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DEVOLUÇÃO OU REENVIO
 
31. O reenvio como problema da interpretação do direito de conflitos
Tem-se até aqui concebido a regra de conflitos como uma norma que
essencialmente se destina a resolver concursos de leis. O pressuposto básico
da norma de conflitos é, pois, tanto nas suas origens históricas como o seu
significado actual, a existência de mais que uma lei que se candidata ou
concorre à resolução de certa questão privada internacional – e isto
directamente, através das suas normas de regulamentação directa (materiais)
ou, quando muito, também através de normas doutro ordenamento recebidas
através de uma norma de remissão material.
Essa diversidade das regras de conflito de leis dos diferentes sistemas
nacionais veio pôr em cheque o ideal de uniformidade de soluções a que aspira
pela sua própria natureza o Direito Internacional Privado – ideal que se deveria
traduzir na garantia de uma dada questão viria a ser apreciada por aplicação
das mesmas normas materiais, qualquer que fosse o Estado em que viesse a
ser julgada.
O problema é posto na doutrina em termos de saber qual o sentido da
referência feita pela regra de conflitos à lei por ela designada: trata-se de uma
referência material ou duma referência global? Por outras palavras: pergunta-
se se, com a designação da lei aplicável feita pela regra de conflitos, se
pretende escolher directamente as normas materiais que devem regular a
questão, ou se se pretende, antes, determinar essas normas indirectamente,
mediante uma referência à lei que abranja também as normas de Direito
Internacional Privado desta lei. Responde no primeiro sentido a teoria da
referência material, e no segundo, a tese da referência global.

32. Teoria da referência global ou devolucionista


A favor desta teoria alegaram-se fundamentalmente duas razões. A
primeira é a de que a norma material estrangeira não pode ser aplicada
abstraindo da regra do Direito Internacional Privado que, na lei a que pertence,
lhe define o âmbito de aplicação no espaço: aplicá-la noutros termos para
desvirtuá-la. A regra de conflitos constitui elemento integrante da hipótese da
norma material, forma com ela, um todo incidível. Aplicar esta sem atender
àquela não seria aplicar a lei estrangeira seria, antes, ir contra a vontade dessa
lei.
A segunda razão alegada a favor da mesma tese é a de que o
entendimento por ela propugnado da referência global conduz à harmonia
jurídica entre leis que têm normas de conflitos divergentes.
Esta teoria significa que a ordem jurídica tem que ser vista como um todo,
logo a referência feita pela norma de conflitos portuguesa irá chamar o Direito
Internacional Privado da outra ordem jurídica e esta considerar-se-á ou não
competente.
A teoria do reenvio ou devolução tem sido praticada pelos tribunais europeus
sob duas formas: sob a forma de devolução simples e na modalidade de
devolução dupla ou integral. Fala-se em devolução simples quando o ponto
de vista da referência global se aplica só no momento da partida, isto é, à
designação feita pela regra de conflitos do foro à lei para que inicialmente
remete; mas já não se aplica nos momentos subsequentes – designadamente,
já não se aplica à regra de conflitos estrangeira que devolve a competência à
lei do foro. Pelo contrário a devolução dupla acolhe plenamente a ideia que
está na base da teoria da referência global: o tribunal do Estado do foro deve
julgar o caso tal como este seria julgado pelo tribunal do Estado cuja lei é
declarada competente pela regra de conflitos da lex fori.
A devolução pode assumir duas formas: a forma de retorno da competência
à lex fori1 e a forma de transmissão da competência a uma terceira (ou
quarta) lei.
 
