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PANORAMA DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

Mauro Passos
2020

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SUMÁRIO

A. PLANO DE CURSO
B. A HISTÓRIA E SEUS MÉTODOS

1ª. PARTE: O CRISTIANISMO PRIMITIVO

1. Introdução ------------------------------------------------------------------------------------ 7
2. A Palestina nos tempos de Jesus ---------------------------------------------------------- 9
3. O cristianismo e seus modelos culturais ------------------------------------------------- 11
4. O que há por trás da religiosidade popular ---------------------------------------------- 16

2ª. PARTE: O CRISTIANISMO MEDIEVAL

1. A Igreja medieval --------------------------------------------------------------------------- 27


2. O desenvolvimento do cristianismo medieval ------------------------------------------ 34
3. As Universidades e a Escolástica --------------------------------------------------------- 37

3ª. PARTE: O CRISTIANISMO MODERNO

1. As reformas do século XVI ---------------------------------------------------------------- 43


2. O Catolicismo moderno -------------------------------------------------------------------- 49
3. O Iluminismo -------------------------------------------------------------------------------- 52

4ª.PARTE: O CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO

1. Desafio e resposta: A Igreja no século XIX -------------------------------------------- 58


3. O movimento ecumênico ------------------------------------------------------------------ 61
4. O Concílio Vaticano II --------------------------------------------------------------------- 67

5ª. PARTE: O CRISTIANSIMO NO BRASIL

1. A implantação do Catolicismo (Da implantação da Igreja à consolidação


organizacional: 1500-1759)------------------------------------------------------------------- 94
2. A historiografia brasileira: uma introdução --------------------------------------------- 105
3. A interpretação do Brasil ------------------------------------------------------------------- 121
4. A Romanização ------------------------------------------------------------------------------ 129
5. O Pentecostalismo brasileiro -------------------------------------------------------------- 149
6. As religiões afro-brasileiras --------------------------------------------------------------- 161
7. Anexos ---------------------------------------------------------------------------------------- 162

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A. PLANO DE CURSO

CENTRO LOYOLA
PANORAMA DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO
PLANO DE CURSO
PROF. MAURO PASSOS

EMENTA
Análise do panorama histórico do cristianismo e sua relação com a sociedade, a cultura e a
política. Reconstituição histórica das configurações do cristianismo no tempo e no espaço. O
campo religioso brasileiro – história e constituição.

OBJETIVOS
Estudar o método histórico e relacionar a história do cristianismo com a história da cultura
ocidental.
Reconstituir as configurações da história do cristianismo - início da Era Cristã, Idade Média,
Idade Moderna e Idade Contemporânea.
Analisar o campo religioso brasileiro: sua constituição histórica e sua evolução no tempo e no
espaço.

MÉTODOS DIDÁTICOS
Aulas expositivas, trabalhos em grupo, debates, avaliação individual e em grupo. Uso de
vídeos para ilustração dos temas estudados.

UNIDADES DE ENSINO

UNIDADE I: O MÉTODO HISTÓRICO


1.1. Concepções de história e historiografia
1.2. As relações da história do cristianismo com a história, a cultura e a arte.
1.3. O cristianismo primitivo: o caráter das fontes e sua leitura

UNIDADE II: VISÃO PANORÂMICA DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO


2.1. O cristianismo medieval: o imaginário religioso e as devoções populares.
2.2. O cristianismo moderno: A Reforma
2.3. O cristianismo contemporâneo: os novos movimentos religiosos

UNIDADE III: O CRISTIANISMO NO BRASIL


3.1. Catolicismo e colonização: a matriz religiosa brasileira
3.2. O catolicismo e a cultura popular: o sagrado, a tradição, a festa
3.3. O campo religioso brasileiro: constituição e evolução

Livro de referência para o curso


LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2008.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERTEAU, Michel. A escrita da história. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

3
DELUMEAU, Jean. A civilização do renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, v.1, 2.

DELUMEAU, Jean. De religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000.

DELUMEAU, Jean. À espera da aurora: um cristianismo para o amanhã. São Paulo:


Loyola, 2007.

FRANZEN, August. Breve história da igreja. Lisboa: Editorial Presença, 1996

JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001.

HOORNAERT, Eduardo. História da igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979, V. 2.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no
Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2008.

LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

LIMA, Maurílio Cesar. Breve história da igreja no Brasil. São Paulo: Loyola, 2001.

LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. A presença da igreja no Brasil – história e problemas


(1500-1968). São Paulo: Giro, 1977.

MATOS, Henrique Cristiano José. Caminhando pela história da igreja: uma orientação
para iniciantes. Belo Horizonte: O Lutador, 1995, v.1, 2,3.

MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao


protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2002.

PASSOS, Mauro; PEREZ, Léa Freitas (Orgs.). SANCHIS, Pierre. Religião, cultura e
identidades. Matrizes e matizes. Petrópolis: Vozes, 2018.

PASSOS, Mauro; NASCIMENTO, Mara Regina (Orgs.). A invenção das devoções – crenças
e formas de expressão religiosa. Belo Horizonte: O Lutador, 2013.

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B. A HISTÓRIA E SEUS MÉTODOS (Uma introdução sistemática)

A história define-se através da verdade que se mostra capaz de elaborar. É um campo


de possibilidades. É a experiência humana. Dessa forma, fazer história como conhecimento e
como vivência é recuperar a ação dos diferentes grupos que nela atuam, procurando entender
por que o processo tomou determinado rumo e não outro. No conhecimento histórico, importa
recuperar lágrimas e risos. "Fazer história é levantar o véu da ciência histórica", como bem
disse Michel de Certeau.

1. A concepção positivista
Na concepção positivista, a história é pensada como uma sucessão de fatos em direção ao
progresso. Nessa concepção, o registro privilegiado pelo historiador é o documento escrito,
sobretudo o oficial. Esse documento assume o peso de prova histórica e a objetividade é
garantida pela fidelidade ao mesmo. A história baseia-se numa sucessão de fatos isolados e
está preocupada sobretudo com guerras, personagens, grandes feitos, grande heróis.

2. A Escola dos Annales


Essa concepção (1929-1969) ampliou a noção de documento, a partir de uma outra concepção
de história. Para esses historiadores o acontecer histórico se faz a partir das ações dos homens.
Então, amplia-se o conceito de documento, tais como objetos, signos, paisagens, etc. A
relação do historiador com o documento também se modifica. O documento já não fala por si
mesmo, mas necessita de perguntas adequadas.

3. História marxista (“marxizante”)


Este enfoque inspira-se no modelo histórico do materialismo dialético, segundo Marx e
Engels. A luta de classes, torna-se conceito, instrumento e engendra um poderoso
determinismo. Visando a uma história "totalizante" (Pierre Vilar), o marxismo ortodoxo
elimina o homem das fontes. Tudo está direcionado sua classe social. A tendência marxista
contribui para a leitura dos movimentos de conjunto das sociedades, mas despersonaliza a
história, que se compões de diversidades, (in)certezas, imaginários.

4. As tendências mais recentes: A História nova, a História cultural


Pensando-se na história como processo, como ciência em construção, outras tendências
vieram contribuir e ampliar o método do estudo histórico. Levam em conta toda a experiência
humana. Tomam os homens e as mulheres como sujeitos ativos. Traduzem suas experiências -
valores, tradições, mentalidades, objetos, construções, espaços, arte, religião, etc. Assim,
podemos situar a história nova, história cultural. Jacques Le Goff prega um enfoque
conceitual fazendo, segundo a expressão de Paul Veyne, de cada assunto de história um
problema. Pressupõe a acepção dinâmica de um encontro fecundo entre todas as ciências do
homem. Essa é a proposta da Nova História - a erudição. Rumo a uma história cidadã - mista,
abrangente e inventiva.

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1ª. PARTE
I – O CRISTIANISMO PRIMITIVO

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1. INTRODUÇÃO
O presente estudo pretende abordar o movimento do cristianismo nos seus primórdios.
Nestes apontamentos, procurei apresentar alguns aspectos de sua história, particularmente, sua
origem, a expansão, a influência dos diversos modelos culturais e, ainda, alguns elementos
polêmicos nessa primeira travessia.
A religião cristã tem uma memória. Sua descrição histórica está inserida no mundo, na
realidade concreta dos diversos povos. Ao descrever seu trajeto, temos documentos primários
de diversas fontes: fontes cristãs e não-cristãs, relatos de testemunhas (a tradição oral),
inscrições, o texto bíblico, a iconografia e os diversos símbolos e construções que assinalaram
momentos diferentes de sua trajetória.
O cristianismo é uma religião revelada, histórica. O Verbo encarnou-se num ano
concreto, numa sociedade precisa, num povo e numa cultura determinadas. Estes fatores
marcaram a origem do cristianismo. Sua evolução é o resultado de múltiplos fatores internos e
externos, como veremos posteriormente. É bom ressaltar que o cristianismo é uma religião
popular, nasceu e cresceu no meio de pessoas simples. Tem em sua origem uma semente de
resistência.
O nascimento de Jesus de Nazaré coincide com a presença dos romanos na Palestina.
O Império Romano abrangia todos os países do Mediterrâneo e se estendia por boa parte da
Europa, do Norte da África e da Ásia Menor. Caracterizava-se por uma sólida unidade
político-cultural e por um grande pluralismo religioso. O império estava organizado
administrativamente por cidades, províncias e regiões, dirigidas por administradores,
conforme as leis do Direito Romano e com uma importante presença do exército. Era o
mundo do Estado, da política e da valoração do direito positivo. A língua grega, conhecida e
usada principalmente na parte oriental do Império, tinha se tornado uma língua internacional,
tanto da cultura como do comércio. Seu uso favorecia a comunicação entre os diferentes
povos das ideias e doutrinas da civilização grega e, em especial, de sua preocupação pelo
conhecimento, pela filosofia e pela cultura. Assim, a tendência da filosofia grega para a moral
e para os problemas teológicos presentes em muitos lugares favorecerá o interesse e a
acolhida da nova religião. Além disso, a força especulativa do gênio grego ajudou o
cristianismo a formular uma doutrina bem concatenada e coerente e a tornar-se uma potente
força espiritual. Não obstante, a paixão grega pela especulação filosófica complicará os
primeiros passos do cristianismo ao enfrentá-lo com o problema da fundamentação filosófica

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da fé. Muitas das primeiras heresias tiveram essa origem. De fato os problemas teológicos
acontecerão fundamentalmente no Oriente, apaixonarão suas populações e serão resolvidos
nos primeiros concílios que serão quase exclusivamente orientais.
A Pax Augusta levou a paz e o prestígio romano até aos confins do Império. A
segurança produzida por essa paz e a facilidade de comunicações favoreceram a expansão da
nova doutrina. São Lucas não ocultava sua admiração pela ordem romana e pelo sentido do
direito demonstrado por seus magistrados. Roma nunca tentou impor sua religião aos povos
que dominava. No tempo de Jesus, as religiões clássicas da Grécia e de Roma tinham perdido
sua força e se achavam bastante desgastadas. A helenização do Oriente levou a um
intercâmbio de deuses entre os diversos povos, a uma helenização do mundo religioso romano
e, sobretudo, à introdução dos deuses orientais.
Augusto, em sua busca de um Império mais coeso, procurou revitalizar os ritos e
crenças tradicionais com novos apoios institucionais e integrando na classe sacerdotal
membros das famílias romanas importantes, mas só conseguiu organizar oficialmente seu
culto sem que a população participasse vivencialmente. Cícero em sua obra sobre os deuses,
aponta com clareza a deteriorada situação na qual se encontrava a religião clássica. A
implantação do culto oriental dos Imperadores, aprovada pelos sucessores de Augusto,
procurava fortalecer a autoridade imperial e teve uma importante repercussão política, mas
causará dolorosos conflitos na história do cristianismo nascente.
Vários cultos mistéricos orientais tiveram enorme expansão no mundo greco-romano,
sobretudo no início de nossa era. Suas sugestivas cerimônias de admissão e purificação, sua
promessa de ressurreição e de salvação, numa época de desesperança e incredulidade, e um
culto brilhante que movia e abarcava os sentimentos e a piedade dos fiéis conseguiram que
boa parte da população ficasse positivamente impressionada por suas propostas.
Festas religiosas, procissões, orações, sacrifícios e banquetes rituais acompanhavam
todas as funções públicas. As tradições, os costumes, a cultura permaneciam intimamente
relacionados com o patriotismo local. Toda cidade importante contava com santuários
famosos.
Este era o complexo âmbito espiritual no qual surgirá e dará seus primeiros passos a
nova religião.

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2. A PALESTINA NOS TEMPOS DE JESUS
No tempo de Jesus, a Palestina fazia parte do Império e era governada pelos
procuradores romanos. O Sinédrio, autoridade puramente judaica, sob a presidência do sumo
sacerdote, dirigia os assuntos internos dos judeus. Essa divisão de poderes refletia a especial
situação e consideração que os judeus conseguiram em Roma. Os judeus estavam
convencidos de possuir a revelação de Deus, que os tinha como povo escolhido, e que
proporcionava a todo judeu, por mais pobre ou ignorante que fosse, a consciência de uma
superioridade indestrutível.
Dos quase seis milhões de judeus existentes naquele tempo, mais de quatro viviam na
“diáspora”, isto é, em dezenas de comunidades situadas fundamentalmente no mundo
mediterrâneo, razão pela qual os Apóstolos, especialmente São Paulo, iniciaram sua pregação
nas sinagogas da diáspora. O que unia esses judeus e o que protegia sua identidade diante do
majoritário paganismo que os rodeava, era sua profunda fé religiosa, peculiaridade que, ao
mesmo tempo, os afastava da cultura dominante e das manifestações cotidianas da vida civil
pagã.
O judaísmo era, na realidade, uma teocracia, um reino de Deus na terra.
Diferentemente do que acontecia entre os pagãos, os judeus não só submetiam a religião à
política, mas dirigiam e explicavam todas as manifestações da vida pelos seus preceitos e por
seu profundo sentido religioso. O monoteísmo e a promessa de um Messias constituíam o
núcleo central dessa religião. No tempo de Jesus a ideia messiânica tinha um sentido
prevalentemente político. Imaginavam o Messias, que esperavam viesse logo, como uma
espécie de herói nacional que libertaria Israel do jugo romano, mas não faltava nos meios
mais piedosos, nos “verdadeiros israelitas”, um sentimento messiânico mais espiritual.
Na sociedade judaica, fariseus e saduceus constituíam dois partidos com concepções
diferentes da Lei e da atitude que deviam adotar diante da cultura e das formas de vida não
judaicas. O centro das comunidades era a sinagoga, dirigida por um perito em questões
litúrgicas, enquanto que um conselho de anciãos cuidava dos assuntos de caráter civil.
Tratava-se de uma consciente organização administrativa e judicial reconhecida pelo Estado
romano. Pagavam anualmente um imposto ao templo de Jerusalém e iam à cidade santa nas
cerimônias religiosas se as circunstâncias o permitissem.
A surpreendente expansão geográfica dos judeus levou-os, necessariamente, a
assimilar algumas características dos povos com os quais conviviam, e em primeiro lugar sua

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língua, a Koiné, o grego utilizado universalmente. Nessas comunidades encontramos um
judaísmo proselitista, que pregava sua fé no mundo greco-romano, sobretudo nas grandes
cidades e nos centros comerciais. Para esse mundo, o judaísmo apresentava-se como capaz de
harmonizar-se com a cultura contemporânea, como uma religião e uma forma de vida
compreensíveis para uma gente que os olhava com suspeita e, às vezes, com repulsa. De fato
seu conceito de divindade tão distante dos deuses greco-romanos, seus simples e ao mesmo
tempo solenes ritos, e sua exigente moralidade impressionavam as pessoas. Naquele ambiente
palestino podemos distinguir também duas tendências no campo político: a que invocava o
caráter nacional de sua religião e reclamava a independência política como condição para o
exercício legítimo do culto e a que se mostrava indiferente a quem exercesse o poder político,
contanto que não pusesse obstáculos ao exercício do culto e à aplicação da lei: “Daí a César o
que de César e a Deus o que é de Deus”.
Para o cristianismo, nascido no judaísmo e do judaísmo, esse ambiente constituiu seu
fermento para o cultivo inicial, favorecendo-o e, ao mesmo tempo, sendo obstáculo para ele.
A dispersão dos judeus marcou e dirigiu o cristianismo inicial. Suas colônias marcaram os
caminhos por onde mais tarde seguiram as missões cristãs. Os apóstolos utilizaram as
comunidades judaicas e as sinagogas como ponto de partida de suas pregações e andanças.
No princípio, os cristãos foram considerados como uma seita tanto pelos judeus como
pelos gentios. Mas bem depressa, ainda nos tempos de São Paulo, aderir ao cristianismo era a
mesma coisa que ser expulso da sinagoga, ser rechaçado pela comunidade e expor-se a toda
sorte de sérios perigos. Os judeus mantiveram entre os romanos, a consideração de religião
nacional, enquanto que os cristãos desde o primeiro momento romperam as barreiras
nacionais e proclamavam sua vocação de religião única e universal.

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3. O CRISTIANISMO E SEUS MODELOS CULTURAIS
Desde os seus primórdios, a história do Cristianismo foi marcada por diversas tensões,
resultantes das sucessivas transmissões da mensagem de Jesus para além das fronteiras da
Judéia. Paulatinamente, foram sendo construídas três formas culturais predominantes para a
manifestação da fé cristã. Esses modos diversos para manifestação da crença eram
consequência de ter o cristianismo nascido dentro do mundo cultural judaico, e, em seguia, ter
sido inculturado tanto no mundo helênico como no Império Romano. Assim sendo, é possível
fazer referência a um cristianismo judaico, a um cristianismo helênico e um cristianismo
romano.
O cristianismo judaico teve uma existência relativamente breve, em virtude da
destruição da cidade de Jerusalém, e da dispersão dos judeus a partir do ano 70. O
cristianismo helênico passou progressivamente a ter vida mais autônoma com a construção de
Constantinopla e o estabelecimento do Império Romano no Oriente; passou em seguida a ser
conhecido como cristianismo bizantino ou ortodoxo, consumando-se a separação de Roma no
século XI. Já o cristianismo romano desenvolveu-se na Europa Ocidental, e a partir de 1492
iniciou a expansão pela terras americanas.
Desde fins da Idade Média surgiram movimentos contra a romanidade, com a
finalidade de fazer com que a mensagem de Cristo se tornasse universal. Foi essa a
orientação básica do Concílio Vaticano II.
Os diversos modelos históricos de vivência da fé cristã merecem um enfoque
específico.

3.1. O MODELO JUDAICO


Muitos discípulos de Jesus continuaram convencidos de que sua mensagem constituía
uma nova expressão da fé judaica, sendo ele próprio o messias anunciado e esperado. Era,
pois, natural, que continuassem fiéis a toda a tradição religiosa judaica, tanto na sua
elaboração doutrinal, como nas suas manifestações rituais. Daí a frequência às sinagogas, e a
aceitação da prática da circuncisão.
Jesus de fato não só nasceu e viveu entre o povo judeu, como também integrou-se na sua
tradição cultural e religiosa. Ele se apresentou com frequência como aquele que traz uma
novidade enraizada na tradição mosaica e israelita.

3.1.1. Uma mensagem popular

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Jesus transmitiu sua mensagem na Galileia, região pouco desenvolvida, e teve como
seguidores pessoas provenientes das camadas populares, em geral iletradas, não eram homens
da cidade, mas do campo, com uma mentalidade marcadamente rural. Por essa razão, uma das
características de sua pregação é a opção pelo aspecto narrativo, como forma de transmitir os
ensinamentos.
As parábolas ou apólogos de conteúdo moral constituem instrumentos pedagógicos
adequados às populações pobres que formavam a maior parte dos ouvintes e seguidores de
Cristo. Mais do que uma adesão da inteligência, Jesus exige das pessoas que o seguem uma
mudança - uma conversão - do coração, da existência concreta. Aderir à mensagem cristã,
significava mudar a atitude de vida, especialmente através da prática do amor e da
fraternidade.

3.1.2. A tradição judaica


Para esses primeiros cristãos judeus, a vinda de Jesus - o Messias - fora realizada de forma
privilegiada para o povo eleito. De fato, eles só entendiam o cristianismo como uma Igreja da
circuncisão, mediante o seguimento fiel da tradição judaica codificada, e ouvindo nas
sinagogas os ensinamentos dos rabinos. Continuavam na observância dos livros sagrados do
Antigo Testamento, designados como Torah. Celebravam a festa da páscoa no dia 14 do mês
de nizan, e realizavam os tradicionais ritos funerários. A isso tudo acrescentavam o batismo
de Jesus, a celebração eucarística e a vida de fraternidade. Esses primeiros discípulos de
Cristo, por conseguinte, continuavam sendo judeus por tradição cultural e cristãos por opção
religiosa.
São Paulo passou a questionar essa posição mais conservadora, defendida por São Tiago,
na primeira reunião com os apóstolos em Jerusalém. O movimento de abertura do
cristianismo para o mundo helênico, iniciado por Paulo, tornou-se definitivo com a sucessiva
dispersão dos judeus.

3.2. O MODELO HELÊNICO


São Paulo defendeu, com a palavra e com ação, a ideia de que a mensagem de Cristo não
era uma exclusividade do povo judeu, mas devia ser transmitida a todos os povos. E ele
próprio deu exemplo, difundindo o cristianismo no mundo helênico. Segundo ele, a salvação
de Jesus, não devia ficar vinculada à aceitação dos costumes judaicos.

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3.2.1. Uma sociedade letrada
Com São Paulo, o cristianismo passou do ambiente rural para a civilização urbana. Ë nas
cidades da Ásia Menor que o apóstolo realiza suas pregações. Para isso foi necessário fazer a
transposição da mensagem - expressa inicialmente em parábolas - para uma formulação de
conceitos. Pode-se dizer que São Paulo é o criador da teologia cristã.
Enquanto Jesus utilizava o estilo narrativo, com imagens tiradas da vida real ou do
imaginário popular, Paulo já usa uma linguagem letrada, baseada em princípios abstratos, e
adequada a ouvintes que exerciam atividades comerciais ou faziam prestações de serviços nos
centros urbanos. Os novos cristãos não eram mais camponeses ignorantes, mas pessoas de
condição média, menos crédulas, e que deviam ser convencidas mediante uma argumentação
bem articulada. É o que São Paulo chamava de fé, acompanhada por um embasamento
racional. A fé transmitia-se pelo ouvido, era outra afirmação paulina; mas, para que fosse
recebida, devia corresponder às expectativas intelectuais das pessoas a serem atingidas pela
mensagem cristã.

3.2.2 A influência filosófica


Os gregos destacavam-se pelo seu elevado padrão cultural, e por sua maneira filosófica de
compreensão do mundo e do ser humano. Por conseguinte, foi necessário que se estabelecesse
logo um diálogo entre a fé cristã e o pensamento grego. Essa tarefa passou a ser desenvolvida
desde o século II pelos apologistas.
Durante o século III, duas escolas catequéticas disputavam entre si a melhor maneira de
expor a fé: a escola de Alexandria, mais vinculada à tradição neo-platônica e a escola de
Antioquia, mais próxima do pensamento aristotélico.
Embora a Igreja tenha combatido a gnose ou os cultos mistéricos gregos, , essa maneira de
considerar o mundo religioso, envolto num clima de mistério, passou a ter influência muito
forte no ritual cristão. Assim sendo, a assembleia litúrgica, marcada inicialmente pela leitura
da palavra divina e pela realização da ceia do senhor, reforçando os vínculos de fraternidade,
passa agora a ser envolvida por solenes cerimônias, onde a presença divina se manifesta
envolta em véus de mistério. O mistério divino é enfocado como distante e elevado, diante do
qual o ser humano deve curvar-se em solenes atos de adoração.
A partir do século IV, a fé cristã passa a ser assumida pelo Estado e transformada em
religião oficial.

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3.3. O MODELO ROMANO
O cristianismo se estabeleceu na periferia de Roma já em meados do século I,
congregando inicialmente grupos marginalizados, como pobres, migrantes escravos.

3.3.1. Da periferia para o centro


Considerados, na prática, judeus, os primeiros cristãos eram marginalizados pela
sociedade imperial romana. Faziam suas reuniões em casas particulares, designadas como
lugares de assembleia, casas de igreja.
Já desde o século II, algumas famílias nobres começaram a se interessar pela fé cristã,
arrastados, provavelmente, pelo exemplo de seus escravos, apesar do clima de ilegalidade em
que era mantida a instituição, vítima de tempos em tempos da perseguição religiosa.
No início do século IV dá-se uma grande guinada nas relações entre Império Romano e
Igreja Cristã. O Imperador Constantino não apenas dá liberdade aos cristãos, como favorece
publicamente essa nova crença. O cristianismo conquista rapidamente o espaço público, a
ponto de ser transformado por Teodósio, no final do mesmo século, em religião oficial do
Estado.
Paradoxalmente, são os sacerdotes e fiéis dos antigos cultos romanos que passam agora a
ser considerados fora da lei e perseguidos, devendo refugiar-se no campo - pagus - a ponto de
serem confundidos com os camponeses - pagãos.

3.3.2. A influência da cultura romana


Através da aliança com o Estado, a Igreja se transformou numa Instituição de grande força
política, impregnada de valores da cultura romana.
A primeira influência mais expressiva foi a aceitação da língua latina como instrumento
oficial para a celebração do culto e a transmissão da mensagem evangélica, após o texto
bíblico ser traduzido para o latim.
Também, a música romana foi codificada pela Igreja através do papa Gregório I,
recebendo a partir de então o nome de canto gregoriano.
Uma das características do povo romano era o seu caráter organizativo, proveniente de sua
tradição jurídica. Essa mentalidade jurídico-organizativa passou a constituir o ponto alto da
Igreja Romana, como o estabelecimento dos códigos de direito canônico.
Toda a obra missionária também será marcada por uma dupla intencionalidade: difundir a
fé cristã, mas sempre revestida da cultura romana. Cristianismo e romanidade passam a ser

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elementos indissolúveis na propagação da fé. Por outro lado, a mentalidade imperialista da
Roma antiga também se transfere para a Roma papal. Assim sendo, a ação missionária é
conduzida com frequência pelo auxílio do poder político, e da força das armas. Diversos
príncipes, a exemplo de Carlos Magno, aproveitam para expandir o seu domínio territorial ao
mesmo tempo em que obrigam à conversão os povos subjugados. A partir do século XVI a
Espanha e Portugal atuaram de forma análoga com relação aos povos indígenas na conquista
das terras americanas.
Concluindo, gostaria de apontar alguns elementos que nos ajudem a aprofundar esses
pontos sobre os diferentes modelos culturais.
Independente do resultado histórico da inserção do cristianismo no mundo cultural grego
através da ação de Paulo, no seu projeto para a transmissão do evangelho era bem mais amplo
e radical. Segundo ele, a mensagem de Cristo não estava vinculada a nenhuma cultura
específica, mas deveria revestir-se constantemente das formas culturais de cada povo ou
grupo humano a ser atingido por ela. Daí sua afirmação: fazer-se judeu com os judeus, grego
como os gregos, romano como os romanos, gentio como os gentios, para levar a todos a
mensagem de salvação.
A imposição da cultura romana como veículo para a transmissão da fé gerou diversos
movimentos de contestação, que resultaram em cismas ou separações entre os cristãos. O
cisma oriental foi resultado das incompreensões culturais entre os gregos e os romanos. No
século XV, Wicleff e Huss revoltaram-se contra a imposição da fé romana entre os eslavos, e
no século seguinte Lutero liderou o movimento protestante contra a imposição da cultura
romana aos povos germânicos; em seguida também os anglicanos se separaram por razões
semelhantes. No século XVII surgiu na França o movimento galicano, contra a imposição da
romanidade católica.

Mauro Passos

Referências bibliográficas
AZZI, Riolando. Diálogo: Revista de Ensino Religioso, 3 (1996)5-9.
BENZ, Ernst. Descrição do cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1995.
HOORNAERT, Eduardo. Cristãos da terceira geração (100-130). Petrópolis: Vozes; São
Paulo: CEHILA, 1997.

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4. O QUE HÁ POR TRÁS DA RELIGIOSIDADE POPULAR?

Eduardo Hoornaert

Hoje em dia, já existem muitos estudos disponíveis sobre as variedades religiosas no Brasil.
Num país culturalmente tão diversificado é de se esperar que também as formas religiosas
sejam as mais diversas: indígenas, africanas, portuguesas, italianas ou alemãs, rurais ou
urbanas, populares ou burguesas, católicas, protestantes, espíritas, islamitas, judaicas. Esse
amálgama está sendo estudado sob os mais diversos ângulos e dentro das mais variadas
perspectivas. Enfim, dispomos hoje de excelentes estudos sobre o assunto da religiosidade
popular.
Este modesto estudo pretende contribuir com uma apresentação sobre a importância
fundamental da religiosidade popular nas origens do cristianismo. Penso que a distância
histórica, ao mesmo tempo em que obscurece os detalhes, realça as grandes formas, ou seja, o
que tem importância para nossos trabalhos hoje. Montanhas altas só se destacam na paisagem
quando vistas de longe. Por isso convido você, leitor(a), a viajar comigo nestas páginas até os
primeiros tempos do cristianismo para verificar como aí funcionava a religiosidade popular e
a importância que ela teve na formação do cristianismo tal qual se apresenta ainda hoje. Não
vamos nos deter em detalhes. O que nos interessa é saber o que existe por trás das imagens e
dos ritos. Queremos conhecer o motor que impulsiona a primeira religiosidade cristã. Pois é
disso que se trata, afinal.

1. Expansão sensacional do cristianismo nos primeiros séculos.


Quem estuda as origens do cristianismo fica impressionado com a expansão sensacional do
movimento cristão nos primeiros séculos. Nascido na humildade da Palestina, o movimento
alcança, já no decorrer do século I, a Síria, depois penetra na Ásia Menor, espalha-se no delta
do rio Nilo e nas terras litorâneas do Mar Mediterrâneo (Grécia e Itália). No decorrer do
século II, o cristianismo penetra no interior da Síria e chega à longínqua cidade de Edessa, na
margem direita do rio Eufrates. A partir de suas bases na Ásia Menor, chega às regiões da
Capadócia e da Armênia, atravessa a África do Norte (Cartago), sobe o rio Nilo até a terra
dos etíopes (acima da sexta catarata do rio). Do outro lado do mundo mediterrâneo, penetra
pelo rio Ródano e daí se espalha pelos vales da Gália (atual França) e da península ibérica
(Espanha). Essa rapidez impressiona, se consideramos as condições de viagem da época e os

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poucos recursos de que dispõem os cristãos. Fica a pergunta: de onde provém tão
extraordinário desenvolvimento em tão pouco tempo? Qual o segredo de tão rápida
expansão?

2. Razões tradicionalmente aduzidas para explicar essa expansão.


Os livros clássicos costumam aduzir principalmente quatro razões para tão impressionante
sucesso do movimento cristão: o martírio, a santidade, os milagres, a evangelização.
Acontece que cada uma dessas explicações pode ser questionada. Os que falam numa ‘igreja
dos mártires’, por exemplo, esquecem que o número de mártires vitimados pelo sistema
romano foi bem menor do que se afirma frequentemente e que só em curtos períodos houve
perseguições sistemáticas. Decerto, a igreja não era bem-vista pelas autoridades e as
comunidades estavam sempre expostas a eventuais ‘pogroms’ (perseguições de caráter local).
A qualquer momento, os cristãos podiam ser chamados para interrogatórios vexatórios e
então eram humilhados perante as autoridades, mas isso ainda não é bastante para se falar em
‘igreja dos mártires’, da maneira em que alguns autores escrevem. Afinal, morreram mais
testemunhas de Jeová nos crematórios nazistas da última guerra mundial (por volta de 3 mil)
que cristãos em todo o período da ‘perseguição da igreja’. Quanto ao argumento de que a
expansão do cristianismo se deva à ‘evangelização’ (no sentido que atualmente damos ao
termo), não possuímos documentos históricos que comprovem isso. O primeiro documento
histórico a mencionar um ‘evangelizador’, ou seja, um missionário que consiga reunir em
torno de si pessoas para ouvir o que ele tem a dizer é um sermão que o padre da igreja
Gregório de Nissa pronunciou em 380 (portanto, já no final do século IV), sobre seu parente
Gregório o Taumaturgo, que trabalhou entre camponeses no Ponto Euxino. A imagem do
evangelizador que fala alto em praça pública ou monta em púlpito para proferir um sermão,
não corresponde a fatos históricos, pelo menos nos primeiros séculos. Quem desejaria ouvir
um cristão naqueles tempos? Quem estaria interessado em ouvir falar de uma religião
considerada inferior, proveniente do judaísmo, pelo menos na opinião do público romano?
Quanto à pretensa santidade dos primeiros cristãos, a história de Judas já mostra que eles não
eram mais santos que os de hoje. Finalmente, nós sabemos, por meio do aprimoramento da
análise literária crítica, que histórias mirabolantes sobre extraordinários milagres praticados
pelos apóstolos e pelos primeiros cristãos, e que por muitos séculos circulavam intensamente
no seio do cristianismo, não merecem confiança enquanto fontes históricas.

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3. O que foi então que provocou a expansão do cristianismo?
Será que essa expansão se deve a fatores relacionados com a religiosidade popular? Até
pouco tempo atrás, era difícil responder a essa pergunta, pois a historiografia cristã estava
principalmente baseada no estudo de fontes escritas. Ora, essas fontes praticamente nunca
abordam a religiosidade dos primeiros cristãos. Os escritos sobre as origens do cristianismo
não costumam mostrar interesse pelo que se passou entre o povo comum. Nem o filósofo
judeu Filo de Alexandria, nem o historiador judeu Flávio Josefo informam algo sobre a
religião do dia a dia. E historiadores romanos como Tácito e Suetônio só mencionam o
cristianismo quando descrevem acontecimentos sensacionais, como o levante na Alexandria
nos anos 39-41 ou o incêndio de Roma nos tempos de Nero (65). Aliás, é regra geral:
intelectuais não costumam mostrar interesse pelo que se passa no meio do povo comum e
anônimo. A ‘plebe’ não retém a atenção de filósofos como Platão, Aristóteles, Cícero ou
Sêneca, ou de intelectuais proeminentes como Galeno, Plotino ou Marco Aurélio. Esses
‘humanistas’ dão a impressão de que a história é feita pelas classes dirigentes. Nem mesmo
autores cristãos como Justino, Ireneu, Tertuliano, Cipriano, Clemente de Alexandria ou
Orígenes descrevem o que se passa entre cristãos comuns. Eles também pertencem à elite
letrada e não se mostram interessados em saber o que se passa no meio do povo.
Felizmente, dispomos hoje de bons estudos históricos baseados na arqueologia e a tendência
é que a qualidade desses estudos ainda melhore no futuro. A arqueologia vem se tornando um
recurso sempre mais utilizado nos estudos das origens do cristianismo. Atualmente dispomos
de informações que resultam de pesquisas arqueológicas realizadas em muitos lugares onde
viviam os primeiros cristãos, não só em metrópoles como Roma, Alexandria e Antioquia,
mas também em pequenos vilarejos espalhados pela atual Turquia ou Síria ocidental. Esses
dados arqueológicos abrem um panorama novo e inesperado, pois não estamos acostumados
a estudar as origens do cristianismo focalizando a vitória de Cristo sobre Asclépio e/ou de
Maria sobre Isis.

4. Cristo vence Asclépio.


Escavações arqueológicas comprovam que durante os longos sete séculos entre o final do
século V aC e o século III dC, Asclépio foi a divindade mais venerada em todo o território
pan-mediterrâneo. Ficamos impressionados com o número de templos dedicados ao deus
medicinal, desde o Oriente médio ao ocidente mediterrâneo. A razão é que Asclépio é o
primeiro deus do panteão grego que desceu do repouso esplêndido no monte Olimpo para se

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envolver com a dor da humanidade. Chegando à terra, entre os mortais, Asclépio sentiu pena
ao constatar a morte prematura de tantas criaturas humanas e os grandes problemas de saúde
enfrentados pelas pessoas. Ele ganhou rapidamente a preferência popular. Os doentes vinham
de longe fazer suas ‘incubações’ em algum templo de Asclépio. Passavam a noite deitados
numa maca, dentro do recinto do templo, na esperança de ter um sonho com Asclépio e assim
recuperar a saúde. A devoção generalizada em torno de Asclépio é uma prova cabal do pouco
caso dado pela administração romana, à questões de saúde pública. Os doentes ficavam
abandonados à própria sorte: 80 % da população viviam em condições muito precárias, seja
por doença ou deformação física, seja ainda por trabalho escravo exaustivo ou violência. Os
documentos escritos só registram dados esparsos sobre esse dado fundamental que nos mostra
como funcionava a antiga sociedade romana. Assim sabemos, por exemplo, que um escravo
normalmente não vivia mais que 25 anos e que na época de Jesus, em média, um terço das
crianças que conseguiam sobreviver ao parto, morria antes de completar seis anos de vida.
Cerca de 60% dessas crianças estariam mortas aos 16 anos, 75% aos 26 e 90% aos 46 anos.
Apenas 3% das pessoas atingiam a idade de 60 anos. Eis o que explica o sucesso de Asclépio.
Mas a mesma arqueologia que nos revela a importância de Asclépio, nos revela como a partir
do século II dC, começa a aparecer, dentro de templos tradicionalmente dedicados a Asclépio,
a figura de Cristo. São invocações gravadas em pedras ou grafites sobre paredes. Mais:
aparecem igrejas cristãs que são na realidade acomodações improvisadas de antigos templos
dedicados a Asclépio. Pedras com invocações a Asclépio são reviradas e nelas se inscrevem
doravante invocações dirigidas a Cristo. Tudo isso mostra que Cristo começa a rivalizar com
Asclépio no favoritismo popular. As incubações tradicionais começam a realizar-se em igrejas
cristãs que, dessa forma, parecem enfermarias. Esse movimento inicia-se entre a população
pobre das grandes cidades (Roma, Alexandria, Antioquia) e daí se divulga pelo interior. As
escavações demonstram que o fato é global e se verifica por toda a extensão do império
romano: Cristo vai aos poucos substituindo Asclépio, num processo que demora séculos e
culmina, no ano 381, com a proclamação oficial de Cristo como ‘salvador do povo romano’
pelo imperador Teodósio. A partir desse momento, Cristo reina soberano sobre o imaginário
ocidental e não encontra mais nenhum rival à sua altura.

5. Maria vence Isis.


Na mesma época, uma evolução parecida acontece no universo feminino. Até o século II dC,
a imagem de Isis reina soberana sobre o imaginário pan-mediterrâneo. A história dessa deusa

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começa no Egito, onde sua origem se perde nas brumas do passado. Mas já no século III aC se
verifica como Isis incorpora gradativamente as demais divindades femininas do Oriente
médio e da bacia mediterrânea, como Cibele, Demeter, Magna Mater, Mater Deum Magna e
outras. Seu poder de assimilação é tão forte que, numa inscrição da época, ela ganha nada
menos que 320 predicados e, aos poucos, se torna a única ‘rainha do céu’. Só não consegue
assimilar Vênus, símbolo do amor livre. Isis usa os meios de transporte mais modernos da
época. Ela cruza de barco o mar mediterrâneo e penetra nos grandes rios, como o rio Danúbio.
Comerciantes internacionais e marinheiros a transportam por toda extensão do mundo
romano. Na proa de um barco daqueles tempos ainda se pode ler hoje a inscrição latina ‘una
quae es omnia dea Isis’ (você é tudo, deusa Isis). Isis viaja de barco e de canoa, em dorso de
cavalo e jumento, alcança lugares tão distantes como a fronteira do Reno ou a muralha de
Adriano na Britânia (Inglaterra). Em todos esses lugares ainda hoje se encontram estatuetas de
Isis sentada num trono com seu filho Horus nos braços. É a imagem da mãe carinhosa, que
protege seu filho e demonstra o cuidado que as pessoas têm com a maternidade, a procriação,
a proteção da natureza e a educação dos filhos.
Mas aqui, mais uma vez, a arqueologia nos reserva surpresas. Escavações nos mais diferentes
sítios do universo romano da época mostram, a partir do século II, estatuetas de Isis que
parecem intencionalmente quebradas e ruínas de igrejas toscas construídas em cima de
templos dedicados a Isis. Isso indica que templos tradicionalmente dedicados a Isis passam a
ser aproveitados para venerar a figura de Maria. O mundo está encontrando uma nova figura
feminina representativa em substituição de Isis. Pois, o que é a imagem de Nossa Senhora
com Jesus no colo senão uma apropriação cristã da imagem de Isis que cuida de seu filho
Horus? Para conseguir essa proeza, Maria pode contar, desde o início, com o apoio de
intelectuais cristãos letrados como Hipólito, Tertuliano, Justino e outros e, principalmente,
com o apoio das autoridades. Constantinopla (330), a nova capital do império, inaugurada em
330, por exemplo, já conta com um número considerável de santuários dedicados a Maria.
Aqui também a data definitiva é 381, quando o imperador romano Teodósio invoca Maria sob
o nome de ‘mãe de Deus’, um nome tradicionalmente reservado à deusa Cibele. É verdade
que a devoção a Isis ainda resiste por diversos séculos, mas quando o imperador Justiniano,
em 560, manda fechar o último templo dedicado a Isis, um ciclo histórico chega ao fim.

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6. Os bispos demoram a perceber a força da religião popular
O que impressiona é que os bispos demoram em perceber a importância de toda essa
movimentação no âmbito da religiosidade popular. Eles pensam em outras coisas. Mas,
quando eles se reúnem em Niceia (325), na residência de verão do imperador Constantino,
para sua primeira grande assembleia geral, eles percebem que não há mais como fugir da
realidade: quem toma conta de Cristo e de Maria é o povo. É a pressão da religiosidade
popular que empurra os bispos a reconhecer a relação entre devoção e problemas que afetam
as pessoas pobres (doença, marginalização, penúria, morte). Os sinais são por demais visíveis:
Hércules cede diante de São Miguel nas artes da guerra e Apolo diante de São Sebastião na
luta contra a peste. Então, é antes por considerações pragmáticas que os bispos aceitam o
protagonismo da religiosidade popular na configuração histórica da instituição cristã. Como
estão convencidos de que precisam manter as rédeas do movimento em mãos, eles se
preocupam em apresentar aos fiéis imagens de Jesus e Maria que não entrem em choque com
a fé do povo. Entre os séculos IV e VI, por exemplo, eles se reúnem reiteradas vezes para
chegar a um acordo sobre como apresentar melhor a figura de Cristo ao povo. Sua principal
dificuldade parece ter sido a aceitação da denominação ‘mãe de Deus’, que o povo teima em
atribuir a Maria. A expressão lhes soa mal, já que na época designa a deusa pagã Cibele.
Temos de esperar até a assembleia episcopal de Éfeso, em pleno século V (431), para
encontrar um documento que aceite a formulação ‘Maria mãe de Deus’. Os bispos hesitam,
pois não encontram no novo testamento nenhum indício do lugar tão proeminente de Maria na
história de Jesus. Mas os devotos de Maria não deixam por menos e exercem uma pressão
considerável sobre a assembleia de Éfeso, como comprovam documentos da época.
Finalmente, por considerações antes políticas que propriamente evangélicas, os bispos
acabam chegando a um acordo acerca da devoção a Maria. Já está na hora. Se não aceitam as
expressões da fé popular, os bispos arriscam perder o chão em baixo dos pés e isolar-se de
seus próprios fiéis. Isso significa que a sobrevivência da instituição eclesiástica depende da
aceitação popular. Dito em outras palavras, a instituição, da maneira como funciona
concretamente, tem de ser considerada uma criação da religiosidade popular. Para os bispos,
não é tão fácil aceitar isso, mas não há como fugir da evidência. Inclusive, o povo sustenta
financeiramente a hierarquia e lhe confere prestígio e honorabilidade. Aceitar essa
dependência estrutural exige uma boa dose de humildade por parte do episcopado. Mas não
existe alternativa. Afinal, o que é um bispo sem a religiosidade popular? Podemos fazer a
mesma pergunta hoje em relação ao papa: o que seria dele sem a religiosidade popular? Penso

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que no futuro, com o avanço dos estudos históricos e críticos, será mais fácil aceitar essa
verdade: sem a religiosidade popular, a igreja não se sustenta. A partir dessa compreensão, a
afirmação ‘a igreja é o povo de Deus’, hoje tão controvertida, um dia será aceita como uma
evidência.

