombo FM proporciona
práticas sociais no bairro Restinga, região periférica de Porto Alegre, RS. Para alcançar tal objetivo,
discutiremos o conceito de rádio comunitária, para em seguida, identificar a sua aplicabilidade na
atividade desenvolvida pela emissora em estudo. Para isso, identificaremos no processo histórico da
emissora, bem como na sua programação, veiculada semanalmente, e ainda, na formação dos
comunicadores populares, as práticas de comunicação social que geram o desenvolvimento humano, a
justiça social e a ampliação do exercício de cidadania. A análise evidencia, entre outros aspectos, que a
rádio comunitária é um espaço de resistência e possibilidades. Resiste ao determinismo e possibilita a
produção de experiências alternativas e de reconhecimento dos saberes locais.
Palavras‐chave
formação de comunicadores; rádio comunitária; Quilombo FM; cidadania.
Abstract
The purpose of this paper is to understand the extent to which community radio Quilombo FM provides
social practices in the Restinga district, peripheral region of Porto Alegre, RS, Brazil. To achieve this goal,
we discuss the concept of community radio and then identify its applicability in the activity developed by
the broadcasting station under investigation. For that, we identify, in the historical process of this
company as well as in its programming, weekly broadcasted, and in the formation of people engaged in
popular media, media practices that generate human development, social justice and expansion of the
exercise of citizenship. The analysis shows, among other things, that community radio is a space of
resistance and possibilities. It resists determinism and enables the production of alternative experiences
and acknowledgement of local recognition.
Key‐words
community communication; community radio; FM Quilombo; citizenship.
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
Introdução
A comunicação comunitária é um movimento consistente e crescente em toda a América Latina e no
Brasil há mais de 30 anos. Christa Berger (2008, p. 247) observa que “é entre o final dos anos 60 e início
dos 70 que se inaugura uma reflexão efetivamente latino‐americana sobre a comunicação”. Para essa
autora, isso ocorre por conta dos cenários de efervescências sociais apresentados nesse momento
histórico.
A comunicação comunitária se constituiu, nessa trajetória, como espaço de democratização da
comunicação, exercício da cidadania e fortalecimento de identidades culturais, gerando nesse percurso
histórico um sólido programa de formação de comunicadores. Eles foram verdadeiros multiplicadores
de experiências que visavam a emancipação dos sujeitos. Um exemplo de intervenção social se expressa
no Movimento de Educação de Base (MEB), que teve início em 1961, com a instalação de escolas
radiofônicas em diversos estados brasileiros. Nos dois primeiros anos, o trabalho era limitado à
alfabetização e à divulgação de noções elementares de saúde, de associativismo e de procedimentos
técnicos na agricultura (FÁVERO, 2006). Nos anos seguintes, o trabalho do movimento passou a
requerer “a transformação da realidade para a libertação das classes dominadas” (FÁVERO, 2006, p. 89).
Vale dizer que a maioria dessas experiências foi brutalmente interrompida durante o governo
autoritário.
De lá pra cá, os movimentos populares vêm criando alternativas para garantir o acesso e a circulação
das informações, chamando a atenção para a questão da democratização da informação (PERUZZO,
2004) e possibilitando que os sem voz possam dizer a sua palavra. Entretanto, o funcionamento de
alguns veículos comunitários é instável, o que ocasiona uma participação efêmera e limitada dos
sujeitos e da comunidade. Há um conjunto complexo de motivos para isso, que incluem dificuldades de
acesso a regularização do veículo, questões políticas, limitações técnicas e econômicas, entre outras.
Diante dessas questões, este artigo trabalho se propõe a compreender em que medida a Rádio
Comunitária Quilombo FM 88.3, proporciona ações sociais no bairro Restinga, região periférica de Porto
Alegre, RS.
Para darmos conta dessa demanda, estruturamos este artigo da seguinte forma. Primeiro situaremos
conceitualmente o rádio enquanto um veículo comunitário. Em seguida aproximaremos os conceitos de
rádio comunitária e comunicação comunitária com propostas que geram ações emancipatórias. Por fim,
para verificar a aplicabilidade desses conceitos, faremos um breve resgate histórico da Rádio
Comunitária Quilombo FM, da sua programação veiculada semanalmente, das apropriações das
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
informações por parte dos comunicadores da emissora, tendo como propósito identificar como essas
ações geram práticas que possibilitam o desenvolvimento humano, o reconhecimento dos saberes locais
e o exercício da cidadania.