33. Teoria da referência material ou tese anti-devolucionista
A referência feita pela lei do foro (L1) ao ordenamento jurídico em causa (L2)
abrangeria somente as normas materiais desse ordenamento, não se
admitindo sequer existência de normas de Direito Internacional Privado.
Fundamentos desta tese:
        Era necessário uma lógica na remissão da referência directa ao
direito material interno: crítica, não se pode basear uma teoria num
fundamento lógico porque a índole remissiva das normas de conflito terá
que ser resolvida pelos princípios objectivos a prosseguir pelas principais
normas de conflito; por outro lado, é também negar a principal estrutura
das normas de conflito gerando assim lacunas.
        Respeitar a vontade soberana do legislador nacional: aceitar a tese
da referência global, isto é, das normas de conflito noutro ordenamento,
aqui valeria a prescindir dos elementos de conexão. A doutrina clássica
entendia que a aceitação de um Direito Internacional Privado em L2
equivaleria a negar o nosso Direito Internacional Privado. Crítica, é uma
visão que aceita uma apresentação conceitualista e o facto de aceitarmos
outros Direitos Internacionais Privados não significa que devemos negar
o nosso Direito Internacional Privado.
        Atende-se à vontade histórica das leis (das normas de conflito): as
normas de conflito surgiram primeiramente como norma de referência
material. Crítica, se o entendimento doutrinal na feitura das normas de
conflito foi só o entendimento de natureza material não significa que não
possa ter havido um progresso no Direito Internacional Privado com
aparição das normas de conflito.
        Dificuldade de actuação prática da devolução: pode suscitar-se
dificuldades gerais de conhecimento e aplicação do Direito Internacional
Privado estrangeiro, por ex., L2, pode não aceitar competência para
resolver a questão por existir no seu Direito Internacional Privado uma
norma semelhante ao art. 22º CC (reserva da ordem pública).
 
34. Teoria da devolução simples
Preconizam a aceitabilidade da referência material como primeira referência,
mas com um limite que é o segundo momento, que é o da referência material.
L1 remete para L2, sendo uma devolução simples esta é obrigada a aceitar.
L2 devolve para L1. L1 devolve logo para o direito material interno de L2 que
é obrigado a aceitar. O art. 17º CC é o princípio geral.
 

1
Retorno directo, se é a lei designada pela regra de conflitos da lex fori que manda aplicar esta lei; ou retorno
indirecto se é uma terceira lei designada pela regra de conflitos da lei primeiramente chamada, que opera o retorno.
35. Teoria da dupla devolução
Por via da qual as normas de conflito remetem para a ordem jurídica
estrangeira mas L1 deverá regular a questão como ela seria julgada em
qualquer outro ordenamento.
A teoria da referência global pode funcionar com limites, este é na segunda
referência existir necessariamente uma referência material.
 
36. Princípios a ter em conta em matéria de reenvio: art. 16º CC
As regras de conflito, na construção do Direito Internacional Privado situam-
se num segundo plano, num plano subordinado. O plano superior ou primário é
constituído por dois princípios, o da estabilidade e o da uniformidade de que as
regras de conflitos não apresentam a directa expressão pois estas são antes
simples critérios de resolução de concursos.
Afasta-se, em tese geral, a doutrina da devolução ou do reenvio, aceitando-
se como regra o princípio da simples remissão da norma de conflitos para a lei
interna, em conformidade com a chamada teoria da referência material. 2
Quando a norma de conflitos portuguesa fixar a competência de uma lei
estrangeira, entende-se aplicável a lei interna estrangeira reguladora da
relação jurídica, e não a lei internacional (norma de conflitos) se, porventura
remeter para outro sistema legislativo. Este, em princípio, não é considerado
pela regra de conflitos da lei portuguesa.
Sobre o art. 16º CC há que fazer duas observações:
A primeira é que, embora a atitude nele definida corresponda à que é
própria da teoria da referência material, não se crê que tal texto possa ser
interpretado como impondo uma certa concepção de fundo quanto ao sentido
da referência de toda e qualquer norma de conflitos. A sua função não é
doutrinal, mas prático-regulamentadora: verificada a inexequibilidade da
devolução como regra geral e verificado também que a sua utilização em
certos casos permite obter resultados valiosos, revela-se praticamente
aconselhável partir da regra da sua não admissibilidade, estabelecendo de
seguida os desvios que esta regra comporta.
A segunda observação a fazer é que, mesmo que porventura de devesse
entender como princípio a regra do art. 16º CC certas soluções a que se
chegaria através do reenvio poderiam ainda ser alcançadas por outros meios,
como o princípio da favor negotti ou do respeito dos direitos adquiridos, pelo
que aquele texto não obstaria a tais soluções, quando devidamente
fundamentadas.
Os princípios mais altos do Direito Internacional Privado são princípios que
exprimem uma justiça puramente formal, uma justiça unicamente atenta aos
valores da certeza do direito e da segurança jurídica.
A regra, neste preceito consagrada de que a referência da norma de
conflitos portuguesa à lei estrangeira determina apenas na falta de preceito em
contrário, a aplicação do direito interno dessa lei, obtém duas excepções, os
arts. 17º/1 e 18º/1 CC.
 