7. O que se passa por trás da religião e dos ritos?


Para avançar na nossa reflexão, temos de cavar mais fundo. O que existe por trás da religião
popular? qual a vida vivida que se expressa em símbolos, imagens, gestos e ritos?
Concretamente, qual a razão porque as pessoas, a partir do século II, começaram a preferir
Cristo a Asclépio e Maria a Isis? A resposta que se impõe é a seguinte: o movimento cristão
consegue articular, dentro da sociedade romana, uma rede associativa de socorro a prementes
necessidades humanas e nisso se mostra mais eficiente que as tradicionais iniciativas tomadas
em nome de Asclépio ou Isis. Cristo e Maria são mais ‘eficientes’ que Asclépio e Isis. Essa
maior eficiência provém do fato que o movimento cristão cava mais fundo nos pressupostos
da desigualdade social existente no império romano. Em seu texto ‘A antiguidade tardia’ (que
faz parte do livro ‘História da vida privada’, editado pela Companhia das Letras de São Paulo
em 1990), o historiador irlandês Peter Brown descreve em pormenores de que modo a
sociedade romana é fundamentada no postulado de um inexorável e intransponível
distanciamento social entre os ‘bem-nascidos’ e seus inferiores (na maioria escravos). É aqui
que se percebe a radical novidade do cristianismo, que parte do pressuposto contrário: somos
todos iguais diante de Deus. Mais ainda: Deus prefere os pobres, como fica claro nos textos
do novo testamento. Essas ideias têm enorme influência pelo fato de que as primeiras
gerações cristãs vivem em contato direto com categorias sociais marginalizadas, onde
violência, injustiça e mesmo suicídio (por desespero) são tristes ocorrências da vida diária.
Tendo uma comunidade cristã por perto, os pobres sabem por onde se dirigir em suas
necessidades de saúde, maternidade, educação dos órfãos, amparo às viúvas, cuidados com os
mais velhos, atendimento aos presos, sepultamento digno. A montagem de uma estrutura para
socorrer pessoas humildes em suas prementes necessidades, submergida nos subterrâneos da
história, constitui, pois, a real novidade do cristianismo emergente, da qual as manifestações
de religiosidade popular são a expressão visível. As vitórias simbólicas de Cristo e de Maria
são na realidade vitórias do povo analfabeto na sua luta por dignidade e bem-estar. O mais
impressionante é que esse movimento consegue introduzir a figura de Maria, que não
encontra muito realce nos textos do novo testamento, na intimidade do próprio Deus. Ela

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sobe ao céu, é acolhida pela santíssima trindade e fica sentada no trono, como rainha do céu e
da terra.

8. No mundo dos símbolos, nenhuma vitória é definitiva


O tipo de análise que fazemos aqui evita um erro comum na interpretação do cristianismo das
origens. Quem afirma que os primeiros cristãos, os anônimos, lutavam contra o paganismo,
está equivocado. Pode ser que os bispos estivessem engajados numa luta desse tipo, mas os
cristãos anônimos não. Eles não lutavam especificamente contra o paganismo, mas sim
contra os males que afligiam a vida humana. Era uma luta positiva a favor da vida, da saúde,
da dignidade. É perfeitamente compreensível que os atendentes nos templos de Asclépio
estivessem tão empenhados em lutar pela saúde de seus pacientes que seus colegas cristãos.
Assim, no fundo, não há incompatibilidade entre Cristo e Asclépio. Só que Cristo, pelo
menos a partir do século II, se mostra mais eficiente. Mas isso não significa que possamos
rasgar os longos séculos do paganismo das páginas da história. Os longos séculos, em que
pessoas cuidavam de doentes por devoção ao deus Asclépio, foram sucedidos por outros
séculos (cristãos) em que pessoas, igualmente empenhadas na luta contra a doença,
invocavam a Cristo. Os séculos em que mulheres parteiras se empenharam na luta contra a
mortalidade materna em nome de Isis, foram seguidos por séculos em que se fez esse mesmo
empenho em nome de Maria, nas maternidades cristãs. Acontece que, no universo dos
símbolos, nada é definitivo. Tomemos o exemplo do que está acontecendo hoje em Salvador
da Bahia. A mãe-de-santo Stella de Oxóssi (veja Google), do terreiro Axé Apo Afonjá,
escreveu em 1993 um livro intitulado ‘Meu tempo é agora’ (editora Oduduwa, São Paulo),
em que conclama os afro-descendentes na Bahia a venerar Iemanjá com a mesma devoção
com que os católicos veneram Maria. Uma eventual vitória de Iemanjá sobre Maria, no
Recôncavo baiano, pode significar no futuro a maior eficácia de serviços sociais a favor dos
afro-descendentes (escolas, centros de saúde e de cultura) por parte de organismos como o
candomblé e outros. Como a igreja católica praticamente não tem uma estrutura tradicional
nesse campo, uma reviravolta como essa não é de forma nenhuma impossível. Por
conseguinte, a novidade do cristianismo não tem de ser procurada no nível dos símbolos, ou
seja, das imagens ou dos ritos, mas no nível de uma ação eficiente no campo das relações
sociais e políticas. Os primeiros cristãos, ao combaterem os deuses, na realidade combatiam a
falta de sensibilidade pela humanidade sofredora. A mesma lei hoje vale para o candomblé e
muitas outras expressões religiosas. O sincretismo, sempre mal compreendido pelos que têm

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a ilusão de pensar que a luta se trava no nível da religião, ou seja, dos símbolos, expressa no
fundo uma movimentação nos relacionamentos reais de ordem social e política.

9. A eficácia de uma ação modesta


Este trabalho quebra uma lança a favor da ação persistente e modesta na base da sociedade.
Um bom trabalho pastoral sempre consistirá no aproveitamento das brechas existentes nos
sistemas simbólicos, políticos e sociais em que vivemos, no intuito de abrir oportunidades
iguais para todos. Desde as suas origens, a novidade do cristianismo não deve ser procurada
em mega-projetos, mas em trabalhos humildes. Eis uma das mais importantes lições que
podemos tirar de um estudo das origens do cristianismo. O jovem movimento de Jesus não
embarca em grandes projetos, não participa de sucessivos levantes contra Roma que
sacudiram a Palestina da época, tanto nos anos 67-70 como mais tarde no ano 135, com a
revolta palestina liderada por Bar Kókeba, que custou a vida a quase meio milhão de pessoas.
Os seguidores de Jesus preferem projetos concretos, mini-utopias realizáveis. Em grandes
metrópoles como Alexandria, Roma ou Antioquia, os cristãos organizam um serviço de
acolhimento aos estrangeiros que procuram trabalho na cidade. Os recém-chegados sempre
podem ir à casa do bispo cristão, hospedeiro por excelência, como você pode ler em meu
livro ‘Hermas no topo do mundo’ (Paulus, 2002), um comentário de um dos primeiros
escritos cristãos, redigido por um ex-escravo chamado Hermas. Esse Hermas conta que os
imigrantes em Roma encontram na casa do bispo a mesa posta e um abrigo para os primeiros
dias de sua permanência na grande cidade. Em algumas comunidades há um serviço regular
de alimentação e hospedagem para necessitados, viúvas e órfãos. Organiza-se uma caixa de
dinheiro comunitário destinado a casos de urgência (como atesta o escritor Tertuliano). Em
dias de jejum, as pessoas oferecem gêneros alimentícios. Outro serviço bem organizado é o
do enterro de falecidos. São beneficiados não só os da comunidade, mas os vizinhos em
geral. Os cemitérios cristãos chegam a ser tão famosos que no século III temos um papa
(Calisto) que foi administrador dos cemitérios cristãos em Roma. Quando alguém adoece,
pode contar com visitas regulares. Nos melhores casos, pode encontrar um lugar tranquilo
para se recuperar. Na hora de interrogatórios pelas autoridades, os cristãos se dão
mutuamente apoio moral. Procuram manter o moral quando acontece um pogrom ou alguma
investida de hostilidade por parte de grupos e autoridades. Há um serviço de visita aos presos
e, em certos casos, um amparo psicológico para os que, desesperados, tentam o suicídio.
Tudo isso está documentado no Pastor de Hermas. Estamos diante de um cristianismo ‘de

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mãos calejadas’ e quase nenhuma escrita, de mãos habituadas a lidar com mesa e cozinha,
fuso e agulha, enxada e arado, na fonte, na oficina do pisoeiro e do trabalhador na lã, mãos de
trabalhadores no campo e na cidade, de escravas domésticas nas casas senhoriais. Com um
rol tão impressionante de serviços no campo social e humanitário, é de se compreender que o
cristianismo tenha recebido em relativamente pouco tempo um sólido apoio popular. E esse
apoio se expressa simbolicamente na religiosidade popular.
Resumindo: não pensemos que o cristianismo se tenha divulgado por meio de uma
‘evangelização’ planejada e liderada por bispos, sacerdotes ou diáconos. Essa é uma falsa
imagem das origens cristãs. O cristianismo não venceu tampouco pela pregação, nem pelo
testemunho destemido de mártires, pela santidade de seus heróis, pelas virtudes ou milagres
de seus santos. Venceu, isso sim, por uma atuação persistente e corajosa na base do edifício
social e político da sociedade, assim como ainda hoje vence na medida em que apresenta
resultados positivos na vida das pessoas. Os resultados sempre foram e continuam sendo
limitados e bastante modestos, mas mesmo assim fundamentais para evitar absurdos maiores
numa sociedade que por vezes parece mais uma casa de loucos.

(HOORNAERT, Eduardo. O que há por trás da religiosidade popular? Vida Pastoral, ano 54,
n. 289, p. 3-10, mar./abr. 2013).

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2ª. PARTE
II-CRISTIANISMO MEDIEVAL

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1. IGREJA MEDIEVAL

1.1 Periodização e designação


Dado que a história decorre segundo um curso de vida orgânico, sem quaisquer interrupções,
todas as periodizações são questionáveis. Com elas podemos abarcar somente um aspecto
parcial e nunca todo o acontecer.
Já a designação de “Idade Média” para o espaço de tempo compreendido entre 500 e 1500 é
infeliz e desprovida de conteúdo. O termo provém das ciências da linguagem e baseia-se num
desconhecimento dos verdadeiros valores desta época. Os humanistas do século XV
empenharam-se em orientar os seus conhecimentos linguísticos segundo o modelo da
latinidade clássica; encaravam tudo aquilo que havia sido dito e escrito depois da Antiguidade
como uma degeneração da língua e estavam convencidos de que tinham introduzido uma nova
época com formas de expressão mais nobres. Toda a época compreendida entre estes dois
momentos foi caracterizada por eles simplesmente como “a idade média bárbara”.
Os Reformadores protestantes do século XVI em breve partilhariam de concepções
semelhantes. Para eles a Igreja primitiva constituía uma forma definitivamente válida a que
toda a Reforma da Igreja devia regressar. Já a época constantina constituía uma degeneração.
A decadência da vida religiosa e eclesiástica aumentara consideravelmente nos séculos
subsequentes. Com eles deveria, porém, iniciar-se um novo florescimento da religião cristã.
As Igrejas reformadas protestantes pretendiam regressar diretamente à Igreja antiga e superar
a idade intermédia, a época da Igreja papal anticristã. Foi neste sentido que o professor de
Halle, Christoph Cellarius (1634- 1707) baseou a sua obra historiográfica na divisão em
Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna. Mais tarde, esta imagem seria apresentada em
tons ainda mais sombrios pela época das Luzes.
Só o romantismo do século XIX viria a redescobrir as grandes realizações da Idade Média,
sobretudo, nos domínios da arte e da literatura. Depois de a historiografia nascente ter aberto
essa via, em simultâneo com o entusiasmo pelo passado nacional – através da gigantesca
publicação de fontes, em particular da Monumenta Germaniae historica – surgia um estudo
minucioso dessa época, aparecendo esta cada vez mais inequivocamente nos seus lados
luminosos e sombrios. Hoje em dia, admiramos em geral esta época, de forma que só a
ignorância e o preconceito justificam que ainda se possa falar da “tenebrosa Idade Média”.

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Contudo, persiste o problema da delimitação temporal. Ao critério de distinção entre a
Antiguidade e a Idade Média através da queda do império romano do Ocidente (476) e das
migrações dos povos pode-se contrapor que ambos os acontecimentos em pouco contribuíram
para a formação do novo contexto. Sobretudo, os reinos germânicos do tempo das migrações
não tiveram praticamente qualquer importância histórica. Pertenciam ainda totalmente à
Antiguidade e caíram com ela. Mesmo a invasão do espaço mediterrânico pelos Árabes não
pode ser entendida como um fator decisivo para a nova configuração da Europa, tal como já
foi defendido (H. Pirenne). É certo que conferiu um golpe mortal na cultura mediterrânea
antiga, mas não fundou a nova cultura medieval. Por sua vez, foi a Igreja católica que
constituiu o laço único e exclusivo entre a Antiguidade e a Idade Média. Só no momento em
que a aliança entre o cristianismo católico e o germanismo foi consagrada, é que surgiu um
dos pressupostos essenciais para o aparecimento da comunidade de povos e de culturas
ocidentais características da Idade Média. Não foi a arianização das tribos germânicas, mas
apenas o baptismo católico de Clodoveu (496) que inaugurou uma nova época. Foi a
conversão dos Francos ao Cristianismo católico que tornou possível o seu enraizamento
cultural e a sua função religiosa com a população romana indígena, evolução que fora sempre
impedida pelo arianismo das primeiras tribos germânicas.
Também é igualmente difícil determinar o fim da Idade Média. Nem o Renascimento, nem a
queda de Constantinopla, no ano de 1453, podem ser encaradas como cesuras de tão profundo
alcance, a ponto de justificarem o início de uma nova época. A cisão religiosa do século XVI
deverá ser antes encarada como o corte essencial, na medida em que quebrou definitivamente
a unidade religiosa. Contudo, ela também não aboliu o fundamento cristão universal do
Ocidente e os povos europeus permaneceram, mesmo depois do cisma da Igreja, estreitamente
unidos através de laços culturais, científicos, artísticos, técnicos e de formas de vida. Houve
mesmo formas medievais (ordem feudal, prestimónios, religiosidade, etc.) que sobrevieram na
vida interna da Igreja sendo só mais tarde removidas em parte através da Revolução Francesa,
das Luzes e da secularização.
2. A evolução histórica do Ocidente na Idade Média baseia-se na tríade: Antiguidade,
Cristianismo e Germanidade. Um facto essencial é o facto de o palco da história da Igreja se
ter deslocado, durante esta época, do espaço mediterrânico para Norte. A conversão dos
jovens povos germânicos foi de particular importância para a Igreja. É certamente incorreto
imaginar os Germanos como “selvagens” ou “semi-selvagens”. Os Romanos viam-nos sob
múltiplos aspectos como “bárbaros”, que haviam destruído a cultura e civilização do seu

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Império, durante as suas campanhas de guerra e de conquistas. Mas não se pode negar que,
em tempos de paz, os Germanos respeitaram e admiraram as realizações culturais e
civilizacionais do Imperium Romanum e que mantiveram uma relação de abertura e de
receptividade a esta cultura.
Contudo, eram homens que pertenciam a uma cultura mais primitiva. Só se pode avaliar
correctamente o âmbito e o significado da mudança de cenário entre a Antiguidade critã e a
Idade Média, quando se tem diante dos olhos o enorme contraste entre a cultura urbana
extremamente desenvolvida do espaço greco-romano, com a sua elevada espiritualidade, e o
meio rural em que as tribos germânicas viviam. Esta tremenda oposição não podia deixar de
exercer a sua influência sobre a vida da Igreja e sobre toda a evolução cultural da Idade
Média. Quando mais íntima era a interpenetração do Cristianismo e da germanidade, mais
forte tinha de ser a influência recíproca.
Durante a 1ª época (500-700) conseguiu-se apenas uma fusão particularmente superficial
através da missionarização. Mesmo depois de Clodoveu ter recebido o baptismo, em 496, e de
o povo o ter seguido neste acto, os usos, costumes e concepções pagãs mantiveram-se e
determinaram a vida dos Francos ainda durante dois séculos. S. Gregório de Tours (538-594),
o historiógrafo dos Francos nesta altura, narra-nos algo a este respeito. Durante muito tempo,
os baptismos em massa não conduziram a qualquer viragem interior e a falta de preparação
antes e depois levava a que os baptizados não entendessem a adopção do Cristianismo como
uma ruptura com a sua antiga forma de vida.
Só na 2ª época (700-1050), depois de os monges anglo-saxónicos terem preparado o terreno
através de uma vaga missionária, é que se obteve uma maior interpenetração. S. Bonifácio e
Carlos Magno criaram as condições para o emergir do Ocidente cristão, ao contribuírem para
a aliança entre a Igreja romana universal e a Frância. Inicialmente, o elemento natural
germânico foi durante muito tempo predominante e as concepções pré-cristãs e pagãs
continuaram a influenciar a crença nos espíritos, nos exorcismos e na feitiçaria, em ordálios,
duelos, provas de água, vinganças de morte e outras. Tais práticas só puderam ser lentamente
afastadas através de concepções mais espiritualizadas, permanecendo, em parte, ainda durante
muito tempo, no inconsciente.
A par disso, algumas estruturas fundamentais da vida germânica também se mantiveram,
evoluindo para uma “germanização das formas de organização do Cristianismo” (W. Neuss)
da seguinte maneira:

29
a) Os Germanos era um povo de camponeses. A Igreja, que crescera no seio da estrutura
urbana da Antiguidade, adquiriu também, em breve, sob influência germânica, uma estrutura
agrária (prebendas, divisão em paróquias no campo).
b)A concepção germânica do direito do proprietário à terra contribuiu para o aparecimento de
uma Igreja regional, a partir do momento em que um templo construído num terreno passava
a pertencer ao seu proprietário, com todos os seus direitos seculares (impostos, receitas de
donativos) e canónicos (administração de sacramentos, assistência religiosa, etc.) não
podendo os bispos dispor de quaisquer regalias. Esta Igreja local conquistaria, em breve, todo
o Ocidente, incluindo os países românicos, entendendo-se a toda a ordem eclesiástica e
influenciando profundamente, sobretudo, a assistência religiosa e a orientação espiritual.
a) A separação rígida das ordens em príncipes, nobres, livres, vassalos e servos da gleba
(escravos), que existia no mundo germânico, passou para a Idade Média cristã e penetrou
igualmente na Igreja; a clara demarcação entre estados, por exemplo, entre o alto e o baixo
clero, favoreceu o domínio da aristocracia dentro da Igreja.
b)A atitude dos Germanos perante a luta e a guerra contribuiu para o aparecimento, durante a
Idade Média, da cavalaria cristã, para asua concepção do combatente iniciado por Deus, para
a guerra santa, as ordens de cavalaria e as cruzadas.
c)Na época pré-cristã, a monarquia germânica já se encontrava revestida de uma aura sagrada
e mística; esta sobreviveu na monarquia cristã, elevada agora através da sagração eclesiástica.
A unção de Pepino (751/754), a coroação de Carlos Magno (800) e a de Otão como rei e
imperador (962) reforçaram o fundamento sagrado da ideia de soberano. No império otónico,
o monarca transformar-se-ia em breve num rei – sacerdote cristão, dotado de elevada
dignidade.
d)Esta concepção sagrada da monarquia conduziria, em breve, em todos os países germânicos,
ao aparecimento de Igrejas regionais, à cabeça das quais também se encontrava o monarca.
Mais tarde, os imperadores também encararam e desenvolveram a sua posição como sendo
dotada de funções eclesiástico-religiosas. Não só doaram e ofereceram bens eclesiásticos,
como nomearam e demitiram bispos, dispondo livremente dos chamados “bens eclesiásticos
imperiais”.
e)A ingerência no direito de investidura eclesiástica, relativamente à qual mesmo Imperadores
santos e devotos, como os Otões Henrique II e Henrique III não experimentaram qualquer
repulsa tinha de provocar a reação a Igreja. A luta contra “a investiduras de leigos” e contra a
simonia em breve se transformaria na palavra – chave dos reformadores do século XI. O

30
combate pela libertação da Igreja do cerco do Estado e das grandezas mundanas foram os
grandes temas da questão das investiduras.
Durante a 3ª época (1050-1300) teve lugar a resposta por parte da Igreja. Esta passa agora
cada vez mais para primeiro plano. As lutas entre papado e império deixaram a época em
suspenso. A oposição de Henrique IV a S. Gregório VII, de Barba Ruiva e Alexandre II e de
Frederico II a Inocêncio IV constituíram os pontos culminantes deste confronto. Sob
Inocêncio III, o papado transforma-se na instituição dominante no mundo secular. A
comunidade cristã ocidental dos povos encontra-se unida sob a direção da Igreja. Durante as
cruzadas, a cavalaria ocidental parte em defesa da Terra Santa. As ordens Monásticas
florescem. Também a vida espiritual conheceu um surto admirável: são criadas as
universidades. A escolástica, a canoística, a mística e a devoção desenvolvem-se
profusamente. Mas também crescem as heresias, sobretudo, no século XII. Em geral a Alta
Idade Média é uma época agitada e grandiosa, que encontrou um expressão sublime nas
magníficas obras da arte romântica e gótica.
Por volta de 1300, a época atinge o seu apogeu. O papa Bonifácio VIII resume, mais uma vez,
na sua bula Unam sanctam, as exigências de domínio da Igreja. Mas já não se encontra em
condições de se afirmar contra a monarquia francesa de Flilipe, o Belo. A sua política está
condenada ao fracasso. Inicia-se assim a
4ª Época (1300-1500), tempo de dissolução da comunidade de povos ocidental. Algumas
forças contribuem para acelerar este processo:
a) Os Estados nacionais emergentes, com a França à cabeça recusam a direção unitária do
Imperador e do Papa.
b) A cultura da Baixa e Alta Idade Média baseada na unidade diferencia-se e dá lugar a um
crescente individualismo que se manifesta tanto na arte, ciência e politica, como na teologia e
nas formas de devoção (devotio moderna).
c) Os leigos afirmam-se e libertam-se do domínio do clero. Os senhores territoriais reclamam
direitos episcopais e legitimam a sua altoridade no âmbito das Igrejas regionais.
d) A tensão entre primado papal e colégio episcopal, centralismo curial e Igreja universal
exprime-se no chamado “conciliarismo” que, nas suas manifestações mais radicais, pretende
substituir a estrutura hierárquica da Igreja pela democrática (Marsílio de Pádua Guilherme de
Ockham).
e) A filosofia e a teologia do ocamismo (nominalismo “via moderma”) abala com o seu
cepticismo a imagem medieval fechada do mundo do realismo tomista (via antiqua).

31
f) A atitude espiritual do Renascimento e do Humanismo em geral, sobretudo, em Itália,
prepara a fragmentação da consciência da unidade medieval.
A Reforma viria a consumar esta evolução. Com o cisma religioso do século XVI, o Ocidente
perdeu o laço espiritual que unira os seus povos. A unidade pereceu.
3. Resumindo: a Idade Média pode ser caracterizada através das seguintes propriedades
essenciais:
a) A comunidade ocidental de povos baseava-se numa ideia fundamental da unidade das
concepções religiosas que era partilhada por todos sem exceção q eu tinha o seu fundamento
último no reconhecimento geral da dependência religiosa e metafísica do Homem de Deus.
Existia apenas uma verdade vinculativa para todos os homens, uma lei moral suprema, que
ninguém negava, e uma autoridade moral superior, a Igreja, que decidia em última instancia e
a que todos obedeciam. A existência de pecadores e de hereges não contraria a ideia de
comunidade predominante. A sua existência podia ser entendida como “necessária” como
base na Sagrada Escritura (1 Cor.11,19). Vigiava-se a providenciava-se para que a unidade do
Ocidente não fosse destruída A Inquisição e a perseguição aos hereges serviram o objetivo de
proteger a unidade cristã, sentida com imprescindível e necessária contra todas as tentativas
de cisão.
b) A vida interna desta comunidade de povos era determinada pela simbiose entre a Igreja e o
Estado. A relação de ambas as forças entre si era encarada de forma dualista, imageticamente
representada por uma elipse, cujos dois focos eram o papado e o Império. Por oposição ao
centralismo oriental, bizantino (posição central do império bizantino), no Ocidente o dualismo
foi desde sempre fundamental e decisivo para a evolução de todo o seu pensamento. Mas, mal
o equilíbrio de forças sofreu perturbações, surgiram tensões e lutas entre papado e Império. O
declínio do império dos Staufer arrastou necessariamente consigo a decadência do papado.
Como ambos os poderes haviam, contudo, mantido a coesão do Ocidente, a dissolução era
inevitável: o império universal e o papado universal condicionavam-se reciprocamente.
c) A hierarquização da vida pública em ordens era entendida como uma organização secular,
de acordo com a vontade de Deus, hierarquia esta com a qual os que se encontravam na sua
base tanto mais depressa se reconciliavam, quanto o fundamento cristão o atenuava, mediante
o seu principio da dignidade interior e da igualdade de todos os homens perante Deus. A
vassalagem e a ordem feudal características desta sociedade dividida em ordens tinham o seu
fundamento e encontravam uma equivalência no sistema de benefícios da Igreja, contribuindo
para a feudalização da Igreja medieval. Determinaram até à grande secularização a imagem

32
externa da Igreja, legitimando o monopólio da nobreza sobre as sedes episcopais e os mais
ricos prestimónios da Igreja, que se vieram a concentrar nas mãos das ordens superiores.
d) Enquanto a mais poderosa força cultural, a Igreja possuía o monopólio da cultura,
monopólio esse que permaneceu incontestado até ao século XIII. Todos os agentes culturais
eram clérigos, “Religiosos” dirigiam chancelarias também surgiam , por volta de 1200, com
privilégios papais. Os professores eram clérigos que haviam recebido prebendas. Só muito
lentamente os leigos conseguiram conquistar uma cultura autônoma e é apenas em finais de
Idade Média que se pode falara de uma camada leiga culta, que havia adquirido importância
enquanto juristas, médicos ou humanistas.
Depois desta visão de conjunto, dedicar-nos-emos às épocas em particular.
(FRANZEN, August. Breve história da Igreja. Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 122 -
130.)

33
2. O DESENVOLVIMENTO DO CRISTIANSIMO MEDIEVAL

Para Agostinho, a Igreja pode realmente ser um reflexo da cidade celestial, mas
também reconhecida que isso existia na cidade terrena. Vital para a existência da Igreja no
mundo foi sua estrutura institucional em desenvolvimento, sua expansão para fora do Império
Romano em declínio, pata terras que ela moldaria de modo que se formasse o que hoje
chamamos de Europa. A institucionalização da aspiração agostiniana na cidade de Deus que
havia formado a base e em seguida traçado os contornos da Europa medieval incluía um certo
numero de fatores simultaneamente entrelaçados, pelos quais corria o fio vermelho das
relações imperiais e papais. A trama dessa tapeçaria de desenvolvimento medieval incluía a
autoridade do bispo de Roma; a herança cultural romana da jurisprudência e da linguagem; as
invasões bárbaras que corroeram o poder imperial e fizeram da Igreja a mais importante força
integradora no Ocidente; a ascensão do monarquismo como movimento missionário; as duas
vertentes da evangelização do continente; no sul por missões romanas sob Gregório Magno; e
no norte por missões celtas nas ilhas britânicas. Os parâmetros temporais desse complexo
desenvolvimento são os reinados papais de Gregório Magno (590-604) e de Gregório VII
(1073-1085).

2.1 Monaquismo para a missão


A vida monástica exercia tanta influência que é quase impossível superestimar seu
significado. O mosteiro proporcionava um lampejo de ordem em meio à prevalecente
desordem da vida na baixa Idade Média, marcada pela fome, pela doença e pela morte. Era
um lugar de penitência, de refugio, de proteção e, acima de tudo, de culto e prece coletiva
para conseguir a graça de Deus no combate contra o pecado, a morte e o demônio.
O monarquismo estava enraizado da Idade Média: “O que devo fazer para ganhar a
vida eterna?... Vende o que tens e dá o dinheiro aos pobres..., depois vem e segue-me” (Lc
10,21s., Mt 19,16s.; Mc 10,17s.). O monarquismo era o “exercício” litúrgico e espiritual ( do
grego askesis: exercitar, treinar, também ascetismo; ver Mc 8, 34) na batalha contra o pecado.
Uma marca característica do monarquismo foi a separação do mundo. Sua forma inicial no
Oriente (Palestina, Síria, Ásia Menor e Egito) foi marcada pelos eremitas, pela negação de si e
pelo isolamento. Ironicamente, o extrema ascetismo doS eremitas muitas vezes atraiu
visitantes e seus discípulos. Surgiu assim uma forma de vida comunitária religiosa proposta

34
primeiro por Antão (morto em 356) e Pacômio (morto em 346), no Egito, que se tornou a
forma dominante do monarquismo ocidental. A vida na comunidade, estritamente controlada
pelo abade (“pai”), foi gradualmente formalizada por regras. Uma antiga regra do
monarquismo bizantino era a de Basílio de Casaréia (c. 330-379); no Ocidente, a regra de São
Bento de Núrsia (c. 480-560) dominou o desenvolvimento do monarquismo “beneditino”.
Além da essencial recitação de salmos e preces em oito ofícios diários, os mosteiros
ofereciam assistência pastoral, lares para crianças nobres “excedentes”, educação, preservação
da cultura clássica, promoção da civilização e evangelização.
O monarquismo penetrou na Europa inicialmente pelo sul, via Gália. Muitos bispos e
até mesmo papas, tais como Gregório Magno, vinham das classes de monges; estreitos laços
entre mosteiros e diocese promoviam a expansão monástica. Todavia, a coisa mais importante
para o florescimento da cultura monástica era o patrocínio de reis e nobre. Em compensação
por seu apoio, famílias fundadoras e doadores eram lembrados nas orações dos monges.
Assim, a religião medieval foi descrita como “os vivos a serviços dos mortos”. Os nobres,
que construíram igrejas e mosteiros, presumiram que podiam aí instalar o clero. O apoio dos
nobres foi sem dúvida crucial para essas fundações, mas ao mesmo tempo sua visão da Igreja
e de suas atividades como propriedade própria gerou tensão com o papado e preparou o
terreno para disputas entre o papa e o imperador que culminaram na controvérsia das
Investiduras.
O monarquismo romano sofria a concorrência do monarquismo irlandês-escocês, com
sua rigorosa disciplina de penitencia e ímpeto missionário, derivado de sua orientação para o
peregrinação ascética por amor de Cristo, representado por Columba (c 521 – 597), fundador
do centro monástico de missões de Iona. A mais importante onda de missionários para o
continente em anglo-saxões fiéis a Roma depois da missão para a Bretanha impulsionada por
Gregório Magno, no século VII. A rigorosa piedade da Igreja monástica irlandesa e a força
organizadora da Igreja romana tiveram como seu mais fiel exemplo as missões de Winfried
(Bonifácio 672-754). Ele trabalhou no continente organizando igrejas, associando seu
trabalho intimamente a Roma e ao papado, e também associando a cultura clássica e a piedade
cristã, lançando assim as bases do assim chamado “renascimento carolíngio”. Depois de uma
missão infrutífera junto aos frísios em 716, o papa Gregório II enviou Bonifácio aos povos
germânicos. Após uma segunda viagem a Roma onde ele prestou juramento de obediência
ao papa, voltou a Alemanha e atuou de 723 a 732. Por ocasião de sua terceira viagem a Roma,

35
Gregório III o fez arcebispo. Durante uma missão junto aos frísios ele recebeu o final perfeito
para um santo – o martírio! Foi sepultado em sua Igreja em Fulda.
O trabalho cultural e educativo da Igreja, e especialmente dos mosteiros, deve-se ao
fato de que povos inteiros foram trazidos para a Igreja pela ação de reis ou nobres que, pela
conversão, obrigavam seus povos ao batismo de massa. Assim, o trabalho missionário teve
início em grande parte depois do batismo. O uso do latim como língua da Igreja uma unidade
cultural e intelectual que constituiu um aspecto significativo da cultura medieval. Os
mosteiros eram centros educacionais onde a sabedoria antiga era reunida em “florilégios”
(antologias). O papel pedagógico dos mosteiros ampliava-se para além da simples compilação
do saber, para sua promoção por meio da escrita e da cópia. Esse trabalho era considerado
meritório para a salvação. Isso explica a lenda segundo a qual um monge pecador salvara sua
alma porque Deus anulara seus pecados pelas letras que copiara; e por sorte tinha a seu
crédito uma letra sobrando.
A cultura monástica não se limitava à cópia dos textos do passado, mas envolvia
também uma variedade de procedimentos intelectuais ligados à vida monástica. Estes
incluíam a manutenção do calendário litúrgico; matemática para gerenciar propriedades;
cálculos para determinar as horas de oração; historias e biografias de monges fundadores e
seus mosteiros; a retórica de pregação; reflexão teológica e filosófica relativa à Bíblia e à
tradição; a arte para adornar manuscritos com delicadas miniaturas, locais de culto,
vestimentas, materiais e cálices; a música de culto; a Arquitetura. Inspiradas pela descrição
bíblica da construção do Templo de Salomão (1Rs 5-7), magníficas igrejas foram construídas
em honra de santos e para o culto a Deus.

LINDBERG, Carter. Uma breve história do Cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008,
p. 77 - 81.

36
3. AS UNIVERSIDADES E A ESCOLÁSTICA

A preocupação carolíngia com a educação sobreviveu nas grandes escolas de Aachen e


de Tours, por isso o termo “Escolástica” para designar o saber dessa época que ocorria
expressamente nas escolas. A base da educação formal, dirigida quase exclusivamente para o
clero e para os monges, tinha o foco romano clássico nas artes liberais (os temas que se
acreditava serem apropriados para um liber, um homem “livre”). As três básicas, o trivium,
eram a gramática, a retórica e a dialética. Devemos observar que a língua de ensino era o
latim. Assim, todos os estudantes começavam sua educação aprendendo essa língua de
ensino era o latim. Assim, todos os estudantes começavam sua educação aprendendo essa
língua estrangeira. O trivium era completado pelo quadrivium geometria, aritmética,
astronomia e música. Os “altos” estudos profissionais eram a teologia, o direito e a medicina.
O capital intelectual do mundo medieval consistia basicamente na Bíblia e nos Padres da
Igreja, completados pela obra de Boécio (morto em 524), cuja ambição era preservar e
apresentar ia sendo conduzido de volta a suas próprias fontes. O interesse e o entusiasmo
medieval pelas escolas talvez seja uma ilusão para o espírito moderno. Graças às polêmicas
dos reformadores e dos intelectuais do século XVI, o período medieval, de modo geral, e a
Escolástica, em particular, tiveram má reputação. O preconceito de que a Escolástica
interessava-se mais por jogos verbais intelectuais do que pela “vida real” permanece com a
velha questão que sempre aflora quando se menciona a Escolástica: “Quantos anjos podem
dançar na cabeça de um alfinete?”. Historicamente, todavia, não há dúvida sobre a qualidade
rela dos principais intelectuais quando abordavam as realidades do momento.
Anselmo (1033-109), conhecido como “pai da Escolástica”, deixou sua casa no norte da Itália
depois de uma briga com seu pai e partiu em busca de conhecimento. Ele terminou no norte
da França, no mosteiro de Bec, por causa do renome intelectual do seu superior, Lanfranc
(c.1005-1089) um conterrâneo italiano chamado em 1070 por Guilherme, o Conquistador,
para se tornar arcebispo de Canterbury. Anselmo permaneceu em Bec, tornou-se um monge
com a idade de 26 anos e conhecido como professor. Os últimos dezesseis anos de sua vida
foram dedicados ao serviço público como arcebispo de Canterbury, um posto que foi obrigado
a ocupar contra sua vontade. O rei inglês, Guilherme Rufus (o Vermelho), que não tinha fama
de ser piedoso, havia mantido a sede vazia para usar seus fundos, mas ao ficar muito doente,
com medo da eternidade, desejou reparar o dano causado à Igreja, apontando um arcebispo.

37
Anselmo, em visita à Inglaterra em 1903, foi considerado pelos bispos locais e pelos
conselheiros dos reis o candidato ideal, mas recusou a honra. Foi então que os conselheiros e
os bispos literalmente carregaram Anselmo para a igreja, com o cajado do bispo pressionado
contra seu punho fechado. Anselmo escreveu aos seus irmãos em Bec: ‘Seria difícil dizer se
eram loucos que arrastavam consigo um homem sadio, ou se eram homens sadios que
arrastavam um louco; eles, porém gritavam, e eu, pálido de espanto e dor, mais parecia estar
morto do que vivo”. O rei sobreviveu a sua alegada doença mortal e acabou sendo assassinado
alguns anos depois. Antes disso, todavia, Anselmo recolheu-se em exílio voluntario, porque o
rei continuava a abusar da Igreja e a resistir às medidas gregorianas de Reforma.
Outro grande colaborador da Escolástica, Pedro Abelardo (1070-1142) teve uma vida
ainda mais conturbada. Filho mais velho de um cavaleiro educado, Abelardo tornou-se
cavaleiro errante, disposto a ir para qualquer lugar em busca do seu santo graal, o
conhecimento. Jovem, excepcionalmente brilhante, dono de um ego à altura do seu brilho,
Abelardo viajou até Paris para estudar com renomados eruditos que logo abandonou,
considerando-os sem substância. Por exemplo, invejoso da atenção dada aos teólogos,
Abelardo foi ao encontro do ilustre Anselmo de Laon (c. 1050-117), que então descreveu
como uma arvore estéril – apenas folhas, nenhum fruto. Depois de deslocar de alguns dos
mestres de Paris, Abelardo começou a fazer suas próprias palestras, em concorrência, atraindo
seus melhores alunos. Sua falta de coragem necessária também ficou evidente em seu caso em
Heloísa, a brilhante e atraente sobrinha de seu colega na Catedral de Notre Dame. Admitido
como seu tutor em Filosofia e Grego, Abelardo logo envolveu-se em atividades
extracurriculares e ela acabou engravidando. A fúria de seu guardião levou ao ataque em
grupo contra Abelardo; em suas palavras, “extirparam aquelas partes do meu corpo com que
eu havia feito aquilo que lhes causara dor”. O evento também pôs fim a sua carreira de
professor em Paris. Tendo incorrido no ódio de seus professores e colegas, Abelardo incorreu
também na ira das autoridades eclesiásticas com seu livro sobre a Trindade, que teve de
entregar às chamas no Concílio de Soissons, em 1121. Para encurtar a histórias, monges
furiosos expulsaram Abelardo do seu mosteiro porque ele afirmava que o santo patrono do
mosteiro não era Dionísio, o Areopagita, companheiro de Pulo. Abelardo certamente intitulou
sua autobiografia A história das minhas calamidades. Para Abelardo o mundo acadêmico
certamente não era nem uma torre de marfim, nem um esporte para espectadores.
Abelardo sem dúvida perturbou os guardiões da antiga ordem – lembremos que, uma
geração antes, Gregório VII e seus colegas haviam condenado a incontinência clerical. Mas o

38
perigo representado por Abelardo não se devia ao fato de ter dormido com uma mulher, mas
ao fato de que sua vida e teologia era a expressão de um novo entendimento do amor que
surgia no século XII, no sul da França, e que estava se propagando para o norte. O amor
romântico – celebrado pelos trovadores e expresso nos poemas e canções do amor cortês – era
um nova ideia do amor que iria dominar as ideias ocidentais até a sua banalização pelos
filmes de Hollywood, pelo “jornalismo de depoimento” e pelas novelas de época. Para
Abelardo e Heloísa, o relacionamento dos indivíduos devia superar a repressiva instituição do
casamento. Com efeito, foi Heloísa que não quis o casamento que Abelardo lhe propunha.
“Deus sabe”, escreveu-lhe ela do convento, “que nunca busquei em você nada, exceto você
mesmo; queria apenas você, nada seu; não buscava o laço do casamento, a quota do
casamento.” Heloísa compartilhava com Abelardo a opinião desfavorável sobre o casamento,
uma visão transmitida à sua época pelos primeiros Padres da Igreja, como Jerônimo e
Agostinho. Também compartilhavam uma “ética da intenção” proposta por Abelardo em Scito
te ipsum (Conhece a ti mesmo). Assim, Heloísa escreveu para Abelardo: “Não é o ato, mas a
intenção do agente que faz o crime, e a justiça deveria pesar não o que foi feito, mas o espírito
com que foi feito”. Ambos acreditavam que o casamento nada poderia acrescentar ao seu
relacionamento, mas antes os desviaria, interferindo com o trabalho intelectual de Abelardo.
Assim, Abelardo escreveu: “Que homem, voltado para suas meditações religiosas ou
filosóficas, poderá suportar os gritos das crianças, ou a barulhenta confusão da vida
familiar?”.
Talvez seja possível sugerir que a experiência feita por Abelardo do amor de Heloísa –
tanto com sua imensa alegria, que lhe inspirou a composição de cações de amor, bem como
com sua profunda dor e perda – tenha influenciado seu entendimento da expiração, algumas
vezes chamado de teoria antropocêntrica da expiração. Agora, o significado da Satã, mas
antes o a exemplo e a doutrina de amor manifestada em Jesus, e o renovado amor de Deus
pelo gênero humano, e outros, que a exemplo de Jesus estimulou. As inspirações monásticas e
feudais da teologia de Anselmo são substituídas pelas inspirações mundanas e humanistas de
Abelardo. Como já foi observado, os guardiões da antiga ordem não estavam preparados para
esse tipo de subjetividade.
Entretanto, a maior sensação da época não eram as vidas doa acadêmicos, mas a
lógica! A lógica tornou-se a disciplina excitante, pois era um instrumento pelo qual se
acreditava que a ordem podia ser imposta em um mundo caótico. O mundo era um reino de
forças naturais e sobrenaturais, demoníacas e outras, sobre as quais as pessoas tinham pouco

39
ou nenhum controle. O mundo da política e da economia – ainda mais do que atualmente! –
eram de maneira semelhante desordenados e impossíveis de serem abordados pelo
pensamento. Mas a lógica, embora fraca no início, começou a abrir uma janela para uma visão
ordenada e sistemática do mundo. Todo o processo de simplificação e de organização era uma
revelação dos poderes da mente e fornecia um sentido de ordem que habitava além da
complexidade selvagem de fatos aparentemente não relacionados. Do final do século X ao
final do século XII, a assimilação da lógica de Aristóteles foi a grande tarefa intelectual. Por
volta do século XIII, os currículos em Paris e em Oxford fizeram da lógica aristotélica o
aspecto principal dos estudos de graduação.
Houve muitos passos e viradas no desenvolvimento da Escolástica, entre o quais o
florescimento de cerca de 1.200 universidades, que eram uma forma mais alta de escola e
tinham como ideal a ordenação do conhecimento em um todo coerente, a Suma. A expansão
do conhecimento criava uma nova organização de ensino e aprendizado escolar, cujo
propósito era, acima de tudo, transmitir o corpo acumulado de conhecimentos. Com o tempo,
surgiu a consciência dos elementos contraditórios na tradição e a necessidade de uma
explicação responsável ou de reconciliação desses conflitos. A partir daí desenvolveu-se o
exame critico da tradição pelo uso da razão. A discussão crítica da razão e a autoridade da
tradição é essencialmente o início da Escolástica como fenômeno metodológico. A escolástica
medieval é pois, uma metodologia que recebeu a herança clássica e a teologia dos Padres da
Igreja, especialmente de Agostinho, e a elaborou com a ajuda da dialética e da lógica. A
diferença entre a antiga, anta escolástica, e a escolástica posterior é apenas um construto para
ajudar nas discussões. Os pontos de destaque são associados a distintos graus de tratamento
da herança clássica, especialmente da Aristóteles. A Escolástica antiga vai do ano 1000 a
1200. Um novo patamar de desenvolvimento surge por volta do ano de 1150, na medida em
que os escritos sobre lógica de Aristóteles se tornam conhecidos. A alta escolástica tem inicio
por volta do ano de 1200, quando o Ocidente já havia tomado conhecimento do conjunto do
corpus de Aristóteles, inclusive sua ética e metafísica, mediadas por meio de escritos de
árabes e judeus. Ao mesmo tempo surgiam as primeiras universidades na Europa, em
Bologna, Paris Oxford e Cambridge. A Universidade de Paris, que se formara a partir do
desenvolvimento das escolas de catedrais no século XII, recebera sua carta de fundação em
1200, e por volta do ano de 1213 incluía em seus currículos a teologia, a lei canônica e a
medicina, juntamente com as artes liberais. O papa Inocêncio III reconheceu a Universidade
de Paris como uma corporação sob a jurisdição do papado em 1215. Em 1257, recebeu uma

40
doação de Robert de Sorbn, dando origem à Sorbonne. Na Itália, a questão da investidura
estimulou Matilde, da Toscana, a instituir uma escola pra o estudo da lei que veio a se tornar a
Universidade de Bologna. Bologna tornou-se, então, famosa pelo estudo da lei canônica
mediante o Decretum de Graciano (1140), em 1360 estabeleceu-se aí uma faculdade de
teologia. A universidade de Nápoles foi a primeira a ser fundada por decreto real (1224) para
formar funcionários do Estado.

(LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008,
p. 104 - 110.)

41
3ª. PARTE

III- O CRISTIANISMO MODERMO

42
1- AS REFORMAS DO SÉCULO XVI

O período da Reforma costuma ser datado de 1517, com a publicação das “Noventa e
cinco teses” de Martinho Lutero, a 1595, com a Paz religiosa de Augsburgo. Nesse breve
período, a hegemonia romana papal sobre o cristianismo ocidental foi encoberta, e o
catolicismo tornou-se conhecido como catolicismo romano, uma denominação do
cristianismo entre outras. Quatro igrejas principais surgiram nesse período: a católica romana,
a luterana, a reformada – designação geral de várias igrejas nacionais calvinistas – e a
anglicana, com uma variedade de outras comunidades cristãs anabatistas e espirituais, que
esposavam reformas mais radicais.
A polarização posterior da reforma do cristianismo em denominação conflitantes, com
confissões especificas de fé, ficou conhecida como período confessional. O período
confessional estendeu-se até a Paz de Westfália (1648), que punha fim a 30 anos de guerra
(1618 – 1648), ultima das principais guerras religiosas da Reforma.

Contexto
Às vésperas da Reforma, a questão não era se a Igreja deveria ser reformada, mas sim
quando. O papado, que já havia sido esbofeteado pelo conciliarismo e pelos movimentos
nacionais de renovação, deparava agora com o desafio do despertar intelectual conhecido
como Renascimento. O lema do Renascimento, que teve inicio no século XIV, na Itália
difundindo-se ao norte, era ad fontes, “de volta às fontes” da cultura ocidental: os clássicos
gregos e latinos, e Bíblia e os escritos dos Padres da Igreja. Eruditos como Desidério Erasmo
(1469-1536) e Jacques Lefèvre d’Etaples (c. 1460-1536) forneceram edições do Novo
Testamento, prefácios bíblicos e comentários, que partiam desde o latim vulgar até o texto
grego e , dessa forma, estimularam uma releitura crítica da tradição teológica. Também outros
textos foram examinados sob a lupa e pelos métodos literários dos humanistas. Por exemplo,
Lourenço Valla (c. 1406-1457) provou que a famosa Doação de Constantino era espúria;
novas ideias espalhavam-se rapidamente, amplamente, e de modo seguro em razão da recente
invenção da prensa móvel, encontrando guarida nas novas universidades, tais como a
universidade de Wittenberg, fundada em 1502. Com efeito, Luttero escreveu para um amigo
dizendo que cursos sobre a Bíblia e sobre os escritos de Agostinho estavam tomando o lugar
do estudo da Metafísica aristotélica, da Ética e da teologia em Wittenberg. Em certo sentido, a

43
Reforma começou, portanto, com uma mudança de currículo na faculdade. Algo difícil de
acreditar, se você já participou de uma reunião de faculdade!
Estimulados pela recuperação de textos bíblicos e de antigos escritos da Igreja, bem
como pela sensação causada pelo surgimento de novas traduções, os reformadores, por toda a
Europa, instavam para que se pregasse a Bíblia e a teologia pastoral. Os pregadores tornaram-
se tradutores, e os tradutores tornaram-se pregadores. Sua convicção de que a teologia
acadêmica auxiliava na difusão da Boa-Nova expressava-se sucintamente nas palavras de
Erasmo acerca dos versos iniciais do Evangelho de João: “No início era o sermão”. Mas ao
mesmo tempo em que os reformadores estavam trazendo para fora do domínio escolástico a
teologia, com os sermões vernaculares e com escritos devocionais, o papado havia alcançado
um avançado estágio no endurecimento de suas artérias pastorais e éticas.
Uma série de papas mundanos legou não apenas uma arte e uma arquitetura gloriosas
para a humanidade, mas também o rancor e a ansiedade aos seus contemporâneos, Atingidos
pelas incursões dos movimentos conciliares na questão da autoridade papal, as principais
figuras do papado medieval procuraram sufocar as vozes de renovação. Seu sucesso na
contenção do conciliarismo ficou demonstrado no fato de que além do Concílio de Trento
(145-1563), antiga e ressentida reposta à Reforma, não houve outro concílio até o Vaticano I
(1869-1870), que, em sua declaração sobre a primazia e infalibilidade papal, dava uma
resposta definitiva ao Concílio de Constança. Contemporâneos experimentavam uma
dissonância cognitiva ao confrontar a opulência e o poder da corte papal com a imagem
bíblica do pastor guardando seu rebanho. Os críticos lembravam que a ordem de Jesus para
Pedro havia sido “alimenta meu rebanho” (Jo 21,15-17), e não “tosa meu rebanho”.
Um entalhe alemão retratava o espírito mercenário o papado representando o papa e a
Cúria contando dinheiro em um painel, e Jesus expulsando os mercadores do Templo em
painel oposto. Um provérbio italiano afirmava que a pessoa que fosse a Roma perderia sua fé,
E um acróstico latino para Roma resumia a impressão sobre a venalidade papal: Radix
Omnium Malorum Avaritia: “ O amor ao dinheiro é a raiz de todo o mal”. O papado havia se
tornado uma corte suntuosa, e o papa era visto cada vez mais como um príncipe italiano. Dois
papas famosos exemplificaram de modo especial essa imagem papal: Alexandre VI (1492-
1593) e Júlio II (1503-1513).
Rodrigo Borgia foi eleito cardeal por seu tio, o papa Calisto III, e alcançou o papado
mediante subornos, tomando o título de Alexandre VI. Não surpreende que as contínuas
preocupações financeiras e familiares tenham determinado o reinado de Alexandre enraizando

44
no nepotismo e na simonia desde o início. Eis um papa para quem o título “pai”, quando não
“festivo”, aplicava-se literalmente! O envolvimento do Alexandre em promiscuidade sexual,
acusações de envenenamento e intrigas de assassinato tornou o nome Borgia um sinônimo de
corrupção. Ele foi denunciado em seu próprio tempo pelo influente e destemido pregador
italiano Jerônimo Savonarola (1452-1498), que, imperturbável diante de ameaças e subornos,
terminou sendo executado em Florença. Os esforços de Alexandre para fortalecer o papado
estimularam a intervenção da França no norte da Itália, que por sua vez contribuiu para um
novo período de jogo de potências, com a Itália no foco da intriga internacional.
Júlio II, que como Alexandre era um patrono das artes, apoiou Rafael, Michelangelo e
Bramante. O entusiasmo de Júlio na reconstrução de São Paulo, cujo objetivo era mostrar aos
outros príncipes que o papa tinha a mais suntuosa corte, era comparável ao seu zelo pela
guerra. Tanto esteve seu reinado envolvido com questões bélicas que o povo começou a se
perguntar o que tinha esse pontífice a ver com o príncipe da Paz. Erasmo, que testemunhou a
entrada marcial triunfante de Júlio em Bologna, satirizou-o em Julius Excluded,
representando-o em armadura completa, tentando, sem sucesso, penetrar no reino dos céus.
O sucessor de Júlio, um membro da famosa família de banqueiros florestinos, os
Médici, recebeu o titulo de Leão X (1513-1521). Teria revelado sua sensibilidade em relação
ao amplo desejo de reforma da Igreja ao inaugurar seu papado com as seguintes palavras:
“Agora que Deus nos deu o papado, vamos aproveitar”. Mas, na época em que Leão estava se
firmando no trono papal, um jovem monge chamado Martinho Lutero (1483-1546) esforçava-
se para entender a Bíblia em uma universidade recentemente aberta na cidade provinciana
alemã de Wittenberg.
O movimento de Reforma de Lutero não foi iniciado pela indignação moral de um
Savonarola, dirigida contra o papado do Renascimento, mas sim pela sua preocupação com a
salvação. Lutero e colegas reformistas foram confrontados com essa questão na prática da
comunidade praticante. Por isso é importante lembrar que a tese acadêmica de Lutero
“Esclarecimento sobre o Poder e a Eficácia das Indulgências”, mais conhecida como as
“Noventa e cinco teses”, concentrava-se no sacramento da penitência e nos problemas
relacionados de justificação, indulgência, purgatório e autoridade eclesiástica. Em resumo: a
Reforma começou focalizando a prática central da Igreja: o perdão dos pecados.

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A Reforma na Alemanha
O problema pessoal e pastoral que ocupou Lutero era saber se a salvação é recebida ou
alcançada. A resposta escolástica medieval, segundo a qual ambas as coisas eram válidas, não
resolvia o caso para ele, pois mesmo a necessidade de mais ínfima contribuição humana para
a salvação devolvia o ônus da prova para a pessoa. A atenção pastoral da Igreja deixava as
pessoas incertas quanto à sua salvação e dessa, forma, mais dependentes das intervenções da
Igreja, ao estimular a preocupação espiritual e a introspecção, observando que: “ O homem
não conhece nem o amor nem o ódio “ (Ecl 9,1). Mais que isso, as pessoas não tinham
necessidade de ir à confissão para se sentirem inseguras e incertas quanto à sua salvação. Em
todo lugar, na vida cotidiana, imagens - aqueles “livros leigos”, nas palavras do papa
Gregório Magno – serviam para lembrar o povo de céu e do inferno. As igrejas medievais
apresentavam a imagem de Cristo no trono do julgamento com uma espada e um lírio de cada
lado se sua cabeça. O lírio representava a ressurreição para o céu, mas a espada do
julgamento, que representavam o tema da “dança da morte”, que era completada por um
sinistro esqueleto ceifador; manuais sobre a arte de morrer era oferecidos.
As responsabilidades de Lutero ligadas ao ensino em Wittenberg, bem como sua
própria busca pela certeza da salvação, levaram-no ao intenso estudo da Bíblia. Ali ele
descobriu que a Justiça, perante Deus, não é o que o pecador alcança, mas o que o pecador
recebe de Deus como um dom livre. A promessa de que a salvação não é mais o objetivo da
vida, mas o que a salvação não é mais o objetivo da vida, mas sim a base de uma vida,
libertou-o da preocupação com seu próprio desenvolvimento espiritual, abrindo-o para a vida
no mundo. Luterro modificou a reverencia medieval pela conquista: as boas obras não tornava
o pecador aceitável perante Deus, mas, ao contrário, a aceitação por Deus de pecador
favorecia as boas obras.
A descoberta pessoal de Lutero tornou-se um acontecimento público com sua crítica
acerca das práticas de indulgências da época nas “Noventa e cinco teses”. O imaginário
popular, influenciado por alguns pregadores, havia alterado o significado de indulgência
daquele de remissão de uma penalidade imposta pela Igreja depois da absolvição sacerdotal
para o de um bilhete de entrada para o céu. Agressivos vendedores medievais de indulgências,
tais como John Tetzel, ofereciam acesso direto ao céu mesmo para os mortos do purgatório.
Um dos jingles de venda de Tetzel dizia que, “assim que uma moeda tilintasse na caixa, uma
alma do purgatório subia ao céu”. As extravantagens afirmações de Tetzel sobre o poder das
indulgências abrangiam a remissão do pecado mesmo se o pecador tivesse violado a Virgem

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Maria. Um outro fato, de acordo com a tradição popular, voltou-se contra Tetzel, para sua
desolação. Um cavaleiro comprou uma indulgência a fim de que valesse para os pecados
futuros e depois disso assaltou Telzel!
Com exceção deste ou daquele contratempo ocasional, Tetzel era um excelente e bem
pago vendedor, que hoje seria alvo de inveja no mundo da publicidade. Ele entrava nas
cidades com fanfarras e trombetas, com tambores, flâmulas, e símbolos do papado. Um
espetáculo e tanto para uma época pré-televisiva! Depois de um sermão de cores fortes na
praça da cidade, ele se dirigia para a maior igreja, onde fazia outro sermão – também em cores
fortes – sobre o purgatório e os sofrimentos que aguardavam os presentes, e aqueles por que
passavam os queridos amigos e parentes que haviam partido. Depois do sermão seguinte, em
que ele descrevia o céu, a audiência estava suficientemente preparada e ansiosa para comprar
indulgências.
A tese em que Lutero abordava os abusos na questão das indulgências por Tetzel fora
escrita em latim, e a maior parte dos habitantes de Wittenberg sequer lia em alemão. Assim a
popular imagem de Lutero como furioso jovem a despejar teses incendiárias na porta de uma
Igreja é mais uma ficção romântica do que uma realidade. Causou sensação o fato de Lutero
ter enviado as teses ao superior de Tetzel, arcebispo Albrecht de Mainz, acreditando
ingenuamente que Albrecht não sabia que seu funcionário estava abusando da autoridade da
Igreja. Na verdade, Lutero havia inadvertidamente tocado no ponto sensível de uma fraude
política e eclesiástica de grandes proporções. O papa Leão X precisava de fundos para
construir São Pedro, e Albrecht havia concordado em obter esses fundos, como contrapartida
da dispensa papal de tornar-se o arcebispo de Mainz.
Os acontecimentos começaram rapidamente a se acelerar quando as instituições
entraram em ação para silenciar Lutero. Por volta de janeiro de 1521, Lutero foi
excomungado e o papado apelou ao jovem, recém-eleito imperador Carlos V para que
publicasse um mandado contra Lutero. Mas a constituição alemã e o juramento de coroação
de Carlos conservavam aos alemães o direito ao julgamento imparcial. Assim, Lutero recebeu
salvo-conduto para apresentar-se em audiência que deveria se realizar na iminente dieta de
Worms, em abril. Lá, diante do imperador, de príncipes, de senhores, de autoridades
eclesiásticas – um mundo bem distante de sua cela monástica e de sua sala de aulas -, Lutero
não teve uma audiência, mas foi confrontado a uma pilha de textos seus e ao pedido de que
reconhecesse seus erros. Sua breve resposta, de que não podia ir contra sua própria
consciência, a menos que para isso fosse convencido pelas escrituras, ou pela razão, incluiu a

47
memorável frase: “Esta é minha posição. Que Deus me ajude”. O resultado, o Edito de
Worns, de 1521, proclamou Lutero em fora-da-lei a ser capturado e entregue às autoridades.
Felizmente para Lutero em um grande número de poderosos partidários, inclusive seu próprio
príncipe, Frederico, o Sábio, que manteve Lutero em um dos seus castelos, por segurança.
Durante os seis meses de prisão no castelo, Lutero traduziu o Novo Testamento para o
alemão.
O lema de fé da Reforma de ação no amor deu novas forças às abordagens inovadoras
em ampla variedade de antigas questões sociais modernas, inclusive a questão da reforma do
bem-estar social, do analfabetismo e da educação pública, além de questões políticas sobre
autoridade e direito à resistência. A rejeição pelos reformadores do celibato clerical não
apenas ia de encontro à autoridade da Igreja, mas também transformava o clero em instituição
civil, no sentido em que seus membros se tornavam cidadãos, com um lar, família e
responsabilidades civis. A libertação da luta pela salvação libertava a energia humana e os
recursos materiais para atividades deste mundo.

(LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008,
p. 141 - 149.)

48
2. O CATOLICISMO MODERNO

Muito antes da entrada em cena de Lutero, a renovação católica encontrou expressão


pessoal em movimentos tais como as Beguinas e Bergardos, do século XII, um movimento
mendicante, Irmãos da vida comum ou Devotio Moderna, no final do século XIV, e expressão
institucional no movimento conciliar, a partir do século XIV, e expressão institucional no
movimento conciliar, a partir do século XIV, que pedia reformas na Igreja, “cabeça e
membros”. Às vésperas da Reforma, os humanistas e teólogos católicos estavam traduzido a
Bíblia; pregadores trabalhavam no sentido de instilar piedade e ética; confraria e oratórios era
veículos e espiritualidade leiga. Os movimentos de reforma medieval monástica prosseguiram
com Inácio de Loyola (1491-1556), fundador da Companhia de Jesus (jesuítas), cujo interesse
focalizava a prooção do trabalho pastoral e missionário, mais do que a reforma da doutrina, e
com Teresa de Ávila (1515-1582), cujos escritos místicos e cujo trabalho de reforma na
ordem carmelita continuam influentes.
Por outro lado, a antipatia do velho papado medieval em relação ao conciliarismo era
um importante fator a bloquear os incessantes apelos dos protestantes no sentido da realização
de um concílio que tratasse de temas levantados pela Reforma. Quando o concílio finalmente
teve início em 1546, em Trento, uma geração de conflitos havia endurecido sus posições.
Esforços de mediação – por exemplo, o Colóquio de Regensburg, de 1541, avia sido rejeitado
por ambos os lados por transigirem com a “verdade”. O Concílio de Trento em três
assembleias distintas (1545-1547, 1551-1552, 1561-1563), concentrou-se na renovação moral,
educacional e espiritual da Igreja católica e na rejeição ao protestantismo. Este ultimo
objetivo encontrou expressão na rejeição, pelo concílio, da sola scriptura, ao afirmar a
tradição como fonte de igual valor da revelação. A suplementação de sola gratia, com a
cooperação humana; e a reafirmação dos sete sacramentos e da doutrina da transubstanciação.
A autoridade papal, embora não instituída oficialmente no sentido moderno do termo ate
Vaticano I (1870), foi reafirmada ao final do Concilio de Trento pela bula papal Bendictus
Deus, que reservava ao papa a autentica interpretação dos decretos conciliares.

As consequências da Reforma

49
Ao final do Concílio de Trento, em 1563, o cristianismo ocidental estava dividido em
“denominação” identificadas por confissões particulares de fé. A lava ardente dos debates
teológicos e as inovações religiosas que haviam irrompido e inundado o Corpus Christianum
medieval e se havia solidificado, dando origem a três comunidades importantes: o catolicismo
romano, o luteranismo e o protestantismo reformado. Cada uma delas havia formulado
confissões de suas crenças. Os conflitos teológicos que seguiram, internos e externos, tinham
origem em cada esforço feito pela Igreja para consolidar e institucionalizar sua compreensão
do Evangelho. Tais esforços foram designados sob o termo genérico de “confessionalização”.
O processo de confessionalização também era político e social porque todas as igrejas
confessionais aliaram-se aos governantes temporais e aos Estados para preservar sua
hegemonia confessional, estendendo-a, se possível, a tais como os da comunidade anabastista
e das comunidades judaicas, estavam isolados e marginalizados. Se por um lado as igrejas
confessionais recebiam legitimidade e apoio de seus respectivos estados, por outro ajudavam
no desenvolvimento do Estado moderno, ao promover uma sociedade de súditos, unidas e
disciplinada.
Nos estados protestantes, o clero foi integrado à vida cívica não apenas em virtude de
sua participação no casamento e na vida da família, mas também em razão de seu
envolvimento com a burocracia do Estado, como administradores da Igreja. Neste sentido, o
clero era formado por servidores civis, ligados por suas respectivas constituições eclesiais e
confissões de fé. Nos estados romanos católicos, a estrutura administrativa tinha funções
semelhantes, embora muitas vezes fosse mais complexa. As igrejas muitas vezes
desempenhavam um papel significativo na implementação da disciplina social, porque
possuíam uma legitimidade que o incipiente Estado moderno ainda estava em vias de adquirir
no que concerne à moral, à política e às normas legais. Sermões, atenção pastoral e visitas,
educação religiosa por meio de instrução e de catecismo, serviços religiosos e a doutrinação
da disciplina deram direção à Reforma nos assuntos domésticos e públicos. Os valores do
bom comportamento, da honestidade, do aprendizado, da autodisciplina, do trabalho e da
obediência foram assim internalizados, fornecendo suporte durante a transição
socioeconômica para a moderna sociedade europeia burguesa da era industrial. A chamada
“ética protestante” não se limitava aos calvinistas e a seus descendentes puritanos. A
disciplina social era uma expressão universal de confessionalismo. Por exemplo, a Companhia
de Jesus (os jesuítas) era claramente uma meritocracia que recompensava justamente os

50
valores enaltecidos pelo Estado em desenvolvimento e pela economia: o estudo, o talento, o
trabalho duro e a piedade.
(LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008,
p. 163 - 165.)

51
3. O ILUMINISMO

De modo diverso das épocas anteriores, que remetiam à cultura clássica ou aos
primórdios do cristianismo, o iluminismo foi orientado de maneira otimista para o futuro
em termos de progresso contínuo. O teólogo suíço moderno Karl Barth (1886-19680
descreveu esse período em termos de “absolutismo” e de “desejo de forma”. Isto pode ser
observado no uso popular do gesso na arquitetura barroca e na maestria de forma da
música, de Bach e Mozart, em como as novas teorias da natureza, que dispensavam as
hipóteses de Deus para as explicações científicas. Alexander Pope (1688-1744)
sucintamente expressou essa nova orientação com a seguinte frase: “O verdadeiro estudo
da humanidade é o homem”. A confiança na capacidade humana encontrou expressão
novelística com Daniel Defoe (1660-1731) na obra Robinson Crusoé, em que o herói
domina a natureza e a vida, quando é abandonado aos seus próprios recursos. A convicção
de que o domínio da natureza e da vida humana resida na educação resultou em vários
tratados no iluminismo, tais como o de Gothold Efraim Lessings (1729-1781) Education of
the Humam Race (A Educação da Raça Humana), o de Jean Jacques Rousseau (1712-
1778) Emílio ou tratado da educação; e o de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827)
Como Gertudes ensina seus Filhos. Essas obras encontram uma expressão concreta na
criação de escolas por professores. Immaneul Kant (1724-1804), ponto mais alto da
filosofia do iluminismo, definiu ele mesmo o iluminismo como “a emergência de um auto-
imposto estado de minoria e desafiou seus contemporâneos a pensarem por si mesmos, a
ter a coragem de fazer uso do próprio entendimento”.
A definição sumária de Kant sobre o iluminismo veio completar um tendência que se
estendeu por toda a Europa. René Descartes (1596-1650), educado pelos jesuítas,
expressou a moderna autoconsciência enraizada no raciocínio Cogito ergo sum. A
existência de Deus torna-se racional, e a Filosofia abandona seu papel de serva da teologia
(Aquino) para se tornar uma empírica e em princípios racionais. Na Inglaterra, o deísmo
buscou uma base firme para as proposições religiosas, de modo que qualquer pessoa de
mente sólida e bom senso pudesse aceitá-la. Edward Lord Herbert of Cherbury (1581-
1648) reduziu o cristianismo a cinco pontos “responsáveis”: Deus existe; Deus deve ser
servido; esse serviço é uma questão de moralidade e não de ritual; os erros devem ser
lamentados e transformados em bem; a vida ética merece recompensa agora e depois. O

52
cristianismo estava sendo reduzido a Deus, à liberdade moral e à imortalidade. John Locke
(1632-1704) entendeu o cristianismo em termos de tolerância, virtude e moralidade e
escreveu The Reasonableness of Christianity as Delivered in the Scriptures.
A tendência no sentido de harmonia entre razão e revelação refletia o cansaço da luta
das controvérsias religiosas. Se o cristianismo podia ser reduzido a pontos racionais
essenciais, então as causas de conflito poderiam ser removidas. O reducionismo teológico
também refletia a crescente consciência da diversidade das religiões do mundo. A Bíblia
como registro histórico da revelação, transcendendo a razão e a natureza, era algo cada vez
mais questionado. Essa mudança foi expressa em duas obras importantes: a de John Toland
(1670-1722) Christianity not Mysterious e a de Matthew Tindal (1655-1733) Christianity
as Old as the Creation, Or The Gospel: a Republication of the Religion of Nature. Esta
última tornou-se a “bíblia” do deísmo e foi traduzida para o alemão. Uma vez que o
cristianismo nada continha de misterioso em contraposição à razão humana, então as
historias de milagres e os relatos da ressurreição estavam abertos à crítica.
O esforço para reduzir o cristianismo a uma forma de racionalidade recebeu um forte
golpe com a empirista escocês David Hume (1711-1776), que era igualmente crítico tanto
em relação à metafísica quanto à teologia, com base na ideia de que o conhecimento
provém da experiência dos sentidos e só pode ser identificado para ser corrigido quando
confrontado com outra experiência. Em resposta ao apelo no sentido de um senso religioso
inerente, Hume observou que as primitivas formas de religião não eram arquétipos da
civilização inglesa, mas sim rudimentos politeísmo antropomórficos. Os deuses primitivos
eram misteriosos, astutos e passavam bem longe da conduta moral dos humanos. A crítica
final de Hume sobre a religião era uma crítica ética. A religião desvia a atenção humana da
vida, e a preocupação com a salvação pode levar as pessoas a se tornarem medíocres e
intolerantes. Hume sugeria que as pessoas sensatas evitassem as disputas dos teólogos
desde que pudessem permanecer imunes aos seus rancores e perseguição.
Na França, François-Marie Voltaire (1694-1778) usou os conceitos do deísmo inglês
para lutar contra a Igreja católica. Seu espírito sarcástico fez dele uma figura controvertida.
De modo geral, ele rejeitava as teorias filosóficas de Deus, embora Deus permanecesse um
pressuposto importante para a ordem e para a prevenção da anarquia. Nesse sentido é que
seu famoso comentário deveria ser entendido: “Se Deus não existisse, seria necessário
inventá-lo”.

53
O fascínio pelas ciências naturais – também era uma importante característica dos
mais importantes petistas, que em sua época entendiam “experiência” e “experimento”
como sinônimos – encontrou expressão no Encyclopedia (trinta e cinco volumes) editados
por Denis Diderot (1713-1784) e Jean d’ Alembert (c.1717-1783). Esse monumental
compêndio do racionalismo do século XVIII transmitia as ideias do iluminismo para a
burguesia francesa, inclusive as ideias de Francis Bacon (1516-1626), de que o domínio
humano sobre a natureza levaria ao progresso da história no caminho da liberdade e da
felicidade humanas. Rousseau afirmava que o futuro da espécie humano não residia na
razão, mas sim no poder e nos sentimentos do homem natural; daí o famoso lema “de volta
à natureza”. As pessoas nascem boas, mas a sociedade, a cultura, o Estado e a religião
pervertem as faculdades naturalmente boas da espécie humana. Rousseau influenciou
outros com seu Contato Social, que apresentava uma ordem natural, ideal do Estado como
democracia auxiliada pela religião civil. Assim, Rousseau passou a ser visto como pai
espiritual da Revolução Francesa.
Na Alemanha, o iluminismo foi menos crítico em relação ao Estado e à Igreja, talvez
porque com ele coexistia, tendo derivado do pietismo. Gottfriend Wilhelm Leibnitz (1646-
1716) observava que fé e razão podiam coexistir harmoniosamente. Ele abordou o
problema da teodiceia, a justificação de deus em face do mal no mundo com a sua teses de
que “nosso mundo é o melhor dos mundos”. A base do mal é o divino como estrutura
essencial do mundo. A visão otimista de Leibnitz entende o pecado apenas como o bem
imperfeito. Todavia, o terremoto de Lisboa (1775), que destruiu a cidade matando milhares
de pessoas, abalou seriamente sua confiança de que esta era o melhor dos mundos. A obra
pessimista de Voltaire Cândido (1759) termina com um conselho: que cada um cultive seu
próprio jardim e evite os horrores da historia.
A partir do momento em que a revelação se tornou suspeita, os teólogos do
iluminismo começaram a lutar para descrever o cristianismo em termos ético-sociais. A
partir dessa época, Jesus se tornaria o grande mestre da sabedoria e da virtude, o precursor
do iluminismo, que rompeu os grilhões do erro (não do pecado!) e serviu de modelo para a
espécie humana. O iluminismo também levantava questões criticas para as igrejas; algumas
delas questionavam a autoria da Bíblia e as origens cristãs. Hermann Samuel Reimarus
(1694-1768) afirmava que essas origens eram fraudulentas. Ele via Jesus como um
fracassado Messias político, cuja ressurreição fora fabricada pelos discípulos para enfrentar
a desilusão e para conquistar o reconhecimento do mundo. Os argumentos de Reimarus

54
foram publicados por Gotthold Efraim Lessing (1729-1781) com a (errônea) justificativa
de que estimularia a discussão construtiva sobre o significado do cristianismo. A posição
de Lessing está resumida nets famosa frase: “As verdades acidentais da Historia jamais
podem ser prova das necessárias verdades da razão”. Em outras palavras, o testemunho
histórico da revelação não pode dar a certeza de sua verdade. Religiões históricas, segundo
ele, são estágios de um processo divino de educação, um processo que leva à verdadeira
religião do amor e da razão. Na obra de Lessing Natthan the Wise (Natan, o sábio) há uma
parábola em que o verdadeiro anel não pode ser diferenciado de duas imitações perfeitas.
Portanto, cada um dos três herdeiros deveria viver como se o verdadeiro anel do pai lhe
tivesse sido dado. A verdade da religião real manifesta-se na experiência e na prática.
A redução do cristianismo à moralidade chegou ao seu apogeu com Immanuel Kant.
Alimentado pelo pietismo, ele frequentou uma escola petista com a idade de oito anos. Ali
encontrou o lado escuro do pietismo: a hipocrisia. Já se sugeriu que esse contexto instilou
nele tamanha aversão à religião, que evitava todos os serviços religiosos. Um relato bem
conhecido observa que Kant, quando se tornou reitor da universidade de Koenisberg, ao
encabeçar a costumeira procissão acadêmica em direção à catedral para a posse dos
reitores, seguiu até a Igreja e, lá chegando, retirou-se da procissão. Ele nasceu e cresceu em
Koenisberg, aí frequentou a universidade, tornou-se professor de Filosofia e morreu sem
jamais ter ultrapassado as fronteiras da província, um desafio evidente ao velho adágio
segundo o qual as viagens abrem a mente...
É de Kant a clássica definição do iluminismo como emergência de um estado de
menoridade auto imposto. O menor é alguém incapaz de discernir sem ser guiado por outra
pessoa. Essa menoridade é auto-imposta sempre que sua causa se deve a uma falta de
determinação e de coragem no uso de sua própria razão sem a supervisão de outrem. Ousar
fazer uso do seu próprio entendimento é pois, lema do iluminismo. Kant enaltecia a
autonomia, mas não queria com isso dizer que se deve fazer tudo o que se queira. Ao
contrário, a verdadeira autonomia (auto nomia) é norma auto-imposta, é a obediência à lei
universal da razão. É isso que faz da era de Kant, como ele mesmo diz, a verdadeira era da
critica. Tudo deve ser criticado cada forma de heteronomia (por exemplo, uma autonomia
externa à pessoa, que comprometa sua autonomia, seja ela pais, sociedade, Estado, Igreja
ou entendimento de Deus) deve ser criticadas. A própria razão não pode ser excluída da
critica, de modo que em seu critico a razão possa estar segura de si.

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Kant baseava a religião como sistema moral em sua máxima “devo, portanto posso”.
Uma pessoa não pode ser considerada responsável a menos que seja capaz de fazer algo
acerca de sua situação. Toda pessoal sensível perceba que a experiência do dever leva ao
principio moral “trata cada pessoa como um fim, não como um meio” e “age somente com
base no principio que possa torna-se uma lei universal paras as ações de cada um”. Este
último é conhecido como imperativo categórico. A fé é entendida em termos de dever para
completar o conhecimento do bem. A pura fé religiosa, isto é, a moralidade, não precisa da
Igreja. O titulo da obra de Kant sobre a religião resume seu ponto de vista: A religião nos
limites da simples razão.
Ao limitar o cristianismo à razão, Kant inverteu a ordem da Reforma. em lugar das
boas obras e sob esta luz faz uma leitura dos temas teológicos. Assim, Cristo é visto não
como o Redentor, mas sim como o arquétipo moral ou modelo de vida divina a ser imitado
pelo gênero humano que deve elevar-se às exigências de Deus. A autonomia é destruída po
qualquer coisa que venha de fora do eu, inclusive a graça de Deus. Se Deus perdoa, se
Deus tem misericórdia de quem quer, então o ser humano não é livre. Kant coloca-se ao
lado de Pelágio na antiga batalha acerca da graça e do livre-arbítrio. A única mosca n sopa
de Kant era o problema do “mal radical” não poder resolver. Mas, se o mal é radical,
também é irracional, isso envolve só a razão. A ideia era muito chocante para os
contemporâneos iluministas de Kant, cujos conceitos racionais otimistas de Deus e do
gênero humano excluíam a reação e o mal. O comentário sucinto de Goethe resumia a
reação da época. Ao falar em mal radical, Kant tropeçava em seu manto filosófico.

(LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008,
p. 180 - 186.)

56
4ª. PARTE

IV- O CRISTIANISMO COMTEMPORÂNEO

57
1. DESAFIO E RESPOSTA: A IGREJA NO SÉCULO XIX

Algumas vezes, os historiadores conceituam o século XIX como o “longo século” que
tem inicio com a Revolução Francesa em 1789 e termina com a Primeira Guerra Mundial,
em 1914. Eventos paralelos na história da teologia são: a afirmação romântica do
liberalismo, com Friederich Schleiermacher (1768-1834): On Religion: Speeches to its
Cultures Despisers (1799), a rejeição da teologia liberal com o livro de Karl Barth (1886-
1968), Comentário à Carta aos Romanos (1918).
De maneira geral, os acontecimentos do século XIX colocam as igrejas na defensiva.
O iluminismo e a ascensão as ciências naturais ameaçavam a revelação bíblica e as bases
da fé Luwing Feuerbach (1804-1872) questionava a existência de Deus e tinha a audácia de
dizer que a teologia, “a rainha das ciências” estava nua quando afirmava que a teologia era
antropologia David Friederich Strauss (1808-1874) questionava a historicidade de Jesus e
descrevia o Filho de Deus como um mito. E, para aqueles que ouviam as trombetas de Karl
Marx (1818-1883) chamado para o socialismo, esse mito maligno era um ópio que
enevoava as mentes das massas. Além disso, as consequências sociais da Revolução
Francesa e da Revolução Industrial questionaram seriamente a importância das igrejas para
a sociedade e para a cultura. Para as igrejas, parecia que os bárbaros estavam as suas
portas. De modo geral, a resposta romana católica consistia em trancar da melhor maneira
possível seus portões, deixar de lado de fora o mundo moderno, se não podia destruí-lo. As
igrejas protestantes não estavam imunes a essa tentação. A ascensão do fundamentalismo é
um desses casos. Mas também tentou dialogar com os bárbaros, Esses esforços de diálogo
voltaram-se para tentar estabelecer a “essência” do cristianismo, a fim de demonstrar que
seu núcleo a fé cristã não se opunha ao mundo moderno, mas sim apoiava o que de melhor
tivesse para oferecer. Na esfera social, tanto a Igreja católica como a Igreja protestante
promoviam a fé por meio de uma variedade de associações que atendiam os incontáveis
problemas daqueles que haviam sido feridos pelos levantes da época.

As igrejas e a Revolução Francesa

A Revolução Francesa promovera as ideias de soberania popular, de democracia e os


conceitos de liberdades, fraternidade e igualdade. As pessoas respondiam ora concordando

58
entusiasticamente, ora discordando a grandes penas. Por outro lado, as aspirações políticas
que estendiam suas raízes ate o conciliarismo medieval buscavam realização político-
social. Ao mesmo tempo, o avanço da revolução trouxe à toma varias contra reações que
pediam a restauração das condições pré-revolucionárias. A revolução acelerou também a já
longa cronologia de criticas sobre a influencia da Igreja. O pietismo e o iluminismo deram
forte impulso XIX o secularismo iria atingir a classe média mais alta e criar o contexto
moderno da Igreja.
A industrialização também alterou profundamente as vidas das pessoas nas cidades e
nos campos. Charles Dickens registrou em tons vivos a degradação das condições da vida
urbana em novelas sociais como Oliver Twist(1838) e David Copperfield (1850). A
ascensão do proletariado e o rápido crescimento das cidades criaram problemas
inimagináveis e, consequentemente os modernos grupos e associações que nos
movimentos socialistas lutaram pelo poder e por sua fatia do bolo comunitário.
As próprias igrejas viram-se envolvidas em luta para ao menos conservar a influencia,
se não o controle sobre as escolas, o casamento, a moralidade pública, o nacionalismo e a
ciência. De modo geral, nacionalistas e secularistas não desejavam exterminar as igrejas,
mas sim conformá-las à lógica do Estado e estabelecer a razão sobre a revelação, no
interesse comum a sociedade. Mesmo aqueles que davam ênfase à autoridade da Igreja
como garantia da tradição e legitimidade assim agiam por razões de Estado e buscavam
proibir as igrejas de expressar seus interesses políticos. Por toda a Europa, os monarcas
repetidamente enfatizavam aquilo que Guilherme II da Prússia dizia: “Os pastores devem
cuidar das almas dos fies e cultivar a caridade, mas deixar de lado a política porque isto
não lhes diz respeito”.

Da Revolução Francesa ao Congresso de Viena


A igreja católica romana, profundamente ligada ao Antigo Regime, participou
amplamente do destino do Estado absoluto na Revolução Francesa. Pela primeira vez na
Europa, o secular relacionamento da Igreja e do Estado fora dissolvido. Anteriormente, a
Guerra de Independência americana também havia separado a Igreja do Estado, mas não de
forma antagônica em relação à Igreja. Lá, o cristianismo e as igrejas livres eram muito
mais um importante fator para as pessoas e para a política.
A Assembleia Nacional Francesa (1789-1792) secularidade as propriedades da Igreja,
dissolveu mosteiros e deu ao clero uma “constituição civil”. Esta subordinava a

59
administração da Igreja ao Estado. Deixava a cargo dos cidadãos a eleição dos bispos e dos
padres; fixava a remuneração do clero; libertava o clero da obediência às autoridades
estrangeiras, (ou seja, o papado!) e pedia a todos os membros do clero um voto de lealdade
à constituição e à nação. Durante o reinado do Terror (1793-1794), o governo aboliu o
calendário cristão, proibiu festas cristãs e declarou o casamento um assunto exclusivo da
esfera civil; pilhou e destruiu várias igrejas e estabeleceu o culto da razão em lugar da
adoração.
Napoleão Bonaparte restaurou a Igreja católica pela Concordata de 1801. A Igreja
católica foi reconhecida como a principal igreja dos franceses, mas permaneceu
subordinada à supervisão do Estado. Em 1804, Napoleão conseguiu que o papa Pio IV
fosse à França para coroá-la imperador. Nessa cerimônia, Napoleão modificou a tradição
que havia tido início com a coroação de Carlos Magno no ano de 800. Ele tomou a coroa
das mãos do papa e corou a si mesmo! Os papas já não “faziam” imperadores. Em 1809 a
França incorporou os errados pontifícios. Pio IV respondeu excomungando Napoleão, que
então mandou prendê-lo. A resistência de Pio IV durante esses eventos contribuiu para
aumentar o prestígio papal após a queda de Napoleão em 1815.
A Prússia foi arrastada por essa corrente de mudanças pela colizão contra a França,
mas foi derrotada em Jena e Auerstadt. A influencia francesa levou, então, à introdução do
Código Napoleônico, uma coletânea de legislação civil que incluía a igualdade civil, a
liberdade de religião e a igualdade de confissões, além de um estado não-confessional.
Entretanto, os movimentos de reforma nacional e liberal foram varridos pela nova ordem
política criada com o Congresso de Viena de 1815. Estado e Igreja buscavam apoiar-se
mutuamente: era chamada aliança do “trono e do altar”; esforços eram feitos frustar as
aspirações constitucionais e nacionais. Entretanto, os desejos reprimidos de reforma
eclodiram em vários levantes: a revolução de julho na França, em 1830, e as revoluções de
1848 na Suíça, na França e na Prússia.

(LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008,
p. 189 - 1193.)