É preciso esclarecer desde o início que nem todas as interpretações sobre o conceito de comunicação
popular e rádio comunitária são possíveis de serem esgotadas, mas o nosso esforço é trazer a temática
para discussão e, ao fazer isso, compreender melhor a formação do sujeito, das suas identidades e da
preservação da memória local. Por isso, a pergunta que fica como pano de fundo é: o que podemos de
fato saber sobre as práticas adotadas pelas rádios comunitárias? Elas estão contribuindo com a
formação de identidades? Como as rádios comunitárias podem ser um espaço de promoção ou de
ampliação das políticas públicas em uma comunidade? Como as rádios comunitárias facilitam o exercício
da cidadania?
1. Radiodifusão: do popular ao comunitário
O rádio pode ser entendido como uma “tecnologia que surge, trazendo em si promessas, discursos,
potencialidades, projetos, esquemas imaginários, implicações sociais e culturais (BIANCO, 2004, p.
317)”. Além da praticidade tecnológica, o rádio continua
modernizado, refeito, revigorado; ele já não é aquele de Getúlio Vargas nem é
o palanque sonoro da ‘identidade nacional’; é mais variável, diverso,
multifacetado, fragmentado... e imprescindível. Um pouco distante de ser um
congregador nacional, assume com força e propriedade o de “agregador local,
um porta‐voz da cidade, um agente comunitário (BUCCI, 2004, p. 8).
Nascido em berço de ouro e sustentado pela elite, aos poucos o rádio vai se popularizando, produzindo
uma linguagem singular que fascinava ouvintes de todos os estratos sociais. A agilidade e a facilidade
em ser compreendido por um público cada vez mais plural continuam fazendo de tal tecnologia “o
melhor e mais eficaz meio a serviço da transmissão de fatos atuais” (PRADO, 1989, p. 18). De custo
reduzido e de fácil acomodação como, em cima do armário, ao lado da cama, pendurado em uma
árvore, dentro do carro ou dentro do bolso, este veículo de comunicação passa a irradiar os mais
diversos conteúdos a um número cada vez maior e mais variado de pessoas.
Podemos compreender e conceituar o rádio não apenas como um instrumento técnico, mas como um
espaço de inter‐relações humanas, de contato, de afetividade, de cooperação mútua, de partilha, entre
outras possibilidades de acesso. Este espaço, não apenas tecnológico, é dotado de potencialidades que
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
através da intervenção humana orienta novos caminhos para aqueles que dele se apropriam. Como
aponta a professora Denise Cogo (2004), os meios de comunicação possuem suas lógicas,
ao mesmo tempo em que também esses atores e movimentos se apropriam e
reelaboram tais lógicas, transformando a esfera das mídias em um espaço
simbólico de conflitos, disputas e negociações” (COGO, 2004, p. 43).
Desta mútua relação entre rádio e sociedade emergem novas expectativas e fazeres entre ambos.
Direcionando nossa reflexão especificamente para o rádio de formato comunitário, iremos descobrir
outras dimensões que realçam ainda mais a complexidade e a inesgotável eficácia de tal meio de
comunicação. Nas palavras de Haussen,
[. . .] a característica principal do veículo continua sendo a da proximidade com
a comunidade local. Se a televisão aberta tomou para si o papel que a Rádio
Nacional desempenhava, se a globalização e a tecnologia trazem cada vez mais
as informações mundiais, cabe justamente ao rádio, devido às suas
características inerentes, promover as informações locais [. . .] (HAUSSEN,
2004, p. 61, grifo do nosso).
Amplamente, podemos afirmar que esta junção entre os termos “comunicação” e o “popular”, diz
respeito às ações comunicacionais ligadas à luta do povo, ao protagonismo que emerge dessa parcela
historicamente desfavorecida no que tange as condições materiais e humanas de vida. De acordo com
Cicília Peruzzo (1998) é necessário levar em consideração que por comunicação popular se podem
compreender processos variados, o que lhe confere características singulares. Desde os pequenos meios
de comunicação popular dirigida até os de comunicação grupal e os de comunicação massiva, as formas
de gestão e execução não são uniformes. Como exemplo dessa diversidade, citamos os meios de
comunicação denominados populares que ocasionalmente, ou quase nunca, oferecem espaço para a
“voz do povo”. Por outro lado, alguns meios de comunicação comerciais, mesmo que raramente,
desenvolvem trabalhos sociais como também abrem seus microfones para uma diversidade de vozes.
