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DSM – Considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos no social.

Michelle Calheiros Lima (michellecalheiros@hotmail.com) *1

NanetteZmeriFrej (nzfrej@gmail.com) *2

A psiquiatria através do DSM em suas variadas versões classificatórias, busca a


padronização de sintomas autorizada pela tecnociência, desconsiderando a dimensão
subjetiva do sujeito. Assim, como anunciado por Nietzsche, a morte de Deus em favor
da ciência ganha cada vez mais força. Enquanto na idade média a reza era o caminho
em busca da cura da doença, hoje a ciência oferece um remédio para todo mal. Três
vetores orientam este artigo, o tripé sustentado pela própria psiquiatria que são: a
psicofarmacologia com a produção de bens de consumo e fruto maciço de investimento
das sociedades capitalistas, as neurociências como fundamento teórico com referência
em bases orgânicas e a genética como fator destinado a validar o poder da ciência. Este
artigo é um recorte de minha dissertação de mestrado assentada em uma leitura do
paradigma da psiquiatria com o social, que se autoriza da Psicanálise para tecer
discussão sobre o sintoma e sua classificação no DSM, e como a subjetividade é
desconsiderada em tempos de tecnociência.

Palavras-chave:psiquiatria, DSM, tecnociência, subjetividade

DMS A QUE SE DESTINA?

O DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) uma ferramenta da


psiquiatria para situar o diagnóstico, determinar o tratamento e proferir o
prognóstico,aparece para responder aos estragos psíquicos da segunda guerra mundial
que atingiu os soldados, suas famílias e o conjunto da população civil, que não mais se
encaixavam nos quadros clássicos. Contudo, a necessidade de estabelecer novos
diagnósticos e tratamentos surge como resposta para essa sociedade pós-guerra,
necessitada de uma ferramenta confiável para diagnosticar o que ocorria de novo.

A história do sistema classificatório parte também da necessidade de suplantar outras


explicações de cunho religioso, sobrenatural ou mítico sobre a patologia mental, como
também, tratar de dar conta da totalidade da loucura, e possibilitar que em cada época e
lugar, domine a descrição, organização e classificação.

“respondendo à necessidade de estabelecer novos diagnósticos e novos


tratamentos, a Associação Americana de Psiquiatria propõe a construção de
uma ferramenta confiável de referências compartilhadas entre aqueles que se
ocupavam da saúde mental”. (Frendrik, 2011, p. 29)

Assim, surge o DSM e suas variadas versões, com o caráter normativo de suas
classificações pautado na padronização, e formalização de critérios para o diagnóstico
psiquiátrico. Com o objetivo de alcançar a confiabilidade utilizando uma roupagem
pseudocientífica baseada na observação empírica, sem qualquer pretensão de explicar as
patologias ou delimitar uma teoria, o “manual” ganha força e prestigio. Apesar dos
critérios de sua negligência com os contextos, a história e as causas das doenças.

Para Goldenberg: “O Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais [...] é um


catálogo exaustivo de sinais para compor síndromes e se destina a apreender por
completo o ser humano infeliz e angustiado, segundo critérios elaborados pelo próprio
manual”(p.41),sem, contudo, expor critérios que possam definir a cientificidade de sua
prática classificatório-avaliativa.

Com o advento do DSM, a psiquiatria teria, enfim, encontrado o caminho em direção à


sua segurança ontológica, deixando para trás tantas imprecisões e variações quanto ao
diagnóstico entre os próprios profissionais. A psiquiatria por meio de uma reforma
metodológicamodificou os seus parâmentos, e começou a descrever os sintomas. Desta
forma, estava instituído um saber, observável, classificável e, acima de tudo
supostamente, seguro.

O DMS norteia a prática psiquiátrica como uma ferramenta eficaz para o objetivo a que
se propõe, que é estabelecer claramente onde se situa o paciente no mapa classificatório,
um auxiliar na tarefa estatística, com sua tarefa terapêutica simplificada por poder
deduzir com bastante precisão o tratamento correspondente, possibilitando assim
garantir ao médico seu lugar de conhecimento.

Sobre este manual Jerusalinsky disserta:

“Um de seus objetivos é normatizar o diagnóstico, universalizar os critérios [...]


torna a tarefa terapêutica mais simples, pois, conforme a classificação do
paciente, um tratamento poderá ser selecionado, seja ele psicoterapêutico,
farmacológico ou misto, mas sempre focado nas condutas descritas e não nas
causas das doenças..”(Jerusalinsky, A., Frendrik, S.(2011). O livro negro da
psicopatologia contemporânea. São Paulo: Via Lettera.)