2
Vide arts. 62º e 18º CC.
37. As regras do art. 17º CC
O n.º 1 deste artigo prevê que a norma de conflitos da lei competente,
segundo o Direito Internacional Privado português, remete para o direito de
um terceiro Estado, e este considera-se competente segundo a sua
norma de conflitos. Aceita-se a devolução, aplicando nesse caso o direito
interno desse terceiro Estado.
A excepção deixa porém de ter aplicação no campo da competência da lei
pessoal, diz o art. 17º/2 CC se o interessado residir habitualmente em
território português ou em país cuja norma de conflitos considere
competente o direito interno do Estado da sua nacionalidade.
Pode dizer-se, talvez, que a ideia da lei é a de que, no domínio do estatuto
pessoal, em que são duas as conexões principais (nacionalidade e residência
habitual), só há harmonia de decisões susceptível de justificar o reenvio
quando ambas as leis designadas por aquelas conexões estejam de acordo.
Ora, não é esse o caso em nenhuma das hipótese contempladas no art. 17º
CC.
Note-se ainda que a segunda exclusão de reenvio, por força do art. 17º/2
CC, pressupõe que o Direito Internacional Privado da lex domicilii remeta para
o direito “interno” da lex patriae. Significa isto que a referência da primeira à
segunda destas leis deve ser uma referência material.
Segundo o art. 17º/2 CC o reenvio não será de admitir se o Direito
Internacional Privado da lex domicilii persiste em considerar aplicável o direito
material da lex patriae. Mas segundo o art. 17º/3 CC já assim não será, o
reenvio já não será afastado se, tratando-se duma daquelas matérias que o
texto enumera, a lex patriae remeter para a lex rei sitae e esta se considerar
competente. Isto ainda que a lex domicilii seja a lex fori.
A lex rei sitae, embora não tenha em princípio título para se aplicar em
matéria de estatuto pessoal, pode querer aplicar-se às repercussões deste
estatuto em matéria de direitos sobre as coisas situadas no seu território. E
deve reconhecer-se que, neste ponto, ela é de todas as leis interessadas
aquela que está em melhores condições para fazer vingar o seu ponto de vista,
uma vez que as coisas sobre que se pretende exercer o direito se acham no
seu território. Por isso se diz que ela é a lei dotada de competência mais forte
ou mais próxima.
A manifesta finalidade deste conjunto de princípios é a de assegurar no
maior grau possível a harmonia jurídica entre diversas legislações, dando
prevalência, com um sentido bastante realista das soluções, à lei do Estado
que se encontra numa situação privilegiada quando às relações jurídicas cujo o
regime se trata de fixar.
 
38. As disposições do art. 18º CC
Este artigo ocupa-se do reenvio sob a forma de retorno de competências à
lei portuguesa. Este retorno pode ser directo3, ou indirecto4. Para qualquer
dos casos, o art. 18º/1 CC estabelece o retorno só é de aceitar se o Direito

3
Se é a própria lei designada pela nossa regra de conflitos que devolve a competência à lei portuguesa.

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Se o Direito Internacional Privado da lei designada pela regra de conflitos transmite a competência a uma outra lei,
sob a forma de referência global, e estoutra lei retorna a competência à lei portuguesa.
Internacional Privado da lei designada pela regra de conflitos portuguesa
devolver (directa ou indirectamente) para o direito interno português.
Dos termos da lei parece decorrer que a referência ao direito português por
parte da lei estrangeira que o designa como competente há-de ser uma
referência material.
A razão de ser do art. 18º/1 CC é a salvaguarda da harmonia internacional
de decisões. Ora, no caso, tal harmonia será alcançada qualquer que seja a
atitude que se adopte. A admissão do reenvio não é aqui um meio necessário
para se alcançar a referida harmonia. Mas também a não prejudica de forma
alguma. A isto acresce a vantagem de que, pela aceitação do retorno, os
tribunais português aplicarão a lei portuguesa, o que facilita a administração da
justiça assegurando uma aplicação mais adequada e mais rigorosa do direito.
Segundo o art. 18º/2 CC o retorno à lei portuguesa em matéria de estatuto
pessoal apenas será de aceitar se o interessado tiver a sua residência habitual
no nosso país ou em país cuja lei considere competente o direito interno
português.
A primeira observação a fazer aqui respeita à diferencia entre os requisitos a
que a lei sujeita a aceitação do reenvio na hipótese de transmissão de
competência e aqueles a que ela submete a dita aceitação na hipótese de
retorno. Neste segundo caso, a lei é mais exigente, pois afasta o reenvio não
apenas nas hipóteses em que a lex domicilii considera competente o direito
interno (material) da lex patriae, como no art. 17º/2 CC mas em todos os casos
em que sendo a lex domicilii uma lei estrangeira, esta remeta também (em
consonância com a lex patriae) para o direito interno português.
39. Coordenadas básicas do regime legal do reenvio em matéria de
estatuto pessoal, casos omissos
Das disposições do art. 17º e 18º CC podem-se extrair conclusões bastantes
significativas sobre o reenvio em matéria de estatuto pessoal. A primeira é a
que respeita à relevância da conexão “residência habitual”, esta conexão é tão
importante que, em princípio se deve exigir o acordo da lex domicilii para que
se possa entender que há uma harmonia internacional de decisões capaz de
justificar aquilo a que se chama o reenvio. Assim é, que devemos aplicar a lex
fori, desistindo (digamos) da nossa regra de conflitos, quando as duas
principais leis interessadas (lex patriae e lex domicilii) fazem aplicação do
nosso direito material. Mas repare-se que não basta aceitar o reenvio que a lex
patriae faz à lex fori: é preciso que esse reenvio seja confirmado por uma lei a
que não chega a designação da nossa regra de conflitos: a lex domicilii.
 