60
2. O MOVIMENTO ECUMÊNICO

A reconstrução das igrejas europeias depois da Segunda Guerra Mundial estava


intimamente ligada ao mais importante evento histórico da Igreja do século XX: o
movimento ecumênico. Também ele tinha suas raízes no século XIX fruto do trabalho de
cooperação das igrejas nos campos de missões e no trabalho diaconal. Embora a Igreja
católica romana não seja membro do Conselho Mundial das Igrejas, o relacionamento entre
a Igreja católica e as igrejas protestantes melhorou de modo sensível no século XX.
Bem antes da primeira assembleia do Conselho Mundial das Igrejas em Amsterdam,
em 1948, havia propostas no sentido de uma associação internacional cristã. Joseph
Oldham (1874-1969) sugeria durante uma reunião de lideres de missão em 1920 que a
coordenação da missão cristã deveria provavelmente ter de se desenvolver tomando a
forma de algo semelhante a uma liga mundial de Igrejas. Oldham, um dos principais
arquiteto do movimento ecumênico, nasceu em Bombaim e pretendia ingressar para o
serviço civil na índia depois de terminar seus estudos em Edimburgo e Orford. Uma
experiência de conversão durante uma reunião em Orford, dirigida pelo evangelista
americano Dwight L. Moody, alterou radicalmente seus planos. Permanecendo leigo, atuou
na luta missionária contra o racismo na África colonial e lutou para ajudar a Igreja em sua
comunicação com o mundo moderno.
Em toda a incipiente história do movimento ecumênico, a liderança leiga
desempenhou significativo papel. Um dos mais importantes colegas leigos de Oldham foi
movimento ecumênico americano Jonh R. Mott (1865-1955), Convertido quando ainda
estudante em Cornell, ele foi secretário fundacional na Suécia da Federação Mundial dos
Estudantes Cristãos. Mott, assim como muitos dos seus contemporâneos, via os estudantes
como uma alavanca, pela qual o mundo podia ser movido em direção a Deus. Com seu
amigo Nathan Soderblom, Mott percebeu o valor do testemunho cristão internacional nas
questões de paz e de justiça. Seus vários esforços nessa direção levaram à sua nomeação
para receber o Prêmio Nobel da Paz em 1946.
Os apelos em favor de uma organização ecumênica – entre os quais inclui-se uma
carta encíclica de 1920 escrita pelo patriarca ecumênico de Constantinopla – refletia as
atividades missionárias do século XIX e o renascimento evangélico na Europa e na
América do Norte. Em 1890, o movimento voluntario de estudantes para missões

61
estrangeiras lançou urgente apelo para “evangelizar o mundo nesta geração”. As tensões e
as divisões das identidades confessionais transplantadas da Europa para a América e para
os campos de missão haviam suscitado tal zelo, e assim foi-lhes dirigida a palavra na
Conferência missionária mundial de Edimbrugo em 1910.
Os representantes na Conferência de Edimbrugo, sobretudo os norte-americanos e os
europeus, vinham de sociedades de missão protestante, não das igrejas. Mas mesmo com
essas limitações a Conferência de Edimbrugo foi descrita como “um dos marcos na história
da Igreja” e como o local de nascimento do movimento ecumênico. Foi essa reunião que
levou à formação do Conselho Missionário Internacional, uma organização instrumental
para a formação local e nacional de estruturas de ecumenismo.
Charles Brent, um episcopal americano que mais tarde veio a ser bispo das Filipinas,
um dos missionários em Edimbrugo, estava convencido de que as controvérsias questões
de doutrina e prescrições eclesiásticas – que deliberadamente não haviam sido abordadas
em Edimburgo – eram questões cruciais para o futuro das igrejas. Depois de anos de
trabalho e da intervenção da Primeira Guerra Mundial, seu sonho tornou-se realidade na
Conferência Mundial para a Fé e a Ordem de 1927. Cerca de 400 representantes de mais de
cem igrejas reuniram-se em Lausanne.
Dois anos antes, em 1925, a conferencia Universal Cristã para a Vida e o Trabalho se
reunira em Estocolmo e encorajara as igrejas a abordarem voluntariamente as questões
sociais. Todos os representantes eram delegados oficiais de suas igrejas e havia uma forte
presença ortodoxa oriental. A figura central foi Nathan Soderblom (1866-1931), o
arcebispo de Estocolmo, um historiador das religiões e pioneiro da aproximação das igrejas
ortodoxa e evangélica. Em 1930 ele recebeu o prêmio Nobel por suas iniciativas em favor
da responsabilidade cristã comum para a paz, liberdade e justiça internacionais.
Alguns dos delegados presentes em Lausanne estavam preocupados com a ênfase dada
em Estocolmo ao “cristianismo aplicado”, que temiam pudesse assumir o primeiro plano
de colaboração intereclesial nas questões sociais, sobrepondo-se à busca da unidade da
Igreja. A tensão entre essas duas questões existiu durante muitos anos, mas o movimento
para a Vida e o Trabalho começou a perceber por si mesmo que seu slogan “a doutrina
divide e o serviço une” não poderia disfarçar as diferentes interpretações teológicas do
Reino de Deus. A crescente tensão acerca dessa questão levou a um plano pra fundir Vida
e Trabalho com Fé e Ordem. Uma conferencia realizada em 1938 em Utreçcht traçou
diretrizes para uma assembleia inaugural de um Conselho Mundial de igrejas, que

62
incorporaria essa questão, mas tudo teve de ser adiado em razão da eclosão Segunda
Guerra Mundial.
Em Utrecht, Wilem A.Visser´t Hooft (1900-1985) foi convidado a tornar-se o
secretário geral do Conselho Mundial das Igrejas, “em processo de formação”, posto que
conservou até a aposentadoria em 19666. Visser´t Hooft havia feito a experiência de
ecumenismo no movimento estudantil cristão. Depois de concluir seus estudos teológicos,
uniu-se ao grupo do YMCA em Genebra. Ele passou a envolver-se cada vez mais com
cristãos de várias igrejas e nessa época conheceu John R. Mott. Visser´t Hooft expressou
seu inquebrantável compromisso com a unidade da Igreja em sua observação de que Cristo
“não rezara para que todos entabulassem conversações uns com os outros, mas sim para
que todos fossem um”.
A primeira assembleia do Conselho Mundial das igrejas (WCC – Word Council of
Churches) reuniu-se em Amsterdam em 1948. O tema que tratou – a desordem do homem
e dos desígnios de Deus – refletia os desastres da Segunda Guerra Mundial e entendia que
os recentes horrores davam testemunho de certo modo do fracasso das igrejas. A
preocupação com a ordem internacional refletia não apenas o passado recente, mas
também as relações cada vez piores entre o Oriente e o Ocidente. Data daí a famosa troca
de palavras entre o delegado americano presbiteriano John Forter Dulles, mais tarde
secretario de estado norte-americano, e o teólogo tcheco Josef Hromádka.
Dulles descreveu o comunismo como o maior obstáculo para a paz mundial.
Hromádka apelou no sentido de simpatia e compreensão em relação ao comunismo, uma
força que incorporava muito do ímpeto social que a civilização ocidental e a Igreja
deveriam ter representado. Em resposta a essa áspera troca, a assembleia reiterou que
nenhuma civilização podia escapar do juízo radical da Palavra de Deus, e explicitamente
rejeitou a suposição de que o capitalismo e o comunismo eram as únicas escolhas
possíveis.
Outras questões controvertidas foram anunciadas quando a assembleia rejeitou o
principio de guerra como algo “contrario à vontade de Deus”, enquanto ao mesmo tempo
reconhecia que essa posição não era aceita unanimemente por toda a cristandade. A
assembleia também afirmava que todo o tipo de tirania e imperialismo exigia oposição e
luta para assegurar os direitos humanos e as liberdades básicas. Esforços ecumênicos para
pôr essas palavras em prática levantaram reações enérgicas. Em 1980, tanto a revista
Reader’s Digest como o programa de televisão Sessenta minutos afirmavam que o WCC e

63
o Conselho Nacional das Igrejas dos Estados Unidos estavam apoiando causas
revolucionárias e marxistas, com o dinheiro dado por cristãos. Por outro lado, os regimes
comunistas atacavam o WCC por sua luta em favor dos direitos humanos. Os esforços da
WCC em prol da paz no Oriente Médio e pelo fim do apartheid também criaram aquilo
que um observador chamou de “jogo de assassinato de caráter ecumênico”. Críticos
conservadores teológicos refletindo sobre o conflito modernista-fundamentalista do inicio
do século XX acusaram a WCC de ser um expoente de teologia liberal.
Os anos que seguiram à assembleia de Amsterdam concentraram-se na elaboração de
respostas às múltiplas necessidades humanas criadas pela guerra. Programas de ajuda
intereclesial, de ajuda aos refugiados e de questão internacionais, bancos de empréstimos e
de reconstrução eram expressões importantes da vida e trabalho ecumênicos. As igrejas,
por meio da WCC deveriam mostrar, afirmava Visser´t Hooft, que sua união “fazia uma
rela diferença”.
Nesse sentido, a segunda assembleia da WCC (Evanston, 1954) reuniu-se para tratar
do tema “Cristo, esperança do mundo”. As discussões da assembleia tornaram-se
tormentosas quando ficou claro que as conversações sobre a esperança levantavam uma
questão teológica central: “Como associar a esperança cristã pelo futuro Reino de Deus e a
esperança de melhoria imediata na vida das pessoas? Aqueles quem davam ênfase à
primeira tendiam a considerar otimistas e ativistas superficiais os que preferiam a segunda;
estes por sua vez, acusavam os primeiros de não terem contato com o “mundo real”. A
própria assembleia não conseguia chegar a uma acordo para dizer como a esperança cristã,
aqui e agora, estava ligada à esperança última. Todavia, deu prioridade aos problemas das
regiões subdesenvolvidas, à corrida armamentista e ao racismo. A onipresença da Guerra
Fria era sentida não apenas nessas questões, mas também nos discursos de figuras publicas
tais como o presidente norte-americano Eisenhower e o secretário geral da ONU Dag
Hammskjold.
O WCC demorou para entender a urgência dos problemas socioeconômicos
enfrentados pelo chamado “Terceiro Mundo” e, assim como a ONU, estava dividido acerca
da velocidade e alcance dos processos de descolonização. As igrejas asiáticas reunidas em
1952, em Lucknow, Índia, patrocinadas pelo WCC, explicitamente associavam a Guerra
Fria insistiam que a ameaça do comunismo deveria ser mais bem enfrentada a partir da
uma atitude positiva em relação à revolução social que acontecia na Ásia Oriental.A
Conferencia de Lucknow pedia a reforma radical dos sistemas agrários, o desenvolvimento

64
econômico planejado e o apoio eclesiástico para as lutas em prol da liberdade e
autodeterminação. Alguns meses mais tarde, o Comitê Central do WCC assumiu esse
desafio e lançou conferencias nacionais, regionais e globais, bem como publicações para
apoiar as igrejas que estavam enfrentando essa “rápida mudança social”.
Assembleias posteriores da WCC trataram da expressão das relações ecumênicas bem
como de questões ético-sociais. A afirmação da singularidade de Cristo , uma repetição da
controvérsia ariana da primitiva Igreja, levantou a questão do relacionamento do
cristianismo com as outras religiosas; o convite do papa João XXIII à WCC para que
enviasse observadores às sessões do Concílio Vaticano II facilitou mudanças de longo
alcance nas relações romano-católicas e protestantes, Um dos temas sócias mais
persistentes, todavia, era o racismo. Martin Luther King Jr. Deveria falar na assembleia do
WCC em Uppsala, em 1968, mas foi assassinado quatro meses antes da reunião. James
Baldwin lembrou à assembleia a longa história do envolvimento da Igreja na causa da
injustiça racial e perguntou se “restara, na civilização cristã, a energia moral, a ousadia
espiritual para reparar, arrepender e para renascer”. Ao enfatizar que a proclamação do
Evangelho era essencial, a Assembleia também afirmava que o culto cristão é ético e que
qualquer segregação de classes ou raça devia ser rejeitada. Outras assembleias foram
marcadas pela renovação do compromisso com os direitos humanos e com as lutas em prol
da justiça.
É preciso notar que, ao mesmo tempo em que a WCC estava crescendo e se
desenvolvendo, as comunidades mundiais de igrejas, tais como a Federação Mundial
Luterana, a Aliança Mundial de igrejas Reformadas e o Conselho Metodista Mundial, entre
outras, haviam iniciado – e continuam – diálogos bilaterais e multilaterais entre si e com
outras igrejas,. tais como a Igreja católica romana e as igrejas pentecostais.
A luta pela união das confissões separadas é um dos mais significativos aspectos da
moderna história da Igreja, Enraizada no período do pietismo, estendeu-se durante todo o
“despertar” no século XIX, e gerou impulsos para conexões trans-confessionais e
supranacionais em atividades sociais e missionárias. As conferências dos movimentos
ecumênicos no século XX ofereceram vários incentivos para a aproximação das igrejas
cristãs e essencialmente mudaram o clima entre as igrejas em comparação com os séculos
anteriores.

De volta ao futuro: o cristianismo em um contexto global

65
Nossa narrativa da história do cristianismo agora assemelha-se ao trabalho jornalístico,
na medida em que tentamos retratar os acontecimentos contemporâneos. Talvez o mais
significativo evento da moderna historia do cristianismo seja a notável virada do
“denominacionalismo” eurocêntrico rumo a um verdadeiro movimento global, cujo centro
de gravidade agora é o hemisfério sul e a América Latina, a África subsaariana e a Ásia, e
cuja forma é cada vez mais um protestantismo trans-denominacional. Em contraste com os
esforços das modernas igrejas têm uma forte semelhança com a crença das igrejas têm uma
forte semelhança com a crença das igrejas primitivas, as jovens igrejas confrontadas com o
pluralismo e seu concomitante relativismo abraçaram a identidade cristã, ainda que sob
formas inculturadas. A variedades de novas formas de igreja, como as igrejas comunitárias,
também guardam certa semelhança com a Igreja primitiva em sua descentralização. O
velho ditado segundo o qual toda política é local talvez deva ser parafraseado para dizer
que muitas igrejas estão se desenvolvendo a partir de um contexto local, mais que a partir
de missões denominacionais.
Isso de modo algum contradiz as contribuições das missões históricas, a partir de
Paulo. As missões jesuítas alcançaram a Ásia no século XVI; e as missões protestantes de
Halle, e mais tarde as principais atividades missionárias do século XIX de britânicos e
americanos, estenderam-se aos quatro cantos do mundo. O que é notável no presente é que
as aparentes e efetivas relações observadas entre as missões cristãs, a exploração europeia
e a construção do império começaram a retroceder com o processo de descolonização. Na
medida em que as antigas colônias conquistavam a independência dos poderes imperiais,
isso também ocorria com as igrejas missionárias. A consequente inculturação e
indigenização das igrejas locais, fenômeno também evidente nas primeiras missões das
igrejas, contribuiu para a impressionante vitalidade das chamadas “igrejas mais jovens”.
Quaisquer que sejam as tendências do presente, o velho ditado segundo o qual quanto
mais as coisas mudam mais permanecem as mesmas ajuda a refletir sobre o
desenvolvimento da identidade cristã na história. O que permaneceu inalterado para a
“Igreja católica una e santa, a comunhão dos santos” é anamnesis, o mandado de Jesus, de
viver “em memória” dele.
(LINDBERG, Carter. Uma breve história do cristianismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008,
p. 229 - 233.)

66
3. O CONCÍLIO VATICANO II

O Concílio Vaticano II.


Recepção e caminhos na Arquidiocese de Belo Horizonte: 1970 - 1980

Mauro Passos

Passais por cima da tradição – parece ter-lhe dito


um dia um cardeal da cúria.
– A tradição? – teria ele (O Papa João XXIII) respondido.
– Mas vós sabeis o que é a tradição?
É o progresso de ontem. Por isso, o que fizermos hoje, será a tradição de amanhã.
(Paul Dreyfus1)

O futuro do cristianismo hoje, mais do que em outros períodos históricos, depende de


sua capacidade de ser a religião da esperança, do diálogo e da solidariedade. Vivemos um
tempo em que o futuro não é o inesperado, pois o homem contemporâneo sabe e planeja esse
novo horizonte e transcende-se pela sua capacidade de reflexão. Assim sendo, qual o papel
das religiões e sua capacidade de harmonizar o mundo contemporâneo? A história mostra que
quaisquer que sejam as instituições humanas, devem ser de seu tempo; portanto, avançar,
dialogar com seu tempo, tornando-se continuamente atuais, considerando o momento atual.
O contexto deste artigo trata da memória e recepção do Concílio Vaticano II. O
aspecto da recepção merece destaque, pois se trata de um processo dinâmico e não passivo. O
acento em seu caráter dinâmico, particularmente nas últimas décadas pós-conciliar, revela que
as mudanças sociais, culturais, políticas influenciam na reinterpretação e reelaboração do seu
conteúdo. O Concílio mostrou uma grande novidade – o renascimento de uma Igreja que se
abre para dialogar internamente e externamente. Isto indica que foi capaz de ouvir e
sistematizar as experiências internas que vinham acontecendo nos diversos continentes,
regiões e dioceses, por um lado. Por outro, começou a dialogar com o mundo contemporâneo,
entendendo que os cristãos fazem parte da cidade secular. Esse diálogo implica um
reconhecimento da cultura moderna. Nesta agenda estão as religiões não-cristãs, parte de uma
mesma família – o Povo de Deus. Depois do Concílio essa questão evoluiu, tudo implica estar
em diálogo.

1
DREIFUS (1981, p. 335).
67
Não é fácil construir um quadro que abranja uma leitura completa sobre o Concílio
Vaticano II e sua recepção em um artigo. Trata-se de um acontecimento singular da Igreja
Católica. É mais do que os documentos e pronunciamentos de João XXIII e Paulo VI. Na
realidade é uma mudança de tom, uma nova fase na histórica do catolicismo. Nas trilhas do
teólogo e historiador Gilles Routhier, o pós-concílio se configura como um período carregado
de um conflito de interpretações, considerando os novos universos simbólicos, o novo
contexto histórico e o novo perfil da Igreja Católica atualmente2.
Assim, quero desenvolver o dinamismo deste diálogo e seu significado histórico e
religioso, considerando três aspectos – o Concílio e o mundo contemporâneo, o Concílio e as
outras religiões, o Concílio e sua recepção na arquidiocese de Belo Horizonte. Há vários
estudos sobre a história do Concílio Vaticano II, entre outros destaco a pesquisa de José Oscar
Beozzo com rica e abundante fonte histórica3.

1. Além dos muros do Vaticano


O contexto histórico em que se insere o Concílio está marcado por períodos com
avanços científicos, prosperidade econômica e mudanças políticas. Trata-se de uma época de
mudanças e transformações. Um dinamismo no pensamento e na vida dos seres humanos. No
entanto, esse processo de transformação não caminha numa única direção, mas comporta
mudanças diferenciadas com desníveis entre países ricos e países pobres, a fome em muitas
regiões, a falta de liberdade política, a questão racial, entre outros. A modernidade é um
conceito abrangente que apresenta muitos aspectos ao mesmo tempo, desde uma evolução
científica até ao redimensionamento das mentalidades4. É um processo histórico-cultural de
longa duração, complexo, não linear, no Ocidente, que designa, sobretudo, uma mudança de
atitude do ser humano frente ao mundo e frente a si mesmo. Qual o lugar do catolicismo nesse
processo de modernização? (Nas últimas décadas outras religiões emergiram no Brasil).
A própria noção de progresso permite constatar um mundo culturalmente heterogêneo,
com numerosos desníveis na década de 1960. As consequências da segunda grande guerra
(1939-1945), ainda, afetavam muitos países, com a existência de conflitos bélicos e
insurreições em diversos continentes, tais como no Vietnã (1959-1975), Argélia (1954-1962)

2
ROUTIER (2007).
3
BEOZZO (2005).
4
Cf. HERVIER-LÉGER (1986).
68
e a revolução em Cuba (1956-1959), como aponta Beozzo em seu estudo sobre a unidade dos
cristãos5.
Com a modernização da sociedade, foi ocorrendo a laicização do Estado frente à
religião, como também a autonomia da ciência, da razão e do cidadão. Este processo trouxe
muitas divergências entre a Igreja Católica e o novo modo de vida, pois a instituição religiosa
foi deixando de ser a fonte de inspiração e de normas que regiam a vida pública. A sociedade
laicizada desconhece, nas decisões políticas e sociais, a referência religiosa e essas áreas são
ditadas por uma preocupação funcional e sob outro ponto de vista ético.
Entre outros períodos históricos, destaco o século XIX, particularmente o contexto
religioso do Papa Pio IX, e a primeira metade do século XX. Esse papa assumiu uma posição
rígida, intransigente e centralizadora, o que acentuou o distanciamento entre igreja e
sociedade moderna, atingindo seu clímax com a condenação de algumas tendências modernas,
através da encíclica Quanta cura, com o Syllabus errorum, em 1864. No século XX, com o
Papa Pio X os postulados modernistas foram condenados, novamente, pelas encíclicas
Lamentabili Pascendi Dominici Gregis. A repressão antimodernista foi muito forte atingindo
padres, leigos e religiosos socialistas. A sua intensidade foi-se agravando porque não se
tratava de um conflito político, mas o embate passou a ter seu campo nos diferentes grupos
dentro da própria Igreja Católica. Se com o Papa Leão XIII houve um novo olhar para o
movimento operário e abriu espaço para uma democracia cristã6 (Tímida e lenta!). Na década
de 1950, um novo golpe conservador, com o Papa Pio XII, condenou o movimento dos padres
operários na França, os movimentos de renovação bíblica, teológica e social. Com isso, o
diálogo foi fechado entre os próprios pares – sacerdotes e leigos que iniciavam um jeito novo
de ser Igreja 7.
No Brasil, a mudança política, com a proclamação da república, em 1889, separou a
Igreja do Estado, com o fim do regime de padroado. Um projeto de restauração católica foi
retomado para que a Igreja Católica voltasse a ser um constitutivo importante na sociedade
brasileira e no processo de formação humana. No entanto, a partir da década de 1940,
ocorreram mudanças mais profundas no contexto brasileiro com o desenvolvimento social,
industrial e econômico. Nessa situação histórica, marcada por uma crise bastante profunda de
valores e por transformações políticas e econômicas, a Igreja Católica se debateu entre o novo

5
Cf. BEOZZO (2012). Trata-se da entrevista concedida por este historiador ao Instituto Humanitas Unisinos
(IHU), sobre o Concílio Vaticano II.
6
Cf. COMBLIN (2002, pp. 34-46).
7
Cf. POULAT (1980, pp. 19-41).
69
e o tradicional, à procura de seu caminho, com fases de abertura e fechamento, frente à nova
realidade histórica. Houve mais medo do que criatividade, por isso a instituição católica se
fechou no seu passado.
O Concílio Vaticano II despertou e fez brotar um novo jeito de ser Igreja. O velho
combate ao modernismo foi sendo superado por um movimento de diálogo, encontro e
parceria, não sem grande surpresa e embaraço, pois não houve tanta homogeneidade. No
entanto, um novo momento foi-se abrindo junto à instituição religiosa. Muito mais do que
contendas teológicas ou eclesiásticas, o desenvolvimento foi visto como avanço, conquista e
progresso, por um lado. Por outro, foi-se articulando um discurso contra o
subdesenvolvimento, a miséria, a fome e a injustiça, dos países pobres. De acordo com
François Houtart: “Importa, portanto, elaborar uma ética para um mundo em expansão e uma
ética do planejamento”. (Houtart, 1965, p. 66). Sendo assim, qual o sentido da história?
Interessa, portanto, não apenas a análise de elementos isolados, mas a unidade que forma o
conjunto do desenvolvimento e o resultado de suas interações. Como analisar esta realidade
complexa? Seu sentido está no progresso da razão, na construção de uma sociedade justa,
ética e livre. Evolução, progresso e desenvolvimento são processos descontínuos. Neste
sentido, afirma o documento conciliar Gaudium et spes:

Assim, o mundo moderno se apresenta ao mesmo tempo poderoso e débil,


capaz de realiza o ótimo e o péssimo, porquanto se lhe abre o caminho da
liberdade ou da escravidão, do progresso ou do regresso, da fraternidade ou
do ódio. [...] O que fazer para que a grande massa dos homens participe dos
bens da cultura, quando simultaneamente a das elites não cessa de se elevar e
de complicar sempre mais? (Concílio Vaticano II, 1966, Gaudium et spes,
pp. 146, 204, n. 9 e 56).

O que ocorre no mundo, no campo da ciência, da técnica e da cultura tem ligações e


conexões. Portanto, mais do que em outros períodos históricos, a compreensão do presente é
uma tarefa coletiva das diversas áreas do conhecimento, da ciência e da religião, da economia
e da política, da arte e da sociologia. O diálogo é um caminho para renovação, organização e
discernimento. O Concílio abriu este espaço percebendo a importância de ser Igreja no
mundo, sem fixar-se numa determinada posição ou satisfazer-se com apologias,
tradicionalismos e condenações. O documento citado entende que a Igreja não se situa ao lado
do mundo, mas dentro do mundo, por isso é preciso conviver com outros discursos, com o
diferente. Assim, no proêmio do texto vem a seguinte afirmação: “Portanto, a comunidade
cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua historia” (Ibidem,

70
p. 138, n.1). A Constituição Conciliar abre-se para um diálogo com a história, o ser humano e
a cultura.
Um aspecto singular no documento é sua abordagem metodológica. Neste aspecto está
a novidade do texto, pois tem um ponto de partida diferente de outros documentos da Igreja
Católica. O ponto de partida não são os grandes temas universais ou uma afirmação teológica,
mas uma análise histórica e, a partir dela, tece as enunciações doutrinárias. O texto demonstra
que seu principal argumento é o mundo onde vivem as pessoas. Por isso, em seu primeiro
capítulo sublinha a dignidade do ser humano: “De acordo com a sentença quase concorde dos
crentes e não-crentes, todas as coisas existentes na terra são ordenadas ao homem como a seu
centro e ponto culminante”. (Ibidem, p. 149, n.12). Expressiva parcela da Igreja Católica
insistiu em abrir caminhos de valorização do mundo, inserção na sociedade em atitude de
diálogo e serviço, o que impulsionou mudanças, inclusive da mentalidade religiosa (Não em
todos, evidentemente!). Segundo a afirmação do próprio documento: “Na verdade, as
instituições, as leis, os modos de pensar e agir legados pelos antepassados não parecem
sempre adaptadas ao estado atual das coisas” (Ibidem, p. 143, n.7). O que está na raiz desta
situação? O motor desta mudança é a ciência moderna, a industrialização, o progresso, a
tecnologia. E aí a modificação da perspectiva católica, diante desta nova situação, que, ao
invés de condenar, propõe superar os conflitos visando ao estabelecimento de diálogo com a
sociedade, a cultura e a política. No entanto, é bom lembrar que essa corrente de renovação
não foi homogênea, houve divergências e conflitos.
O diálogo com o mundo vem reforçado nas encíclicas sociais dos papas – João XXIII
e Paulo VI. Com eles houve, frente à cultura moderna, um ato de “recriação da Igreja”, agora
frente à cultura moderna, capaz de conquistar novo reconhecimento e aceitação por parte do
mundo. Em suas alocuções, audiências e escritos, expressaram que o mundo é o campo
adequado para testemunho e serviço do cristianismo.
O Papa João XXIII marcou outro rumo da Igreja Católica, no campo social, com as
encíclicas Mater et magistra (1961) e Pacem in terris (1963). Uma nova retórica estava
acontecendo no mundo religioso católico. O primeiro documento aborda de forma bastante
ampla o problema dos países subdesenvolvidos e a questão social: “O progresso social deve
acompanhar e igualar o desenvolvimento econômico, de modo que todas as categorias sociais
tenham parte nos produtos obtidos em maior quantidade” (João XXIII 1961, p. 19, n. 73).
Com sua intuição e sensibilidade João XXIII atualizou a doutrina social da Igreja. O
desenvolvimento econômico e a igualdade social entre os povos, direito de todos, são os

71
temas predominantes de suas encíclicas. Na encíclica Pacem in terris, o direito à existência, a
um digno padrão de vida e à participação nos benefícios da cultura é novamente proclamado.
Nesse horizonte, os problemas decorrentes do subdesenvolvimento econômico, como também
do subdesenvolvimento social e cultural passam a ter um aspecto diferente no discurso
religioso e na atuação de grande parte dos católicos.
O Papa Paulo VI segue um caminho semelhante. Ele também é o papa do diálogo. Na
encíclica Ecclesiam suam, articula a reflexão sobre a Igreja em três pilares – a consciência
que a Igreja tem (ou deveria ter!) de sua missão e da vontade de Jesus Cristo, a renovação que
deve buscar para operar essa missão e o diálogo com o mundo de hoje:

Existe um primeiro, imenso círculo, de que não conseguimos descortinar os


limites, pois se confundem com o horizonte. Dentro, está a humanidade toda,
o mundo. Medimos a distância entre nós e ele, mas de nenhum modo nos
sentimos desinteressados. Tudo que é humano, nos diz respeito. Temos, de
comum com a humanidade inteira, a natureza, isto é, a vida, com todos os
seus dons e problemas. Comungamos de bom grado nesta primeira
universalidade, aceitamos as exigências profundas das suas necessidades
fundamentais, aplaudimos as afirmações novas e por vezes sublimes do seu
gênio. (Paulo VI, 2004, p. 67, n. 54).

Paulo VI indica nessa encíclica a importância do diálogo entre Igreja e Mundo – “tudo
que é humano nos diz respeito”. As questões que circundam a realidade histórica, também,
dizem respeito à Igreja. Em outra encíclica, trata dos problemas sociais e políticos na
encíclica Populorum progressio (1967). A Igreja está no mundo em virtude de sua existência.
A ideia de progresso está relacionada com o movimento da história. Para o cristianismo,
particularmente o catolicismo, é impossível pensar a evangelização sem articulá-la com o
tempo. Vivemos em um mundo móvel que a cada dia rompe com as estruturas tradicionais e
intensifica a comunicação entre os seres humanos. Como tomar consciência disso e dar uma
resposta mais adequada para realidade contemporânea? Como fazer valer a mensagem cristã
atualmente? Diversos trabalhos discutem novos rumos e desafios a serem enfrentados pelo
catolicismo. O catolicismo abriu uma nova história em seu movimento, depois do Concílio.
Uma série de acontecimentos sociais e políticos fez com que sua presença, particularmente no
período de 1960 a 1980, entrasse em sintonia com os fatos. Isso contribuiu para uma maior
compreensão de seu papel numa sociedade em mudança e com muitos conflitos e problemas.
Hoje novas questões e desafios aparecem. Como lidar com essa realidade sem apelar com
atitudes/gestos paliativas ou instrumentalizar a religião a serviço de interesses próprios ou
tornar o religioso uma mercadoria? (A religião inseriu-se no mundo da mercadoria!). Ainda
72
há muitas portas para serem abertas, particularmente com relação ao leigo, às diferenças
culturais, à questão de gênero e à formação dos futuros sacerdotes, à nomeação de bispos.
Para isso, no entanto, é necessário fechar muitos muros e conquistar novas fronteiras! Esse é
um problema que se protela. Como mudar a marcha dessa história?
Diversos organismos, institutos e frentes de trabalho foram também criados no Brasil,
nesse período, considerando os aspectos abordados, sob a orientação da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), em nível regional e nacional, tais como o Instituto Nacional de
Pastoral (INP), o Centro de Formação Intercultural (CENF), com o objetivo de preparar os
religiosos estrangeiros que vinham trabalhar na Igreja do Brasil, o Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento (IBRADES), para preparar os agentes de pastoral, com enfoque na
realidade socioeconômica. Foi criado, também, o Centro de Estatística Religiosa e
Investigação Social (CERIS), para orientar as pesquisas e os trabalhos dos católicos. Isso
muda o aspecto da pastoral que antes, estava direcionado para os aspectos internos da Igreja.
Com esses organismos, a pastoral está direcionada para um projeto maior, em nível social,
político e cultural. Assim, assume outros sentidos que transitam num espaço de tolerância e
pluralidade. Mais do que dar respostas, leva em conta as transformações e avanços do mundo
contemporâneo, o que importa discutir outras/novas metodologias de ação.

2. Diálogos cruzados
A palavra tolerância tem uma história atormentada. Etimologicamente vem do latim
tolerantia, ae que significa constância em sofrer. No Dicionnaire de l`Academie de 1694, a
tolerância é definida como a "indulgência para com o que não se pode impedir". No entanto, a
Encyclopedie qualifica-a de "virtude". Não vem ao caso explicitar outros significados que o
termo comporta, considerando o aspecto que nos interessa para esse estudo. No aspecto
religioso, significa a liberdade de cada um para praticar a religião que professa. O teólogo
Panikkart afirmou em uma entrevista: "Uma religião que se fecha fica sufocada e morre...
Quem conhece apenas sua religião nem mesmo a conhece" (Delumeau 2000, p. 379).
Se durante séculos o axioma “extra ecclesiam nulla sallus” fez com que o catolicismo
se impusesse diante das outras religiões, o Concílio Vaticano II avançou na compreensão dos
termos Igreja (ecclesia) e salvação8. A salvação não é vista como construção antes ou depois

8
Este princípio data do IV Concílio de Latrão (1215) que afirma: “Uma só é a Igreja universal dos fiéis [Una est
fidelium universalis Ecclesia], fora da qual ninguém absolutamente se salva [extra quam nullus omnino
salvatur]”. Texto que foi tirado da Carta de São Cipriano cujo texto original é: “Salus extra Ecclesiam non est”,
SÃO CIPRIANO, EPÍSTOLA 73, 19: PL. 3, 1169.
73
do mundo, mas como construção no próprio mundo. Na linha do diálogo, liberdade e
aggiornamento está outro aspecto significativo do Concílio, pois reconhece que todas as
religiões são mediações de salvação. Segundo José Comblin: “Na tradição anterior, quando
um documento eclesiástico usava a palavra liberdade, era no sentido de condenar. Agora a
palavra recebe um sentido positivo. [...] A adoção da palavra liberdade foi decisiva, pois
inaugurou nova época”. (Comblin, 2005, p. 18). Nesse caminho a declaração Nostra Aetate,
Sobre a relação da Igreja Católica com outras religiões não cristãs, afirma:

Assim, no Hinduísmo os homens perscrutam o mistério divino, explicando-o


por uma inesgotável abundância de mitos e sutis tentativas filosóficas, e
procuram a libertação das angústias de nossa condição humana, quer através
de modalidades da vida ascética, quer pela meditação aprofundada, quer
ainda mediante o refúgio em Deus com amor e confiança. No Budismo, que
se manifesta em várias modalidades, reconhece-se a radical insuficiência
deste mundo mutável e se ensina o caminho pelo qual os homens de espírito
dedicado e resoluto possam atingir a suprema iluminação, seja conseguindo
um estado de perfeita libertação, seja pelos próprios esforços, ou apoiados
em ajuda superior. (Concílio Vaticano II, 1966, Nostra Aetate, p. 616, n. 2).

O sentido expresso no documento é de respeito, diálogo e verdade para com a religião


hinduísta e budista. O cristão deve aprender a ler o significado das outras religiões com base
no diálogo, na experiência e na religião que professa. Com esta declaração conciliar,
alargaram-se os passos para corrigir os erros do passado. Em sua viagem à Índia, o Papa
Paulo VI afirmou: “Devemos encontrar-nos como peregrinos caminhando à procura de Deus,
não nos edifícios de pedra, mas nos corações dos homens” (Paulo VI, 1964). Nesse caminho,
a CNBB criou em 1981 a Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico-Judaico que
passou a se reunir semanalmente. Essa Comissão Nacional foi ampliada em 1989, com
representantes de diversos estados brasileiros, quando a Declaração Nostra Aetate completou
25 anos.
O diálogo entre as religiões e pessoas de diferentes credos cristãos teve, portanto, no
Concílio Vaticano II expressão e avanço. O decreto conciliar Unitatis Redintegratio faz a
seguinte proposição: “A Reintegração da Unidade entre todos os cristãos é um dos objetivos
principais do Sagrado Sínodo Ecumênico Vaticano Segundo”. (Unitatis Redintegratio, 1966,
p. 303, n.1). Nesta mesma linha de unidade, a declaração Nostra Aetate afirma: “Todos os
povos, com efeito, constituem uma só comunidade”. (Concílio Vaticano II, Nostra Aetate,
1966, p. 615, n.1). O Concílio deseja o diálogo entre todos e convida todos para a construção
comunitária do mundo. Com o intuito de impulsionar esse propósito, foi criado o Secretariado

74
para os não cristãos. O catolicismo mudou, com isso, seu rumo com relação ao diálogo com
outras religiões. Talvez não se possa dizer o mesmo sobre isso, atualmente, tendo em vista a
recepção enviesada do Concílio Vaticano II, por alguns membros da hierarquia católica e pelo
retorno dos movimentos neconservadores.
O Concílio deu grande impulso ao ecumenismo. Mais uma vez a intuição do Papa
João XXIII possibilitou, depois de muitos séculos, a participação de 60 observadores
designados pelas Igrejas Cristãs no Concílio Vaticano II. O diálogo ecumênico é o caminho
para a construção da autêntica Ecclesia. Mais ainda, para a paz: “Não haverá paz no mundo
sem paz entre as religiões”. (Küng, 1992, p. 108). O decreto Unitatis Redintegratio afirma que
os cristãos de outras denominações são irmãos e podem aprender uns com os outros:

A cooperação de todos os Cristãos exprime, de modo vivo, os laços que já os


unem entre si e faz resplandecer mais plenamente a face de Cristo servo.
Essa cooperação, já instaurada em não poucas nações, deve ser aperfeiçoada
sempre mais, principalmente nas regiões onde se realiza a a evolução social
ou técnica. Ela contribuirá assim para avaliar devidamente a dignidade da
pessoa humana, promover o bem da paz, prosseguir na aplicação social do
evangelho, incentivar o espírito cristão nas ciências e nas artes e aplicar todo
gênero de remédios aos males da nossa época, tais como: a fome e as
calamidades, o analfabetismo e a pobreza, a falta de habitações e a
distribuição não justa dos bens. (Concílio Vaticano II, 1966, Unitatis
Redintegratio, 1968, p. 316, n.12).

As afirmações do texto contrastam com a postura da Igreja Católica sobre o


ecumenismo no início do século XX. Naquele período, as iniciativas das igrejas protestantes
em 1908, 1914, 1919 e 1937 foram condenadas pela hierarquia católica. Chegou-se ao
extremo de proibir qualquer católico de participar desse movimento, como também do
Conselho Ecumênico das Igrejas e das Conferências Mundiais. Como afirma Dom Aloísio
Lorscheider: “No diálogo ecumênico o objeto é a Igreja; no diálogo inter-religioso o objeto é
a religião”. (Lorscheider, 2005, p. 224).
Resta saber qual será o futuro (e a evolução) do ecumenismo e do diálogo inter-
religioso na Igreja Católica. O diálogo exige consciência da própria identidade e da alteridade
do outro. O diálogo inter-religioso é semelhante a uma “viagem fraterna” rumo a Deus, à
plenitude escatológica. Segundo o pensamento teológico de Jacques Dupuis: “A presença
ativa do Espírito é universal. Ela antecipa o evento de Jesus Cristo e se estende, depois dele,
para além das fronteiras da Igreja” (Dupuis, 199, p. 339). O plano de Deus não está preso,
portanto à Igreja Católica, pois as tradições religiosas são também mediadoras da
universalidade do Reino de Deus.
75
Mais do que em outros períodos, a prática da tolerância, do diálogo e o exercício da
liberdade são fatores significantes para a acolhida do pluralismo religioso. Não será esta uma
tarefa do bispo de Roma em colegialidade com os demais bispos9? O catolicismo, para o qual
nosso olhar se volta, é em primeiro lugar aquele que molda novos espaços no horizonte da
história. Segundo Christian Duquoc:

O mundo é o guardião da Igreja, mas a Igreja pelo Evangelho, dá ao mundo


o gosto pelos valores humanos. [...] Mas, sobretudo, a opinião atual não
saberia o que pensar da Igreja atual, se pela voz do Concílio, não aceitasse,
sem pensar duas vezes, a liberdade religiosa; se ela não guardasse distância,
enfim, em relação às condenações, talvez compreensivas, feitas por Pio VII,
Gregório XVI e Pio IX sobre a liberdade religiosa. (Duquoc, 1968, p. 95).

A situação mudou. Hoje a catolicidade é entendida em comunhão com outras igrejas e


religiões para assim, romper com seus próprios limites e, nesse exercício, dialogar
coletivamente com a realidade histórica e sair de seu casulo. Nesse caminho, com espírito
místico, Dom Helder Câmara afirmava sobre os crentes e não crentes:

Os que não creem têm em comum com os que creem que o Senhor acredita
neles. Será a surpresa de cristãos e de católicos quando virem que não
entrarão sozinhos na casa do Pai... Porque o coração do Pai é muito maior
que os registros de todas nossas Paróquias, e que o Espírito do Pai sopra por
toda parte, mesmo lá onde os missionários não aportaram. [...] A partilha da
esperança não exige a partilha da fé. (Helder Câmara, 1999, p. 24).

A renovação conciliar contribuiu para a mudança de mentalidades na Igreja do Brasil.


Houve resistências, mas houve avanços, tendo em vista as marcas do proselitismo e do
conservadorismo. A Semana da Unidade é uma das realizações que tem conseguido êxito em
várias regiões e dioceses, como, ainda, a participação de algumas Igrejas Cristãs na
Campanha da Fraternidade. Na década de 1980, a mudança do campo religioso brasileiro foi e
tem sido objeto de estudo, considerando os dois últimos Censos de 2000 e 2010. Merecem
destaque as Diretrizes Pastorais de 1991-1994 que abordaram a questão da modernidade, a
partir de três aspectos – o individualismo, o pluralismo cultural e religioso e as contradições
sociais.