Uma definição compartilhada por autores como Gouveia (2002) e Gomes (1988), é a de que as
tecnologias de comunicação vão possibilitando espaço para a vontade popular falar e fazer uma difusão
em grande escala de suas ideias, de sua cultura e de uma leitura de mundo sem a benevolência
oportunista das mídias tradicionais. Para esses autores, a comunicação popular emerge quando os
sujeitos, sendo na maioria das vezes impulsionados pelas condições adversas e marginais de vida,
buscam romper com os espaços hegemônicos de comunicação.
[. . .] O alternativo estaria no processo de criação conjunta, diálogo, construção
de uma realidade distinta na qual a pessoa seja sujeito pleno. O que torna a
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
[. . .] tão comunitárias podem ser as rádios privadas quanto as públicas, as
religiosas, as laicas, as universitárias, as municipais, as sindicais, as de
propriedade cooperativa, de organizações populares, de ONG’s, ou até
mesmo, se três meninos se juntarem para fazer seu próprio transmissor
(LOPES VIGIL, 1995, p.55, tradução nossa)
Para Lopes Vigil, “o importante é a liberdade e o pluralismo de ideias” (LOPES VIGIL, 1995, p.52,
tradução nossa). Segundo ele, o conceito de radiodifusão comunitária ganha um status mais flexível e
dinâmico, pois
[. . .] toda voz, independentemente do canal por onde se transmite, pode
enriquecer a opinião pública e favorecer as relações sociais (…) Tem uma
quantidade impressionante de programas comunitários sintonizadas nas
programações das emissoras comerciais [. . .] (LOPES VIGIL, 1995, p.52,
tradução nossa).
Por outro lado, esta abertura dada ao conceito suscita‐nos certas questões: Enfim, quando se pode dizer
que uma rádio é ou não comunitária? Para Lopes Vigil “basta olhar os objetivos dessa rádio. O que
buscam? A que fins se dedicam. O caráter social dos meios de comunicação é o elemento determinante
no tema que nos ocupa” (LOPES VIGIL, 1995, p.54, tradução nossa). Para identificar com mais
propriedade os limites do que caracteriza a comunicação comunitária, Lopes Vigil faz uma ponderação
sobre as rádios comerciais, cujos fins estariam orientados para o lucro financeiro e não para o
“desenvolvimento das comunidades” (LOPES VIGIL, 1995, p.54).
Quando uma rádio promove a participação dos cidadãos e os mesmos definem
seus interesses; quando responde aos gostos da maioria e faz do bom humor e
a esperança sua primeira proposta; quando informa verazmente; quando
ajuda a resolver os mil e um problemas da vida cotidiana; quando em seus
programas debatem todas as ideias e respeitam todas as opiniões; quando se
estimula a diversidade cultural e não a homogeneização mercantil; quando a
mulher é protagonista da comunicação e não uma simples voz decorativa ou
um anúncio publicitário; quando não se tolera nenhuma ditadura, nem se quer
a imposição musical; quando a palavra de todos é pronunciada sem
discriminação e sem censuras; essa é uma rádio comunitária [. . .] (IDEM,
tradução nossa).
Compartilhando com Lopes Vigil, Peruzzo (2007) alega que a rádio comunitária que faz jus a este nome é
facilmente reconhecida pelo trabalho que desenvolve. Ou seja, transmite uma programação de
interesse social vinculada à realidade local, não tem fins lucrativos, contribui para ampliar a cidadania,
democratizar a informação, melhorar a educação informal e o nível cultural dos receptores sobre temas
diretamente relacionados às suas vidas. Ainda destaca que uma emissora radiofônica comunitária
possibilita uma participação ativa e autônoma das pessoas residentes na localidade, bem como de
representantes de movimentos sociais e de outras formas de organização coletiva na programação, nos
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
processos de criação, no planejamento e na gestão da emissora. Estas ações, enfatiza a autora, balizam‐
se por princípios de comunicação libertadora os quais têm como norte a ampliação da cidadania.