40. Artigo 19º CC
c)     Artigo 19º/1 CC
Segundo este preceito, do reenvio não poderá resultar a invalidade ou
ineficácia de um negócio jurídico que seria inválido ou eficaz segundo a lei
designada pela nossa regra de conflitos, nem a ilegitimidade de um Estado que
de outro modo seria legítimo.
d)     Artigo 19º/2 CC: a lei designada pelos interessados
O reenvio não é de admitir no caso de a lei estrangeira ter sido designada
pelos interessados, quando tal designação é válida. Quer este texto referir-se
às hipóteses em que vigora o princípio da autonomia da vontade em Direito
Internacional Privado, ou seja, àquelas em que a lei competente é a
directamente designada pela vontade das partes. Trata-se, portanto, apenas
das hipóteses abrangidas no art. 41º CC: obrigações provenientes de negócios
jurídicos. Só neste domínio é que o Direito Internacional Privado português
permite que a lei competente seja directamente designada dentro de certos
termos, pela vontade dos interessados.
 
41. Ordenamentos jurídicos plurilegislativos
O art. 20º/1 CC estabelece como princípio básico o princípio segundo o qual,
designada a lei de um Estado plurilegislativo em razão da nacionalidade de
certa pessoa é o direito interno desse Estado que fixa em cada caso o sistema
legislativo local aplicável.
O art. 20º/2 CC esclarece sobre quais as normas do “direito interno desse
Estado” que importa aplicar para determinar o sistema legislativo local
competente: são as normas do direito interlocal e, na falta desta, as normas do
Direito Internacional Privado unitário do mesmo Estado.
Por último, a 2ª parte do art. 20º/ CC determina que, na hipótese de nenhum
dos indicados procedimentos nos fornecer a solução, deve-se considerar como
lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual. Esta última hipótese
verifica-se portanto, quando não exista no Estado plurilegislativo um direito
interlocal ou um Direito Internacional Privado unificado.
Por seu turno, o art. 20º/3 CC refere-se à hipótese de a legislação designada
como competente ser territorialmente unitária, mas com sistemas de normas
diferentes para os diferentes grupos de pessoas. Neste caso, manda a nossa
lei observar sempre o estabelecido nessa legislação quanto ao conflito de
sistemas.
A) Identificação do problema

Quando a norma de conflitos portuguesa remete para uma ordem jurídica estrangeira pode
suceder que esta ordem jurídica, por ter uma norma de conflitos idêntica à nossa, também
considere aplicável o seu Direito material. Mas pode suceder igualmente que esta ordem
jurídica, por ter uma norma de conflitos diferente da nossa, não se considere competente e
remeta para outra lei. Surge então o problema da devolução.
O problema é o seguinte: devemos aplicar a lei designada, mesmo que este não se considere
competente, ou devemos ter em conta o DIP da lei designada?
Será que esta referência se dirige directa e imediatamente ao Direito material da lei designada
ou será que, diferentemente, esta referência pode a abranger o DIP da lei designada?
Quando a referência se dirige directa e imediatamente ao Direito material da lei designada
dizemos que a referência é uma referência material.
È global a referência que tem em conta o DIP da lei designada.
São três os pressupostos de um problema de devolução:
i) que a norma de conflitos do foro remeta para uma lei estrangeira;
ii) que a remissão possa não ser entendida como uma referência material;
iii) que a lei estrangeira designada não se considere competente.

