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A Semiótica estuda todos os tipos possíveis de signos, a linguagem verbal e não verbal,

configurando-se como uma ciência que abarca todas as linguagens, artes visuais,
música, fotografia, cinema, culinária, vestuário, gestos, religião, ciência, etc. Com
enfoque interdisciplinar, abrange uma área de estudo muito vasta e complexa, estudando
a realidade cultural e seu contexto.

As bases da semiótica, as categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade,


contribuem de forma significativa para se compreender a obra de arte.

As categorias organizadas por Peirce contribuem de forma significativa para a


compreensão do processo de construção da imagem, em especial o da pintura,
expressando os diferentes elementos que as compõem.

“A semiótica é uma das disciplinas que fazem parte da ampla arquitetura filosófica de
Peirce. Essa arquitetura esta alicerçada na fenomenologia, uma quase ciência que
investiga os modos como aprendemos qualquer coisa que aparece a nossa mente,
qualquer coisa de qualquer tipo, algo simples como um cheiro, uma formação de
nuvens no céu, o ruído da chuva, uma imagem em uma revista etc., ou algo mais
complexo como um conceito abstrato, a lembrança de um tempo vivido etc., enfim tudo
que se representa á mente.” (SANTAELLA, 2002. p.XX)

A semiótica peirceana contribui de forma significativa para a compreensão do processo


de construção da pintura. Ao compreender a imagem o interpretante pode permanecer
tanto no nível da primeiridade como aprofundar o processo cognitivo, alcançando o
nível da terceiridade. O leitor tem tanta importância quanto o autor, pois seu esforço
intelectual irá interferir na interpretação dos signos, reconhecendo a intenção do autor e
o uso social e ideológico dos signos.

Este trabalho visa analisar a concepção triádica de Peirce na obra de El Greco (em
anexo).

Domenikos Theotocopoulos, conhecido como El Greco, nasceu em Creta por volta do


ano de 1540 ou 1541. Ele era pintor, escultor e arquiteto, considerado o primeiro grande
gênio da escola espanhola. Famoso pintor maneirista, El Greco realizou seu aprendizado
em Veneza.

Em Veneza, ele “absorveu rapidamente as lições de Ticiano, Tintoretto e outros pintores


venezianos. Mais tarde, em Roma, veio a conhecer a arte de Michelangelo, de Rafael e
dos principais maneiristas italianos”. El Greco foi para a Espanha em 1576-77, onde
permaneceu em Toledo até o fim de sua vida. Ele foi contratado pelo rei Felipe II para
trabalhar na confecção interna do Mosteiro do Escorial , onde se encontra a sua obra
São Pedro, que será analisada neste trabalho. Essa pintura data de 1610-1614.
Primeiridade

“A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com acaso, possibilidade,


qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada.” (SANTAELLA, 2002.
p.XX)

A qualidade da consciência imediata é uma impressão, sentimento, invisível, não


analisável, frágil. Tudo aquilo que está na mente no instante presente.

“Diz respeito a todas as qualidades puras que, naturalmente, não estabelecem entre si
qualquer tipo de relação. Estas qualidades puras traduzem-se por um conjunto de
possibilidades de vir a acontecer (…)". (SANTAELLA, 2002. p.XX)

Através das formas puras, é possível identificar certas configurações de linha e cor, ou
determinados pedaços de bronze ou pedra de forma peculiar, como representativos de
objetos naturais tais que seres humanos, animais, plantas, casas, ferramentas e assim por
diante; pela identificação de suas relações mútuas como acontecimentos; e pela
percepção de algumas qualidades expressionais, como o caráter pesaroso de uma pose,
ou a atmosfera caseira e pacífica de um interior.

Aplicando esse conceito à obra de El Greco, identificamos que a imagem mostra uma
figura masculina de pé sob uma rocha, vestindo uma túnica de cor azul. Por cima dessa
túnica, é possível identificar uma toga de coloração amarelo-dourado que cobre quase
todo o seu corpo. Ele ainda está segurando em sua mão esquerda duas enormes chaves.