É oportuno salientar, por outro lado,
[. . .] não ser necessário que uma única experiência comporte ao mesmo
tempo todas as dimensões apontadas, pois fazer comunicação comunitária
implica um processo que tende ao aperfeiçoamento progressivo,
principalmente, quando assumido coletivamente [. . .] (PERUZZO, 2007, p.70).
Nesta mesma linha, Alfonso Gumucio‐Dragon (1998) ressalta que a presença de uma emissora
comunitária, mesmo que não totalmente participativa, tem um efeito imediato na população. Para ele,
[. . .] pequenas emissoras geralmente começam a transmitir música na maior parte do dia, tendo assim
um impacto na identidade cultural e no orgulho da comunidade. O próximo passo, geralmente
associado à programação musical, é transmitir anúncios e dedicatórias, que contribuem para o
fortalecimento das relações sociais locais. Quando a estação cresce em experiência e qualidade, começa
a produção local de programas sobre saúde ou educação. Isso contribui para a divulgação de
informações sobre questões importantes que afetam a comunidade [. . .]. [1]
2. Comunicadores populares: sujeitos da sua história, cidadãos da cidade
Desde as primeiras rádios comunitárias montadas por jovens de periferia que entendiam algumas coisas
de eletrônica até o expressivo movimento dos dias de hoje, a comunicação comunitária tem sido um
campo fortemente marcado pela educação prática, pelo saber fazer [2], pelo processo de aprendizagem
baseado na observação, imitação e experimentação. Ao lado desse processo educativo, há uma
diversidade de iniciativas de formação de comunicadores comunitários através de oficinas promovidas
por movimentos sociais, escolas, universidades, sindicatos; produção de cartilhas, panfletos e materiais
de orientação e até mesmo iniciativas mais institucionalizadas, como os investimentos do Ministério da
Cultura no fomento de Pontos de Cultura voltados para a comunicação comunitária.
Entretanto, mesmo com um cenário mais favorável nos últimos anos, no seio de um movimento social
organizado [3]; reconhecidos por diversos setores, inclusive da academia e dos governos como um
importante espaço de exercício da cidadania e participação democrática; com acesso mais facilitado a
fontes de recursos do que há poucos anos atrás [4]; muitas rádios comunitárias têm vida curta e poucos
são os comunicadores que trilham uma longa trajetória nesses espaços. O que acontece?
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
Se o cenário é mais positivo do que há uma ou duas décadas, não se pode dizer que seja mais pacífico. A
grande maioria das rádios comunitárias enfrenta diversas dificuldades para conseguir os processos de
outorgas junto ao Ministério das Telecomunicações. Além disso, há outras dificuldades como a
manutenção do funcionamento das emissoras; ora pelas condições financeiras; ora pela excessiva
fiscalização dos órgãos governamentais. Além desses obstáculos, o Grupo de Trabalho Interministerial
[5] (GTI) instituído, em 2005 pelo Ministério das Comunicações, identificou outras situações, tais como a
necessidade da revisão da Lei 9.612/98 e a criação de instâncias locais de avaliação das emissoras.
Soma‐se a essas observações as limitações técnicas e a falta de capacitação dos comunicadores e temos
um conjunto significativo de elementos que fazem com que tantas iniciativas radiofônicas sejam tão
efêmeras.
Entretanto, suspeitamos que há mais do que isso. Apropriar‐se dos meios de comunicação é apenas um
passo em direção à prática comunicativa. Há que se manter os veículos em funcionamento e alimentar o
processo infocomunicacional [6]. Compreender e utilizar este processo de forma consistente e
sistemática pode contribuir para o fortalecimento das experiências de comunicação comunitária,
constituindo‐se, por esta via, como um campo para o qual as iniciativas de formação de comunicadores
precisa se voltar.