Este terceiro pressuposto verifica-se quando a norma de conflitos estrangeira utiliza um


elemento de conexão diferente da norma de conflitos do foro ou quando, embora utilizando o
mesmo elemento de conexão, seja interpretada por forma diferente.

B) Tipos de devolução

A devolução pode apresentar-se como um retorno de competência ou uma transmissão de


competência.
No retorno de competência, ou reenvio de primeiro grau, o Direito de Conflitos estrangeiro
remete a solução da questão para o Direito do foro.
Na formulação destas hipóteses de devolução designamos a lei do foro como L1, a lei
designada como L2, a lei designada por L2 como L3 e assim sucessivamente.
Na transmissão de competência, ou reenvio de segundo grau, o Direito de Conflitos
estrangeiro remete a solução da questão para outro ordenamento estrangeiro.
Podemos ter retorno indirecto quando L2 remete para L3 com referência global e L3, por sua
vez, devolve para o Direito do foro.
Podemos ter transmissão em cadeia quando L2 remete para L3 e esta lei também não se
considere competente, devolvendo para uma quarta lei.
Pode ainda configurar-se uma transmissão com retorno, quando, por exemplo, L3 remeta para
L2.

● Critérios gerais de solução


A) Tese da referência material

Segundo esta tese a referência feita pela norma de conflitos é sempre e necessariamente
entendida como uma referência material, isto é como uma remissão directa e imediata para o
Direito material da lei designada.
Não interessa o Direito de Conflitos da lei designada.
A tese da referência material contrapõe-se a qualquer sistema de devolução, a qualquer
sistema em que se tenha em conta o Direito de Conflitos estrangeiro, ainda que este Direito de
Conflitos não seja sempre e necessariamente aplicado.
Encontra-se consagrada, em matéria de obrigações contratuais, no art. 15º da Convenção de
Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais.

B) Teoria da referência global

Segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos para uma ordem jurídica estrangeira
abrange sempre e necessariamente o seu Direito de Conflitos.
Embora as normas de conflitos tenham por função designar qual o Direito material
competente, quando remetem para uma ordem jurídica estrangeira a designação das normas
materiais aplicáveis não é feita directa e imediatamente, é antes feita indirectamente, com a
mediação do Direito de Conflitos da ordem jurídica estrangeira.

C) Teoria da devolução simples

Segundo esta teoria a remissão da norma de conflitos do foro abrange as normas de conflitos
da ordem estrangeira, mas entende-se necessariamente a remissão operada pela norma de
conflitos estrangeira como uma referência material.
A devolução simples surge historicamente ligada ao favorecimento da aplicação do Direito do
foro. Em Portugal, parece que foi sempre aplicada em casos de retorno.
Com efeito, a devolução simples leva a aceitar o retorno directo mesmo que L2 não aplique L1.
Por exemplo, na situação de retorno directo entre dois sistemas que pratiquem devolução
simples cada um aplica o seu próprio Direito.
A devolução simples também leva a aceitar a transmissão de competência para L3 mesmo que
esta lei não seja aplicada por L2 nem sem se considere competente. Por exemplo, quando L1 e
L2 pratiquem devolução simples e L3 remeta para L2 com referência material, L1 aplica L3,
enquanto L2 e L3 aplicam L2.

D) Teoria da devolução integral, foreign court theory ou dupla devolução

Na devolução simples atende-se à norma de conflitos estrangeira, mas não se respeita o tipo
de remissão feito pelo Direito de Conflitos estrangeiro.
Na devolução integral o tribunal do foro deve decidir a questão transnacional tal como ela
seria julgada pelo tribunal do país da ordem jurídica designada.
Em princípio a devolução integral assegura que o tribunal de L1 aplicará a mesma lei e dará a
mesma solução ao caso que o tribunal de L2. Garante a harmonia entre L1 e L2.
A grande novidade da devolução integral reside no seguinte: a norma de conflitos remete para
a ordem estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas de L2 sobre a devolução.
Assim, atende ao tipo de referência feito por L2.