Quando o DSM descreve o transtorno „por exemplo‟ de personalidade histriônica, peca


pela falta de especificidade do quadro clínico, por ser tão amplo pode englobar qualquer
pessoa com o mínimo de senso de autocrítica. Os critérios fornecidos são: desconforto
em situações nas quais não é o centro das atenções; comportamento inadequado,
sexualmente provocante ou sedutor; superficialidade na expressão das emoções;
constante utilização da aparência para chamar a atenção sobre si; discurso
excessivamente impressionista; ser facilmente sugestionável; entre outros.

Então, Tal reforma metodológica da psiquiatria apoia-se no tripé: psicofarmacologia,


neurociências e genética, que permitiram a partir deles falar em nome da ciência e
dominar o paradigma psiquiátrico. Como coloca Iannini &Teixeira (2013, p.27) “hoje
se vale do discurso da ciência para gozar de uma autoridade inquestionável, posto que
não existe nenhuma instância extra-científica que nos autorize a questionar o seu
veredicto.”

Hoje, nomeiam nossos padecimentos emocionais, e sobretudo, há sempre um remédio


para à venda todo mal. Perdemos a possibilidade de vivenciar crises existenciais, de
atravessar o luto do objeto perdido, de sofrer por amor, não nos é, mais permitido viver
nossa subjetividade. Estamos sujeitos à opressão ideológica capitalista, onde cada vez
mais, as turbulências psíquicas devem se encaixar nas marcas do discurso médico-
psiquiátrico.

A psicofarmacologia da vida cotidiana

Enumerado, descrito e classificado o mal-estar e o sofrimento, agora passa a ser


responsabilidade da indústria farmacêutica, que através do discurso capitalista e do
saber tecnocientífico vai definir o melhor tratamento farmacológico, para suplantar os
sintomas descritos por eles, sem qualquer interesse na experiência subjetiva ou no
contexto etiológico no qual o sujeito está inserido.

Freud sempre atento aos males da alma e da cultura, no texto ‘o mal-estar na


civilização’ reconhece a impossibilidade de dominar completamente o mal-estar, sendo
o mesmo, parte da civilização e da constituição do sujeito.
“[...] nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa
própria constituição [...] o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: do
nosso próprio corpo, condenado à decadência e a dissolução, e que nem mesmo
pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do
mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição
esmagadora e impiedosa; e finalmente, de nossos relacionamentos com os
outros homens.” (Freud, 1927/1931, p.85)

Assim, o mal-estarinerente ao sujeito e as experiências de sofrimento que vivenciamos


estão fadadas, a ser transformadas em patologias a ser tratadas. Afinal, dificilmente
alguém que passa por algum conflito psíquico e períodos de incerteza entrará em um
consultório psiquiátrico sem diagnóstico e receita médica, desprezando o que foi vivido
pelo sujeito, na tentativa de dominar e suprimir o sintoma. Para Quinet:

”O sintoma, de acordo com Freud, é um derivado do recalque com um


dos destinos da pulsão, a qual está constantemente, devido à sua força,
tendendo a satisfazer-se. O sintoma não cessa de se escrever, pois está
sempre promovendo a satisfação da pulsão, ao simbolizar o real do
gozo”. (2009, p.176)

A interrogação do sujeito a partir do seu sintoma é cada vez mais substituída pelo
arsenal de meios que desviam a implicação do sujeito no seu mal-estar, que configura
em uma solução imediatista com o próprio imperativo de gozo. A falta estrutural do
desejo está sendo tamponada pelas ofertas de medicamento para curar qualquer mal.

Na estreita relação entre consumo e indústria, a psiquiatria atual vai encontrar seu
sentido no discurso capitalista, que se apresenta como uma substituição da falta
estrutural do desejo, por objetos de consumo que assume a posição do mestre no
discurso. Segundo Infante (2011, p.68) “[...]os paliativos químicos produzidos pelo
saber científico unidos aos interesses da indústria farmacêutica [...] assumem todas as
características do fetiche da mercadoria.”

Os investimentos financeiros em pesquisas de psicofarmacos atendem os interesses


mercadológicos, de uma sociedade do espetáculo e individualista onde cada um se sente
no direito de reivindicar sua própria aparência e seu bem-estar, sem ter, o trabalho
exaustivo de considerar sua subjetividade e singularidade. Sobretudo, na incapacidade
de se colocar como sujeito de sua própria história.

A neurociência e a genética aliadas por umsuspoto bem em comum


A neurociência compreende o estudo do controle neural das funções vegetativas,
sensoriais e motoras; como também; os mecanismos da atenção, memória,
aprendizagem, emoção e comunicação. Dentre seus objetivos, a neurociência busca
esclarecer os mecanismos das doenças neurológicas e mentais por meio do estudo do
sistema nervoso normal e patológico, incluindo as ligações com toda a fisiologia do
organismo, fazendo a relação entre cérebro e comportamento.