3. “Daqui pra frente”... Outros tempos

9
Cf. HÄRING (1966, p. 72).
76
Recompor os traços, olhar para frente, dialogar, atualizar. Eis o projeto do Concílio
Vaticano II. Como anunciar a mensagem cristã no mundo contemporâneo? No momento em
que assume a orientação do Concílio, após a morte de João XXIII, Paulo VI fazia a seguinte
argumentação em sua primeira encíclica, Ecclesiam suam: “Qual é hoje para a Igreja o dever
de corrigir os defeitos dos próprios membros e de os levar a tender a maior perfeição, e qual o
método para chegar com segurança a essa renovação”? (Paulo VI, 2004, p.9, n.4). Era outro
tempo. Procurava-se abrir outro horizonte para a Igreja Católica. Impõe-se, assim, uma
metodologia de trabalho que considere o panorama histórico da atualidade.
A Constituição Dogmática sobre a Igreja mostra uma mudança quando afirma: “Todos
os homens, pois, são chamados a pertencer ao novo do Povo de Deus” (Concílio Vaticano II,
1966, Lumen gentium, p. 38, n.13). O documento conciliar afirma que a Igreja é o sacramento
da unidade, constituída e organizada para o serviço e atualização do Reino de Deus. Este
documento reconhece também nas outras Igrejas não católicas elementos de verdade e
santificação, isto é, de salvação. Assim, ocorre uma mudança de Igreja-hierarquia para Igreja-
Povo de Deus10. Isso deveria ter continuado e desenvolvido posteriormente, nas comunidades
católicas, através de reformas na liturgia, no diálogo com o mundo moderno e no diálogo
entre leigos, padres e bispos. Para esta obra, é necessário pensar o trabalho pastoral em
diálogo com a sociedade, com os intelectuais, as camadas populares, os artistas, os
trabalhadores, entre outros. E, principalmente, uma hierarquia em sintonia com as diretrize do
Concílio Vaticano II e das Conferências Gerais do Episcopado latino-americano em Medellín
(1969) e em Puebla (1979).
No caso da América Latina e do Brasil, houve grande avanço, pois um grande número
de bispos, padres e leigos empenhou-se nesta tarefa. Entre outros, merece destaque a liderança
de Dom Hélder Câmara, juntamente com outros bispos, tais como Dom José Maria Pires,
Dom Pedro Casaldáliga, Dom Moacyr Grechi, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Tomás
Balduíno Dom Waldir Calheiros, Dom Antônio Fragoso, entre outros. Além disso, há de se
considerar os novos movimentos eclesiais, a teologia da libertação, as pastorais sociais, as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), os cursos, os encontros e as novas produções
teológicas, históricas, catequéticas e litúrgicas. Tudo isso dialogou com as iniciativas do
Concílio para implementar suas propostas e fazer valer seus documentos. O Concílio não foi
um evento que terminou em 1965, mas uma obra que continua. Usando a expressão do
historiador francês Fernand Braudel, pode-se dizer que é um acontecimento de “longa

10
A propósito lembro o estudo de Libanio (1995).
77
duração”. Assim é a história, cada passo à frente, é uma forma de recepção que se vai
movimentando, nem sempre de forma homogênea. A partir da década de 1980 começou uma
involução, um período de “restauração” nos vários setores da Igreja Católica. Com isso, a
nova geração de bispos e padres, com algumas exceções, mudou a fisionomia renovada da
Igreja. A Igreja Povo de Deus que procurava avançar, no Brasil, perdeu força e autonomia (O
clericalismo reapareceu!).
A instituição religiosa está moribunda no Brasil, com poucas exceções (O abismo
entre catolicismo e sociedade alarga-se sensivelmente!). A nomeação para o episcopado é um
“Calcanhar de Aquiles”, entre outros, do pontificado do Papa Francisco. Um bispo deve saber
expor-se aos riscos de estar presente e situar-se no mundo, por um lado. Por outro, reconhecer
que o momento em que vivemos não é de muitas certezas, por isso, é necessário rever
atitudes, modelos, estratégias e abrir outros caminhos, ainda não percorridos na Igreja, a partir
da realidade brasileira. Caminhos de libertação, principalmente a favor dos mais pobres, dos
empobrecidos. A Igreja no Brasil tinha um propósito – manter-se em movimento, aggiornare,
isto é, atualizar, avançar (E agora, a marcha da história vai retornar de novo?).
A Igreja Católica é a Igreja Universal, aberta a todos os homens. A Constituição
Dogmática Lumen gentium, em sintonia com a declaração Nostra Aetate e o decreto Unitatis
Redintegratio, citados anteriormente, convida “à unidade católica” (Concílio Vaticano II,
1966, Lumen gentium, p.30). O Concílio amplia o significado de Igreja – Povo de Deus, pois
com o diálogo e essa nova concepção, as fronteiras são diminuídas:

Assim, pois o único Povo de Deus estende-se a todos os povos da terra,


recebendo de todos eles seis cidadãos para fazê-los cidadãos de um Reino
com índole não terrestre mas celeste. Pois todos os fieis dispersos pela terra
estão em comunhão com os demais no Espírito Santo, e assim aquele que
ocupa a sede de Roma sabe que os da Índia são membros seus”. [...] Todos
os homens são chamados a esta católica unidade do Povo de Deus, que
prefigura e promove a paz universal. A ela pertencem ou são ordenados de
modos diversos quer os fieis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer
enfim todos os homens em geral, chamados à salvação pela graça de Deus.
(Concílio Vaticano II 1966, Lumen gentium, pp. 38; 40, n.35 e 13)

A Igreja Povo de Deus não é um grupo fechado, mas uma comunidade de serviço.
Assim, o Concílio caminhou na direção do preceito do amor evangélico para com as diversas
confissões cristãs, como está no decreto Unitatis Redintegratio. Em seu estudo sobre A
memória do povo cristão, Eduardo Hoornaert lembra: “A Igreja não é só a comunidade dos

78
que professam a mesma fé, mas também e, sobretudo a comunidade dos que vivem em
comunhão de bens”(Hoornaert, 1986, p. 215).
No Concílio Vaticano II a importância do diálogo transparece e indica uma mudança
na atitude da Igreja. (Houve/Há sítios que cercaram/cercam e impediram/impedem esse
caminho!). Como vimos na primeira parte deste estudo, deve haver diálogo entre Igreja e
Mundo, entre os cristãos e entre todas as religiões. Segundo José Comblin: “Na prática,
depois do Concílio, muitos bispos e sacerdotes procuraram mudar o estilo de suas relações e o
modo de agir no exercício da sua autoridade”. (Comblin, 2005, p. 21). Entendido dessa forma,
na prática, o diálogo era/é a meta a ser conquistado, cujo princípio vital é a participação de
todos – cristãos e não-cristãos, hierarquia e leigos, homens e mulheres. Sem entrar nos
aspectos doutrinários da Igreja, pois não é esse o objetivo deste estudo, o Concílio criou uma
nova concepção que está na compreensão do “Ser da Igreja”. Uma Igreja além de suas
fronteiras é a Igreja Humanidade, em continuidade com o gesto salvador de Jesus Cristo –
evoluir, ir além para o abraço solidário e fraterno de todos os povos.
Uma nova compreensão da Igreja ad intra e ad extra perpassa o Concílio, os
documentos e pronunciamentos de João XXIII e Paulo VI. Igreja, luz das nações, luz dos
povos; portanto, a grande virada está na superação de uma Igreja jurídica para uma Igreja
mistério, de uma organização autoritária para uma Igreja comunhão (Uma Igreja “Povo de
Deus”). O capítulo III da Constituição Dogmática introduz, nesse sentido, a noção de
colegialidade e responsabilidade entre os cristãos – religiosos, leigos, bispos, padres e papa.
Esse aspecto será retomado no Decreto Apostolicam Actuositatem sobre o Apostolado dos
leigos, ao acentuar o aspecto da unidade no trabalho de evangelização: “Existe na Igreja
diversidade de serviços, mas unidade de missão”. (Apostolicam Actuositatem, p.523, n.2).
Essa sequência sobre o ministério dos leigos, confirma que a Igreja é comunhão e participação
de todos seus membros para a ação humanizadora e salvadora de Deus. Dom Marcos
Noronha, bispo de Itabira no período conciliar, faz uma reflexão em seu livro A Igreja que
nasce hoje: “Perguntaram a alguém se em tal lugar Igreja era com “i” minúsculo ou
maiúsculo. Eu responderia: onde povo se escreve com minúscula, igreja também se escreve,
porque a Igreja é o Povo. E o contrário também”. (Noronha, 1970, p. 94).
Os documentos conciliares elaboraram um discurso interdisciplinar entre os diversos
textos e sua fundamentação teológica com as demandas históricas contemporâneas. Com isso,
houve uma articulação/um diálogo entre os membros da Igreja Católica, os membros de
outras Igrejas e outras religiões, dentro do conceito de Povo de Deus e a sociedade

79
contemporânea. A busca da reintegração da unidade (Unitatis Redintegratio), em virtude da
catolicidade, se abre para a universalidade de um único “Povo de Deus”. Essa mudança supõe
uma Igreja descentralizada onde o “sujeito” não é somente a hierarquia, como nos períodos
anteriores. Neste aspecto, o protagonismo do leigo precisa avançar como também a visão de
Igreja e da prática pastoral do clero. Não só revigorar ou multiplicar as energias pastorais, mas
adequá-las aos novos desafios da sociedade contemporânea.
A partir do contato com os problemas sociais, novos campos foram tecidos no Brasil
pela Igreja Católica. Houve um despertar da consciência social e eclesial, tanto por alguns
membros da hierarquia, quanto por parte das comunidades católicas. Muitos leigos foram
assim se identificando como “agente” e tomando consciência de seu papel no catolicismo.
Isso fez com que se compreendesse a importância das mediações históricas para a própria
vivência religiosa do catolicismo. Neste sentido, a Teologia da Libertação "é uma tentativa de
compreender a fé a partir da práxis histórica, libertadora e subversiva dos pobres deste
mundo, das classes exploradas, das raças desprezadas, das culturas marginalizadas. Ela nasce
da inquietante esperança de libertação" (Gutiérrez, 1981, p. 58).
Em 1966, os bispos do Regional Nordeste II reafirmaram o conteúdo de um manifesto
da Ação Católica Operária sobre a situação precária e desumana dos trabalhadores do
Nordeste. Esses elementos contribuíram para continuar e dinamizar o envolvimento do
catolicismo nas questões sociais e na defesa dos direitos humanos. Nessa mesma linha,
afirmava Dom José Maria Pires, Arcebispo da Paraíba:

Dois fatos provocaram minha conversão - a realização do Concílio Vaticano


II e a realidade do Nordeste. Foi exatamente o golpe de 1964 que atingiu
profundamente os direitos humanos. Quando estava em Araçuaí, comecei a
reagir contra as violações dos direitos humanos: prisão de pessoas, prisão de
suspeitos, torturas. (DEPOIMENTO: 2002).

Essa declaração nos mostra um quadro de nuanças pelos quais a Igreja passava no
Brasil, particularmente com seu envolvimento nas questões sociais. Era, ainda, um projeto.
Esse novo tecido faz parte de um encadeamento de fatores que foram amadurecendo em
formas de organização e articulação entre os setores pastorais e os líderes religiosos.
Uma nova linha de reflexão favoreceu a organização de uma pastoral popular, depois
da II Conferência Geral do Episcopado latino-americano, em Medellín, em 1968. Os leigos
puderam, então, assumir papéis de liderança na Igreja. Desse novo chão, eclodia uma maior
experiência de vida em comunidade. Assim, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram

80
congregando grupos, pessoas e movimentos. Os círculos bíblicos absorviam em suas
reflexões as situações concretas da vida. Foi-se verificando em muitas dioceses da América
Latina o trânsito de uma Igreja-Reflexo para uma Igreja-Fonte, como lembrava o filósofo
Henrique de Lima Vaz. Depois de Medellín houve uma intensificação renovada da Igreja da
América Latina. Na “Mensagem aos povos da América Latina”, os bispos afirmaram: “Vimos
que o mais urgente compromisso de todos os membros e instituições da Igreja Católica é
purificar-nos no espírito do Evangelho. Devem acabar as separações entre fé e vida pois em
Cristo Jesus [...] vale a fé que opera pela caridade”. (Medellin, 1998, p.32). A recepção do
Concílio Vaticano II, nesse continente, ganhou uma dimensão significativa nos setores da
promoção humana e nos aspectos sociais e políticos depois da Conferência de Medellín. Esse
projeto dilatou seu horizonte, atento à trajetória e às necessidades do continente latino-
americano com problemas precisos e concretos. Com esse pensamento, muitas dioceses
começaram a elaborar seu Projeto Pastoral, considerando a realidade histórica e social – o quê
a Igreja deve fazer para se revitalizar? Além da análise da realidade, a ação é muito
importante – qual o papel da religião (da Igreja Católica) na transformação das sociedades
latino-americanas? E nos processos de humanização da história? É preciso captar e apresentar
a mensagem de Jesus de Nazaré à luz da realidade e mentalidade do tempo presente. Medellín
foi um “divisor de águas” para a Igreja da América Latina. Em 1998, 30 anos depois da
Conferência de Medellín, Gustavo Gutierrez afirmou: “Um dos significados mais importantes
e duradouros de Medellín é o fato de que nessa Conferência a Igreja Latino-americana
expressa sua maturidade” (Gutierrez, 1998, p.251). O Concílio Vaticano II, nesse continente,
tem que ser pensado em sintonia com Medellín e Puebla. No século XXI, a Igreja tem
dialogado com o ser humano, a sociedade e a cultura? Ou a religião está sendo um delírio, um
espetáculo? Atualmente os movimentos neoconservadores continuam fortes, rígidos na
doutrina, na legalidade e submissos às autoridades e aos líderes religiosos. O Vaticano tem
acolhido diversos movimentos fundamentalistas nos últimos anos o que tem deixado os
caminhos abertos pelo Concílio, por Medellín e Puebla na sombra.

4. Nos caminhos do Vaticano II – A Igreja em Belo Horizonte (1970-1980)


O novo lugar que, progressivamente, o catolicismo foi ocupando na sociedade, após o
Concílio Vaticano II, modificou o seu perfil. Sob o impulso conciliar, os bispos brasileiros
traçam o Plano de Pastoral de Conjunto de 1966-1970. Nas diversas regiões e dioceses do
Brasil foram realizados cursos, conferências e seminários. Assim, aumentou também o

81
número de publicações para divulgar os trabalhos que vinham sendo feitos e, ao mesmo
tempo, atualizar o pensamento católico e implementar as reformas conciliares. Foram
ocorrendo mudanças no cenário religioso, mas o perfil institucional da Igreja não foi alterado.
Segundo Comblin: “A Igreja entrou numa fase de contradição entre uma doutrina de abertura
ao mundo e uma instituição fechada ao mundo” (Comblin 2002 p. 41).
A década de 1970 – 1980 é um período bastante ambíguo, pois a realidade que
circunda o catolicismo intriga seu percurso no contexto brasileiro. Como se situar frente às
incertezas do presente e avizinhar-se de temas e situações que bradam por justiça, liberdade,
participação? Como articular experiência religiosa e compromisso social numa sociedade
excludente? Mais do que em outros períodos, o catolicismo foi ensaiando novos modos de
agir e de se posicionar.
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram um espaço significativo de
educação, organização e mobilização popular na luta por melhores condições de vida para a
população. Esse fenômeno ocorreu, particularmente, na região industrial da capital mineira.
Houve um endurecimento do regime militar, nesse período. Exílio, torturas, prisões e
clandestinidade constituíram as conseqüências da violência desse regime.
O grande lema dos militares era – “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Até o final do governo
do general Garrastazu Médici (1969-1974), período mais violento da ditadura, o espaço
religioso era o espaço de discussão e do diálogo. No seu conjunto foi um período complexo,
caracterizado pelo cultivo de diferentes utopias, como também pela frustração de projetos que
animaram inúmeros segmentos da sociedade civil. Período de (re)elaboração religiosa,
política, social e econômica. Os retalhos que restam na história registrada abrigam crises,
insurgências, heroísmos de uma realidade em movimento. Lembram, ainda, o silêncio
orquestrado de vozes silenciadas. Prova de uma oposição em jogo, incluindo intelectuais,
políticos, estudantes, trabalhadores, militantes católicos. A efervescência política desse
período histórico está cadenciada por momentos de luta, crise e confronto.
Na periferia de Belo Horizonte, houve o envolvimento de alguns padres e leigos
militantes com as camadas populares. Vou considerar uma região onde estão situados os
11
bairros do Sol Nascente, Lindeia e a cidade de Ibirité , composta por trabalhadores
assalariados e muitos sem vínculo empregatício. Um novo projeto pastoral foi-se delineando
nesta região. Duas fontes guardam o registro dessa história – as fontes escritas em jornais,
revistas, boletins, cartilhas, folhetos e documentos oficiais e as fontes orais com depoimentos
11
Trata-se de uma pesquisa desenvolvida na região industrial de Belo Horizonte intitulada: “Depois do dilúvio a
bonança? Do movimento político às novas formas de crer no campo religioso de Belo Horizonte (1970-1990).
82
de agentes pastorais e moradores da região que participaram do projeto. Entrevistei adultos,
famílias e jovens dos bairros pesquisados. Pude perceber que a luta pela vida, com suas
exigências, era também por valore e desejos. Algumas questões ganharam relevo no contato
com as pessoas e os grupos. A relação entre as pessoas, a participação nos diversos
movimentos religiosos e o contato com as famílias foram direcionando e motivando o
trabalho com essas camadas populares. Os relatos orais indicavam as trajetórias dos grupos,
suas opções pessoais, os silêncios e os passos que orientavam as diversas formas de ação.
A Arquidiocese de Belo Horizonte tem em seu entorno várias cidades, algumas
maiores, coladas na capital, e outras tipicamente do interior. A população apresentava um
crescimento nesse período, particularmente na região metropolitana. Em 1970, Belo
Horizonte tinha 1.253.194 de habitantes, em 1980: 1.780.839, em 2000: 2.238.526 habitantes.
Tratando-se especificamente da Arquidiocese de Belo Horizonte, contava em 2004 com uma
população aproximada de 4.216.719 habitantes, com 75% de católicos. O território da
arquidiocese é de 7.240 km.2, organizado em 257 paróquias, sendo 137 na cidade de Belo
Horizonte 12.
O grupo de pessoas que assumiu esse projeto estava, ainda, implicado pela construção
de uma sociedade nova, democrática e participativa. Caminhou para preparar o amanhã em
cadência com a história e o cotidiano da vida. A pastoral buscou uma moldura mais aderente à
vida e à prática dos moradores. Trouxe para essa parte da Igreja de Belo Horizonte um
exercício de militância, frente às questões sociais, políticas e econômicas. Essas questões
pediam, de fato, outra orientação religiosa.
O movimento das comunidades religiosas na região industrial de Belo Horizonte tem
uma rica história. O grande registro de fragmentos deste período – a década de 1970 – está na
memória de muitos militantes que, ainda vivem naquela região. Várias motivações e projetos,
desenvolvidos em outros lugares, tiveram também suas influências, pois eram formas de
organização, luta e resistência. A divulgação e troca de experiências foram importantes nesse
período como também o grande número de publicações, reuniões, encontros. Vários relatos
mostram a importância dessas iniciativas. Maria das Dores, uma doméstica, na década de
1970, faz a seguinte observação: “A gente tinha muitos encontros. Todo mundo ficava junto –
padres, professores, estudantes, trabalhadores, jovens. Acontecia sempre na igreja ou no

12
CNBB. Plano de Pastoral de conjunto. In: Igreja para servir. Belo Horizonte: Editora Gráfica Maciel, 1971;
Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais (CERIS); Anuário Católico 1970/2000/2004, Censo do
IBGE, http://www.arquidiocese-bh.org.br/; CERIS. Desafios do catolicismo na cidade – pesquisa em regiões
metropolitanas brasileiras, São Paulo: Paulus, 2002; DIRETÓRIO PASTORAL DA ARQUIDIOCESE DE
BELO HROIZONTE, 1977, p. 8 (Este Diretório traz os dados estatísticos de 1970).
83
salão paroquial. A gente lia um texto da bíblia, fazia uma reflexão. Muita gente falava,
discutia”. A experiência religiosa foi reorganizando o trabalho com as camadas populares e
redesenhando laços de solidariedade. Maria das Dores mudou de religião. Hoje é evangélica e
trabalha com um grupo de senhoras num asilo de idosos. Começa o trabalho com cânticos e
orações de louvor. Afirma que naquele tempo os adultos e os jovens trabalhavam e tinham
tempo para ir à igreja. Segundo ela: “As duas coisas estavam juntas. Na igreja os padres
falavam sobre justiça, união e no trabalho a gente falava sobre a igreja, a reunião, as
conversas e reflexões. Foi um tempo muito bom”. Sempre se refere com carinho a um
franciscano que trabalhou na Cidade Industrial – Frei Eduardo Metz: “Ele estava do lado do
povo pobre. Ia à casa das pessoas. Ajudou muita gente. Tinha vontade de ver de novo. É um
santo”. Este relato está embrulhado num quadro interpretativo onde o passado reaparece com
a moldura do presente.
Situados entre morros e curvas, estão os bairros Sol Nascente, Tirol, Vale do Jatobá,
Whashington Luís, Lindeia e a cidade de Ibirité. O bairro Sol Nascente e a cidade de Ibirité,
na década de 1970, ainda eram habitados por poucas famílias vindas do interior. No Sol
Nascente era preciso andar um pouco nas trilhas para alcançar os meios de transporte que
sempre demoravam. Barracos, poucos loteamentos, lixo, animais, crianças brincando perto de
um esgoto a céu aberto, um salão em construção onde as pessoas se encontravam para rezar,
fazer suas reuniões, são lembranças que me levam a essa década. As filas eram grandes às
6:00 h para pegar o lotação e, a partir das 18:00 h, chegava carregado de jovens, senhores e
senhoras que saíam das fábricas, indústrias, casas de família ou de outros locais de trabalho.
No salão paroquial as pessoas se encontravam. Traziam de suas cidades de origem as
experiências vividas nas Conferências Vicentinas, as tradições religiosas das primeiras sextas-
feiras e as coroações do mês de maio. A religião tinha uma função socializadora tanto para as
celebrações como para outras situações e momentos da vida. Como a maioria da população
era de católicos, o religioso congregava e mobilizava as pessoas em torno das missas, terços,
círculos bíblicos, novenas e clubes de mães.
Ibirité recebia migrantes do interior que vinham trabalhar em sítios, fábricas,
indústrias e na construção civil. Compõe a região metropolitana de Belo Horizonte. Muitas
famílias da capital possuíam chácaras e casas de campo para fugir da capital nos finais de
semana. Na década de 1970 houve um aumento da população brasileira. Esse crescimento
desordenado trazia sérias conseqüências para as populações e, assim, aumentava o surgimento
de bairros cada vez mais longe do centro e sem uma infra-estrutura que atendesse às

84
13
necessidades dos moradores . Nos loteamentos foram construídas casas populares onde
muitos moravam antes do término da construção. A população, que era predominantemente
rural, foi-se urbanizando. Houve um aumento populacional muito grande. Em 1979 tinha
19.741 habitantes e atualmente sua população é de 148.535, segundo dados do IBGE de 2007.
Hoje possui um maior número de escolas e, ainda, quadras iluminadas, hospital, asilo, a Casa
da Mulher Trabalhadora, com uma creche onde as mães deixam as crianças para irem
trabalhar. Os mesmos problemas de outras periferias existiam ali, tais como escassez do
transporte urbano, acúmulo de lixo nas ruas ou em lotes vagos, falta de água, entre outros. Os
bairros cresciam sem planejamento. As CEBs e outros movimentos se posicionavam diante
desses problemas nos encontros, celebrações e, a divulgação acontecia por meio das redes de
comunidades, dos boletins e folhetos.
Na base da formação do movimento pastoral, nessas comunidades, três aspectos
merecem destaque – os agentes, a ação pastoral e a prática sócio-pastoral. O trabalho de
comunidade na região industrial de Belo Horizonte foi-se organizando paralelamente à
estrutura paroquial. Para que pudesse se desenvolver, alguns párocos reestruturaram essa
organização e investiram no ministério dos leigos. Uma nova concepção de evangelização foi
ganhando forma. O leigo deixa de ser uma idéia para tornar-se pessoa, membro da
comunidade. Mais ainda, um ser humano com problemas precisos, palpáveis e concretos. A
ação é uma dimensão importante de sua pessoa. Isso foi possível, pois houve um “mutirão
ministerial” composto por uma assessoria muito singular. Um grupo de professores,
psicólogos, sociólogos, políticos e pessoas que participaram da Ação Católica. Esse grupo se
reunia semanalmente, estudava e formava as lideranças. Investir na formação é um aspecto
importante no processo evangelizador. Este desafio foi enfrentado e foi mudando o eixo da
pastoral que era centrado na paróquia, no padre e nos sacramentos por uma visão mais
dinâmica, social e participativa. Mais uma vez está subentendido o significado de leigo no
catolicismo – tecido da comunidade.
Assim o sentido de “comunidade” ganhou corpo. Isso foi um caminho a ser
descoberto, aprofundado e construído. Algumas questões estavam sempre presentes.
Perguntei para um professor que trabalhou nas CEBS em 1977: “Como vocês despertavam
nas camadas populares a ligação entre religião e questões sociais”? Segundo ele: “A busca
de novas formas de participação na Igreja com dimensões que permitissem os leigos
(homens, mulheres e jovens) se sentirem sujeitos e corresponsáveis pela vida da comunidade
13
A propósito lembro o estudo de MEDEIROS, Regina (Org.). Permanências e mudanças em Belo Horizonte.
Belo Horizonte: Autêntica; PUC Minas, 2001.
85
foi um caminho trilhado. Para isso, os encontros e reuniões de grupos de reflexão foram se
multiplicando nos bairros”. O depoimento de outro professor que trabalhou nesse período
afirma: “Uma questão básica orientava o projeto, as reuniões, os momentos de estudo. Quer
dizer, a participação. Essa forma de trabalho, estudo e reflexão, era difícil, inicialmente. Mas
foi assim que o trabalho avançou – ouvindo as pessoas, animando, visitando as famílias,
convidando os jovens para torneio de futebol. Com essa organização e a diversidade de
atividades o projeto continuou e, nos vários setores, as pessoas foram participando, sendo
motivadas e ouvidas para sugerir e decidir outros trabalhos e, ainda, avaliar aquilo que estava
sendo feito.
Este trabalho preencheu uma lacuna com relação à presença do catolicismo, em Belo
Horizonte, junto às camadas populares. Houve erros, desânimos, desconfiança e críticas. As
críticas vinham também de paróquias, de padres e de membros dos movimentos mais
tradicionais, mas houve mudanças, formação de líderes e o senso pessoal de dignidade e
autonomia.
Neste período, o grupo de liderança organizou um folheto de apoio ao trabalho nas
comunidades chamado Caminhando. Ele era distribuído para as diversas comunidades. As
reflexões partiam sempre de um fato da vida, seguido de um texto bíblico, reflexões e uma
proposta de ação 14. Depois o folheto passou a ser usado também nas celebrações de missas e
cultos, sem perder seu esquema inicial. Chegou a ser distribuído em várias paróquias de Belo
Horizonte e em outras dioceses de Minas Gerais, alcançando em alguns anos uma tiragem de
27.000 exemplares por semana. Com essas reflexões, o projeto mantinha uma linha de
unidade e de reflexão, ainda mais que o fato da vida tratava de situações que envolviam a
população como, por exemplo, aumento no preço da passagem do ônibus, greve de operários /
de professores, mutirão para construção de casas, eleição, acidente em trânsito, gestos de
solidariedade, conquistas alcançadas pelas comunidades e outros temas.
A organização paroquial continuou na maioria dos bairros, mas outros elementos
foram introduzidos tais como, Círculos bíblicos, reflexões e encontros sobre a Campanha da
Fraternidade, Círculos de Reflexão sobre Trabalho, Clube de Mães, Pastoral da Juventude.
Em 1976 foi aprovado o Plano de Pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte. Esse Plano
discutiu e estudou a missão do leigo na Igreja, considerando as dificuldades e sua posição na

14
Reproduzo uma oração – Ave Maria que saiu publicada no mês de maio, período em que havia muitas
coroações da imagem da Virgem Maria: “Ave Maria dos oprimidos, / abre a nós teu coração./ Bendito é o fruto
de teu ventre / que é semente da libertação./ Ouve o grito que sai do chão,/ dos oprimidos em oração./ Santa
Maria dos infelizes,/ das horas extras, das horas tristes./ livrai-nos todos da opressão, / de toda forma de
escravidão.
86
estrutura tradicional da maioria das paróquias. O Plano tinha o objetivo de “Ser Igreja de
15
Jesus Cristo no meio da grande cidade” e previa reuniões, cursos temáticos para padres,
leigos, catequistas, professores, operários e demais agentes de pastoral. Em vários momentos
insistia na necessidade de conhecimento da realidade e atualização do clero para um maior
diálogo com as necessidades do povo. Foi importante a assessoria de outros organismos como
o Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), membros da CNBB, da
área jurídica e social. Isso contribuiu para uma renovação e dinamismo da pastoral. Além das
mudanças internas, fatores externos se conjugaram para fortalecer esse dinamismo. No
entanto, quando se faz uma interpretação como essa, cabe um questionamento – houve uma
mudança de mentalidade? (A “paroquialização” faz parte da história do catolicismo).
Os depoimentos de agentes de pastoral daquele período revelam que o processo de
renovação da Igreja não foi acolhido nem feito de forma homogênea, pois o ritmo variava nas
diversas comunidades, oscilando entre o tradicional e o novo. O substrato do catolicismo
popular que muitos católicos traziam do interior foi sendo incorporado às CEBs. È importante
ressaltar que em todo esse processo, o principal agente que se foi operando no interior dessa
prática e experiência foi o povo. Aí se estabeleceu uma articulação direta, local e próxima.
Assim, nasceu um “novo sujeito social” e um “novo sujeito eclesial”, usando uma expressão
de Gustavo Gutierrez.
Em 24 de dezembro de 1978, realizou-se no bairro Eldorado, o 4o Encontro dos
Líderes das CEBs do Setor Industrial. O Boletim da Arquidiocese de Belo Horizonte publicou
um Relatório das atividades e conclusões desse encontro onde foram narrados os trabalhos e
as iniciativas das camadas populares. Nessa mesma direção, foi incentivada, na região, a
realização da Missa de 1o. de Maio, na Praça da Cemig. Ali se reuniam pessoas de todos os
bairros. Traziam faixas, cartazes e faziam encenações com motivos e demandas do povo. O
texto da celebração era preparado por membros de todas as comunidades. As músicas
lembravam a caminhada do povo e vários fatos da vida abriam a celebração.
A preparação da III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Puebla
(1979) envolveu também as CEBs e os movimentos do Setor Industrial de Belo Horizonte.
Nos encontros e reuniões discutia-se a perspectiva dessa conferência – suas diretrizes de ação
pastoral e as novas prioridades para a evangelização na América Latina. A Revista

15
ARQUIDIOCESE EM NOTÍCIAS. Coordenação Arquidiocesana de Pastoral, ano VII, Boletim no. 63, mar. /
abr. 1976, p. 60-65.
87
16
Atualização apresentou um estudo muito bem fundamentado de Alberto Antoniazzi . Esse
estudo sintetizava as observações de teólogos, professores, párocos de Belo Horizonte. Um
fato que contribuiu para as discussões sobre a Conferência de Puebla foi o 3o Encontro Inter-
eclesial das CEBs, em João Pessoa (Paraíba), em junho de 1978, que teve como tema: “Igreja,
povo que se liberta”. Alguns membros das CEBs e padres da região industrial participaram
desse encontro. Isso foi muito positivo porque houve troca de experiências, interação com
outros grupos e outras realidades.
A assessoria de teólogos da libertação nessa região e de alguns bispos, que
priorizavam o trabalho com as CEBs em suas dioceses, contribuiu grandemente para
fortalecer os grupos e as comunidades, tais como Dom Pedro Casaldáliga, Dom José Maria
Pites, Frei Carlos Mesters, Pe. Rogério L. de Almeida Cunha, entre outros.
Esse projeto fez com que muitos agentes de pastoral optassem, embora não
exclusivamente, pela causa das camadas populares. Outro aspecto importante foi a
organização e a sintonia da ação pastoral. Os temas da Campanha da Fraternidade davam o
eixo de reflexão para todo o ano, sem com isso eliminar as questões sociais e políticas que
surgiam e exigiam novos estudos e tomadas de posição. Assim, em 1978, por exemplo, o
tema da Campanha da Fraternidade: “Trabalho e justiça para todos” foi retomado na
celebração do 1o. de Maio, no mês da Bíblia, na celebração do dia de Nossa Senhora
Aparecida, no mês das missões e na novena de Natal. Com isso, foram desenvolvidos muitos
trabalhos na catequese, grupo de jovens, CEBs e textos de reflexão durante o ano. O ponto de
partida era sempre a vida do povo, o que dinamizava a pastoral e envolvia os participantes,
que se identificavam com os personagens e relatos dos fatos.
À luz de todo esse movimento religioso, é possível indicar algumas linhas que,
estrategicamente, contribuíram para seu dinamismo. Os grupos que foram formados não ficam
apenas com o aspecto religioso, mas se mostravam abertos às questões de vida; e o projeto
pastoral soube incorporar esses temas no trabalho comunitário. Houve um desconhecimento
deste trabalho pelos padres que mantinham a estrutura paroquial tradicional. As reações
negativas não deixaram também de chamar atenção de outros agentes e, ainda, de membros
das paróquias que não o conheciam. Houve, ainda, abandono, desconfiança de muitos
participantes durante o seu desenvolvimento. Duas tendências, no entanto, floresceram nas
diversas comunidades:
1a.) A criatividade de vários grupos nas diversas situações;
16
O marco teológico do documento de preparação para Puebla. Atualização, Belo Horizonte, no. 95/96,
nov./dez. 1977, p. 507-526.
88
2a.) O reavivamento religioso e social de membros das camadas populares.
Isso comprova que evangelização não é apenas transmissão de um conteúdo
doutrinário, mas um processo que conduz as pessoas a transformarem as realidades históricas,
atentas à justiça e às estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais.
A Pastoral da Juventude nessa região foi também muito dinâmica. Nesse período
foram feitas muitas publicações, cartilhas, encontros, reuniões e manifestações envolvendo os
jovens. Um caderno de reflexão intitulado: “Transformar: diretrizes cristãs de
conscientização sócio-política” foi feito para toda a arquidiocese. Trazia a apresentação de
Dom João Resende Costa, Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, no período deste
estudo.
No entanto, o dinamismo das CEBS e de outros movimentos de base mudou pouca
coisa, estruturalmente, na Igreja Católica. Nesse aspecto, as reformas promovidas pelo
Concílio Vaticano II não modificaram sua estrutura. O poder no interior da instituição
eclesiástica não foi alterado, o leigo passou a ter mais atividades, sem ter autonomia e força
de decisão; continua, atualmente, sem voz e sem voto em muitas questões (A Igreja não
conseguiu/consegue ser democrática). Hoje muitas mudanças iniciadas no período pós-
conciliar regrediram, principalmente na relação com o leigo. No entanto, a sabedoria popular
revela muitas verdades como nos versos desse canto, muito querido pelas camadas populares,
que se ouve por todo Brasil: “O povo de Deus no deserto andava... também sou teu povo,
Senhor”.
Ao recuperar a história do catolicismo numa região industrial de Belo Horizonte,
novos/antigos questionamentos voltam a balizar sua trajetória. Como falar de aggiornamento
na atual conjuntura do catolicismo? (Como esperar um novo começo?)
Concluindo, pode-se afirmar que as fronteiras temporais entre o Concílio Vaticano II,
as Conferências de Medellín e Puebla e o período atual são muito mais simbólicas do que
cronológicas. Estabelecem classificações, apreciações e limites. Os documentos conciliares e
os dessas duas conferências são agendas de ações e intenções. Sendo assim, é melhor delinear,
no conjunto, o seu desenvolvimento e aggiornamento. Incorporam desafios e, ainda, revelam
tarefas cumpridas e a serem cumpridas com relação à liberdade, ao serviço e à vocação
humana. Um olhar para as últimas décadas da Igreja Católica não é muito motivador, pois há
muita resistência na direção de uma Igreja Povo de Deus, no diálogo ecumênico e com as
outras religiões e no espírito de colegialidade. O quadro geral da Igreja Católica, tanto
atualmente quanto na década de 1970-1980 é ambivalente. A recepção do Concílio Vaticano

89
II teve leituras diferentes, o que gerou temores, limites e revisões, como observou, entre
outros, o Cardeal Carlo Maria Martini: “Às vezes parece possível imaginar que não todos
estamos vivendo no mesmo período histórico. Parece que alguns vivem ainda no tempo do
Concílio de Trento; outros, no tempo do Concílio Vaticano I. Não somos verdadeiros
contemporâneos, e isso sempre requer muita paciência e discernimento”. (Martini, 2009, pp.
27-28). Parafraseando Debord (1992), vemos ganhar campo uma “Igreja do espetáculo” e não
uma Igreja comprometida com a história. Uma Igreja declinável é do futuro. Hoje, como nas
décadas de 1970 e 1980, outros problemas exigem diálogo, abertura e compromisso para que
o catolicismo esteja a serviço da construção de uma humanidade nova, outra “mundialidade”.
Como pensar a religião, o catolicismo atualmente? O catolicismo deve ser o cultivo de
valores para maior inserção e transformação da vida. A grande sabedoria do atual momento
histórico é o exercício da tolerância que abraça, suporta e confirma para que a tradição seja “o
progresso de ontem”, como está na epígrafe deste estudo, retirada de um texto do Papa João
XXIII. Esse é o desafio para o futuro do catolicismo e das outras religiões – serem “religiões
do futuro”.
O problema de ontem é cada vez mais o problema de hoje. A história não descansa.
Continua a viagem. Mas é preciso olhar para o futuro com novas utopias e possibilidades de
diálogo – sem opor tradição e experiência. A religião é um fato histórico e está em relação
com a cultura e a sociedade, numa perspectiva de abertura para o futuro – “sem parar no
caminho”. Sem se fixar no tempo, pois o ser humano ancora sua existência além de si. A
religião deve abrir caminhos. Nos cruzamentos e travessias do religioso existem arcos para
um pouso além de si. No horizonte.

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PAULO VI. Discurso aos não-cristãos em Bombaim. In: A viagem de Paulo VI à Índia. s/ed.
1964, 3/12/1964.

POULAT, Émile. Une église ébranlée. Tournai: Casterman, 1980.

ROCHA, Zildo. (Org.). Helder, o Dom – uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1999.

ROUTHIER, Gilles. La chiesa dopo il concilio. Magnano: Edizioni Qiqajon, 2005.

SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. O cristão e o mundo. Petrópolis: Vozes, 1965.

Fontes Orais
Depoimento de Dom José Maria Pires, Arcebispo Emérito da Arquidiocese da Paraíba,
concedido a ao Professor Mauro Passos em janeiro de 2002.
Depoimentos de membros da Comunidade de Lindeia e Ibirité concedidos ao Professor
Mauro Passos em dezembro de 20014.

92
5ª. PARTE

V – O CRISTIANISMO NO BRASIL

93
1. A IMPLANTAÇÃO DO CATOLICISMO

Da implantação da Igreja à consolidação organizacional (1500-1759)

O descobrimento das novas terras nas Índias Ocidentais levará Portugal, em esquema
de tática política, a aplicar no Brasil o acervo de experiências já realizadas nas regiões por
ele conquistadas na Ásia e África.
Na concretização de tais experiências, a política colonizadora abrangia todos os
campos (econômico, social, cultural, etc). No quadro geral desejamos, entretanto, destacar
e analisar os elementos religiosos que integravam, como força legitimadora, o conjunto dos
fenômenos que cobrem o processo das conquistas e da colonização.
Três aspectos de semelhante processo interessam, particularmente, à compreensão da
presença da Igreja no empreendimento colonizador português a partir do século XV:
a) O espírito de cruzada. Desde a tomada de Ceuta (1415), as viagens e descobertas das frotas
portuguesas sempre serão realizadas tendo como pano de fundo o espírito medieval do “orbs
cristianus” e imprimindo à ação dos colonizadores um comportamento ético contraditório e
nem sempre de acordo com o Evangelho. O grande objetivo, a saber, dilatar a fé e converter
os infiéis quaisquer que fossem se embaralhava cm motivações humanas, as mais diversas e
lançava mão, indiscriminadamente de meios às vezes frontalmente contrários às inspirações
cristãs;
b) Para atingir este objetivo na empresa colonizadora, a Igreja oficializou a política da fusão
dos poderes temporal e espiritual, concedendo aos reis da Península Ibérica e ao Grão-Mestre
da Ordem de Cristo em Portugal, o Padroado. Através deste instituto jurídico, a Coroa aliará,
na administração da terra e no governo de seus habitantes, ao regime absolutista uma soma de
poderes bastante ampla em matérias eclesiásticas, perseguindo não apenas as metas temporais
(financeiras e comerciais), mas ainda os fins espirituais (a salvação dos indígenas). Na teoria,
os fins espirituais (pregação do evangelho, conversão dos infiéis) serão projetados no primeiro
plano dos documentos (situação legal). Na prática, porém, os objetivos temporais (comércio,
aproveitamento das riquezas da terra, exploração do trabalho escravo etc.) prevalecerão e se
tomarão o pólo das preocupações dos colonizadores, quase sempre em contradição habitual
com as determinações legais da Igreja e da Metrópole, e, de ordinário, favoráveis aos

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silvícolas, e em choque com os (poucos) defensores da primazia dos fins espirituais (situação
real);
c) O Estado montará esquemas e mecanismo de controle e fiscalização da Igreja. Desses o
mais importante será a Mesa da Consciência que, ao lado do Conselho Ultramarino, se
encarregará de todos os negócios eclesiásticos. A igreja (recursos humanos e materiais,
organização e administração) estará nas mãos do Estado que escolherá bispos, párocos,
missionários, financiará expedições evangelizadoras, construção de templos, manutenção do
culto, sustentará o clero diocesano através de côngruas e, em casos especiais, fornecerá ajuda
aos religiosos, como no caso dos aldeamentos dos índios.
A Igreja representará um organismo a serviço da política oficial, legitimando as
pretensões e o comportamento do Estado que neste período era regalista na politica
eclesiástica, mercantilista na economia instrumentalizada pelo absolutismo, monopolizador
sempre vigilante sobre tudo quanto pudesse estorvar ou prejudicar a sua expansão colonial,
sobretudo atento à defesa e à salvaguarda dos valores da cultura portuguesa e cristã, imposta
aos gentios.
1. Condicionamentos sociais
Com semelhante perspectiva compreendemos, pois, que o processo de implantação do
catolicismo no Brasil irá operar-se de acordo com a matriz portuguesa, apenas adaptando-se,
aqui e ali, na sua transplantação, às exigências de diversos níveis de condicionamentos
impostos pelas novas realidades. Tais condicionamentos exercerão influência maior ou menor
na tessitura mesmo do catolicismo que imprimirão linhas de orientação oficial à
evangelização e às práticas religiosas e impregnado a mentalidade e as atitudes dos cristãos
1.1.No nível administrativo, a máquina civil será montada segundo o modelo de
Portugal. A fundação dos núcleos populacionais comportará, antes de tudo, a atuação das
Câmaras Municipais que, ao lado do Governo Geral, gozarão, nos dois primeiros séculos, de
muito prestígio e autonomia.
Esse tipo de autonomia que acompanhou a administração civil, está presente, não na
Igreja como corporação, mas na vida dos párocos (clero diocesano) em consequência da falta
de centro de direção dotado de condições para coordená-los. Os religiosos nas vilas e mais
ainda nos aldeamentos – desenvolverão suas atividades dentro do esquema canônico da
isenção, ora ajustando-se às orientações dos prelados, ora tornando-se foco de atritos na
reivindicação de direitos e privilégios, era firmando-se em certa autonomia face do Estado,
apoiados na sagrada Congregação da Propagação da Fé.

95
1.2 No nível jurídico, regimento da Arquidioceses de Lisboa foi aplicado e seguido na
diocese da Bahia e, posteriormente, nas outras circunscrições eclesiásticas, com as
modificações decorrentes das circunstâncias especiais, até que os bispos decidissem elaborar
regimentos mais adaptados aos problemas pastorais do país ou mais ainda ousassem, em um
esforço excepcional contra as tendências da Coroa, reunir um símbolo e promulgar
Constituições, como fez D. Sebastião Monteiro da Vide. As Constituições Primeiras do
Arcebispos da Bahia (1707) serão o livro-mestre das regras de ação da Igreja no Brasil dos
séculos XVIII e XIX.
1.3 No nível econômico-financeiro, a política do governo metropolitano com relação
ao Brasil colônia se pautará, nos quadros do mercantilismo da época, por seus esquemas
operacionais de exploração da terra (latifúndio e monocultura), na procura e exploração de
minas, do emprego da mão-de-obra escrava, indígena e negra, com o fito de abastecer as usas
finanças. A colônia sempre viverá, economicamente, em função de Portugal e não dará
chances d desenvolvimento para a grande maioria de seus habitantes. A pobreza e padrões
baixos de vida serão o lote de muitos.
A Igreja, em princípio, seria logicamente pobre, se se conformasse em viver às custas
do erário público que, recebendo os dízimos, cobra com côngruas a manutenção do clero e do
culto e se, em justos limites, recorresse à generosidade dos fiéis nas taxas e donativos diversos
pela celebração dos atos do culto. A tendência, porém, será compensar a magra folha dos
pagamentos oficiais com a recepção de bens (legados, doações etc.) e com a compra de
imóveis, além da cobrança de emolumentos, não raro extorsivos – prática mais comum do que
se pensa, particularmente em certas regiões e que dará ocasião a insatisfação e conflitos entre
clero e povo.
1.4 No nível político, o absolutismo reinante na corte se estenderá ao Brasil em tons
variados, menos drásticos nos primeiros tempos, mais reversados por ocasião das descobertas
das minas quando a centralização administrativa assume proporções inéditas da fiscalização e
tributação.
De modo geral é completa a aquiescência dos homens da igreja às injunções dos
representantes oficiais, excetuadas as Ordens Religiosas em relação à defesa de alguns
direitos e de seus patrimônios e dos jesuítas em relação ao problema do apresamento e
escravização dos índios.