E) Balanço

Assim, o sistema português parte de uma regra geral de referência material mas aceita a
devolução em certos casos. Também uma parte das codificações mais recentes se mostra
desfavorável à admissão geral do reenvio, mas não o exclui em determinadas hipóteses.
Por forma geral pode dizer-se que a devolução deve ser admitida como um mecanismo de
correcção do resultado a que conduz no caso concreto a aplicação da norma de conflitos do
foro, quando tal seja exigido pela justiça conflitual, em especial pelo princípio da harmonia
internacional de soluções.

● O regime vigente

A) A regra geral da referência material

O art. 16º CC estabelece que a “referência das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira
determina apenas, na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei”.
Daqui resulta que a referência material é enunciada como regra geral. Mas não resulta a
adopção da tese da referência material, visto que se admite “preceito em contrário”, isto é,
que se aceite a devolução nos casos em que a lei o determine. Isto verifica-se desde logo nos
arts. 17º, 18º, 36º/2 e 65º/1 in fine CC.

B) Transmissão de competência

O art. 17º permite sob certas condições a transmissão de competência. Nos termos do seu nº1
“Se, porém, o direito internacional privado da lei referida pela norma de conflitos portuguesa
remeter para outra legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o direito
interno desta legislação que deve ser aplicado”.
“Remeter” deve entender-se como “aplicar”. O que interessa é que L2 aplique uma terceira lei.
Por “direito interno” deve entender-se “direito material” vigente na ordem jurídica do sistema
para que remete L2.
Os pressupostos da transmissão de competência são, portanto, dois:
i) que o Direito estrangeiro designado pela norma de conflitos portuguesa aplique outra ordem
jurídica estrangeira;
ii) que esta ordem jurídica estrangeira aceite a competência.
È o que se verifica no caso da sucessão imobiliária de um francês que deixa imóvel situado em
Inglaterra. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês a título da lei da
última nacionalidade do de cuius; o Direito francês, por seu turno, submete a sucessão
imobiliária à lex rei sitae, remetendo para o Direito inglês; o Direito inglês também submete a
sucessão imobiliária à lex rei sitae e por isso, considera-se competente. Logo L2 aplica L3 e L3
considera-se competente.
A transmissão de competência também é de admitir num caso de transmissão em cadeia, em
que L2 aplique L4 e L4 se considere competente. Esta hipótese não é directamente visada pelo
texto do art. 17º/1, mas é abrangida pela sua ratio.
Isto é de admitir mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por exemplo, quando
L2 aplicar L4, e L4 se considerar competente, mas L3 aplicar L3. Se não se atinge a harmonia
com todas as leis do circuito alcança-se, pelo menos, a harmonia com L2 e com a lei aplicada
por L2.
Logo é preferível dizer que os pressupostos são:
i) que L2 aplique Ln (pode ser L3, l4, etc);
ii) que Ln se considere competente.

Só podemos aplicar através da transmissão de competência uma lei que L2 aplique e que se
considere competente.
Vejamos o seguinte exemplo: sucessão mobiliária de francês que falece com último domicílio
na Alemanha. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês, a título de lei da
última nacionalidade do de cuius; o Direito francês submete a sucessão mobiliária à lei do
último domicílio do de cuius, remetendo por isso para o Direito alemão; o Direito alemão, por
seu turno, regula a sucessão pela lei da última nacionalidade, remetendo para o Direito
francês; como tanto os tribunais franceses como os alemães praticam devolução simples, o
sistema francês aceita o retorno operado pela lei alemã, aplicando o seu direito, e o sistema
alemão aceita o retorno operado pela lei francesa, aplicando o seu Direito; logo L2 aplica L2 e
L3 aplica L3. Não há transmissão competência porque L2, apesar de remeter primariamente
para L3, não aplica L3. Funciona a regra da referência material do art. 16º, nos termos da qual
se deve aplicar a lei francesa.
A lei aplicada por L2 pode considerar-se directa ou indirectamente competente.
O art. 17º/2 determina o seguinte: “ Cessa o disposto no número anterior, se a lei referida pela
norma de conflitos portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em
território português ou em país cujas normas de conflitos consideram competente o Direito
interno do Estado da sua nacionalidade”.
Este preceito aplica-se em matéria de estatuto pessoal. Nesta matéria, a transmissão de
competência, estabelecida nos termos do nº1, cessa em duas hipóteses:
i) o interessado tem residência habitual em Portugal;
ii) o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica o direito material do Estado
da nacionalidade.