Como afirma Armando Malheiro da Silva, nessa perspectiva, comunicação e informação são duas faces
de um único processo, que vai do movimento interior de dar forma, para o exterior; aquilo que é
comunicado a um potencial receptor. A informação, aqui, não é limitada à informação jornalística ou
documental, mas a “um conjunto de representações mentais e emocionais que são passíveis de serem
comunicadas ou transmitidas” (SILVA, 2006, p. 103). Nesse sentido, não pode haver comunicação sem
informação, exterior sem interior, partes de um fenômeno que Malheiro (2006) caracteriza como
infocomunicacional, “expressão e partilha por vários códigos de ideias, acontecimentos e emoções
vividas pelo ser humano em sociedade” (SILVA, 2006, p. 28). Compreendido dessa forma, torna‐se
imprescindível analisar‐se o fenômeno infocomunicacional; pensado, sistematizado e oferecido como
conhecimento importante para os comunicadores comunitários. Ele é chave importante para que os
comunicadores percebam de que forma sua sintonia com a comunidade pode se transformar em fluxo
de infocomunicação para seus veículos.
No momento em que os comunicadores se apropriam dos meios de comunicação e os colocam a serviço
de suas comunidades, inicia‐se um processo de exercício da cidadania e de (re)descoberta de suas
identidades como sujeitos com determinadas práticas culturais. Essa é a face interna do fenômeno, que
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
nem sempre vai para o exterior, o que pode ser uma das limitações que influenciam na curta duração da
atuação de muitos comunicadores comunitários e mesmo de muitas emissoras de rádio.
3. Rádio Quilombo: a diferença que faz diferença
Relatar sobre o processo histórico da rádio comunitária Quilombo FM 88.3, situada no bairro Restinga,
em Porto Alegre, é, antes de tudo, contar brevemente a formação do bairro. Restinga, distante a cerca
de 25 km do centro da capital gaúcha, surgiu durante o governo autoritário, nos anos 1960, fruto de um
programa de urbanização denominado “Remover para Promover”. Removiam‐se as pessoas do centro
da cidade para promover o desenvolvimento regional. Para esse “desenvolvimento”, muitas famílias
foram colocadas em áreas rurais sem infra‐estruturas e desassistidas pelo poder público. De lá pra cá
muitas coisas mudaram, mas os processos de exclusão, isolamento e negação de direitos ainda
continuam. É o que se percebe numa das reivindicações dos moradores “queremos que o poder público
coloque endereço nas ruas do bairro. Só assim, o carteiro pode chegar em nossa casa”. Essa falta de
referência expõe as pessoas ao preconceito social especialmente no momento em que saem em busca
de emprego.
A Rádio comunitária Quilombo FM está inserida nesse contexto de desestruturas, ausências e
desigualdades sociais. Ela surgiu em 2007, mas suas bases foram iniciadas, dez anos antes, período em
que alguns músicos do bairro sentiram a necessidade de divulgar o seu trabalho. Para atender tal
objetivo eles investiram na instalação da rádio comunitária Restinga FM. A rádio permaneceu em pleno
funcionamento até 2004, quando os agentes federais apreenderam todos os equipamentos e lacraram a
emissora. Mesmo assim alguns comunicadores não se deram por vencidos, pois “quando fechou lá,
depois de alguns meses começamos a fazer transmissão experimental”. Essa experiência radiofônica
prolongou‐se
[. . .] por dois anos e ai quando a gente resolveu que ia fazer a Rádio Quilombo,
a gente ficou um ano antes fazendo as transmissões mensais e também com a
Rádio Poste na praça, essa era semanal, quando não chovia, e ai a gente ficou
mais um ano com a Rádio Poste. (Rafael Costa, 2009).
Durante o funcionamento da Rádio Poste, os comunicadores sentiram a necessidade de criar uma rádio
comunitária, para isso buscaram apoio da comunidade através de oficinas nas escolas, plenárias com
grupos organizados, entre outros. Durante essas atividades foram discutidas, dentre outras questões,
uma carta de princípios e a escolha do nome Rádio Quilombo.
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
A Rádio Quilombo FM, que está no ar, sempre aos sábados, desde 2007 [7], é um espaço de resistência,
de difusão de ideias e de projetos sociais comprometidos com a transformação das condições de vida
dos moradores do bairro Restinga. Essas características são percebidas nas temáticas abordadas nos
programas radiofônicos que giram em torno da: educação, trabalho e juventude. Para Daniela,
apresentadora do programa Conversa de Maria,
[. . .] a ideia de ter a Rádio Quilombo surgiu da vontade de se trabalhar com os
jovens, os negros que são os mais excluídos. A gente quer esse público são
esses os sujeitos que a gente quer trazer pra cá. E é pra esses sujeitos que a
gente pensa em fazer uma formação. (Daniela, 2009).