96
A religião católica é uma das forças poderosas na sustentação do desenvolvimento do
sistema colonial. Prelados e clérigos terão oportunidade de substituir governadores e de
participar de juntas governativas.
Consequências lógica do Padroado e do regalismo, política do governo e política da
Igreja se irmanam, embora houvesse problemas concretos e divergências, como no caso do
aproveitamento da mão-de-obra indígena. Quanto aos negros, importados da África, o estatuto
da escravidão se tornara uma realidade comumente aceita e assumida pelo pessoal da Igreja,
sem contestação e sem escrúpulo algum de consciência.
1.5 No nível social, a elaboração de categoria ou estamentos em uma sociedade em
gestação, como no caso brasileiro, se processará sob as bênçãos da Igreja. Os dois polos
significativos das ordens sociais terão como representantes no vértice da pirâmide dos
senhores de engenho, os donos de fazendas e latifúndios os proprietários e exploradores das
minas e na base os negros e os índios, havendo ainda toda uma faixa intermediaria de gente
livre, exercendo as mais diversas funções. Neste esquema, o patriarcalismo (a figura e o
poder do pater famílias) se constituirá a fonte dos elementos principais para os quadros de
liderança na vida do Brasil colonial.
Em semelhante realidade concretamente construída com o apoio total do governo, a
Igreja colabora em uma opção normal da consciência de seus representantes, com os que
ocupam o ápice da pirâmide, sem contudo, negarmos que grupos ou indivíduos da Igreja se
preocupem com os outros, até lutem pelos seus direitos.
Dentro de uma ordem social aparentemente tranquila a marginalização dos índios,
negros, e mestiços se torna uma situação que a própria Igreja, não como corporação mas na
ação de muitos de seus ministros, endossa e encampa nos tratamentos diferenciados dados às
diversas categorias (irmandades de brancos e irmandades de pretos, privilégios para os
senhores e os brancos nos templos, nos atos do culto, etc., a questão do estatuto de “limpeza
de sangue” e a sua aplicação).
1.6 No nível cultural, a Igreja procedeu como portadora única da cultura para os
habitantes da nova terra através do clero diocesano e dos religiosos, especialmente os jesuítas
com seus colégios e seminários.
Ainda aqui, os mecanismos de controle da Metrópole estenderão, durante, os seus
tentáculos na evolução da colônia. A Inquisição estará sempre atenta e a Mesa da Consciência
e Ordens fiscalizará, com muita solicitude, a entrada de livros e as publicações (feitas somente
em Portugal), pois no Brasil não eram permitidas topografias). As sociedades secretas e

97
acadêmicas surgirão, com dificuldades, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII
ainda assim sob rigoroso controle.
Mesmo na questão de ensino, nos métodos e no universo mental do humanismo haverá
limites e restrição, haja vista a inutilidade dos esforços dos jesuítas para que os graus de seus
institutos ou colégios no Brasil fossem reconhecidos como graus universitários de Coimbra.
2. Vida interna da Igreja
Dentro deste contexto de variáveis, decorrentes da influência cruzada de fatores nos
diversos níveis de condicionamentos acima focalizados, é que devemos abordar, para uma
avaliação, a validade do catolicismo, tendo como referência o exercício e o teor da missão
evangelizadora – tarefa especifica da comunidade eclesial. Praticamente é a pastoral em seus
variados aspectos que nos fornecera os instrumentos de apreciação da qualidade e intensidade
da vida e da ação da Igreja.
Para isso é necessário analisar a pastoral em sua infra-estrutura (quadro
organizacional), em seus agentes de sujeitos, nos métodos. Como consequência, destacaremos
algumas características que marcaram o processo de implantação do catolicismo e os
problemas maiores que o acompanharam.
2.1 Quadro Organizacional
Logo começa a ser instalada a organização clássica: a diocese de Salvador responde
aos insistentes apelos do Padre Manoel de Nóbrega em favor de uma autoridade maior capaz
de coibir os abusos do clero e coordenar as tarefas do ministério (1551). Conforme o ritmo de
surgimento de povoados, vilas, cidades, engenhos, nascem capelas curadas, as paróquias, as
capelanias. São estabelecidas as irmandades com o objetivo de ajudar o culto e assistir a seus
membros e aos pobres. As Ordens Terceiras aparecem sob a orientação e inspiração dos
religiosos. (franciscanos e carmelitas) como um canal de difusão das devoções próprias de
cada Instituto e como fonte de auxílio para as suas obras. As “Casas de Misericórdia”
prolongarão o trabalho assistencial das Irmandades. Uma atenção particular será dada à
educação através dos “seminários” (noviciado e estudos) das outras ordens.
A única forma nova em termos de organização se revelara nas “doutrinas” e nos
aldeamentos dos índios que se desenvolverão sob a direção integral dos Religiosos à margem
às vezes, outras em conflito com os Prelados, mas ordinariamente em clima de coexistência
pacifica. No conjunto, a organização montada não traduz um esforço de inventividade para
responder às necessidades originais das situações que pediam métodos diferentes de
evangelização.

98
2.2 Agentes de pastoral
Na primeira etapa, no Brasil trabalhavam apenas padres diocesanos e, de passagem,
missionários franciscanos. Já e, 1549 chegavam os jesuítas com o primeiro governador geral.
Entre 1580 e 1590, carmelitas, beneditinos e franciscanos fundam conventos e mosteiros no
nordeste e no sul. No século XVII entravam os mercedários e capuchinos franceses no norte e
os oratorianos no nordeste.
Padres seculares e os regulares (padres e irmãos) constituíam quase exclusivamente o
quadro de agentes de pastoral, pois os leigos cooperavam, em geral, como encarregados de
capelas ou “puxadores de rezas” e ermitães.
Vindos da Europa, despreparados sem muito empenho, aplicavam simplesmente os
elementos aprendidos em sua terra de origem, adaptando-se a duras penas à mentalidade, aos
costumes e aos problemas do país. Merece menção a preocupação dos jesuítas que, na palavra
do Padre Vieira, deviam passar por aprendizado antes de iniciar os seus trabalhos,
especialmente com os silvícolas.
Só aos poucos e timidamente se nota o desejo de um clero nativo (indígena), tarefa
que foi tentada pelos inacianos, mas deixada de lado já no começo do século XVII por
motivos de ordem política, étnica e temperamental.
As tentativas de criação de seminários episcopais, raras e infrutíferas nos dois
primeiros séculos, tomarão corpo no meado do século XVIII. Os padres, salvo os que vinham
do Reino ou os que iam estudar em Coimbra, eram formados em esquemas de emergência nos
palácios dos bispos e frequentando as aulas das casas religiosas. Compreendemos portanto,
que em termos de pastoral, os agentes da evangelização dificilmente poderiam escapar ao
nível da rotina e às práticas de uma aplicação material das normas tridentinas.
2.3 Sujeitos da Pastoral
Grosso modo podemos dizer que os destinatários da pastoral se distribuíam de acordo
com as categorias sociais:
- os brancos (portugueses)
- os índios
- os negros (escravos)
A medida que progride o processo colonizador, avoluma-se o fenômeno da
miscigenação com o produto dos tipos mestiços (livres ), que formarão uma faixa diferenciada
dentro da sociedade.

99
A pastoral portanto, tinha diante de si grupos diferenciados que forçosamente exigiram
tipos matizados de evangelização! Entre os batizados (brancos e mestiços) e os índios e
negros a batizar, havia a heterogeneidade de cultura (visão do mundo diversa) defasagem da
língua, motivações variadas (da parte do evangelizador e sobretudo, do evangelizado),
situações de vida – foco de injustiças – tudo isso levantava barreiras e desafios para o
cumprimento eficaz da missão da Igreja.
A tais desafios foi dada uma resposta global inspirada nas diretivas do Conselho de
Trento, já implantadas em Portugal. Nesse contexto é que se desenvolvem experiências novas,
capazes de atender aos caos particulares dos negros e dos índios. A catequese dos escravos,
como dizem os autores da época, levava em conta a situação dos mesmos e visava incorporá-
los à cristandade, tornando-os com os rudimentos de doutrina recebidos, mais dóceis e mais
conformados; procurava-se contornar o cerne das questões sociais e se limitava ao
“espiritual”, como elemento aliviador. Era superficial, contentando-se com os pontos básicos
da fé e em um tipo de adaptação de linguagem dificilmente acessível, conforme se depreende
do Catecismo para o batismo e a comunhão dos negros escravos, oficialmente consagrado
pelas Constituições da Bahia. No setor da evangelização, os índios serão privilegiados,
tentando-se em função deles algumas experiências e inovações que surtirão efeito ou não, na
medida mesma em que os aldeamentos encontrarem sua forma e possibilidade de realização
em uma trajetória de altos e baixos, devido à política da Metrópole e aos interesses dos
colonos escravocratas.
2.4 Métodos e meios da pastoral
Pelo que vimos do clero, concluímos naturalmente que em métodos de pastoral, se
transportaria, pura e simplesmente, o que se fazia em Portugal e na Europa: na linha das
normas do Concilio de Trento, a pregação nos moldes do Catecismo que fora redigido para
auxilio aos párocos, deveria ter um lugar de destaque. Na realidade, porém, o catolicismo no
Brasil terá como dominante a sacramentalização em massa, o devocionismo envolvente e
supersticioso. A catequese, tanto para adultos como para crianças e escravos, realizada mais
como obrigação, não podia fugir às fórmulas feitas e apreendidas mecanicamente.
Em questão de métodos, a necessidade de atingir os índios é que forçou os religiosos
dos aldeamentos na busca de novas formulações em um aprendizado pedagógico cheio de
contradições e incompreensões da parte de algumas autoridades eclesiásticas. Ainda assim os
jesuítas, em respeito à cultura indígena, procuravam-se inspirar-se nos seus usos e costumes,
na sua linguagem e em seu universo mental, a fim de lhes transmitir o sentido do evangelho.

100
Aproveitando-se de alguns ritos dos gentios e de sua inclinação para as festas, puderam eles
acomodar no teatro (os autos), nas procissões e nas ocasiões de impacto (os funerais) os
valores sadios da tradição cristã com uma metodologia eficiente. E logo constataram que uma
iniciação rápida e o batismo prematuro não tinham sentido, passando a exigir muito mais para
uma incorporação consciente à igreja. Injunções econômicas e políticas, próprias ao sistema
colonial (como o medo da Metrópole face à autonomia das Ordens Religiosas, à ampliação do
poder e influencia dos jesuítas, Às rivalidades internas na Igreja etc.), embargaram as
possibilidades pastorais do regime de aldeamentos.
No conjunto, o catolicismo oficial, embora dominante, dava margens à prática de um
catolicismo menos formal e mais espontâneo que se enraizava mais na alma do povo
(Catolicismo popular).
3. Características e problemas do catolicismo colonial
Não é tarefa fácil identificar com precisão o teor e o tipo do catolicismo colonial,
portador de ambiguidades visíveis e ambivalentes (nível das instituições e nível popular). A
simples enumeração de certo número de suas características e o levantamento de alguns
problemas relevantes que o trabalhavam por dentro, já nos encaminham para um quadro
referencial que nos dê condições de compreendê-lo.
3.1 Características
Qualquer caracterização do catolicismo da época colonial se ressentirá das
“ambiguidades” em que o processo da vida interna e externa da Igreja se desenrola em uma
trajetória realista de alternativas e contradições. Ao assinalarmos de maneira rápida alguma de
suas características, fazemo-lo com o intuito de levantar um roteiro para reflexão e
discussões:
a) em termos de mentalidade, Salientamos o primarismo no campo do conhecimento
da doutrina cristã, vista a prendida através da mediação de formulações abstratas (catecismo),
de exposições acadêmicas (sermões ou sermonários) e parciais (pregação de certos pontos
como as “verdades eternas”, deixando de lado elementos importantes da mensagem cristã).
Ao lado do primarismo, o baixo nível da consciência critica que incapacitava a maioria dos
cristãos para um confronto dos problemas reais com as exigências do Evangelho. Desta
maneira se facilitava o caminho para as acomodações equivocas de uma vida cristã
compatível com a duplicidade de comportamentos morais e com situações de injustiças
aberrantes assumidas como se fossem normais para um católico, no esquema do sistema
colonial.

101
Em terceiro lugar, reinava uma visão ambígua e insustentável da religião como um
freio moral para a sociedade, um apoio para conter os pobres, trabalhadores livres e escravos
nos seus devidos lugares, apontando para eles a esperança da salvação eterna; os escravos,
negros e índios, não podiam deixar de ligar a religião ao modo de proceder de seus senhores;
b) em termos de comportamento. É preciso ressaltar a penetração continua do
“clericalismo”, ao mesmo tempo em que criava e alimentava um estatuto de “minoridade” dos
leigos dentro da Igreja. Além disso, os comportamentos dos cristãos vinham marcados de um
artificialismo, fazendo a religião postiça e desligada da vida, de um formalismo revelador dos
descompassos entre o cristianismo oficialmente pregado e o comumente vivido, de um
folclorismo com a prevalência de acidental e das exterioridades de um individualismo
marcante, pensando cada vez mais cada um em si mesmo, procurando a proteção do seu santo
preferido em detrimento do dinamismo comunitário e pondo a religião a serviço de interesses
temporais;
c) em termos de Igreja. Desejosa de “sacralizar” o temporal, a Igreja ligou a sua
missão evangelizadora à construção de uma “sociedade de ordens”, dura e rigidamente
vertical em que os mais fortes e os mais ricos eram tão “bons cristãos” como os demais. E, em
um paradoxo estranho, é este mesmo catolicismo que inspira, alimenta e desenvolve o
entusiasmo das obras assistenciais, aliviando assim das injustiças os oprimidos.
A privatização era um mal que consumia as forças de uma possível e autentica
comunidade eclesial: os grandes faziam da Igreja uma propriedade particular, colocando-a
assim a seu serviço através de suas esmolas, doações e legados e fazendo dos padres simples
“capelães” da casa grande. Semelhante fenômeno de “privatização” não encontrou resistência
nem a mentalidade dos clérigos e religiosos, envolvidos capciosamente na rede dos benefícios
materiais, nem nas medidas eclesiásticas por falta de um centro de decisões dinamicamente
coordenador.
Sempre é funcionalismo relativa a eficácia dos quadros institucionais, dos organismos,
instrumentos e mecanismo de ação da Igreja. No período colonial, todo o conjunto da Igreja
como instituição tendeu mais a operar como base de sustentação do status quo, a criar ou
recompor um clima de moralização do que a propiciar um quadro de dinamismo evangélico.
Por isso a primazia do jurídico virá a tornar-se uma constante ao catolicismo brasileiro,
embora o profetismo cristão de – pessoas ou grupos – tenha em alguns momentos criticado,
denunciado e até contestado alguns vícios da Igreja e do sistema colonial.
3.2 Problemas

102
Não somos nós que “problematizamos”o catolicismo colonial. Ele mesmo viveu certos
dramas e certos momentos de tensões embora nem sempre seja possível avaliar com exatidão,
a autoconsciência que a Igreja da época teve de seu alcance e de suas repercussões. Para
esquematizar a nossa colocação vamos distribuir em três fontes a apresentação de alguns
problemas:
a) fonte política. O regime de união da Igreja com o Estado, com a fórmula flexível do
regalismo e o instrumento jurídico do Padroado provoca uma cadeia de questões práticas às
vezes em situações ou matérias pouco relevantes, mas todas elas criadoras de mal-estar e de
distanciamento entre as partes. O relacionamento entre governadores e bispos, entre clero e
capitães-mor, entre religiosos e câmaras municipais teve seus altos e baixos, revelando bem
uma concepção de Igreja como uma sociedade detentora de poderes em luta contra um estado
todo-poderoso. Havia casos-limites, como o dos jesuítas, expulsos duas vezes da cidade de S.
Paulo pela Câmara municipal (séc. XVII), como desterrados foram do Pará e Maranhão na
mesma época e pelos mesmos motivos (a defesa dos Índios). No mesmo plano de
importância, temos o exemplo dos prelados do Rio de Janeiro que, durante um século (1576-
1676), foram ameaçados, perseguidos com a cumplicidade resultantes de hostilidade pessoal,
de ambição de prestigio que, explorando circunstância de somenos, fechava com inimizades e
picuinhas o cerco em trono do bispo e do cabido da catedral (o Governador de S. Paulo julgou
uma grave falta de respeito não o haverem incensado devidamente na missa solene ao tempo
de D. Frei Manoel da Ressurreição) (1785-1789);
b) fonte econômica. Bastante significativos foram reflexos da conjuntura econômica
na vida e na ação da Igreja e sob diversas formas.
Ao tempo das Companhias de Comércio no Pará e no Maranhão, o monopólio destas
criava áreas de atritos com os comerciantes e também com os religiosos que tinham interesses
na colocação de seus produtos ou na compra de mercadorias e escravos.
A isenção de tributos e taxas que certas Ordens, especialmente os jesuítas,
conseguiram, suscitou discussões em conta, recursos à Coroa, uma vez que os governadores
se recusavam a aceitar privilégios prejudiciais aos cofres públicos.
A ganância de cobrança de emolumentos que se manifestava, periodicamente, em
diversos pontos do Brasil, e que recrudesceu ao tempo da descoberta e da exploração das
minas, causou grandes ocasiões de vexames, escândalos e intervenções até dos governadores.
Sem queremos subestimar o desinteresse e o despojamento de grande número de missionário,
é indiscutível, no entanto que a Igreja viveu uma dialética contraditória em

103
comprometimentos temporais, necessários de julgarmos em perspectiva humana, mas
dispensáveis se as Ordens Religiosas, em especial, fossem mais empolgadas com o
testemunho evangélico. A alternativa da pobreza evangélica a que deviam consagrar-se não
foi devidamente levada a sério.
c) fonte intra-eclesial. Seria ingenuidade pensarmos que graves questões não afetaram
internamente o catolicismo. Dessas das mais sérias giravam em torno internamente o
catolicismo. Dessas as mais sérias giravam em torno de divergências e divisões em diversas
áreas de pastoral que eram cobiçadas por uns e outros. Focos de átrios não faltaram entre os
bispos e o clero diocesano, entre religiosos e padres seculares e, ate mesmo, dentro das
próprias Ordens Religiosas.
Tais situações constituem uma tradição negativa para a Igreja que, no conjunto,
porfiava em dar provas as unidades. Não temos condições de saber exatamente as dimensões
de tais conflitos. Existiram porém, desde o início, entre o bispo D. Pedro Fernandes Sardinha
e o Padre Manoel da Nóbrega, despontaram na Paraíba do Norte entre os jesuítas e
franciscanos no século XVIII, entre lusos e brasileiros que disputavam cargos e funções na
fase dos primeiros surtos nativistas. Esses poucos exemplos exigem do historiador uma
atitude realista e humilde para reconhecer a forca e a fraqueza da Igreja como força
importante no complexo social da colônia, em que houve muita luz e muitas sombras com as
quais o catolicismo se fez conivente.
O período colonial é tão unitário que, na prática, cultura e religião e política, e
economia e religião, tudo andava por demais misturado e unido que os erros e acertos e uns e
outros setores se recobrem. E assumem Igreja e Coroa, os mesmos graus de responsabilidade
diante do julgamento da história, no regime de dependência do poder espiritual em face do
poder temporal marcando negativamente a ação dos agentes de pastoral e a qualidade mesma
do catolicismo.

(LUSTOSA, Frei Oscar de Figueiredo. A presença da Igreja no Brasil. São Paulo: Editora
Giro, 1977, p. 9-23.)

104
2. A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA: UMA INTRODUÇÃO

1. Duas tradições na historiografia brasileira

Antes de abordar o assunto, temos que comunicar ao leitor quais os problemas que
encontramos ao ler publicações e estudos em torno do tema “catolicismo no Brasil”.
Existem na realidade pesquisas de Varnhagen, outra das orientações de Capistrano de Abreu.
A primeira tradição é a mais conhecida pois ela é apresentada na história-pátria oficial tal qual
é ensinada nos ginásios e colégios: é a historia dos grandes, dos poderosos, das instituições
que dominam o povo brasileiro. A segunda é a historia dos esforços dos brasileiros comuns,
do povo mesmo. Ora, como a história do catolicismo é antes de tudo a historia da fé e das
crenças vividas pelo povo, tivemos que optar por Capistrano de Abreu.
Para Varnhagen, a historia do Brasil começa na Europa, não no Brasil. Por sugestão do
naturalista alemão von Martius que visitou o interior brasileiro no século passado, Varnhagen
inseriu na sua “historia geral do Brasil” um capítulo introdutório sobre os índios, numa visão
essencialmente colonialista: os índios representam a “infância da humanidade”, eles estão
apenas no inicio de uma longa evolução da qual nós representamos os estádios mais
evoluídos, eles carecem de organização (anarquia), de moral (poligamia), de religião
(superstição), e vivem “sem lei nem rei”.
A partir da quinta secção de sua “história”, Varnhagen descreve a evolução dos
governos, das guerras contra o “gentio”, e segue os passos do rei português e da sua corte em
tratados e armistícios , defesas e conquistas, fatos e sucessos, guerra e paz. A historia se
resume no que faz o rei. O monarca parece legitimo representante de Deus e vigário do papa,
padroeiro da igreja e advogado dos índios. A história segundo Varnhagen é essencialmente
centralizante. Por isso “ele passa por alto a nossa organização primitiva, as fases do nosso
progresso, os movimentos revolucionários provocados pelos desacertos da suprema
administração”, segundo a crítica do historiador Maximiano Lopes Machado. “Para ele, a
conjuração mineira é uma cabeçada e um conluio; a conjuração baiana de João de Deus, um
cataclisma de que rende graças a Deus por nos ter livrado; a revolução pernambucana de
1817, uma grande calamidade, um crime em que só tornaram parte homens de inteligência
estreita, ou de caráter pouco elevado. Sem Dom Pedro a independência seria Ilegal, ilegítima,

105
subversiva, digna da forca e do fuzil”. Para Varnhagen, a independência é antes o grito de um
imperador do que um movimento popular.
O defeito da apresentação da historia segundo Varnhagen pode ser simplesmente que
ele descreve o que realmente não é importante e deixa de lado o que tem importância para
entender a vida no Brasil: recebemos um amontoado de fatos, de datas e de informações fora
da vida, além de assimilar interpretações mitológicas que deformam a verdade dos
acontecimentos: exemplo típico: as narrativas das guerras holandesas, ás quais Varnhagem
dedica nada menos que cinco secções de sua “história” (secções 27-32). Tal interpretação não
revela a vida do povo “capado e recapado, sangrado e ressangrado”.
Capistrano de Abreu encara a história de sua terra de maneira inteiramente diferente:
“Estou resolvido a escrever a história do Brasil: parece-me que poderei dizer algumas coisas
novas e pelo menos quebrar os quadros de ferro de Varnhagen que, introduzimos por Macedo
no colégio Pedro II, ainda hoje são a base do nosso ensino. As bandeiras, as minas, as
entradas, a criação de gado pode dizer-se que ainda são desconhecidas, como alias, quase todo
o século dezessete, tirando-se as guerras espanholas e holandesas”. O Brasil para Capistrano,
é antes de tudo o povo. Daí o seu interesse em conhecer a geografia, a etnologia, a sociologia,
o folclore, os costumes, os provérbios, a sabedoria popular, a religiosidade, na ânsia de sentir
a vida do povo. Capistrano não acredita nos “grandes personagens da nossa história”: ele
desmitiza Anchieta e Antônio Vieira, Mem de Sá e Joaquim Nabuco, os “heróis” das
restaurações baiana e pernambucana, e mesmo Tiradentes: “Na Suíça é proibido hoje nas
escolas públicas introduzir a história de Guilherme Tell, depois da crítica histórica ter
mostrado a sua inanidade. Por que, então, tendo estudado o depoimento de Tiradentes e a
sentença da alçada, sou obrigado a repetir a versão corrente e colocá-lo no Panteão”?.
O interesse de Capistrano está em nos mostrar os esforços dos homens comuns que
realizam as bandeiras, as minas, as estradas, a criação do gado: “ No século dezessete, não há
questão mais importante que o caminho terrestre do Maranhão à Bahia”. A paixão de
Capistrano é pelos fatos de alteraram a vida do povo, que lhe deram nova esperança: a guerra
dos emboabas, dos mascates, a luta entre colonos e jesuítas “Entre os colonos e os jesuítas
minha posição é bem definida: sou pelos jesuítas”, a revolução pernambucana de 1817, a
independência. Eis como Capistrano aos vinte e um anos, em 1875, descreve a independência:
“A pouco e pouco a emoção antiga de inferioridade em relação a Portugal foi desaparecendo;
a emoção de superioridade rebentou, cresceu e deu-nos o sete de setembro, dia- século de
nossa história”.

106
Optamos, pois por Capistrano de Abreu e pela tradição inaugurada na historiografia
brasileira pelo eminente historiador cearense. Todavia, ao encontrarmos neste caminho,
descobrimos que existem muitas lacunas na documentação a respeito do povo brasileiro: os
ricos deixam farta documentação em arquivos, iconografia, monumentos e construções,
enquanto os pobres não deixam muitos vestígios ao passar pela vida. A história dos pobres é
difícil de ser reconstruída. Contudo, é necessário conhecê-la para sustentar a esperança da
Igreja.
Quais as barreiras existentes para a pesquisa da vida dos pobres no Brasil? Existe em
primeiro lugar o simples descuido em registrar o que se passa com pobres e humilhados. Os
numerosos quilombos da história do Brasil praticamente só nos são conhecidos através de
relatos da repressão policial; pouca coisa foi arquivada da vida dos índios dos aldeamentos
missionários; a participação popular em movimentos importantes como a revolução de 1817,
o cangaço, o messianismo sertanejo, as rebeliões de senzala etc. conservaram vestígios apenas
na cultura popular. Em segundo lugar houve a destruição de documentos considerados
humilhantes, como os que se referiam à escravidão africana (decreto de Rui Barbosa, no
início da primeira república). Numerosos arquivos das Santas Casas de Misericórdia e de
administrações em geral foram queimados por interesse de particulares. Uma terceira
dificuldade provém do fato de que a história dos colonizadores: a história dos índios pelos
brancos, a dos escravos pelos negreiros. Desta maneira os povos colonizadores sofreram uma
forma sutil de alienação: a sua própria história se lhes tornara incompreensível e por vezes
desprezível. A África sofreu isso até recentemente, pois sua história foi contada por árabes e
europeus. O Brasil também sofre esse tipo de alienação: a sua história é às mais das vezes
objeto de interesse e preocupação da parte dos que querem explorá-lo. Uma fonte
imprescindível de conhecimento do Brasil colonial é constituída por relatos de viajantes
estrangeiros de passagem pelos portos brasileiros; no século dezenove eram os ingleses que se
interessavam pela história brasileira e atualmente existe o grupo de “brazilianists” americanos
que procura interpretar o passado brasileiro a partir de conceitos como “tradição e mudança”,
“conflito e continuidade”.
Contudo, a história dos pobres existe. Ela é conhecida pelos grupos que conservam a
fé no Reino que vem na simplicidade e na perseguição. Ela se baseia, não nos documentos
oficiais julgados dignos de serem conservados, mas na sabedoria popular, nas tradições que se
transmitem de geração em geração, no simbolismo religioso. Não é de outra maneira que nos
é conhecida a história de Jesus de Nazaré, do povo eleito, dos apóstolos, mártires; santos, do

107
fervor cristã através dos tempos. O simbolismo religioso, por exemplo, é fonte válida para
pesquisa da vida do povo, pois a sua linguagem é sincera, embora difícil de ser interpretada. A
religião diz respeito a experiências humanas concretas. Ela constitui uma historia simbólica de
grande valor. Para dar um exemplo: numerosas imagens “significam” medo d mar que
portugueses sentiam na empresa ultramarina: Nossa Senhora Aparecida, da Penha, da Guia,
das Graças. Outras significam a saudade da terra natal: Nossa Senhora do Desterro, outras e
encanto: Nossa Senhora das Maravilhas, outras ainda a gratidão: Nossa Senhora do
Livramento, do Amparo, do Bom Sucesso, da Piedade. As imagens de Nossa Senhora das
Dores, da Conceição, do Rosário, refletem a vida nos engenhos. No decorrer de nossa
descrição, teremos repetidas oportunidades de interpretar a linguagem simbólica da religião,
fonte de informações a respeito da vida do povo e da evolução do catolicismo no Brasil.

2. O catolicismo brasileiro: uma religião “obrigatória”


O nosso ponto de partida é o seguinte: o catolicismo brasileiro assumiu nos primeiros
séculos de sua formação histórica um caráter obrigatório. Era praticamente impossível viver
integrado no Brasil sem seguir ou pelo menos respeitar a religião católica. As recentes
pesquisas de Anita Novinsky a respeito da posição social dos “cristãos-novos” na sociedade
baiana do século dezoito comprovam esta afirmação. Para explicar tal obrigatoriedade da
religião católica, é preciso lembrar que a inquisição portuguesa sempre teve mutia influência
sobre a evolução do catolicismo brasileiro, embora de uma maneira indireta: o Brasil – em
contrate com outros países latino-americanoos – nunca teve tribunal do Santo Oficio. Os
acusados ou suspeitos eram levados ao tribunal de Lisboa. Contudo, durante todo o período
do primeiro pacto colonial, por mais de duzentos anos, a inquisição portuguesa constituiu um
poder praticamente controlado por ninguém: um verdadeiro terceiro poder portuguesa daquele
tempo: o poder espiritual do papa, dos bispos, dos sacerdotes e o poder temporal do rei, dos
seus funcionários e militares.
A inquisição ajudou poderosamente a formar (ou deformar) a consisnecia católica no
Brasil, criando a impressão de que todos são católicos da mesma forma, obedecendo às
mesmas normas e lutando contra a os mesmos inimigos. O catolicismo é o “cimento” que une
a nação, o “laço” que prende a todos, o local de reunião e confraternização entre as raças as
mais diversas que compõem nacionalidade: afirmações como estas se repetem de geração em
geração, embora elas pareçam bastante levianas para quem sentiu o clima de medo e de
repressão existente na colônia. Desconhecendo a influencia da inquisição, o estudo do

108
catolicismo no Brasil colonial foi frequentemente abordado com superficialidade, sem muito
realismo. Quem pode ainda acreditar na “confraternização” pelo catolicismo sabendo que
africanos e ameríndios, reduzidos à escravidão, tiveram que apresentar-se como católicos para
serem aceitos na sociedade e garantirem a sua sobrevivência? Não pode haver
confraternização sincera neste caso. Ainda há muita documentação em torno da inquisição a
ser pesquisada, mas mesmo assim parece que não se pode negar a sua influencia marcante na
formação do catolicismo brasileiro.
Foi por ocasião da organização da inquisição em Portugal em 1536, sob o reinado de
Dom João III, que numerosos “cristãos-novos” (descendentes de judeus, assim chamados em
oposição aos “cristãos-velhos” que descendiam de antigas famílias católicas) emigraram para
a América, a Ásia e a África, tentando fugir dos rigores da instituição. Escreve J. Gonçalves
Salvador: “Afora os Países Baixos não havia refúgio melhor”. Algumas famílias descendentes
de “cristãos-novos” no Brasil: Lopes Franco, Antunes, Mesquita, Araújo, Góis, Bitencourt,
Botelho. Mas mesmo os colonizadores descendentes de famílias tradicionalmente católicas
trouxeram consigo para o Brasil o medo diante da inquisição: desde 1540 até 1765 houve
regularmente a “celebração” de auto-da-fé em praça pública, onde judeus ou judaizantes eram
queimados vivos à vista do povo, em Lisboa, Évora e Braga, onde existia tribunal do Santo
Ofício. Além disso, o Santo Oficio estendeu o seu braço até o Brasil, nos primeiros séculos,
por meio de “visitações” de “deputados” que vieram saber da vida do povo, mas a partir do
século dezoito de maneira mais drástica, pois os “familiares do Santo Oficio” começaram a
cobiçar também as riquezas do Brasil: houve deportação de numerosos brasileiros para os
limoeiros da inquisição em Lisboa. Varnhagen estima que uns quinhentos brasileiros foram
“remitidos e condenados” durante o século dezoito, mas este número não parece muito seguro
pois Maximiano Lopes Machado, que pesquisou a situação na Paraíba, apresenta dados que
Varnhagen não menciona: finalmente a pesquisa em torno da inquisição ainda é incipiente,
apesar dos esforços de Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia, José Antônio Gonçalves de
Melo e outros.
As “visitações do Santo Ofício às partes do Brasil” ocorreram sobretudo nos séculos
dezessete em Pernambuco e na Bahia, constituindo as “denunciações” e “confissões” feitas
por ocasião destas visitações fonte preciosa para o nosso conhecimento da vida diária e dos
costumes no Brasil colonial: os “deputados” quiseram saber de tudo e nada escapava ao seu
olhar penetrante, nem mesmo os aspectos mais privados da vida. Em 1619 tratou-se de criar
um tribunal do Santo Oficio em Salvador da Bahia, o que não se realizou, sendo que o

109
“deputado” Marcos Teixeira, que tinha realizado uma visitação em 1618, voltou como bispo
em 1622.
Quando, no decorrer do século dezoito, movimento comercial no Brasil começava a
interessas muita gente, a Inquisição não ficou desinteressada e começou a deportar brasileiros
“cristãos-novos” riscos para Portugal com subsequente confisco dos bens no Brasil. Eis os
anos em que figuraram brasileiros entre os condenados em auto-da-fé em Lisboa: 1704, 1706,
1707, 1709 (cinco da Bahia e sete do Rio de Janeiro), 1713 (trinta e dois homens e quarenta
mulheres, todos do Rio), 1714, 1720, 1723 e 1726 (o padre Manuel Lopes de Carvalho,
natural da Bahia), 1731 (Guiomar Nunes, de Pernambuco), 1739 (o famoso caso de Antonio
José da Silva, do Rio).
Diante deste clima de medo criado pelas denunciações, visitações, deportações,
repressões e confiscos, os brasileiros reagiram de maneira inteligente: criaram um catolicismo
ostensivo, patente aos olhos de todos, praticado sobretudo em lugares públicos, bem
pronunciado e cheio de invocações ortodoxas a Deus, Nossa Senhora, os santos. Todos
tinham que ser “muito católicos” para garantir a sua posição na sociedade, e não cair na
suspeita de “heresia”. J. Gonçalves Salvador relata como a expressão: “Rogo à gloriosa Maria
Senhora Nossa e Mãe de meu Senhor Jesus Cristo” no testamento de um cristão-novo já era
suspeita. O certo era: ”Rogo à gloriosa Virgem Maria Nossa Senhora e Mãe de Deus”.
Falando da Igreja, a fórmula era: “A Santa Madre Igreja” (mais tarde: “apostólica romana”,
contra os protestantes); a fé: “A Santa Fé”; a missa: “O santo sacrifício da Missa” (contra os
protestantes). Todos se esforçaram a pronunciar de maneira certa as expressões
recomendadas, e finalmente acreditaram em tudo “o que crê a Santa Madre Igreja”. Era o
jeito.
Originou-se desta maneira o formalismo típico do catolicismo brasileiro: as formas
tinham que ser católicas, a todo custo. Quanto ao conteúdo dado às formas, este escapou – ao
que parece – ao olhar do Santo Oficio. Esse condicionamento facilitou a formação de
numerosos sincretismos dentro do quadro geral das formulas católicas, como veremos adiante.
Um caso bem conhecido neste contexto é o da preservação dos cultos africanos no Brasil:
estes cultos sobreviveram à repressão, graças ao bom senso dos funcionários tratavam os
cultos afro-brasileiros – dentro de uma estratégia bem colonialista – como danças e músicas
profanas, informando aos deputados do Santo Ofício que se tratava do folclore (como os
“fados” em Portugal), enquanto os africanos continuavam a adorar seus orixás sob invocações
e imagens católicas.

110
Na realidade, os brasileiros não eram tão católicos assim: isso ficou patente por
ocasião dos invasões holandesas do século dezessete, que foram sempre apresentadas pelas
autoridades como invasões de heréticos em terras católicas. Mas parece que o povo preferiu
os holandeses mesmo: o comandante holandês van Waerdenburch conseguiu desembarcar em
Pau Amarelo, perto de Olinda, no dia 15 de fevereiro de 1630, porque foi guiado por um
“judeu” que morava em Pernambuco. Tanto em Pernambuco como na Bahia, o derrotismo do
povo mostrou como o fervor católico não o animava tanto assim. Podemos verificar o mesmo
procedimento da parte do povo em outros momentos críticos: nas numerosas guerras contra os
índios e contra os quilombolas. Nestas lutas extremamente duras, os homens se descobriram
iguais e manifestaram a tendência de mandar e receber embaixadas, formular tratados de paz,
estabelecer um “modus vivendi”, instalar finalmente uma situação regular entre portugueses,
índios, africanos. Mas a coroa portuguesa nunca aceitou nem podia aceitar estes
compromissos de paz, e continuou a compactuar com a inquisição que garantia a
homogeneidade católica na luta contra índios e quilombolas.
Nestas condições, o catolicismo tinha que ficar firmemente estabelecido na vida
pública. Prova disso eram as numerosas confrarias, irmandades, ordens terceiras e
especialmente as confrarias denominadas “Santa Casa de Misericórdia” que se difundiam por
todas as cidades coloniais desde os primórdios da colonização. A entrada nestas confrarias era
cobiçada tanto pelos “cristãos-novos” dos séculos dezessete e dezoito como pelos maçons do
século dezenove: a emancipação dos leigos no Brasil se fez dentro destas confrarias, pois era
impossível naquele tempo reunir-se fora do ambiente religioso, nem mesmo na segunda parte
do século dezenove. O serviço social dentro da sociedade colonial era organizado e executado
dentro das confrarias e irmandades, especialmente das “Santas Casas”. Em Salvador, por
exemplo, conforme pesquisou Carlos Ott, a “Santa Casa” era hospital (o único antes de 1759),
orfanato (a famosa “roda” para “exposição” de crianças), recolhimento para moças
casamenteiras, escola de medicina, farmácia, mecenato de artistas, proprietária de prédios
urbanos, fazendas e engenhos, capela com serviço religioso assegurado, empresa funerária
etc.
Através dos conventos, das paróquias, das irmandades e confrarias formou-se uma
sociedade na qual ninguém escapava à necessidade de apelar para instituições religiosas: para
conseguir emprego, emprestar dinheiro, garantir sepultura, providenciar dote para filha que
queria casar-se, comprar casa, arranjar remédio. A “Santa Casa” era o primeiro banco de
Salvador: “Na cidade de Salvador quase não se abria testamento em que não fosse destinada

111
alguma soma em dinheiro para a Santa Casa: emprestava-se assim a irmandade, aos poucos,
no primeiro banco da Bahia”. Estes fatos, além da grandiosidade dos monumentos religiosos
que o período colonial nos deixou, podem dar impressão que o catolicismo brotou
espontaneamente da alma popular brasileira: ainda hoje numerosas casas comerciais,
numerosos cinemas, teatros, restaurantes, bares, oficinas, hotéis têm nomes religiosos. Esta
impressão provém do fato que os vestígios do passado não nos comunicam o medo que
reinava no Brasil colonial. É provável que a exuberante e ostensiva religiosidade brasileira
seja em parte condicionada pela simples lei da sobrevivência: proteger a casa comercial, o
engenho, a indústria sob invocação religiosa de um santo era maneira de escapar à
desconfiança do “deputados”, “familiares” e “oficiais” do Santo Ofício.
Uma leitura de certos capítulos das “constituições primeiras arcebispados da Bahia” de
1707, que foram lidos e repetidos ao povo nas igrejas e capelas no Brasil durante mais de
duzentos anos, basta para sentir e clima de medo e repressão religiosa reianante durante o
período português e mesmo durante o século dezenove. As “constituições” estipulam que o
Santo Oficio tinha autoridade no Brasil em quatro casos:

No caso de “religiosos, religiosas ou clérigos de ordens sacras, que se casarem” (nº297): aqui
encontramos certamente uma das razões pelas quais muitos sacerdotes preferiram viver maritalmente sem
casamento a enfrentar o tribunal do Santo Ofício.
No caso de alguém “dizer missa sem ser sacerdote, e do sacerdote que celebrando não consagrar nela”
(nº363).
No caso de “hereges e suspeitos de heresia” (nº886): “mandamos a todos os nossos súditos que tendo
notícia de alguma pessoa herege, apóstata de nossa santa fé ou judeu , ou seguir doutrina contrária àquela que
ensina a professora a Santa Madre Igreja Romana, a denunciem logo ao tribunal do Santo Ofício no termo de
seus editais, ainda sendo a culpa secreta como foi interior”. Este texto dispensa comentários e fala por si da
influencia da inquisição sobre a formação do catolicismo brasileiro.
No caso de “feitiçarias, sacrilégios, e superstições que envolverem manifesta heresia e apostasia na fé”
(nº903). O texto alude aos cultos ameríndios e africanos.

Da leitura de textos como estes podemos concluir que houve no Brasil colonial, como
em todos os domínios ibéricos, uma verdadeira “tirania sobre as almas” por meio da religião
católica. Ninguém podia livremente decidir em assuntos religiosos. Atrás desta repressão
religiosa figurava a exploração econômica praticada por Portugal. A inquisição era expressão
de colonialismo: ela estava ao lado do rei e da igreja estabelecida, contra os que negociavam
livremente e independentemente, deixando de constituir – desta maneira – fonte de renda para
a coroa portuguesa.
112
Por que as forças vivas da Igreja não reagiram contra esta deturpação da religião a
serviço de grupos de interesse? Além da severidade da repressão, parece que temos que
evocar aqui dois fatos na formação histórica do Brasil que podem explicar o caso: a falta de
livros e as falta de universidades. O Brasil colonial constituiu praticamente uma civilização
sem livro. Parece incrível mas é verdade histórica que uma ordem régia – ainda em 1747 –
mandou destruir a primitiva tipografia que Antônio Isidoro da Fonseca fundara no Rio de
Janeiro. Além disso havia censura severa sobre livros importados: as “constituições primeiras
do arcebispado da Bahia” de 1707 decretam que “livros que tratam de matéria sagrada e
andam sem nome de autor, quem os tiver ou vender sem primeiro serem aprovados pelo
Ordinário, incorre em apenas” (nº18). Somente em 1807 houve uma nova e tímida tentativa
em Minas de estabelecer um prelo no Brasil, sendo que fundou-se finalmente uma imprensa
régia no Rio em 1808, com a chegada de Dom João VI. É fácil imaginar o prejuízo decorrente
desta falta de livros: não pode haver reflexão propriamente cristã sem espírito crítico, que se
forma e se propaga mais facilmente pela circulação de livros. Um cristianismo sem livros se
torna em pouco tempo uma religião sem fundamentação bíblica, divorciada da teologia, uma
prática de devoções e cerimônias sem ligação com a vida.
Outro prejuízo para a cultura e a evangelização proveio da falta de universidades.
Portugal não quis saber de universidades no seu vasto império ultramarino. Era mais fácil
controlar as lideranças a partir de Coimbra, que formava os quadros intelectuais, eclesiásticos,
administrativos e jurídicos para a Ásia, a África e a América portuguesa, pelo menos a partir
da reforma pombalina. Isso em contraste com a América espanhola onde houve universidades
desde o inicio da colonização: São Domingos (1537), Lima (1552), México (1553), Cuzco
(1592), Quinto (1591), Santa Fé de Bogotá (1573), Córdoba (1613). Houve também imprensa
no México desde 1539.