Uma primeira dificuldade de interpretação deste preceito surge quando a lei pessoal não for a
lei da nacionalidade.
A 2ª parte do art. 17º/2 revela que o legislador representou L2 como sendo a lei da
nacionalidade.
Em princípio L2 tem de ser a lei da nacionalidade chamada a reger matéria do estatuto
pessoal.
Outra dificuldade é determinar o interessado. Deve entender-se que é interessado aquele que
desencadeou o funcionamento do elemento de conexão que designou L2. Por exemplo, na
sucessão o interessado é o de cuius.
A 2ª parte do art. 17º/2 releva quando o interessado tem residência habitual noutro Estado
que aplica a lei da nacionalidade.
Nestas circunstâncias a harmonia internacional não justifica o abandono da conexão julgada
mais adequada para reger o estatuto pessoal, a lei da nacionalidade. Por isto cessa a devolução
e aplicamos a lei da nacionalidade.
Esta explicação da ratio do preceito é, em linhas gerais, de aceitar. Observe-se apenas que o
art. 17º/2 também faz cessar a devolução quando L3 for a lei do domicílio, se este não
coincidir com a residência habitual, e a lei da residência habitual aplicar a lei da nacionalidade.
Em certos casos, porém, o art. 17º/3 vem repor a transmissão de competência. Assim como o
art. 17º/2 só se aplica quando há transmissão de competência face ao art. 17º/1, o art. 17º/3
só se aplica quando antes se tenham verificado as previsões das normas contidas nos nº 1 e 2.
São quatro os pressupostos de aplicação deste preceito:
i) que se trate de uma das matérias nele indicadas;
ii) que a lei da nacionalidade aplique a lex rei sitae;
iii) que a lex rei sitae se considere competente;
iv) que se verifique um dos casos de cessação da transmissão de competência previsto no nº2.

Nos termos do art. 17º/3, o Direito de Conflitos português admite abandonar o seu critério de
conexão, para assegurar a efectividade das decisões dos seus tribunais, quando o Direito da
nacionalidade estiver de acordo na aplicação da lex rei sitae.

C) Retorno

O art. 18º CC vem admitir, sob certas condições, o retorno de competência. O art. 18º/1
estabelece que se “ o DIP da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito
interno português, é este o direito aplicável”.
O retorno de competência depende, pois, em princípio de um único pressuposto: que L2
aplique o Direito material português.
Se L2 remete para o direito português, mas não aplica a lei portuguesa, não aceitamos o
retorno.
Por exemplo, a sucessão mobiliária de um francês com último domicílio em Portugal. A norma
de conflitos portuguesa remete para a lei francesa como a lei da última nacionalidade do de
cuius; a lei francesa submete a sucessão mobiliária á lei do último domicílio, razão por que
remete para a lei portuguesa; mas, como pratica devolução simples, aceita o retorno operado
pela lei portuguesa e considera-se competente. Como L2 não aplica L1, não aceitamos o
retorno, e aplicamos L2, nos termos do art. 16º.
Por forma geral, pode dizer-se que nunca aceitamos o retorno directo operado por um sistema
que pratica devolução simples.
O retorno pode ser indirecto. O que interessa é que L2 aplique o Direito material português.
Assim, L2 remete para L3, com devolução simples, e L3 remete para o Direito português, L2
aplica o Direito material português.
Também neste caso é de admitir o retorno mesmo que uma lei instrumental fique em
desarmonia, por não aplicar o Direito material português. Com efeito, a harmonia com L2 é
mais importante que a harmonia com L3.
Maiores dificuldades suscita a hipótese de L2 não remeter directa e imediatamente para o
direito material português, mas condicionar a resposta ao sistema de devolução português.
Mas há razões de fundo para não aceitarmos neste caso o retorno: o retorno não é necessário
para haver harmonia: se nós aplicarmos L2, L2 considera-se competente. Não se justifica
sacrificar o nosso critério de conexão.
Noutros casos em que L2 não remete incondicionalmente para o direito material português,
dificilmente o retorno poderá ser aceite, porquanto, em princípio, não será condição
necessária ou condição suficiente para haver harmonia com L2.
O retorno também é limitado em matéria de estatuto pessoal.
Com efeito, o art. 18º/2 estabelece o seguinte: “Quando, porém, se trate de matéria
compreendida no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o interessado tiver em
território português e a sua residência habitual ou se a lei do país desta residência considerar
igualmente competente o Direito interno português”.
Este preceito só se aplica quando há retorno nos termos do nº 1.
Em matéria de estatuto pessoal, o retorno só é aceite em duas hipóteses:
i) quando o interessado tem residência habitual em Portugal;
ii) quando o interessado tem residência habitual num Estado que aplica o direito material
português.