O trabalho formativo da emissora é realizado com crianças e adolescentes do bairro que cumprem
medidas socioeducativas. São realizadas oficinas e atividades educativas nas escolas do bairro, nos
centros comunitários, nos centros de assistência social, buscando envolver os jovens com a produção de
conteúdos sonoros e audiovisuais. Como salienta Daniela, “eles fazem entrevistas, gravam e fotografam
atividades pelas ruas e nas escolas da comunidade”.
Ainda de acordo com Daniela “a ideia é registrar tudo e os jovens já têm essa consciência”. Entretanto,
esses conteúdos ainda carecem de maiores cuidados e são poucos utilizados na programação da rádio.
Não há sistematização das oficinas, de seu processo pedagógico e dos resultados, a informação gerada
raramente é sistematizada, documentada e guardada, como se percebe no relato a seguir:
O que a gente tem disso é um diário de campo, a gente faz as discussões aqui,
aí a gente começa a escrever o que sai de cada coisa. Está sendo muito bom,
com certeza, porque é um espaço para discutir o papel da rádio, o
protagonismo juvenil, aí a gente pega realmente os adolescentes que estão
cheios das idéias, mas isso não tem também nada escrito, as conversas são
muito boas. Os guris são muito bons educadores, mas a gente ainda não
escreveu nada talvez daqui um tempo a gente possa ter um material mais
consistente. (Daniela, 2009).
A Rádio Quilombo, visando melhores oportunidades aos jovens da comunidade, busca desenvolver
projetos em parceria com outras instituições. Atualmente, através do convênio com o Ministério da
Cultura, desenvolve o projeto Ponto de Cultura. Com este projeto foi possível adquirir alguns
equipamentos – computadores, câmara digital, filmadora – para qualificar as ações desenvolvidas com
os jovens. Na percepção dos comunicadores, “eles aprendem muito rápido. São atentos e ficam mais
habituados com os equipamentos do que a gente”. É o processo comunicativo revelando possibilidades,
democratizando a comunicação e permitindo que a mensagem seja produzida pelos próprios sujeitos.
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
Assim, cria‐se de fato um novo modo de comunicar. Isto é, a produção de mensagens passa a ser
compartilhada, acessível e inteligível. Essa abertura ao protagonismo da juventude possibilitou colher
informações importantes, por exemplo, os próprios jovens reivindicaram acessibilidade da linguagem.
De acordo com eles, os comunicadores “falavam muito complicado, teria que falar mais fácil, de modo
que todos entendessem”.
Vale dizer também que inúmeras pessoas circulam pelo espaço onde se estabelece a Rádio Quilombo.
Isso devido o funcionamento das atividades formativas, pelos convites feitos a pessoas e aos grupos
organizados da comunidade que desejam assumir um programa radiofônico na emissora. Porém,
continua sendo mínimo o engajamento das pessoas com as atividades da emissora. A juventude, por
exemplo, “circulam muito, mas são apenas cinco que estão engajados. Outros circulam. Esses cinco são
constantes”, ressaltaram os comunicadores.
Considerações finais
Rádio Quilombo FM: irradiando possibilidades
Um ponto comum entre pesquisadores do universo da radiodifusão comunitária é o de que essas
experiências de comunicação emergem a partir de alguma inquietação. Sejam inquietações advindas da
efervescência política, religiosa, cultural. Antes disso, podem ser inquietações de um único sujeito, que
por sua vontade busca despertar a atenção de outras pessoas para a sua causa. Porém, juntas,
enxergam neste dispositivo tecnológico horizontes para a efetivação do que antes se limitava ao mundo
das ideias.
Nesta mesma direção, é consenso de que, em se falando de meios comunitários de comunicação, tais
inquietações não se concretizam de maneira orquestrada, bem definida ou planejada. No caso da Rádio
Quilombo, identificam‐se processos variados e complexos que geram outras possibilidades até então
não presumidas. No entanto, muitos resultados vinculados a esses processos difusos, articulam‐se sob
algumas lógicas de fundo mais amplas como: a vontade de informar a comunidade através do seu
conteúdo; ser ambiente de acolhida e de formação aos sujeitos da comunidade pelas possibilidades de
tal oferta tecnológica.