Secundidade

“A secundidade está ligada as ideias de dependência, determinação dualidade, ação e


reação aqui e agora, conflito, surpresa, duvida.” (SANTAELLA, 2002. p.XX)

É quando o sujeito lê com compreensão e profundidade de seu conteúdo.

Diz respeito ao fato de saber, por exemplo, que uma figura masculina com chaves na
mão pode ser a representação de São Pedro. Associar as imagens representadas (os
motivos), ou uma combinação delas com estórias e alegorias. É preciso que não
tenhamos apenas familiaridade com os objetos descritos. Olhar para a figura de um
homem segurando chaves e em cima de uma pedra pode parecer confuso caso não
tivéssemos conhecimentos dos evangelhos. O conhecimento é tão útil quanto à
experiência prática para lermos uma obra de arte.

A obra estudada neste trabalho representa São Pedro de pé sob uma rocha. Seu corpo
está posicionado de tal forma que nos lembra as curvas de um “S”. O apóstolo tem sua
face voltada para sua esquerda, com um olhar fixo, sereno e em direção ao horizonte.
São Pedro também possui os cabelos, barba e bigode com os tamanhos curtos e de
coloração branca.

Seu traje é composto por uma longa toga de coloração amarelo-dourado, roupa essa que
cobre quase todo o seu corpo. A toga é um traje tipicamente romano, usado sobre uma
túnica ou como único traje. Ele é formado, geralmente, por dois grandes segmentos de
círculos, iguais em tamanho e com as extremidades retas colocadas juntas.

A característica mais marcante desse traje era o tamanho surpreendente: tinha quase três
vezes o comprimento e mais ou menos duas vezes a largura de quem o usava. (...) Para
ser vestida, a toga era dobrada no meio, em sentido longitudinal, enfeixada em pregas
grossas e jogadas por cima do ombro esquerdo, de tal modo que um terço do
comprimento total ficava suspenso na frente. O restante passava diagonalmente pelas
costas e, em seguida, por baixo do braço direito, para terminar sendo novamente
lançado por cima do ombro esquerdo.

Devido a largura, a toga também cobria quase todo o braço esquerdo de quem a usava.
Por baixo da toga, o apóstolo veste uma túnica de cor azul. Este traje, também típico dos
romanos, era caracterizado por ser mais justo ao corpo. “Tratava-se de uma espécie de
camisa de corte bem ampla e totalmente fechada, que descia abaixo dos joelhos. As
mangas (se houvessem) cobriam os braços até os cotovelos”. Inicialmente, a túnica era
feita pelos romanos somente de lã. Com o passar do tempo, começaram a surgir túnicas
com outros tipos de tecidos como o algodão, por exemplo.

São Pedro está com seu braço direito dobrado e levantado próximo ao peito, com sua
mão saindo de dentro de sua túnica. Também é possível ver o seu braço esquerdo
voltado para baixo e com o pulso levemente dobrado. Entre os dedos, o apóstolo de
Jesus segura duas enormes chaves pretas, sendo que uma está inclinada e voltada para o
céu e a outra está direcionada para a terra e em posição vertical. As chaves fazem
referência à passagem bíblica de Mt 16, 19 (“Eu lhe darei as chaves do Reino do Céu, e
o que você ligar na terra será ligado no céu, e o que você desligar na terra será desligado
no céu”.)

O apóstolo está descalço sob uma rocha que cobre toda a parte inferior da pintura. Esta
representação também é uma referência à passagem bíblica de Mt 16, 18 (“Por isso eu
lhe digo: você é Pedro, e sobre essa pedra construirei a minha Igreja, e o poder da morte
nunca poderá vencê-la”). A paisagem no fundo da obra (o céu) é caracterizada pela
mistura de cores que passam pelo azul e cinza, conferindo assim, um tom homogêneo e
ao mesmo tempo escuro à obra. Toda a pintura de El Greco faz uma referência ao
significado espiritual do “‘Príncipe dos Apóstolos’, da ‘Rocha sobre a qual a igreja foi
construída’”.

Terceiridade

“A terceridade diz respeito a generalidade, continuidade, crescimento, inteligência.”