D) O favor negotti como limite à devolução

È o seguinte o teor do art. 19º/1 CC: “ Cessa o disposto nos dois artigos anteriores, quando da
aplicação deles resulte a invalidade ou a ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou
eficaz segundo a regra fixada no art. 16º, ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo
seria legítimo”.
Neste preceito o favor negotti paralisa a devolução.
O preceito tem enorme alcance: sempre que haja devolução por força dos arts. 17º ou 18º
esta devolução é paralisada se L2 for mais favorável à validade do negócio ou á legitimidade de
um estado que a lei aplicada através da devolução.
Para Ferrer Correia e Baptista Machado o art. 19º/1 só seria aplicável às situações já
constituídas – e não à sua constituição em Portugal com a intervenção de uma autoridade
pública – e desde que a situação esteja em contacto com a ordem jurídica portuguesa ao
tempo da sua constituição.
Não posso concordar com esta doutrina. Ora, tudo indica que o legislador quis dar primazia ao
princípio do favor negotti relativamente à harmonia internacional.

E) Casos em que não é admitida a devolução

A devolução não é admitida quando a remissão é feita pelo elemento de conexão designação
pelos interessados, utilizado mormente nos arts. 34º e 41º CC.
Com efeito o nº2 do art. 19º determina que “Cessa igualmente o disposto nos mesmos artigos,
se a lei estrangeira tiver sido designada pelos interessados, nos casos em que a designação é
permitida”.
Em rigor não se trata e fazer cessar ou paralisar a devolução. Não se aplicam os arts. 17º e 18º
CC dada a natureza do elemento de conexão.
A devolução também não é admitida em matéria de obrigações contratuais. O art. 15º da
Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais exclui o reenvio.
Nem o art. 19º/2 CC nem o art. 15º da Convenção de Roma excluem que as partes designem
como aplicável um sistema globalmente considerado, incluindo o respectivo Direito de
Conflitos.
Outras matérias em que a devolução não é admitida por convenções internacionais de
unificação do Direito de Conflitos são as obrigações alimentares, a representação voluntária e
os “contratos de mediação”.

F) Regimes especiais de devolução

No CC, encontramos disposições especiais sobre devolução em matéria de forma, nos arts.
36º/2 e 65º/1 in fine.
Aqui o favor negotti actua como fundamento autónomo de devolução. O nº1 do art. 36º
contém uma conexão alternativa, que abre a possibilidade de o negócio obedecer à forma
prescrita por uma das duas leis aí indicadas. O nº 2 cria uma terceira possibilidade: a
observância da forma prescrita pela lei para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da
celebração.
Não se exige que L3 se considere competente. Está aqui a grande diferença com o regime
contido no nº1 do art. 17º CC.
Tem-se entendido que o art. 36º/2 adopta um sistema de devolução simples. O que ficou
exposto quanto ao art. 36º/2 aplica-se à hipótese de devolução admitida pelo art. 65º/1 in
fine. Aqui a devolução vem abrir uma quarta possibilidade para salvar a validade formal de
uma disposição por morte.

G) Caracterização do sistema de devolução

São três as características do sistema:


1) Primeiro, a regra geral é a da referência material. Isto decorrer não tanto dos pressupostos
da devolução enunciados nos n º 1 dos arts. 17º e 18º CC mas dos limites colocados à
devolução pelos seus nº 2, em matéria de estatuto pessoal, e pelo art. 19º CC.
2) Segundo, os arts. 17º e 18º contêm regras especiais, que admitem a devolução,
configurando um sistema de devolução sui generis, visto que não corresponde á devolução
simples nem à devolução integral. No entanto, parece mais próximo na sua inspiração da
devolução integral, visto que a devolução depende sempre do acordo com L2.
3) Terceiro, em matéria de forma do negócio jurídico admite-se a transmissão de competência
para uma lei que não esteja disposta a aplicar-se para obter a validade formal do negócio (arts.
36º e 65º).

H) Apreciação crítica

À semelhança da devolução integral promove a harmonia com L2, mas mostra-se superior à
devolução integral porquanto evita o círculo vicioso em caso de retorno directo por parte de
um Direito que faça devolução integral ou tenha um sistema de devolução semelhante ao
nosso e faz depender a transmissão de competência da harmonia com a lei aplicada por L2

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