3. A critica iluminista do catolicismo obrigatório


A partir de segunda metade do século dezoito, houve alguma mudança de atitude
diante do catolicismo em Portugal, pelo menos nos ambientes intelectuais dos quais emanava
o marquês de Pombal, e essa mudança repercutiu no Brasil pela ação de mesmo. Pombal
pertencia ao grupo de “estrangeirados” que foram influenciados pela famosa “crise de
consciência européia” que agitou os meios intelectuais franceses entre 1680 e 1715 e deu
origem ao movimento que nos é conhecido sob o nome de iluminismo (“ilustración” em
espanhol). Pombal era um iluminista e por conseguinte encarava o catolicismo de maneira

113
nova. No grupo dos “estrangeirados” começou-se a perceber que certas formas de catolicismo
podem ser patológicas, e isso foi uma descoberta muito importante para o futuro da Europa
em geral, de Portugal e do Brasil em particular. Desde então, essa percepção de certas
patologias no catolicismo não deixou de crescer, a tal ponto que atualmente há um capítulo
referente às “patologias no catolicismo” no mais elaborado manual católico de teologia
pastoral. Alguns pensadores portugueses da segunda metade do século dezoito, como Antônio
Nunes Ribeiro Sanches e D. Luís da Cunha, já tinham percebido que há diversas maneiras de
ser católico, de viver uma religião, e que uma religião pode ser instrumento de opressão como
era o caso da religião que sustentava a inquisição. Mais tarde, no final do século dezenove, o
filósofo português Antero de Quental analisou o assim chamado “catolicismo do concílio de
Trento” como uma das “causas da decadência dos povos peninsulares” numa conferencia que
teve profunda repercussão e ainda não perdeu totalmente a sua atualidade nos dias de hoje.
Damos aqui uns trechos desta conferência de Antero de Quental, que exprime o
sentimento e o modo de pensar de muitos no fim do século passado:

Até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica
originalidade, é o único grande fato evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador
filósofo... Ora, os fenômenos capitais (dessa decadência) são três: um moral, outro político, outro econômico. O
primeiro é a transformação do catolicismo pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo
pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas... O catolicismo do concílio de
Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso, mas organizou-o duma maneira completa,
poderosa, formidável, e até então desconhecida. Neste sentido, pode dizer-se que o catolicismo, na sua forma
definitiva, imobilizada e intolerante, data do século dezesseis... É necessário estabelecermos cuidadosamente
uma rigorosa distinção entre cristianismo e catolicismo, sem o que nada compreendemos das evoluções
históricas da religião cristã... É que realmente o cristianismo existiu e pode existir fora do catolicismo. O
cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da
inspiração: outro do dogma e da disciplina”.

Nestas colocações claras já encontramos tudo que e necessário para interpretar


corretamente o catolicismo: a distinção entre cristianismo e catolicismo, entre catolicismo em
geral e “catolicismo do concílio de Trento”, a compreensão das leis sociológicas que regem a
evolução das sociedades e por conseguinte também do catolicismo, finalmente a percepção do
sincretismo como fenômeno religioso importante.

4. Catolicismo e sincretismo

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É nesta perspectiva, aberta pelo iluminismo, que o tema “sincretismo” nos será um
instrumento de interpretação do catolicismo brasileiro. Este tema já é antigo na interpretação
do catolicismo brasileiro. Este tema já é antigo na interpretação das religiões, mas acontece
que entre nós ele recebe às mais das vezes uma conotação negativa e mesmo pejorativa, o que
tem prejudicado sobremaneira a pastoral na América Latina em geral, no Brasil em particular.
Os romanos já falaram em “sincretismo”: durante a campanha de purificação da antiga
e tradicional religião romana empreendida pelos imperadores romanos com o intuito de
conseguir a adesão de todos os súditos do imenso império ao imperador como representante
legítimo de Deus, a terminologia “sincretismo” foi evidentemente pejorativa. A religião
imperial encarava com desconfiança os sincretismos que ameaçavam e enfraqueciam o culto
ao imperador, base religiosa da dominação romana. Foi neste contexto que o cristianismo
primitivo foi combatido com uma “superstição”, um “sincretismo”.
Quando o cristianismo oficial conquistou a posição de religião legítima do império,
houve tendência de herdar dos romanos a interpretação imperialista do sincretismo. Esta
tendência foi frequentemente combatida pelos padres da igreja, contudo a controvérsia
permaneceu até aos nossos dias, sendo um dos temas constantes na história do pensamento
cristão. O tema opõe cristianismo oficial e cristianismo vivido na base, na realidade cultural.
No estado atual dos estudos de religiões comparadas, o sincretismo é encarado com
muito mais simpatia do que alguns anos atrás. Nestas páginas seguiremos estas tendências
recentes, que ainda não foram devidamente aprofundadas no pensamento católico, porque elas
nos parecem de grande valor para a reflexão em torno de novos rumos da pastoral.
Entendemos pois o sincretismo no sentido mais amplo da palavra, como “a coexistência de
elementos – entre si estranhos – dentro de uma religião”. Estes elementos podem ser
introduzidos como provenientes de outra religião (por exemplo: a imagem do Pai segundo a
revelação bíblica – a imagem do patriarca na cultura dos engenhos de açúcar). Existem
sincretismos externos (por exemplo: catolicismo europeu – candomblé africano) e sincretismo
internos (já assimilados por uma determinada religião, por exemplo: sincretismo entre a
mensagem cristã e as filosofias do mundo greco-romano como estoicismo, neo-platonismo,
sincretismos elaborados e analisados pelos padres da igreja num imenso esforço missionário
durante diversos séculos da história da igreja).
Neste sentido, o sincretismo é exigência da missão. Enviando os apóstolos a judeus e
pagãos, Jesus de Nazaré os obrigou a enfrentar as mais diversas culturas, a viver a mensagem
nas mais diversas situações. Daí nasce o sincretismo, deste impulso missionário. A missão, na

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realidade, tem dois “momentos”: um primeiro momento apologético, no qual se afirma a
peculiaridade da fe cristã frente aos paganismos, e um segundo momento sincrético, no qual o
missionário vai ao encontro dos paganismos com o intuito de impregná-los pela fé. Não se
pode de maneira alguma aceitar a posição dos que dizem que existe, de um lado, o
cristianismo puro e “autêntico” e, do outro lado, o paganismo oposto e irreconciliável. A
realidade é bem mais complexa: existem diversas situações humanas, diversas culturas. A
autenticidade do cristianismo se situa no nível destas situações e vivencias, não no nível dos
símbolos.
Diversas categorias de pessoas não gostam de encarar o sincretismo dentro de sua
própria religião. Há em primeiro lugar os que identificam religião e instituição religiosas
(igreja, seita, denominação). O catolicismo é decerto uma instituição e não se pode falar de
“sincretismo” na instituição de igreja: o papado, episcopado, sacerdócio, a paroquia, os
dogmas e os sacramentos são instituições típicas e genuinamente cristãs. Mas acontece que o
catolicismo não é só instituição, ele é também expressão de vida e de sentimentos. Dentro da
mesma instituição pode haver diversas maneiras de encarar a vida, os problemas sociais e
morais, e pode haver antagonismo entre as diversas maneiras de “viver” o catolicismo. Os
homens da instituição têm tendência a confundir religião e direito canônico, moral e disciplina
eclesiástica, santidade e observância da lei. Torna-se-lhes difícil encarar o sincretismo em
depreciá-lo.
Também os teólogos não costumam encarar o sincretismo de bons olhos.
Recentemente ainda se publicaram estudos, tanto do lado. Recentemente ainda se publicaram
estudos, tanto do lado católico como fenômeno de decadência religiosa ou pelo menos de
marginalização religiosa. O sincretismo típico do catolicismo latino-americano lhes parece
consequência da não-assimilação perfeita da fé cristã (europeia) na sua pureza. Restam
elementos de superstição ameríndia, animismo africano, paganismo finalmente. O sincretismo
é pelo menos fenômeno marginal para os teológicos. Lidando com a ortodoxia e a luta pela
expressão ortodoxa da fé, é compreensível que os teólogos sejam levados a esquecer a
complexidade de fenômenos culturais e sociológicos com os quais a mensagem cristã tem que
engajar diálogo, para conseguir interessar o homem como ele é realmente, e não apenas como
ele deveria ser.
Uma terceira categoria de pessoas que não se interessam em estudar o sincretismo são
simplesmente os católicos tradicionais, que possuem a religião católica como um patrimônio
familiar, transmitido de geração em geração pela simples convivência. Esse catolicismo: ele

116
se resume em alguns princípios de bom senso e de boa convivência como são: ser católico é
ter bom coração; a religião é o freio da sociedade; a religião ajuda a vier: a virtude está no
meio; a religião ensina a não prejudicar ninguém, a viver e deixar viver. Esses católicos
acreditam de antemão, sem espírito crítico, tudo que a autoridade proclama. Não pertencem e
não querem perceber os “sincretismos” entre sua fé e sua posição social, seus interesses, seus
egoísmos. São “fideístas” e têm boa consciência nisso. O condicionamento autoritário os
predispõe a aceitar sistemas fortes: uma recente pesquisa revelou que os católicos aceitam
mais facilmente que os outros sistemas autoritários. O seu fideísmo prefere não problematizar
a sua adesão ao catolicismo e consequentemente despreza a crítica proveniente das ciências
humanas acerca de certas patologias na religião. O católico fideísta percebe que essas criticas
podem lhe trazer tensões e provocar dificuldades no seu modo de viver: a sua religião é na
realidade uma fuga, uma simplificação da mensagem cristã no intuito de assegurar
tranquilidade e boa consciência. A sua obediência ao magistério eclesiástico é só aparente.
Já o simples homem da rua, no meio do povo, se for sincero e aberto, percebe sem
dificuldade o sincretismo, embora sem usar a terminologia, é claro. Ele percebe que há
diversas maneiras de ser católico mas o maçom também. Ele chega a dizer: “todas as religiões
são boas!” Ser católico nem sempre tem o mesmo sentido na vida. Temos o direito de afirmar
que o padre é mais católico de que o maçom? Em termos de “lei”,sim; em termos de vivência,
não necessariamente. O homem do povo também percebe os diversos sentidos das cerimônias
religiosas: existe por exemplo, a missa de sétimo dia, do padroeiro, de formatura, a missa
dominical, ou para festejar um acontecimento patriótico. Nem sempre a missa tem o mesmo
sentido na vida. O povo percebe com muita perspicácia como a religião é expressão de vida
em toda a sua complexidade e compreende por conseguinte que existem os elementos os mais
diversos dentro de qualquer instituição religiosa. Por isso ouve-se dizer: “Todas as religiões
são boas, contudo que se faça bom uso delas.”
Existem várias interpretações do catolicismo no Brasil que aceitam – pelo menos de
maneira implícita – o sincretismo dentro da religião católica. Num estudo recente, Pedro A.
Ribeiro de Oliveira apresentou diversos autores que elaboraram tipologias do catolicismo
brasileiro. São eles: Pin, Camargo, Thales de Azevedo, Comblin e Rolim. O que os levou a
pensar em tipologia, superstição, fanatismo etc.), os autores procuram estudar tipologias
baseadas em elementos culturais (Azevedo), sociológicos (Pin, Camargo), ou propriamente
estruturais (Comblin, Rolim). Quer nos parecer, todavia, que as classificações – a mão ser a
de Comblin – partem de uma imagem ideal do catolicismo, estabelecendo para escala de

117
maior ou menor aproximação com esse tipo ideal. Parte-se pois de um catolicismo
considerado autêntico. Ora, o problema é saber se existe na realidade sociológica tal forma
estabelecida de catolicismo autêntico ou se, pelo contrário, toda religião não é
necessariamente uma realização imperfeita, inacabada e coexistente com elementos estranhos
à sua autenticidade? A frequência dos sacramentos (catolicismo praticamente) ou a vivência
cristã? A vivência cristã é de difícil averiguação sociológica.
Sabendo destas dificuldades, alguns autores simplesmente apresentam diversos tipos
de catolicismo, obedecendo a princípios históricos (Comblin) ou sociológicos (Renato
Carneiro Campos, Gilberto Freyere). José Comblin, seguindo o fio de uma evolução histórica,
nos apresenta o catolicismo milagreiro, penitencial, barroco, iluminista, revolucionário,
secularizado, etc., sem emitir juízos de valor a respeito de superioridade ou inferioridade
destas diversas formas de religião. Num estudo despretensiosos mas valoroso, Renato
Carneiro Campos distingue entre “uma religião do pobre (do trabalhador de enxada) e uma
religião do rico (do senhor de engenho ou usineiro)”: “Não é demais se falar na zona da mata
de Pernambuco em uma religião do povo, diferente de uma religião intelectualizada,
originária de sua hierarquia refinada”. E no estudo clássico “Casa Grande e Senzala”, Gilberto
Freyre distingue entre um catolicismo patriarcal no litoral, um catolicismo sertanejo ou
pastoril no interior, um catolicismo mineiro nas localidades de mineração oitocentista.
Tais diversificações de tipos religiosos a partir da vida do povo nascem com mais
facilidade em situações onde uma religião enfrenta novas culturas, em situações missionárias
portanto. Por isso mesmo elas são mais latino-americanas do que europeias. Contudo, houve
na Europa uma tradição teológica em torno de Schleiermacher e – mais tarde- Adolfo von
Harnack que pode ser útil para a nossa pesquisa na América Latina. Foi por causa de
sucessores e fracassos das missões protestantes na África que o professor von Harnack
começou a interessar-se pelo sincretismo, a estimular seus discípulos no caminho do estudo
da religião e suas expressões culturais. Neste campo, Freidrich Heiler deu uma contribuição
definitiva quando definiu o catolicismo como “um sincretismo grandioso e infinitamente
complexo” ou como “uma religião popular com raízes profundas na alma do povo”. Na idade
madura, Heiler assumiu uma posição sempre mais simpática diante do catolicismo e do
sincretismo, considerando o catolicismo como a síntese das religiões. Por sua vez, Franz. J.
Dölger também ficou empolgado pela pesquisa dos diversos sincretismos na história do
cristianismo e com suas relações com a igreja missionária. Ele se fez a seguinte pergunta:
como foi que a cultura mediterrânea pré-cristã evoluiu para uma cultura cristã? Que elementos

118
culturais foram rejeitados, transformados, desenvolvidos? Dölger fundou uma revista para
aprofundar a questão, pesquisou litúrgicos etc., no intuito de descobrir os caminhos dos
sincretismos que deram origem à nossa cultura ocidental.
Na realidade, uma atitude aberta e simpática diante do sincretismo é profundamente
missionária. A igreja não foi chamada a ganhar prosélitos mas a pregar a missão. O
Missionário tem que entrar em dialogo, ele tem que traduzir, adaptar-se, enfrentar culturas
ainda não evangelizadas. Esta adaptação traz o perigo sério da perda total na mensagem
original. Este perigo não é imaginário, como demonstra a história do cristianismo em
numerosas páginas. A missão cristã tem que enfrentar situações de colonialismo, de tráfico
negreiro, de caça aos índios inocentes, de torturas e repressões em engenhos e fazendas, de
numerosas injustiças ligadas ao sistema colonial em geral. Nestas condições é que o
cristianismo pode perder a sua alma e até defender situações erradas, como aconteceu
frequentemente e ainda acontece. Pois quase todos acham normal aquilo que é tradicional e o
colonialismo é tradicional na América Latina. Chaga-se a considerara o cristianismo como
suporte da sociedade patriarcal ou burguesa.
Nestas condições de deturpação do cristianismo, a percepção de sincretismo é benéfica
pois ela significa o primeiro sinal da redescoberta do verdadeiro cristianismo sob certas
formas adulteradas pela história. Acontece que se possa ter a impressão de “perder a fé”
quando se percebe como a religião se comprometeu com formas de dominação, mas essa
impressão faz parte de um processo de purificação, no qual falsos sincretismos e
compromissos hão de ser rejeitados. A etapa de percepção de sincretismos nos parece
necessária para quem quiser passar de uma religião tradicional a uma religião mais pessoal e
interiorizada. Nesta etapa, tudo parece sincretismo, conforme diz Kamstra: “Cada sermão,
cada declaração teológica, cada encíclica, cada decreto sinodal ou conciliar – embora pareça a
única e plena verdade aos olhos dos que o proclamam – constitui na realidade um
sincretismo”.
A fase critica de percepção dos sincretismos é apenas uma primeira fase de um
processo dinâmico pelo qual o homem descobre o núcleo de revelação divina no centro de
revestimentos puramente passageiros. O catolicismo tinha que “viver” no período colonial e
por conseguinte não podia deixar de mostrar-se também “guerreiro” (para combater os
índios), “patriarcal” ou “aristocrático” (para combater os escravos). Atualmente ele tem que
conviver no Brasil onde se organizam renovados pactos neo-coloniais e por isso tem que

119
mostrar-se também burguês, progressista e desenvolvimentista. Contudo, estas formas estão
de antemão condenadas a desaparecer e nelas não está o valor do catolicismo.
Contudo, no momento atual, os sincretismos são inevitáveis pois condicionam o
diálogo com os contemporâneos que tem – como sempre- uma determinada percepção relativa
da realidade que não pode ser desconhecida nem desprezada por quem pretende levar uma
mensagem por parte de Deus.
Atitude apologética, defensiva da fé, e atitude aberta diante dos sincretismos são duas
etapas na formação do missionário: a apologética para firmar a fé e demonstrar a sua
peculiaridade; a aberta para os sincretismos culturais para levar esta fé aos homens.
Damos aqui um texto de José Comblin que traduz de maneira feliz o espírito em que
estudaremos o catolicismo brasileiro nas páginas seguintes:

“O catolicismo oficial, definido pela teologia e pelo direito canônico, nunca existiu. Existem sistemas
concreto, constituídos por uma certa impregnação cristã de várias civilizações. Mas o cristianismo puro, oficial,
não existe. Nem os próprios clérigos o vivem. A Diferença entre o catolicismo dos clérigos e o catolicismo
popular consiste apenas nisso: que os clérigos imaginam que o seu cristianismo é puro e o único verdadeiramente
autentico, enquanto os outros não tem problema de ortodoxia nem de autenticidade. Na realidade existem apenas
diferentes sistemas de tradução do cristianismo em condições concretas de vivencia humana. As formas
populares merecem tanto respeito quanto as formas oficiais. A conversão ao cristianismo não se fará por
imposição a todos de um cristianismo oficial definido a priori pelos clérigos, mas sim pelo contacto renovado
com o evangelho que cada um firme dentro das suas próprias estruturas. Não devemos destruir o catolicismo
popular mas deixar que os próprios cristãos populares o melhorem dentro de seu próprio dinamismo”.

Nas páginas que se seguem procuraremos descrever especialmente três “sincretismos


católicos” ou três realizações concretas do cristianismo dentro da cultura brasileira: o
catolicismo guerreiro, patriarcal e popular. Dois destes sincretismos pertencem ao mundo dos
portugueses, o terceiro ao mundo dos índios, africanos e de seus descendentes. Não
pretendemos esgotar o assunto, queremos apenas sugerir uma reflexão em torno da questão.

(HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro: 1550-1800. Petrópolis:


Vozes, p. 09-30)

120
3. A INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

1. A luta pela interpretação do Brasil


Por onde começar a descrever o Brasil? Eis uma pergunta que sempre mais preocupa
os intelectuais. Começar pela Europa? Tradicionalmente era assim, tudo sempre começava
pela Europa e pelas dinâmicas europeias e ocidentais imprimidas no Brasil. Mas Honório
Rodrigues: “Somos uma república mestiça, étnica e culturalmente. Não somos europeus nem
latino-americanos. Fomos tupinizados, africanizados, orientalizados e ocidentalizados. A
sínteses de tantas antíteses é o produto singular e original que é o Brasil atual”. Ao sintonizar
com expressões lapidares do historiador, os brasileiros de certa forma travam um duro
combate consigo mesmos, com a opinião generalizada que vive também dentro da gente de
que o Brasil afinal de contas é um país ocidental, formado a partir dos valores da civilização
ocidental, e cristã. O combate interior de que falamos está em pleno curso e muitos oscilam
entre dois mundos, o mundo “oficial” dos valores ocidentais trazidos por sucessivas ondas de
colonização e hegemonia cultural, e do outro lado o mundo mais recôndito e também mais
rejeitado dos valores indígenas e africanos que permanecem estranhamente vivos e
resistentes. No labirinto da formação étnica e cultural do povo brasileiro muitos não
encontram o caminho certo, se perdem nas muitas veredas, sobretudo porque não conseguem
psicologicamente desligar-se da grande influencia da cultura ocidental-capitalista sobre a vida
deste país.
Esse combate pela interpretação do Brasil já tem mais de um século e meio. Nos anos
de 1840-1870 foi grande, entre os brasileiros, o interesse pelo resgate dos costumes indígenas.
Floresciam por todo canto as “escolas indianistas” na poesia, etnografia e literatura em geral.
O romance Iracema do cearence José de Alencar talvez exprima melhor o sentimento da
época, pois descreve o amor entre uma índia e o colonizador branco. É o resgate da
morenidade brasileira de forma positiva, embora romântica e idealista. O período mais
científico começou com o médico baiano Nina Rodrigues que – interessando-se pelos
costumes dos negros na Bahia- criou o conceito de sincretismo religioso “afro-brasileiro”.
Isso foi em 1900, e permaneceu um ponto de referência obrigatório até hoje. Outro pioneiro
da época da virada do século foi o jornalista Euclides da Cunha, que elaborou a primeira
teoria interpretativa do Brasil a partir do binômino “moderno-arcaico”, tão caro aos

121
desenvolvimentistas até os nossos dias. A famosa dicotomia “cidade-interior”, “progresso-
atraso”, “matuto-civilizado (ou “educado”)” fez historia e funciona até hoje como modelo
interpretativo do que acontece no país. Euclides da Cunha revelou aos olhos dos
“progressistas” de São Paulo, do Rio de Janeiro e de outras grandes cidades a existência de
um enorme “sertão” habitado por beatos e cangaceiros, fanáticos e seres mais ou menos
medievais. Desde então, o “sertão” passou a fascinar a inteligência brasileira, como bem
demonstra o romance de Guimarães Rosa: Grande Sertão: Veredas, ou então o filme de
Glauber Rocha: Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Por mais que Nina Rodrigues e Euclides da Cunha tenham enveredado por caminhos
novos, não conseguiram livrara-se do radical e tenaz preconceito contra as camadas populares
da nação. Ambos eram a seu modo elitistas. O preconceito de manifestava de forma
particularmente virulenta ao tratar-se do negro, considerado a grande desgraça deste país, o
grande obstáculo para o progresso. Outro ponto que não se discutia nas obras de ambos os
mestres era o postulado do caráter ocidental da cultura brasileira, ou pelo mens da progressiva
ocidentalização do país como único caminho para o futuro. O “dogma” do Brasil país
ocidental era inquestionável.

A Semana de arte moderna em 1922


É diante desse quadro que a postura da geração dos anos 1920-1930, até hoje
insuperada. Uma postura nova, heterodoxa, irreverente, iconoclasta, concretizada nas pessoas
que proveram a famosíssima, Sede Arte moderna em São Paulo no ano de 1922. Aí se
disseram coisas que até hoje repercutem entre os intelectuais brasileiros. Com razão, o brilho
dessa “Semana” não se apagou na memória cultural do país. Pois através sobretudo de pessoas
como Mário e Oswald de Andrade, o clássico pecado original do Brasil, a morenidade, a
mestiçagem, a falta-de-raça, virou virtude. E ao virar virtude virou a mesa da honorabilidade
nacional:
Costureirinha de São Paulo,
Ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica,
Gosto dos teus ardores crepusculares... .
O símbolo perene dessa geração e de seu novo posicionamento diante da identidade
nacional continua sendo o livro Macunaíma da autoria de Mário de Andrade, escrito em 1928
de um jato só, numa semana, sob a compreensão genial de que o povo brasileiro continuava
sendo “índio” sob a capa de uma ocidentalização superficial. Mário de Andrade vislumbrou

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com grande acerto o que todos sabem de forma confusa e que ninguém diz, isto é, que a
historia indígena continua viva no jeito, na “malandragem’, no modo de ser do “herói sem
caráter” (para usar um expressão do autor) que é o próprio povo brasileiro: “Macunaíma,
como brasileiro que é, não tem caráter: ora é corajoso, ora é cobarde, além de ser muito
safado”.
Isso significava a rejeição do Brasil “pra inglês ver” e a valorização positiva da
maneira em que os brasileiros vivem no dia-a-dia, navegando entre problemas não resolvidos,
dando um jeito em tudo, sempre evitando a brusca negação ou o brusco confronto. Tudo que
era qualificado de “falta de princípios” no dizer do estrangeiro recebeu agora uma
qualificação altamente ética e profundamente humana. Na mesma estava o valor, não na
“pureza” (nem da ”raça”, nem dos “princípios”). Até hoje não se conseguiu, mais de sessenta
anos após a publicação de Macunaíma, exprimir de forma mais feliz a surpreendente
capacidade de assimilação, a originalidade das relações desarmônicas, a lógica do ilógico, a
convivência de contradições que fazem a vida diária no Brasil e constituem um desafio ao
pensamento cartesiano que procura ordenar, organizar, entender e medir. O paradoxal foi que
essa valorização do modo de ser mestiço foi elaborada em São Paulo, cidade aparentemente
feita de estrangeiros e que recebia na época o maior número de imigrantes italianos,
japoneses, alemães. Foi talvez essa presença direta e inevitável de estrangeiros num país tão
marcante mestiço que fez surgir esse tipo de reação.

A década de 30 [1930]
A década de 1930 nos trouxe dois cientistas sociais importantes: Gilberto Freyre e
Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre valoriza a mestiçagem, não na linha heterodoxa de Mário
de Andrade mais como “meio-termo”. A mestiçagem, no pensamento de Freyre, é um perigo
em si pois fomenta o radicalismo, mas pode se tornar – quando devidamente orientada e
“explicada” – um símbolo da reconciliação não-violenta que une os brasileiros. A mestiçagem
como safadeza, malandragem e arte de sobrevivência e resistência é rejeitada por Freyre e
despolitizada dentro de uma ideologia de democracia racial. Para o autor, o Brasil é um
verdadeiro laboratório do mundo de amanhã que será moreno, nem branco nem negro. Afinal
de contas, Freyre escreveu para a classe média brasileira que ele conseguiu reconciliar
consigo mesma, isto é, a classe média mestiça do Brasil tinha em Freyre um motivo de
tranquilizar-se e reconciliar-se com seu próprio corpo de indubitável origem africana ou

123
ameríndia. Freyre operou como um tranquilizante e até hoje processo de confronto da
inteligência brasileira com o pensamento de Gilberto Freyre está longe de ser concluído.
Em contraste com Freyre surgiu em São Paulo a primeira análise propriamente
marxista do complexo fenômeno da “formação brasileira”, da autoria de Caio Prado Júnior.
Para Caio Prado, a mestiçagem foi a “solução” encontrada pelos geopolíticos do estado
português em relação à sua colônia na América. A mestiçagem é por conseguinte fruto de
uma elaboração política, e deve ser interpretada politicamente. Ela não tem nada de
espontâneo.
Desde então, e apesar dos grandes avançados feitos nos estudos brasileiros , os
grandes mestres ficaram sendo estes cinco: Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Mário de
Andrade, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior. Eles foram de certa forma os “mestres da
dúvida” neste país onde a interpretação colonialista ainda é tão forte. A partir dos anos “30
começou a moda de se convidar professores estrangeiros para lecionar nas Universidades
brasileiras e de se formar professores no exterior, na França, nos Estados Unidos, na
Alemanha. Mas esses professores estrangeiros ou formados no estrangeiro sempre
encontraram aqui estudantes que reagiam contra a importação de uma intelectualidade
estranha às raízes do país e já prevenidos contra a ciência “de gabinete”. Os estudantes
insistem em partir da “realidade”, da participação ativa da “pesquisa” e da observação
empírica do mundo em que vivem. É que eles se inserem no processo de procura de uma
razão própria do ser brasileiro. É como dizia já Oswald de Andrade no seu Manifesto
Antropofágico de 1928: ‘Tupi or not Tupi, that is the question’.

2. O cristianismo moreno

É dentro das balizas traçadas por esses “explicadores do Brasil” que pretendemos
escrever esta História Mínima do Cristianismo no Brasil. Queremos com isso reavivar a
memória de um cristianismo moreno, nem branco nem preto, nem ocidental nem ameríndio
nem africano, o cristianismo mestiço que se manifesta no dia-a-dia da vida neste país.
Impressões dos viajantes do século 19
Acontece que esse cristianismo brasileiro vem resistindo às tentativas de interpretação.
Ele é uma verdadeira crux interpretum (cruz para os intérpretes). E o problema não é de hoje.
Quando, já em 1808, os portos brasileiros se abriram para a navegação internacional e
dixaram de receber unicamente embarcações provenientes de Portugal, uma onda de viajantes

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estrangeiros procedentes dos países avançados do mundo de então invadiu o interior do país.
Eram ingleses como Richad Burton, Maria Graham, Henry Koster ou George Gardner;
franceses como Tollenare, Saint-Hilaire; alemães como Spix, Von Martius, Avé-Lallemant,
von Eschwege, o Príncipe Adalberto da Prússia, o Principe de Wied-Neuwied; americanos
como Daniel Kidder, Mister Hill ou o casal Luís e Elisabeth Agassiz que eram saíços
naturalizados americanos. É raro encontrar um deles que não fale da religião praticada aqui
em termos de espanto. Saint-Hilare exprime o sentimento que parece ser o de todos ao
escrever: “Na igreja brasileira não há o que possa deixar de causar espanto: está fora de todas
as regras”. O que mais causa a admiração geral é a procissão religiosa pelo seu caráter
ruidoso, festivo, confuso, quase anárquico. Os viajantes não conseguem reencontrara aqui o
modelo da religião bem ordenada e alinhada que conhecem nas suas terras de origem.
A impressão geral que essas crônicas de viajantes deixam é que a religião no Brasil
não é séria. Ela parece antes uma brincadeira, uma festa mundana de pouco recolhimento, e se
afastou muito do modelo europeu. Durante o período colonial havia-se formado no Brasil um
catolicismo distante do europeu oficial, um catolicismo que correspondesse o modo de ser
mestiço num país colonizado e com a “arte” de se “virar” numa sociedade cheia de
contradições e oposições sociais extremas, numa convivência diária entre senhores e escravos.
Quando o véu foi tirado, em 1808, após séculos de reclusão e silêncio por parte dos
documentos escritos, o espanto era geral. E de certa forma continua até hoje. José Honório
Rodrigues, já citado aqui, caracteriza essa mestiçagem do catolicismo entre nós da forma
seguinte: “A religião perdeu, entre nós, o ar sinistro das práticas peninsulares e ganhou
alegria, adaptando-se ao povo, às populações mestiças amigas do batuque, do fuguetório, dos
repiques de sinos e alheias às sutilezas do dogma. As procissões e os te-dénus (Te Deum)
movimentavam as ruas, davam animação à vida popular brasileira.”
Os textos desses viajantes possibilitam uma espécie de psicanalise do encontro de
culturas no Brasil e não é por acaso que eles influenciaram muito intelectuais brasileiros do
porte de Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Paulo Prado ou Caio Prado Júnior. O livro de
Paulo Prado: Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira, de 1928, significa a
interiorização da visão estrangeirada acerca do Brasil e constitui um exemplo típico de toda
uma literatura que discrimina contra a cultura sobretudo religiosa vivida aqui. No fundo, esses
textos exprimem uma insegurança. A exuberância, vitalidade e festividade que continuam
caracterizando as expressões públicas da religião no Brasil contrastam vivamente com a tese
que este é um país ominado e sofredor e que por conseguinte tem que mostrar uma cara triste.

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Ora, a religião europeia tem esse ar tristonho, compungido, melancólico e repressivo, a
brasileira não. Podemos suspeitar que a rejeição dos viajantes diante da religião “mundana”
no Brasil talvez venha a esconder uma secreta vontade de “cair na dança”, abandonar a
máscara da sinceridade e soltar o corpo na rua com os foliões religiosos. O cônsul americano
no Rio de Janeiro, Mister Hill, tem um expressão que faz pensar acerca da revolução de 1817
nas províncias do Nordeste: “Viu-se logo pela conspiração bacanálica de Pernambuco com
que facilidade pode realizar-se uma revolução neste país, vendo-se assim mesmo que povo
ridículo é o brasileiro, de todo incapaz para o auto-governo”. A conspiração bacanalica de
Mister Hill faz pensar em minutos que até os dias de hoje, dizem que tudo no Brasil “vira
carnaval”, ou “vira bagunça”, é tratado sem seriedade.
Os viajantes do século passado assim como muitos observadores da realidade
brasileira na atualidade projetam um foco por assim dizer “iluminista” sobre o que eles
julgam ser um Brasil “obscuro e até obscurantista”, e fica claro que a referência à Idade
Média. O tipo de religião praticado no Brasil lhes parece fundamentalmente irracional,
sentimental, mergulhado na ignorância generalizada. As igrejas quentes cheias de imagens e
ornamentos, ricas e exuberantes, impressionam pelo contraste com o aspecto que a religião
católica assumiu nas regiões frias do mundo e essa diferença é interpretada como uma
aberração ou um atraso, de qualquer modo não deve ser tomada a sério.

Os pontos em que nos baseamos neste ensaio

Nas páginas que se seguem pretendemos nos distanciar dessa interpretação tradicional
do cristianismo moreno e queremos desde já revelar os dois pontos em que nos baseamos para
enveredar por um caminho diferente. Esses pontos são os seguintes: 1º O cristianismo moreno
é baseado num saber da violência; 2º o cristianismo moreno é resultado de resistência, não de
ignorância. Elucidemos ambos os pontos:
- O saber da violência. Na sua formação histórica, o povo brasileiro sempre enfrentou
a violência dos “outros”, dos que vieram de fora dominar esta terra. A memória da violência
está presente na religião popular brasileira, por meio de códigos elaborados exatamente para
perpetuar essa memória. Não é atoa que as imagens de Jesus Crucificado o do Senhor Morto
são tão veneradas no meio do povo. Essas imagens por assim dizer simbolizam a violência
dos “outros” inscrita nos corpos dos inocentes, vítimas de uma sociedade que de certa forma
só sobrevive através da prática diária da tortura, da prisão e da violência em geral contra aos

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que desfrutam a paz oferecida diariamente pelos organismos policiais e repressivos é
onipresente e quotidiano no mundo do povo. As classes privilegiadas podem se pagar o luxa
de criou uma teoria da não-violência da história do Brasil, mas essa nunca conseguirá por
inteiro apagar a memória da violência diária praticada neste país. A tranquilidade social de
uma parte da população brasileira impede intuir a intranquilidade que reina do outro lado da
sociedade, e faz com que a religião “morena” não seja compreendida nos devidos termos.
Essa religião se assenta em primeiro lugar no saber da violência e no viver no meio dela.
Esquecer esse ponto resulta em ver a religião da quotidianidade brasileira de forma distorcida.
- A resistência. Miséria e sofrimento geram resistência, não ignorância. O cristianismo
moreno no Brasil é resultante de um longo processo de resistência popular diante das diversas
formas que o colonialismo assumiu aqui. O sociólogo francês Roger Bastide, que esteve no
Brasil e trabalhou aqui nos anos 50, intuiu que as religiões afro-brasileiras sempre foram
instrumentos – os únicos – nas mãos dos negros africanos trazidos ao Brasil como escravos.
Eis um exemplo significativo de religião como forma de resistência. A experiência quotidiana
ensina ao pobre que o mundo não é feito de harmonias e concordâncias, mas pelo contrario de
lutas e resistências. A definição do cristianismo moreno do Brasil como resistência será
ulteriormente analisada nestas páginas.

A resistência
Eis o ponto de partida que assumimos no presente ensaio: a religião praticada pela
grande maioria do povo brasileiro é fruto de uma postura original diante dos desafios lançados
pela colonização. A mestiçagem viabilizou o cristianismo entre nós, tirou-lhe um parte o jeito
estrangeirado- que em outras partes esse cristianismo ainda conserva – e o adaptou para que
possa corresponder aos desafios da vida neste país.
A dificuldade começa a se manifestar quando se pretende descrever esse cristianismo
mestiço ou moreno nas suas particularidades. O tema do mestiço é tabu em muitos ambientes,
ninguém fala do assunto. É mais fácil e gratificante hoje- em certos ambientes eclesiais – falar
do índio, o mesmo do negro, do que tratar de meter-se no tema da mestiçagem, não evidente
do dia-a-dia mas ao mesmo tempo tão pouco falado e comentado. A razão não é difícil de se
entender: o mestiço está presente em todo lugar mas o tema da mestiçagem evoca memórias
que incomodam: o horizonte indígena e o horizonte africano. O pecado original do mestiço é
o de ter nascido de mulher indígena ou africana, possuir traços no seu corpo e laços culturais
que evocam um passado condenado ao silencio e ao esquecimento. Por que evoca esse

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passado condenado ao silencio e ao esquecimento. Por que evocar esse passado tão
traumatizante? Por que não passar em silêncio, sobretudo diante do fato que o mestiço só
consegue penetrar no mundo dos brancos na medida em que concorda em silenciar essas
evidências de seu corpo e esses elementos de sua cultura?
Além disso, o imaginário da mestiçagem está intimamente ligado à imagem da
violação sexual. A mestiçagem é julgada ter se originado numa violação original, a violação
da mulher índia pelo homem branco. A imagem dolorosa e incomoda da mãe violada esta
gravada na cultura mestiça, com traços indeléveis, embota essa mesma cultura se esforce para
expeli continuamente essa memória. O resultado é que a imagem do pai sobressai na
consciência mestiça como ponto referencial obrigatório, enquanto a imagem da mãe simboliza
o próprio pecado. A cultura colonial nasce desse imaginário da violação do corpo da mulher
indígena marcou de forma definitiva o imaginário sexual latino-americano. O fantasma da
violação ainda está em toda parte e se manifesta de vez em quando como um força inesperada.
Apesar de todas essas dificuldades é preciso, assim pensamos, resgatar a memoria do
cristianismo moreno e mestiço do Brasil. Sem partir dessa memória, toda descrição da historia
do cristianismo fica longe da realidade e como que flutuando no ar. Foi para enraizar melhor a
memória do cristianismo moreno praticado por milhões de brasileiros em documentos sólidos
e fidedignos que estas páginas foram escritas. Elas devem ser entendidas, por conseguinte,
como um serviço prestado à memória do povo cristão que vive no Brasil e é na sua imensa
maioria um povo mestiço. O historiador tem como vocação transformar a memória viva de
um povo em ciência, e depois devolver ao mesmo povo sua contribuição cientifica com o fim
de avisar a prática da memória cristã, tão necessária para quem quiser fundamentar sua ação
na tradição viva dos profetas, dos apóstolos, de Jesus, e não apenas em tradições puramente
humanas.

((HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 13-


23, p. 129-153.)

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4. A ROMANIZAÇÃO

A imagem que os livros didáticos de historia do Brasil transmitem acerca do século 19


é a da independência, do fim do colonialismo e do inicio da autonomia brasileira.
Efetivamente, o Brasil conseguiu desligar-se politicamente de Portugal mas ao mesmo tempo
entrou de cheio no mundo colonial inglês, e – através deste – na internacionalização do
colonialismo. Fomos uma colônia inglesa no século 19, sob os disfarces da língua portuguesa
e da religião católica. E nunca fomos tão colonizados como naquele século. Tanto no campo
da marginalização e virtual eliminação dos indígenas como no do tráfico negreiro o século 19
excede de longe os séculos anteriores. É bom lembrar que foi no século 19 que se produziu o
instrumento legal definitivo da eliminação dos antigos habitantes destas terras, a famosa Lei
de Terras de 1850, assim deste país à virtual marginalização, já que a Lei Áurea não fi
acompanhada por dispositivos legais que possibilitassem acesso á terra ou outras formas de
estabilidade financeira aos antigos escravos.

A Romanização e internacionalização
A visão mais crítica do século 19 no Brasil segue os parâmetros dos novos teóricos da
modernidade com E. Wallerstein que interpretam o “exclusivo comercial” de Portugal e
Espanha em relação às suas colônias como contrário à índole da própria modernidade. Os pais
espirituais das modernidades e o capitalismo como holandês Hugo Grotius, por exemplo,
sempre proclamaram bem alto o comportamento do império português, ou espanhol como
abusivo e combateram como todas as forças a ideia de um mare clausum (mar fechado)
unicamente reversado para a navegação ibéricas, segundo a teoria do Tratado de Tordesilhas
(1494). Os capitalistas querem “rule the Waves” (governar as ondas do mar), como diziam os
ingleses, e proclamam a tese da liberdade de navegação por todos os mares com a virtual
entrada em todas as terras. Dentro dessa perspectiva a ocupação do Nordeste brasileiro ente
1630 a 1654 pela Companhia Holandesa das índias Ocidentais foi apenas um prenúncio desse
novo colonialismo aberto, irrestrito, internacionalizado e ilimitado a ser realizado no decorrer
do século 19 e sob cujas leis vivemos até a data presente.
A romatização não fez senão acompanhar os novos ritmos mais acelerados – do
colonialismo internacionalizado. Se o Vaticano procurou exercer um controle maior sobre o
curso do cristianismo brasileiro, era para combater o “exclusivo religioso” exercido até então
pela Mesa de Consciência e Ordens sediada em Lisboa, e abrir o campo religioso do Brasil

129
para novas e sucessivas ondas de europeização que – qual rolo compressor – passariam por
sobre as frágeis articulações do cristianismo moreno no Brasil. Não que Roma não tivesse
tentado antes controlar os rumos da cristianização do Brasil, mas essas tentativas anteriores
não surtiram os desejados efeitos.

Tentativas anteriores de Roma


Já no século 16 os papas procuraram intervir no processo da evangelização através de
textos generosos como por exemplo a bula Sublimis Deus do papa Paulo III, de 1537, que
defendia o direito dos índios à liberdade, ás terras e à identidade cultural, tese repetida depois
por Pio IV (1562) e Clemente VIII (1598). Mas esses textos tiveram pouca ou nenhuma
influencia sobe o curso real dos acontecimentos. No caso da Bula Sublimis Deus, foi
suficiente que o Imperador Carlos V manifestasse sua irritação diante da intromissão do papa
nos assuntos do Padroado Régio (ou seja, do direito dor reis católicos de Espanha e Portugal
no sentido de organizar a religião católicos de Espanha e Portugal no sentido de organizar a
religião católica nos seus domínios, direito concedido pela própria autoridade papal) para que
o texto ficasse engavetado nos arquivos romanos. O mesmo aconteceu com uma petição
dirigida por Pio V em 1571 ao Rei de Portugal solicitando a formação e um clero indígena nas
colônias portuguesas: ficou letra morta. Pois o Padroado se assentava força do clero
estrangeiro sobretudo através das Ordens Religiosas.