(SANTAELLA, 2002. p.XX)

Corresponde à camada de "inteligibilidade", ou pensamento em signos, através da qual


representamos e interpretamos o mundo. Uma análise correta das imagens, estórias e
alegorias contidas na obra estudada.
Quanto à obra de El Greco, faz necessário analisar a figura de São Pedro, a pedra e as
chaves. São Pedro era originário da Betsaida, pequeno povoado da Galiléia. Era um
pescador e morava em Cafarnaum. Seu nome judeu era “Simão”. Jesus lhe deu o nome
de Pedro, que tem origem no latim, Petrus, e significa “pedra” ou “rocha”. Ele é um dos
apóstolos mais destacados do Novo Testamento ao lado de Paulo, por sua função de
“princípio da estabilidade e da unidade”. Sua grandeza simbólica está associada ao fato
de ser, desde o começo da Idade Média, o representante de Cristo, do Papado, da Igreja
Católica e do Novo Testamento. Sua festa é celebrada no Ocidente nas datas de 29 de
junho e 22 de fevereiro. Já o Oriente celebra em 29 de junho e 16 de janeiro.

Na imagem pintada por El Greco, as vestes de São Pedro possui duas cores: amarelo-
dourado e azul. O amarelo é a mais quente e expansiva das cores. Trata-se de uma cor
masculina, de luz e de vida. “Sendo de essência divina, o amarelo-ouro se torna, na
terra, o atributo do poder dos príncipes, reis, imperadores, para proclamar a origem
divina de seu poder”. Trata-se de uma cor que representa bem a imagem divina de São
Pedro, revestindo quase todo o seu corpo.

Já o azul é considerada a mais profunda das cores. “(...) nele o olhar mergulha sem
encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se até o infinito, como diante de uma perpétua
fuga de cor”. O azul também é a mais imaterial das cores, sendo apresentada pela
natureza apenas como transparente, como se fosse um vazio. “O vazio é exato, puro e
frio. O azul é a mais fria das cores e, em seu valor absoluto, a mais pura, a exceção do
vazio total do branco neutro. O conjunto de suas aplicações simbólicas depende apenas
dessas qualidades fundamentais”. Essa cor retrata bem a qualidade de pureza do
apóstolo de Jesus. Ele é lembrado como sinônimo de estabilidade, unidade e santidade.

A pedra é uma referência a passagem bíblica de Mt 16, 18. “Pelo seu não removimento,
pedras e rochas podem tornar-se símbolos do centro sagrado: cones de mármore como
centro do mundo (Delfos), a pedra negra da Caaba (Meca) (...)” . O próprio nome
“Pedro”, quem vem do latim “Petrus” e significa “pedra”, é uma referência ao símbolo
da verdadeira fé inabalável.

As duas chaves enormes dadas a São Pedro por Jesus, “como imagem do abrir e fechar,
é simultaneamente expressão do poder transferido a seu possuidor”. São as chaves do
reino dos céus e indica o seu direito de ligar e desligar (Mt 16, 19). As chaves também
significam a plenitude de poder dada ao seu dono. Pedro, com a entrega das chaves, se
torna o mandatário da Igreja, o primeiro Papa, o intermediador entre o céu e a terra com
o seu poder de ligar ou desligar o que há na terra ao céu.

A grandeza da chave, que na literatura medieval é chamada de ‘chave angélica’, (...)


alude a seu significado de sinal da vida associando-a com o sinal egípcio da vida (cruz
de âncora, cruz). (...) Uma chave gigantesca, em representações apocalípticas alusivas a
Ap 20,1 ss, serve para fechar o diabo por mil anos no poço do inferno.

A obra de El Greco representa ideia bíblica de que São Pedro é o porteiro do céu. A
pintura transmite a grandeza simbólica do apóstolo de Jesus “sob as imagens do ‘atar e
desatar’, do ‘poder da chave’, do ‘pastor’, da ‘pedra da igreja’ pelo que a igreja romana,
por sua pessoa, se adensa de modo único, especial e específico”.

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