Como espaço de possibilidades, a Rádio Quilombo FM também se orienta pelo desejo de romper com as
correntes que impedem o despertar do novo; das políticas públicas até então distantes do bairro
Restinga. Nessa direção, apresenta‐se como meio capaz de proporcionar avanços frente a condição
marginalizante imposta a esses sujeitos ao longo da história por políticas verticais e hegemônicas.
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
Para além de promover a circulação de informações relevantes e condizentes com as necessidades
locais, a Rádio Quilombo apresenta‐se como espaço de formulação dessas informações. Os integrantes
da Rádio Quilombo buscam interferir na opinião pública tendo como roteiro informações elaboradas a
partir das demandas da própria comunidade como também àquelas advindas de outros veículos de
comunicação. Nessa direção, o seu estúdio, improvisado em uma cozinha, evidencia‐se como um
fascinante laboratório para os jovens iniciantes e um alto‐falante para os mais vividos que, cansados das
promessas, ousam denunciar.
Ser um ponto de encontro e também uma ponte de contato entre realidades distantes ou separadas são
outras fortes característica da Rádio Quilombo. Como ponto de encontro, destacamos a dimensão
identitária. Ou seja, o espaço radiofônico oferta aos sujeitos “sem endereço” oportunidades para o
auto‐conhecimento e para a auto‐descoberta. Pelo simples contato com essa tecnologia, desenvolvem‐
se potencialidades até então adormecidas, especialmente aquelas consideradas irrelevantes por outros
espaços sociais, como a escola, família e o mundo do trabalho.
Como ponte de contato, a Rádio Quilombo permite a construção de elos e de comprometimentos entre
sujeitos que vivenciam as mesmas angústias e esperanças. Articular forças para transpor o que oprime
as condições básicas de vida é certamente outra possibilidade que irradia pela antena da 88.3 FM.
Da mesma forma, inserida na agenda de lutas da ABRAÇO, a Rádio Quilombo também se oferece como
mais uma fonte de força desse movimento mediante o poder regulador do estado. Nesta perspectiva,
por estar interligada ao movimento mais amplo de luta pela democratização da comunicação, a Rádio
Quilombo possibilita ter acesso a um direito, garantido pela constituição: a liberdade de expressão.
Notas
[1] Alfonso Gumucio Dragon em: Making Waves; Stories of participatory comunication, publicado pela
Rockfeller Foudation em 1998.
[2] Paulo Freire discutiu amplamente esse tema enfatizando que o saber fazer traduz a leitura de mundo
dos educandos e deve ser tomado como ponto de partida na relação educador‐educandos. Ver mais
sobre esse assunto no texto Alfabetização como elemento de formação da cidadania (1992).
[3] O surgimento da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), em 1993, é uma
demonstração dos anseios populares por serviço de radiodifusão comunitária no país, tendo como
principal reivindicação a formulação de uma Lei específica para atender as Radcom, bem como a
regulamentação do serviço, para evitar as repressões às atividades das emissoras.
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
[4] Ainda que tímido, não se pode deixar citar os Pontos de Cultura como fonte de fomento à
comunicação comunitária.
[5] O GTI foi aprovado pelo decreto presidencial de 26/11/2004, sendo que a composição dos seus
integrantes ocorreu por meio da Portaria no 76 de 10/02/2005.
[6] A junção do termo aqui não é proposital, mas sim estratégica, uma vez que a nossa compreensão é
de que os conceitos se complementam. Stumpf e Weber (2002) tratam do tema na perspectiva das
convergências, das inter‐relações. Idéia compartilhada com Martino (2008), segundo ele, “a informação
é uma comunicação que pode ser ativada a qualquer momento” (p.17), ou seja, a informação é um
processo comunicativo em potencial.
[7] A emissora pleiteia a outorga junto ao Ministério da Comunicação, pois atende as disposições
técnicas, isto é, possui transmissor de 25 watts, antena com 20 metros de altura, gestão coletiva, sem
fins lucrativos e está sobre a tutela do Movimento Resistência Popular.
Referências
BERGER, Christa. A pesquisa em comunicação na América Latina. HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz C. e
FRANÇA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. 8. ed., Petrópolis, Vozes,
2008.
BIANCO, Nélia R. Del. E tudo vai mudar quando o digital chegar. In: FILHO, André Barbosa. PIOVESAN, Angelo.