Na tentativa de legitimar o discurso da psiquiatria, especificamente o do DSM os


elementos orgânicos (neurotransmissores e a genética) possibilitará o saber e o poder
para a sociedade contemporânea, colocando o funcionamento orgânico como cerne da
questão. No imaginário médico, portanto, as anomalias da estrutura cerebral, teria como
causa o metabolismo de um neurotransmissor ou herança do DNA.

Na falta de uma explicação que não se identifique o gene para determinado transtorno,
logo se recorrerá a uma explicação no que diz respeito a alterações químicas no cérebro.
Contudo, nenhuma delas esclarece a etiologia do transtorno, não supõe nada sobre o que
é empiricamente observável, ficando o tratamento às margens das condutas descritas e
não sobre a causa das doenças. Sobre isso Costa argumenta:

“Destacamos antes as condições da clivagem como fazendo parte da produção


mesma do saber, sendo que essa clivagem resulta da inclusão do sujeito na
experiência. A ciência precisou excluir o sujeito para produzir seus sistemas, na
busca de produzir um saber objetivo.” (2011, p.135)

O que se mantém dessa aliança entre a neurociência e a genética é fundamentar o


funcionamento psíquico em bases orgânicas. Nesse sentido, a produção de uma certa
nova verdade acerca dos sofrimentos psíquicos, leva à medicalização como solução
autorizada, sem que nada se queira saber sobre sua causas. Os diagnósticos focados na
medicalização passam a ser suportes de uma sociedade consumista.

Por esse viés, a psicopatologia pretende ter encontrado finalmente sua cientificidade, de
fato e de direito, fenômenos que falem por si mesmo em qualquer época,
independentemente de contextos e situação socioeconômica. Para García (2011, p.51)
“chegamos à biologia do comportamento, o que se traduz na prática em técnicas de
adestramento (comportamentais) que se combinam com a medicação.”

Considerações finais
Em tempos pós-modernos a economia triunfa com o capitalismo sobre questões
concernentes ao humano, e aqui, o que é importante pensar são os efeitos produzidos a
partir do discurso dominante e imposto à cultura,marcada pela falta de verticalidade,
que impede funcionar o lugar do terceiro. O efeito disto, é que toda noção de limite
tende a ser abolida. O discurso capitalista assegura à indústria farmacêutica e à
tecnociência a verdade incontestável, um saber, um ponto de amarração que passa a
ocupar o lugar do significante mestre.

Para Lacan no seminário XVIIo discurso faz laço social, “Um discurso aparece, como
maneira do sujeito se situar em relação ao seu ser, é uma regulação de gozo”(1969-70),
em nossa sociedade o discurso em voga é do capitalista, que nega a castração e, assim,
toda noção de limite encontra-se esfumaçada, convidando o consumidor a ultrapassar
tudo e todos em direção ao „seu‟ desejo.

O DMS produz um efeito no social que é o da dessubjetivação que promove o


afastamento da singularidade do sujeito, abalando a antiga economia psíquica fundada
no recalque, na neurose, para vivermos numa cultura sem limites com um
funcionamento perverso de individualidades e excessos.No sistema capitalista os
objetos sempre terão a função de suscitar o desejo, oferecendo-se como objeto-fetiche,
com o poder, incrivelmente de diluir a diferença e universalizar as culturas propondo a
democracia do fetiche.

No entanto, quanto mais a tecnociência e o capitalismo se completarem mais distantes


do sujeito do inconsciente e do desejo estamos. Quanto mais aderência á milagrosa
indústria farmacêutica que promete a imediata eliminação do mal-estar como se fosse
esta a direção da cura, mas desaparece o sujeito da psicanálise nos convocando à
reflexão.

“[...]nos primeiros séculos do capitalismo industrial era importante curar o


neurótico de suas inibições para fazê-lo produzir, hoje as neurociências se
empenham em animar os depressivos para torna-los aptos a consumir. Ou, pelo
menos, a desejar consumir, a „estar de acordo‟ com as demandas de consumo.”
(M. Rita Kehl, 2011, p.124)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dor, JOEL. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem.
Trad. Carlos Eduardo Reis- Porto Alegre: Artmed, 1989.

DUNKER, C.I.L. Clínica, linguagem e subjetividade. Distúrbios da comunicação. V.12,


p.39-61, 2001

FREUD, S. (Vol.XXI).O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros


trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996

GOLDENBERG, R.Soueix, A. (1997).Goza! Capitalismo, globalização e psicanálise.


Salvador: Ágalma.

JERUSALINSKY. A& FENDRIK. S. O livro negro da psicopatologia contemporânea.


São Paulo: Via lettera, 2011.

LACAN, J. (Seminário XVII): O avesso da psicanálise. (Rio de Janeiro, Zahar, 1996).

LEBRUN, Jean-Pierre. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica
psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

______________________. (2008). A perversão comum: viver junto sem outro.Rio de


Janeiro: Campo Matêmico.

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