BENETON Rosana (orgs) Rádio. Sintonia do Futuro. São Paulo: Paulinas, 2004.
BUCCI, Eugênio. Os sentidos do Rádio. In: FILHO, André Barbosa. PIOVESAN, Angelo. BENETON Rosana (orgs)
Rádio. Sintonia do Futuro. São Paulo: Paulinas, 2004.
COGO, Denise M. Mídias, identidades culturais e cidadania: sobre cenários e políticas de visibilidade midiática dos
movimentos sociais. In: PERUZZO, Cecília Kroling M. (org). Vozes, 2004.
_________________. No ar... Uma rádio comunitária. São Paulo: Paulinas, 1998
FAVERO, Osmar (org.). Cultura popular e educação popular: memória dos anos 60. Rio de Janeiro, edições Graal,
2006.
GRAGON‐GUMUCIO, Alfonso. Making Waves; Stories of participatory communication. Rockfeller Foudation, 1998.
GOMES, Pedro Gilberto. A filosofia e a ética da comunicação na midiatização da sociedade. São Leopoldo: Ed.
UNISINOS, 2008.
_____________________. Jornalismo popular: uma experiência democrática. Revista Tempo e Presença, 1988, nº
228.
GOUVEIA, José Vanderley. E a aranha teceu os fios compridos: a felicidade de ser um comum dos mortais nesse
mundo mundializado. In: Comunicação e movimentos populares: quais reder? Comunicación y movimientos
populares: cuáles redes? PERUZZO, Cecilia K. COGO, Denise. Kaplún Gabriel. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2002.
HAUSSEN, Doris Fagundes. Rádio brasileiro: uma história de cultura, política e integração. In. FILHO, André
Barbosa. PIOVESAN, Angelo. BENETON Rosana (orgs) Rádio. Sintonia do Futuro. São Paulo: Paulinas, 2004.
Revista Elementa. Comunicação e Cultura. Sorocaba, v.1, n.2, jul/dez 2009.
LOPEZ VIGIL, José L. ¿Qué hace comunitaria a una radio comunitaria? In: Chasqui Revista Latinoamericana de
Comunicação, n. 52, nov. 1995. Quito, Ecuador: Editorial QUIPUS/CIESPAL.
PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da
cidadania. 3. ed., Petrópolis, Vozes, 2004.
_______________________________. Da Observação Participante à Pesquisa‐Ação no Campo comunicacional:
Pressupostos epistemológicos e metodológicos. In: MELO, José Marques de; GOBBI, Maria Cristina (orgs).
Pensamento comunicacional Latino‐Americano: Da Pesquisa‐Denúncia ao Pragmatismo Utópico. São Paulo, SP:
UMESP, 2004.
___________________________. Revisitando os Conceitos de Comunicação Popular, Alternativa e Comunitária.
XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Brasília‐DF, INTERCOM/UnB, 6 a 9 de setembro de 2006.
____________________________. Rádio comunitária, Educomunicação e Desenvolvimento, In: PAIVA, Raquel
(org). O retorno da comunidade: os novos caminhos do social. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
___________________________. Participación em las rádios comunitarias em Brasil. In. Comunicación y
Sociedad. Dep. De Estudios de la comunicación Social, Universidad de Guadalajara, n. 32, enero/abril, 1998.
Guadalajara, Jaslisco, México, 1998b.
___________________________. Mídia comunitária, Comunicação & Sociedade. n. 30. São Bernardo do Campo,
SP: UMESP, 1998a.
____________________________. Comunicação nos Movimentos Populares: a participação na construção da
cidadania. Petrópolis: 3º Ed. Vozes, 1998.
SILVA, Armando Malheiro da. A informação. Da compreensão do fenômeno e construção do objeto científico.
Porto: Edições Afrontamento, 2006.
Cristóvão Domingos de Almeida
Doutorando no Programa de Pós‐Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e bolsista CAPES.
cristovaoalmeida@gmail.com
Gisele Souza Neuls
Mestranda no Programa de Pós‐Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e Coordenadora de Comunicação do Instituto Centro de Vida.
gisele.neuls@icv.org.br
Joel Felipe Guindani
Mestrando no Programa de Pós‐Graduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos) e bolsista CAPES.
j.educom@gmail.com