De propaganda fide
No século 17 Roma Procurou combater a influencia do Padroado Regio através da
criação do organismo instilado De Propaganda Fide (a favor da propagação da fé) em 1622.
Os inícios da Propaganda – quando Ingoli era secretário – foram muito bonitos e houve a
tentativa da criação de uma prelazia no Rio de Janeiro que dependeria diretamente do
Vaticano e não do Padroado, mas a iniciativa fracassou diante dos obstáculos colocados pela
administração colonial. Mesmo assim, a Propaganda conseguiu estimular a chegada de
missionários não controlados pelo Padroado, como por exemplo os capuchinos bretões em
Pernambuco, que fizeram um excelente trabalho, e apoiou ou procurou apoiar a pastoral dos
Oratorianos e outros grupos. Na correspondência entre os capuchinos e a Propaganda ainda
percebemos a briga entre Vaticano e Padroado, mas em geral era uma “briga de brancos” que
afetou muito pouco os rumos da cristianização.

130
A nova preocupação no século 19
Os próprios papas mantiveram um silencio de dois séculos e meio acerca da América
Latina. Entre Paulo III, Pio IV e Clemente VIII de um lado e Gregório XVI (1840) do outr
lado transcorrem 250anos. A carta de 12 de junho de 1840, com a qual se inaugura a nova
literatura papal acerca da América Latina (Benficientissismo de Gregório XVI), fala dea nos
termos seguintes: a região contém “míseros homines densissimis errorum nebulis advolutos”
(homens miseráveis envoltos nas neblinas de erros muito densos) que ficam ‘sedentes in
tenebris et in umbra mortis” (sentados nas trevas e na sombra da morte). Com o governo de
Pio IX e a realização do Concílio Vaticano I, a impressão negativa que se tem da América
Latina em termos religiosos ainda se agrava, pois os temas de erros e verdade inerentes ao
discurso do papa Pio IX acerca da modernidade encontram na situação da América Latina na
aplicação inesperada mas procedente: esta é a terra por excelência do erro pagão a ser
reconduzido à verdade católica. O cristianismo da América Latina – se é que existe – é
irregular e vive fora do comum. Aos poucos tudo tem que ser recolocado “nos eixos”, por um
trabalho paciente mas pertinaz. Assim se compreende que o clima em que se banham os
textos papais do século passado acerca da América Latina é um clima de benevolência
paciente, de concessões diante de situações irregulares mas inevitáveis, de indulgencias e
dispensas, diante da escassez do clero e “attentis specialibus circumtantis regionum
nostrarum”visto as circunstância especiais de nossas regiões), como dizem os próprios bispos
latino-americanos no Concílio Plenário de 1899.
A eventualidade de uma romanização ou maior internacionalização do cristianismo
brasileiro já estava no ar desde a abertura dos portos em 1808.
Os viajantes não-portugueses que penetravam no interior do país voltavam com uma
impressão muito negativa do cristianismo praticado aqui e começavam exaltar a imigração
europeia como modo de se “purificar” a religião. Típico nesse sentido é o livro de Thomas
Davatz, Memórias de um colono no Brasil (1850), que teve considerável influencia sobretudo
em meios protestantes.

A “Igreja patriótica”
Mas uma parte do clero brasileiro reagiu valorizando o “catolicismo da terra” e
encontrou, nessa luta, um propugnador na pessoa do padre Antônio Feijó, na época Regente
do Brasil, figura altamente respeitada e influente. Escreve João Fagundes Hauck: “Formaram-
se no clero, após a Independência de 1822, dois partidos. Um era liderado por Feijó, e incluía

131
principalmente o bispo e grande parte do clero de São Paulo. O outro partido, encabeçado
pelo arcebispo da Bahia, Romualdo Antônio de Seixas, propunha a formação de um clero
celibatário, mais ligado a Roma”. A questão do celibato, mencionada aqui, era apenas a parte
mais visível de um projeto mais amplo, que encontrou ressonâncias em São Paulo e no
Nordeste entre os que viviam a lembrança da “Revolução dos Padres” de 1817, e que
consistia basicamente na constituição em uma “Igreja Patriótica”, cujas propostas práticas
foram assim apresentadas pelo padre Feijó:
- Extinção dos seminários-internatos, pois “as crianças ali educadas não tinham
liberdade para escolher outra carreira senão a religiosa”.
- Possibilidade de dispensa da lei do celibato pelos bispos diocesanos: “os bispos nas
suas dioceses têm os mesmos direitos que o Santo Padre em toda a Igreja Católica: a lei do
celibato é disciplinar e os bispos a podem dispensar nas suas dioceses”.
- Substituição dos estudos chamados “clássicos” (latim, filosofia, direito) por estudos a
partir da realidade vivida: história natural, física, química, geografia, aritmética, geometria,
retórica e poética. Feijó se revoltou contra a rotina nos estudos e chamou o método d ensino
em vigor de “infernal”.
As três propostas de Feijó, apresentadas diante da Assembleia Legislativa Nacional no
Rio de Janeiro, entraram como bola de ferro em jogo de porcelana. Sobretudo a questão do
celibato movimentou todo o clero da época, mas foi rapidamente abafada. Dom Romualdo de
Seixas emergiu como vitorioso no debate em torno da “Igreja Patriótica”, à qual péssima
memória foi concedida, já que a maioria dos escritores se apressa em condená-la em nome da
ortodoxia. Que ortodoxia? As propostas de Feijó não foram tão absurdas pois os problemas
eclesiais aos quais ele procurou dar encaminhamento ainda estão aí, após mais de 150 anos.
Mesmo encaminhamento ainda estão aí, após mais de 150 anos. Mesmo sendo verdade que
Feijó não morria de amores pelo povo, classificando-o de “anarquia”, não podemos negar que
ele representava, no âmbito do discurso católico, a ideologia dos homens que fizeram a
Independência e queiram que a hierarquia – tradicionalmente aliada aos interesses de Lisboa –
agora fosse servir aos interesses de cristianismo genuinamente brasileiro, e à “pátria”, e não
aos interesses da administração romana. Feijó vislumbrou lucidez que a aliança com Roma,
por parte da hierarquia brasileira, significava na realidade uma traição ao povo e à sua
maneira de se exprimir religiosamente e de se constituir em sociedade. Como nos lembra João
Fagundes Hauck, Feijó pressentia com clareza a romanização e se opôs a ela com todas as
forças. É pena que a memória desse sacerdote vigoroso, franco, corajoso e lúcido seja tão mal

132
conservada nos dias que correm pois as lições da vida dele ainda vigoram. Ele combatia o
hábito funesto e tipicamente colonial de imitar tudo que vem de fora e sonhava com uma
catolicidade nacional genuína que brotasse da experiência histórica do país.
Ninguém mais falou como ele, durante todo o processo de romanização, nem fez
propostas ao mesmo tempo tão realistas e tão abertas. Tudo ficou depois nas estrelinhas. A
vitória moral de Dom Romualdo de Seixas sobre o grupo do Padre Feijó fez com que os
bispos alinhados com a ideologia da romanização conseguissem impor-se e traçar os rumos da
assim chamada “reforma católica”, no Brasil. Dentro dessa reforma expressão como “Igreja
Patriótica” foram banidas do vocabulário e substituídas por palavras como “religiosidade
popular”, ou então “devoções populares”.

O Concílio Plenário
Foi durante o pontificado do papa Leão XIII, de 28 de maio até 9 de junho de 1999,
que os bispos de toda a América Latina se reuniram em Roma num Concilio Plenário sob os
impulsos de uma romanização doravante explicita e codificada. Os decretos o Concílio
Plenário constituem a Carta Magna da romanização do catolicismo latino-americano. A
inspiração deles provém parcialmente dos Concílios Vaticano Primeiro, realizado em Roma
sob Pio IX e dirigido principalmente contra a modernidade, e por uma clericalização extrema
da vida eclesial. Ad extra, contra a modernidade; ad intra, a favor da organização clerical.
Essa tomada de posição a favor do princípio hierárquico não podia conviver com o principio
comunitário que era cultivado nas confrarias brasileiras. O capítulo 4 do título dos Decretos
do Concílio Plenário se refere explicitamente às confrarias, que doravante têm que
subordinar-se à autoridade clerical.

A luta contra as confrarias


Ora – e aqui chegamos ao ponto nevrálgico da implantação do projeto romano no
Brasil-colônia e na primeira parte o século 19 nunca se entenderam a si mesmas como sendo
submissas ao clero. Havia entre o poder mais comunitário das confrarias e o pode hierárquico
do clero um modus vivendi na base da mútua compreensão e do respeito à autonomia de
ambas as instancias articuladoras da vida cristã na sociedade: confrarias e clero. A verdadeira
força do cristianismo antes da romanização estava nas confrarias, pelo menos nos
conglomerados urbanos, sendo que a situação no campo era um tanto diferente. Elas eram
relativamente autônomas, tanto em relação ao poder do estado. Entender as confrarias como

133
expressões do poderio do Padroado sobre a vida cristã – como se fez por vezes no calor dos
conflitos que envolviam bispos e confrarias – é confundir os planos, pois as confrarias se
situavam na sociedade civil enquanto os bispos se situavam na sociedade política, ou seja, nos
setores da sociedade representativos do poder do estado. A distinção é importante pois trata-se
de situar o conflito entre bispos e confrarias – que eclodia por todos os recantos do Brasil –
dentro da discussão acerca do melhor modo de se inserir o cristianismo numa sociedade como
a brasileira, se é através da aliança com o estado (método clássico) ou através de uma aliança
com as forças vivas da nação (método das comunidades). A crítica que ainda se fez às
confrarias de que elas tiveram pouca atuação propriamente societária, ou seja: que elas eram
mais fechadas sobre si mesmas do que abertas para os problemas da sociedade como um todo,
tem que ser considerada, sem contudo concluir antes de analisar cuidadosamente a
documentação que está ao nosso alcance. De qualquer modo, o que nos impressiona hoje ao
ler a documentação disponível em torno das confrarias é o tom de liberdade, franqueza e
independência que a “mesa regedora” das mesmas usava diante do clero, sem cair no
anticlericalismo: é um tom que demonstrava um equilíbrio entre forças contrarias. Apesar dos
louváveis esforços de autores como Boschi e Benedetti acerca da dimensão política das
confrarias, respectivamente em Minas Gerais e no interior de São Paulo, ainda não temos
estudos temáticos que situem o conflito romanização versus confraria na perspectiva mais
ampla do sentido por assim dizer “estatal” de toda e qualquer romamização da vida cristã, ou
centralização burocrática, teológica, litúrgica, pastoral. Comparações com outras grandes
romanizações da historia do cristianismo, como por exemplo a romanização do cristianismo,
como por exemplo a romanização do cristianismo na África do Norte na época de Santo
Agostinho (início do século 5), ou ainda a romanização do cristianismo irlandês no século
12,podem se revelar muito sugestivas e iluminar certos aspectos da romanização do
cristianismo brasileiro que nos escapam hoje.

A questão moral sexual


O conflito entre Roma e as confrarias brasileiras se situava num nível político-social.
Houve contudo um outro conflito que penetrou mais profundamente no mundo das referências
étnicas do cristianismo moreno do Brasil, e tocava o modo de se viver o corpo, sobretudo o
mundo do desejo inerente à vida o corpo. Nesse campo a romanização reassumiu uma
verdadeira cruzada em que os missionários europeus tinham iniciado desde que pisaram

134
nestas terras e que ficou perdendo fôlego ao longo dos séculos pela convivência no Brasil
entre diversos modos de se viver-o-corpo.
Desde 1549 a questão da divergência entre a moral indígena (que é claro, nunca foi
declarada nem compreendida como uma moral positiva, que pudesse contribuir para a
vivencia cristã) e a moral europeia tem sido um ponto de incompreensão total e em grandes
linhas essas incompreensão permanece tal qual até os nossos dias. Desde o início maior
obstáculo à missão cristã foi a concepção do corpo entre os indígenas. Não foram
propriamente questões doutrinarias ou “heresias” que criaram problemas no Brasil, ou
melhor: os maus costumes da terra” foram qualificados como a “heresia do Brasil”, a heresia
do vício da carne”. Para os missionários do século 16, evangelizar significava em primeiro
lugar afastar os indígenas de seus “maus costumes” e separa-los dos ambientes onde esses
“costumes da terra” eram cultivados. Um símbolo claro dessa política missionária era a ânsia
em vestir os indígenas, sobretudo as mulheres. A correspondência jesuítica dos inícios está
repleta de pedidos feitos à aristocracia portuguesa no sentido de mandar roupa para o Brasil.
O Rei de Portugal deu o bom exemplo, dando roupa de “esmola” para os missionários que
logo organizaram na Bahia a famosa “confraria dos vestidinhos”, meninos índios que
andavam vestidos acompanhado a procissão em roupas brancas, doadas como obra de
caridade por pessoas de Portugal. O maior problema que a missão jesuítica enfrentou nos
inícios, do ponto de vista financeiro, era o de arranjar roupa para tanta gente, a tal ponto que
Nóbrega pensava em fazer plantações de algodão só para a “gente da terra”, assim como
incentivar o fabrico de panos na colônia. O irmão Antônio Blazques escreveu da Bahia e,
1557 uma carta ao Padre Inácio de Layola pedindo que este usasse de sua autoridade junto a
Coroa Portuguesa no sentido que o Rei, junto com os mais principais do Corte, “fizessem uma
Confraria e a esmola dela fosse para vestir esses indiozinhos”.

De novo, Desencontro dos Corpos


Temos que recuar no tempo para entender bem esse problema maior para a
consequência missionária da época, tanto na história europeia como na história indígena.
- Na história europeia há indícios de uma rejeição do corpo e do desejo do corpo
principalmente no movimento dos Padres do Deserto, monges que penetravam no deserto do
Egito (onde o movimento começou) e mais tarde na Síria e outras regiões atingidas pelo
cristianismo, durante os séculos 4 e 5. Os monges do deserto partiram do pressuposto de que
os desejos do corpo (os desejos da carne) constituem um obstáculo insuportável ao desejo de

135
Deus. A experiência mais profunda de Deus exige a mortificação do corpo e sobretudo a
repressão do desejo que habita o corpo. Os Padres do Deserto declaram uma guerra sem
tréguas contra seus próprios corpos, mortificando os cinco sentidos do corpo,
sistematicamente, através de um plano de combate meticulosamente elaborado (Cassiano).
Hoje, através de estudos como o de Aline Rousselle e outros, fazemos a ligação entre práticas
supostamente genuínas da tradição cristã e a ideologia que reinava nas classes privilegiadas
do Império Romano no final do século 1 e durante o século 2 acerca dos benefícios da
continência da continência (ou de uma atividade sexual apenas “higiênica”, rápida e muitas
vezes solitária) para a atividade intelectual e a vida do espírito. O tema é complexo e
remetemos o leitor para a literatura disponível. De qualquer modo não se exime o cristianismo
de influencias encratistas.
- Na história indígena, pelo contrário, não há indícios de encratismo nem mesmo da
noção de pornéia, tão tipicamente grega e ocidental. Os europeus bem sentiram isso ao dizer,
no século 16: “Abaixo do Equador não existe o pecado, parece que os índios vivem no paraíso
terrestre que nem Adão e Eva”. O indígena faz de seu corpo algo belo e ornamentado, pinta o
corpo e o enfeia, mexe com o cabelo, arranca a barba, parece gozar de seu corpo. Ele gosta de
dançar e de namorara. Gosta de tocar o corpo do outro e de ser tocado, de “dar um cheiro” no
companheiro, de falar bem pertinho do outro. A cultura indígena parece uma cultura do toque
aproximado, bem diversas da europeia que tem horror ao toque. Um Regulamento de Vida
Cristã regido em 1850 reza assim: “Não vou tocar nem um fio de vestido do outro”. A
diferença com os modos de ser europeus ainda aumenta quando se estuda o relacionamento
entre homens e mulheres. O antropológico Eduardo Viveiros estudou recentemente a função
do casamento entre os Araweté, que pertencem à família linguística Tupi da Amazônia, e
chegou à conclusão que – ao contrário do que acontece com o casamento na cultura ocidental
– o início da vida conjugal Araweté expõe o casal ao grupo como um todo, não o retira do
grupo. Através do casamento Araweté se formam grupos erotizados de “amizade” (os
famosos “amigados” dos textos coloniais), tanto entre mulheres como entre homens.
Os “amigados ou “amancebados” representam na literatura missionária o símbolo mais
forte do paganismo e da imoralidade. O que poderia haver de mais escandalosos que a
formação desses grupos de “amigos” do mesmo sexo e/ ou do sexo oposto, sobretudo quando
esses “grupinhos” irradiavam um clima de alegria, animação e expansão do gozo dos corpos?
Parecia que toda a aldeia participava dessa festa erótica. José de Anchieta escrevia que toda a
colônia era “tentada pelo espírito de fornicação”.

136
Inútil dizer que a missão cristã se voltou com toda força e indignação contra esse
vivencia indígena do corpo, sobretudo quando ela já encontrou aqui os primeiros portugueses
vivendo com mulheres indígenas. O protótipo simbólico dessas alianças que deram origem à
mestiçagem foi a união entre o português Caramuru e a índia Catarina Paraguaçu na Bahia.
Parece que o clero secular – ele mesmo mestiço em parte – admita essas uniões com certa
facilidade, o que causava grande escândalo entre os jesuítas que passaram a desmoralizar a
atuação do clero secular. Já em 1549, poucos meses depois de sua chegada aqui, Manuel da
Nóbrega escreveu: “Nesta terra há um grande pecado, que e terem os homens quase todos
suas negras (leia: índias) por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por mulheres”.
Os “vícios arraigados da terra” corromperam os europeus ao chegar aqui. O Brasil é perigoso
para a moral cristã, tão perigosos que os padres têm medo de andarem sós pelos caminhos
“com frequentação de mulheres” e preferem viajar acompanhados de Portugal, mesmo
“erradas”, para que elas – casando com os portugueses aqui – evitassem a mancebia destes
com as índias.

Permissividade do Catolicismo Colonial


Aos poucos, com a formação de um catolicismo colonial que de qualquer modo tinha
que conviver com os “costumes da terra”, o comportamento dos “amigados” ou
“amancebados” foi sendo absorvido e tolerado, o que conferiu ao catolicismo brasileiro seu
caráter tolerante e permissivo, conforme acentuaram autores como Gilberto Freyre ou Sergio
Buarque de Holanda: Talvez em nenhum país católico tenham até hoje os filhos ilegítimos
particularmente os de padre, recebido tratamento tão doce...”. É significativo que o autor
alude aos filhos de sacerdotes, assunto particularmente ligado ao tema que nos ocupa aqui.
Pois o clero brasileiro, especificamente o secular e mais ainda os membros do clero de
descendência indígena ou africana, foi alvo de queixas e críticas sobretudo por parte do clero
religioso, mais marcadamente estrangeiro durante a época da colonização portuguesa no
Brasil. A crítica se resumia na suspeita de eu o descendente de africano ou indígena não fosse
apto a observar o celibato eclesiástico. Particularmente o mulato era julgado inapto pois
necessitava para poder entrar nas ordens sacras de indulto papal escreve Capistrano de Abreu:
"A mestiçagem com o elemento africano mais do que a mestiçagem com americano era vista
com certa aversão e inabilita vá para certos postos os mulatos não podiam receber as ordens
sacras por exemplo. Daí o desejo comum de ter um padre na família para provar limpeza de
sangue”. Essa maior apreensão diante dos mulatos tem sua raiz no fato que “nos cultos

137
africanos não existe uma concepção do pecado orientada para a negação do corpo os cultos
celebram continuamente a vida até as cerimônias em honra aos mortos”. Entre africanos
questões relacionadas com sexo tem pouca conotação moral sendo que a aproximação é
regida pelas leis de um protocolo elaborado não por ditames de cunho propriamente
moralistas.

Apreensões diante do clero secular


Houve pois no Brasil colônia um clima de apreensão diante do clero secular mulato
e/ou mestiço Pelo menos é o que nos revelam os documentos escritos mesmo assim esse
Claro brasileiro mostrou particularmente na primeira parte do século 19 ser muito ligado ao
povo já tivemos oportunidade de frisar a atuação de Padre Feijó mas ele não ele não estava só
havia um Monsenhor Januário da Cunha Barbosa cujos escritos apressaram a independência;
o padre Campos, líder da Cabanagem do Pará; e Padre Miguelino da revolução de 1817 em
Pernambuco. Na segunda parte do mesmo século tivemos o padre Ibiapina, peregrino dos
sertões nordestinos e o Padre Cícero de Juazeiro do Ceará. O que caracteriza esses outros
sacerdotes brasileiros do século 19 é a identificação como os anseios do povo, a dedicação e
generosidade para com povo, e não tanto a vivência das virtudes do celibato eclesiástico.
Escreve Câmara Cascudo: “ nenhum homem do Povo acredita ou compreende o celibato
clerical. Nem mesmo acredita na pureza do sacerdote senão excepcionalmente. Fora o altar os
padres são homens como os outros. O Vigário com sua amásia e Filhos teúdos e manteúdos
não diminuiu em nada autoridade sagrada. Noventa por cento dos graves vigários colados (do
Rio Grande do Norte) deixaram descendência. Exige-se do padre fidelidade infalível dos
deveres da assistência Cristã. Os vigários velhos foram de uma dedicação inexcedível.”

Contra o catolicismo moreno


Foi em face dessa permissividade do cristianismo moreno do Brasil que a romanização
reassumiu a postura intransigente que caracterizar a primeira geração dos missionários em
relação "vícios da terra". Para isso, era necessário restabelecer em primeiro lugar a disciplina
eclesiástica através dos seminários. Foi organizada por todas as dioceses a Obra das Vocações
Sacerdotais com a recomendação papal de que se tratava de uma obra absolutamente
primordial, a primeira que cada Bispo tinha que iniciar na sua diocese. Para arrecadação de
fundos para Obra das Vocações destinada a sustentar os estudos dos seminaristas - o
episcopado apelava para a eterna fonte de dinheiro, a devoção popular, seja através do

138
encampamento de santuários até então administrados por confrarias, seja através de festas e
procissões que reunissem uma grande multidão de pessoas.
Nos seminários, os estudantes tinham que adquirir antes de tudo o espírito da
corporação clerical. Eis a finalidade principal dos seminários e a razão por que não se abre
mão desse método de formação clerical, mesmo sob a crítica de que ele é afinal é menos apto
a formar nos candidatos ao sacerdócio um espírito pastoral. O que importa - em conformidade
com pensamento da romanização - é antes de mais nada adquirir o espírito da corporação que
aos poucos vai influenciar o corpo social católico e assim penetrar na sociedade como um
todo. O pensamento é, pois, que o ambiente católico, por si só, é benefício para a humanidade.
Não se aprofundam os aspectos questionáveis do catolicismo. Ele tem que ser aceito em
bloco, pois constitui, exatamente por sua coesão, a melhor garantia de salvação para o mundo
em que vivemos. Em suma, o catolicismo é uma religião "de reta doutrina", assim como
Rubem Alves analisou o protestantismo no seu estudo penetrante Protestantismo e Repressão.
Esse catolicismo "de reta doutrina" deita raízes no modo como a hierarquia conseguia igreja e
cristianismo na Idade Média, isto é, como uma "sociedade" perfeita (uma corporação perfeita,
diríamos hoje) que evangeliza pela sua maneira de ser, simplesmente, como por osmose,
através das leis, do controle estatal, da perseguição dos heréticos e discordantes, afinal da
manutenção de uma uniformidade religiosa que não suporta críticas. Acontece que a
moralidade, que traz consigo as práticas do "livre exame", de pesquisa e a liberdade de
opiniões, exerce uma ação corrosiva sobre esses pressupostos do catolicismo de reta doutrina,

A voz do Padre Júlio Maria


Com a virada do século 20 e cole no Brasil a voz de um sacerdote que tentou recolocar
a questão do catolicismo nos termos já abordados pelo movimento em torno do Padre Feijó
nos anos 1830. Só que ele foi além do "patriotismo" de Feijó e conclamou os responsáveis
eclesiásticos a repensar a cristianização do Brasil "de baixo para cima" e não mais "de cima
para baixo", como tinha acontecido até então. Trata-se de Júlio César de Moraes Carneiro(
1850 a 1916) que após uma vida de afastamento do cristianismo se convertera, se ordenar
sacerdote em 1891 e entrará na Congregação dos Padres Redentoristas em 1904. Como o
primeiro Redentorista brasileiro ele assumiu o nome de Padre Júlio Maria. Seu pensamento
prático e sua ação dinâmica sacudiram os espíritos na época, pois o que ele dizia era
completamente distinto do discursos laudatório e triunfalismo do meio dos meios eclesiásticos
no momento. Ele dizia que o Brasil estava se "descatolicizando", que o catolicismo não era

139
mais que um verniz sobre a realidade religiosa que de cristianismo tinha pouca coisa, e que
era necessário "unir a igreja ao povo" para reverter esse quadro. Estava na hora de uma nova
evangelização, do século 20, cujo programa Padre Júlio Maria traçava nas seguintes linhas: "
substituir as questões políticas, erroneamente predominantes nos governos, nos parlamentos e
nos jornais, a questão social o que é a questão por Excelência; não mais pleitear privilégios
que não tem razão de ser; mostrar aos pequenos, aos pobres vírgulas aos proletários que eles
foram os primeiros chamados pelo Divino Mestre, cuja igreja foi logo, desde o início, a igreja
do Povo, na qual os grandes, os poderosos, os ricos também podem entrar, mas se tem
entranhas de misericórdia para pobreza; sujeitar o despotismo do capital as leis da equidade;
exige dele, não a caridade, mas a justiça a que tem direito o trabalho; dignificar o trabalhador;
cristianizar a oficina; proclamar bem alto a eminente dignidade do operário na Cidade de
Deus, que Jesus Cristo fundou na terra, não com as castas, as aristocracias, as burguesia ou as
dinastias, mas com o povo e para o povo; convidar francamente a democracia ia ao banquete
social do evangelho; enfim: Unir a igreja ao Povo”. Fizemos essa longa citação ( mesmo
assim, resumida) por nos parecer que a postura de Padre Júlio Maria em 1900 toca no âmago
da questão do cristianismo no país como o Brasil, e que ela não perdeu nada em atualidade
após 90 anos.

A vitória de Dom Leme


Qual foi o destino dado as palavras proféticas do Padre Júlio Maria a história no- lo,
através da Escolha feita pela hierarquia católica entre o que dizia Padre Júlio Maria e o que
afirmava um outro sacerdote de renome, Padre Sebastião Leme da Silveira Cintra ( 1882-
1942), ulteriormente Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro e o centro efetivo da hierarquia
católica nas décadas de 1920 -1940, com irradiação de pensamento até os dias de hoje. Dom
Leme expôs seu pensamento numa carta pastoral escrita em 1916, verdadeiro plano pastoral
para todo Brasil. Ele partiu do pressuposto da romanização, e pensava exatamente o contrário
do que Padre Júlio Maria tinha exposto: o Brasil era a " maior nação Católica do mundo", um
país quase que "essencialmente" católico, que concluiu com o catolicismo um pacto na época
colonial que foi ameaçado no século 19 pelo assim chamado laicismo e tinha que ser
renovado. O lema era, por consequente: evangelizar de cima para baixo, não de baixo para
cima, restabelecer a aliança com o estado desfeita no final do século 19, fazer de novo do
catolicismo o "cimento nacional" e por assim dizer a alma do Brasil.

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Um simples elenco das maiores realizações de Dom Leme como Bispo do Rio de
Janeiro já demonstra a marca que esse homem quis imprimir ao catolicismo do Brasil, e que
até hoje fica gravada, em grandes linhas, no cotidiano católico do país:
- A criação de uma Universidade Católica no Rio de Janeiro, em 1921, que seguisse o
exemplo Glorioso da Universidade de Louvain, Bélgica.
-A criação do centro Dom Vital, em 1922, que reunisse intelectuais e empreendesse a
cristianização da Inteligência brasileira. Figuras famosas do centro Dom Vital foram Jackson
de Figueiredo, um Pensador reacionário, e sobretudo o brilhante Alceu Amoroso Lima, que
em 1937 se afastou do integralismo para abraçar o centrismo de Jacques Maritain e outros
neotomistas franceses.
- A criação da revista A Ordem que exprimisse o pensamento dos intelectuais católicos do
centro Dom Vital, em 1921.
- A organização da ação católica brasileira (ACB) em 1935.
- A iniciativa dos primeiros congressos eucarísticos nacionais, na Bahia, em Belo Horizonte e
em Recife sucessivamente.
- A criação do Colégio Pio Brasileiro (Roma), para formação dos futuros quadros da
hierarquia.
- A organização de Páscoa se coletivas por exemplo dos militares, dos intelectuais vírgulas
dos colégios, e mesmo nas fábricas.
- A construção do monumento a Cristo Redentor no Corcovado.
- O estímulo continuo dado a obra das vocações sacerdotais.
- A proclamação solene de Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil.
- A fundação do movimento de círculos Operários.
- A fundação da Adoração Perpétua.
- A criação da liga eleitoral católica (LSC), espécie de superpartido.
- A luta contra a legislação do divórcio e o estabelecimento de relações diplomáticas com a
Rússia.
- A intervenção junto as cúpulas revolucionárias de 1930.

Dom Leme e Leão XIII


A orientação pastoral do governo de Dom Leme é, por consequente, marcadamente
intelectualista: Universidade Católica, Colégio Pio brasileiro, seminários com o nível de
estudos. Revista A Ordem, Centro Dom Vital, círculos católicos. Isso aproxima Dom Vital do

141
Papa Leão XIII (1878-1903) cuja orientação positiva diante dos estudos contrastava
vivamente com as condenações do exercício livre das ciências que tinha marcado de forma
traumática o pontificado de Pio IX (1846-1878). Para entender melhor essas conjunturas e
com isso o sentido do Governo de Dom Leme no Rio de Janeiro, temos que recuar no tempo.
Desde 1830, época da restauração do catolicismo na França e na Europa toda após os
abalos da Revolução Francesa, o papado tem reagido negativamente diante de um diálogo
sério com a modernidade, pois mais que esta apresentasse temas conaturais do cristianismo
como igualdade, fraternidade, liberdade. Na época da restauração se reabriram seminários e
Universidades Católicas, conventos e colégios católicos, no espírito de rejeição dos valores
modernos. Afinal de contas, tratava-se de uma postura comandada pelo menor esforço, já que
era mais cômodo manter as referências medievais - consideradas válidas para sempre - do que
encaminhar um difícil e sobretudo penoso resgate da memória propriamente evangélica do
cristianismo diante da recolocação de praticamente todas as questões pela modernidade:
poder, moral, política, costumes, ideias, mentalidades. Hierarquia católica pessoal por muito
tempo poder vencer o páreo pelos antigos métodos de intimidação, de marginalização e
perseguição dos “hereges” e “livres pensadores”, “racionalistas” e “ateus”, ou pela disciplina
interna da Corporação clerical, ou ainda pela pompa e pelo Prestígio que o mais antigo
sistema religioso do mundo ocidental tinha junto ao povo em geral. Eis a posição do Papa Pio
IX expressa no seu Syllabus Errorum (sumário dos erros) de 1864. Essa posição, que é
assumida depois de Pio Décimo no decreto Lamentabili de 1907 contra o padre Loisy que
tinha aplicado o método da pesquisa livre aos Evangelhos, provou ser muito perigosa pois
abre uma brecha para interpretação fascista e ou integralista do catolicismo.
Com raro espírito de percepção e habilidade, Leão XIII sentiu que a postura de Pio IX
se tornará insustentável e de uma guinada em direção à modernidade que aliviou o clima de
apreensão e de complexo de inferioridade em que vivia a inteligência católica diante dos
avanços da modernidade com autores como Freud, Durkheim, Hegel e Marx e sobretudo
Kant, os “mestres da dúvida” e perturbadores da boa consciência dos fiéis onde final apesar
um ano após ter assumido o pontificado, Leão XIII publicou a encíclicas: Aeterni Patris,
sobre a filosofia cristã que no espírito de Santos Tomás deve ser restituída nas escolas
católicas (1879). Essa encíclica, que instaurou no mundo católico e no neotomismo, fez de
São Tomás, ou melhor do mito que se criava em torno de Santo Tomás pois - os escritos
mesmo do mestre medieval não foram bem aceitos pela hierarquia do século 13 - uma arma
Invencível contra a modernidade doravante os católicos não tinham mais que baixar a cabeça

142
diante dos avanços dos "livre pensadores", o Papa lhe colocava entre as mãos todas as
respostas, prontas de antemão, para vencer os inimigos da fé e ao mesmo tempo reconciliar a
fé com a ciência. Eis como o papa explica as coisas: Santo Tomás é a culminância do
pensamento Cristão, que desde o século 21 com os apologetas luta contra os erros do mundo.
Como ele conseguiu vencer os erros do passado, assim certamente conseguirá hoje. Basta
conhecer bem a filosofia dele, que é “eterna” (Philosophia perennis) e por conseguinte vale
para todas as épocas. Se os argumentos de Santo Tomás forem apresentados (Eis a questão!),
então os mais arraigados racionalista hão de ceder diante deles, tão grande sua força dialética.
O Papa transforma por conseguinte o tomismo em apologética em defesa da fé, uma espécie
de mitologia fundante do catolicismo e sua intransigência.
A diferença com Pio IX não está na recolocação do problema de fundo, que é o
diálogo sério com a modernidade, mas na impressão de segurança e possibilidade que Leão
XIII conseguiu criar em torno de si e se provou por contagiante, sobretudo depois da Primeira
Guerra Mundial, em 1918, quando na França sobretudo muitos intelectuais católicos em ver e
darão pelo neotomismo e fizeram dele a ideologia típica da ação católica que veio ao Brasil -
pelo menos em termos de ideias - por intermédio da França: autores como Sertillanges,
Maritain, Mounier, Chenu, Congar eram os prediletos dos estudantes da JUC no Brasil, sendo
que Chenu conseguiu quebrar a camisa de força imposta por Leão XIII e abordar o tema da
questão social. Aliás com a JUC o pensamento da Ação Católica no Brasil começou a sair dos
Trilhos traçados pelo Padre Leonel Franca, pelo Centro Dom Vital e pela revista A Ordem,
para entrar de cheio nas questões políticas e sociais que afligem o Brasil.

O neotomismo como arma


Muitos interpretam a postura de Leão XIII diante dos problemas do mundo moderno
como tolerante, mas não acreditamos que eles tenham sido tolerante. Ele era apenas paciente,
sabia esperar. Ele dava aos discordantes tempo para "duvidar e mesmo errar", mas estava
convencido que com o tempo a verdade haveria de resplandecer. "A igreja vai reconduzir os
estudiosos para o caminho certo", repetia. A Encíclica Libertas de 1888 rejeitava da "leviana
e escandalosa tolerância" em termos de religião era por consequente contra a liberdade
religiosa. Mas o Papa soube conjugar as intransigência com uma boa dose de compreensão
pela "fraqueza humana" e fazer concessões que na realidade revelaram nele um espírito
pragmático guiado pelas diretivas da "raison de l’État" ( razão do Estado) do Vaticano.

143
Afinal, desde 1830 só tivemos um papa realmente tolerante e aberto de verdade: o Papa João
XXIII.
O horizonte referencial de Leão XIII, como de muitos Papas que tiveram que lidar
com a modernidade, era a Idade Média. Ele gostava de se refletir ao Papa Inocêncio III (1198
-1216), verdadeiro símbolo do Poder papal na Idade de Ouro do papado, e se imaginava
também enviado a toda a humanidade e representante de todo gênero humano. Nele não havia
considerações sobre o caráter provisório do modelo eclesial por ele representado de forma
eminente. O tom paternalista e universalista de seus discursos revelou a persistência nele e
imperialismo Cristão sobre a sociedade como um todo. Querendo ser um grande líder da
humanidade, Leão XIII só conseguiu a postura de uma oportunista, ao oferecer ao católicos
católicos soluções que se revelaram ilusórias concorrer do tempo. O tempo aos católicos para
saírem do clima negativista que reinaram no governo de Pio IX e preparar uma nova postura
diante dos problemas da atualidade, como fizeram sacerdotes como Chenu, o Padre Lebret, e
mais tarde os teólogos da libertação. Mas estes não podem ser mais contar com apoio do
Vaticano, pois a política do Vaticano diante da modernidade não mudou até hoje, apesar do
Concílio Vaticano II e do breve pontificado de João XXIII.

A Ação Católica após 1942


Após a morte de Dom Leme, que tinha controlado os rumos do catolicismo oficial
entre 1916 e 1942, criou-se um vácuo. Que força social e apreender o lugar ocupado pelo
Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro por tanto tempo? - emergiram ao longo dos anos - três
forças sociais que condicionaram o famoso "radicalismo católico" dos últimos 25 anos, da
década de 60 para cá: a ação católica "especializada”, Isto é, organizada a partir de grupos
sociais de leigos como: camponeses, operários, e sobretudo estudantes; a força do episcopado
ao mesmo tempo Unido e caracterizado O que é mais raro pelo Espírito do profetismo (a
união se fez desde 1942 através da CNBB: conferência nacional dos bispos do Brasil) . E, e
finalmente o movimento popular que cresceu muito no Brasil durante o regime militar, entre
1964 e 1982. Nos limites deste trabalho só podemos dizer algumas palavras sobre esses três
fatores da nova face do cristianismo católico entre nós.
Na Ação Católica o grupo mais ativo foi a JUC Juventude Universitária Católica, onde
nos anos 50 passou-se da teoria do desenvolvimento como teoria explicativa da situação
latino- americana para a “teoria da dependência” que tanto influenciou a Teologia da
Libertação e outros movimentos. Como já se publicou muito sobre o assunto, remetemos o

144
leitor para a literatura existente, sobretudo para o estudo de S. Mainwaring. Só queremos
lembrar que a Ação Católica e mais especificamente a JUC recebeu nos anos 60 o coup de
crosse (golpe de báculo) por parte do episcopado, que se sentiu visivelmente incomodado de
ver leigos de modo autônomo falar em nome "da igreja”. Aqui, como em outras ocasiões
através da longa história do cristianismo, modelos de interpretação do que seja "a igreja" Se
chocaram: "a igreja somos nós", dizem os leigos, e os bispos dizem o mesmo, e ambos não se
entendem.

O Episcopado profético
O verdadeiro novo, em termos de história do cristianismo, aconteceu com os bispos do
Brasil nas últimas três décadas. Normalmente, assim como vocábulo "Bispo" (fiscal da
comunidade) indica, a função Episcopal se distingue da função Profética. Assim foi no
cristianismo dos primeiros séculos, do seio do qual havia uma tensão entre profetas - doutores
de um lado e bispos - pastores de outro ponto os autores ou profetas representavam a
radicalidade evangélica, enquanto os pastores ou Bispo primavam pelo espírito de conciliação
em benefício do bom andamento das Comunidades. A história de 2.000 anos de cristianismo
ensina que as experiências cristãs e os modelos eclesiais conseguem um bom resultado em
termos de evangelização quando neles existir uma tensão salutar entre o polo profético e o
pastoral. O desequilíbrio pode provir de ambos os lados. Assim, por exemplo, ou cristianismo
oficial do Brasil-colônia era muito pouco profético. A função episcopal era totalmente
inexpressivo e não contribuía quase em nada para o desenvolvimento do cristianismo aqui
ponto o Bispo, naquela época fazia parte do funcionalismo público, era pago pela “folha
eclesiástica" do Padroado, não se importava com questões pastorais senão em raros casos,
esperava apenas poder continuar a "carreira" conseguindo um bispado em Portugal depois do
"exílio brasileiro" não era brasileiro senão excepcionalmente, não falava Nem entendia a
língua tupi que era falada que até meados do século 18, não assumiu o cargo mas ficava em
Portugal, governando por um intermediário, não fazia visitas pastorais senão
excepcionalmente, afinal era um peso morto da administração colonial.
Depois desse passado Colonial nada lisonjeiro o episcopado no Brasil conheceu um
surto positivo por obra e força da romanização os assim chamados "bispos reformadores"
fizeram tudo o que estava ao seu alcance para alinhar suas dioceses segundo o modelo
Romano. Agora, com o surgimento da CNBB em 1952 e sobretudo após a instalação do
governo militar em 1964 o episcopado passou a ganhar uma dimensão Profética e é até hoje a

145
instituição mais respeitada nesse país. Sua atuação não estava mais na linha da romanização,
embora ela nunca sumisse postura francamente anti - romanas. Sua coragem se voltava antes
contra os abusos do regime militar e a favor dos empobrecidos do Brasil através de mudanças
de estruturas da Sociedade. Como explicar essa convivência entre profetismo e função
Episcopal que - como dissemos - não é tão comum na história do cristianismo? Há diversos
fatores a considerar:
- Após a morte de Dom Leme líder inconteste da catolicidade brasileira até 1942,
houve um vazio que foi sendo preenchido com o tempo pela atuação de diversos bispos locais
que começaram a “mexer-se”: assim a experiência de Catequese Popular em Barra do Paraí,
Diocese de Dom Agnelo Rossi; o "Movimento de Natal" com dom Eugênio Sales; a união dos
bispos do Nordeste que deu origem SUDENE (Superintendência do Nordeste, o governo de
Kubitschek); o movimento de Educação de base (MEB) com Dom José Távora . E, o
movimento por Um Mundo Melhor (MMM) com padre José Marins; mais tarde o Movimento
de Encontro de Irmãos com Dom Hélder Câmara, e muitas outras iniciativas. A CNBB reunia
habitualmente essas iniciativas aos seus sucessivos "planos de pastoral" e desta forma lhes
deu repercussão nacional.
- Um segundo fator – importante - foi a atuação de Dom Armando Lombardi como
núncio apostólico no Brasil entre 1954 e 1964, na década anterior ao golpe militar. Dom
Lombardi apresentava ao Papa - para serem nomeados bispos - pessoas provenientes do
círculo da ação católica ou de qualquer modo abertas as questões sociais. Ele "atravessou"
assim os pontificados de Pio XII João XXIII e Paulo VI. Este último parcialmente sem ser
molestado nas suas indicações pelo burocracia do Vaticano, ao que parece. Esse homem
modelou a imagem que a CNBB ia revelar ano depois e, por assim dizer, "mudou a face" do
episcopado brasileiro.
- Uma terceira conjuntura favorável ao episcopalismo profético foi o pontificado de
João XXIII e a realização do Concílio Vaticano II com as subsequentes conferências do
episcopado latino-americano em Medellín em 1968 e Puebla em 1979.
Hoje o episcopalismo Profético está em declínio sobre os ataques da administração
Central Romana e não se vê bem como ele poderá ressuscitar no futuro próximo.

O movimento popular
Um terceiro fator que mudou a face do catolicismo nos últimos anos foi um
movimento popular propriamente dito. Esse movimento está em plena fase de urbanização e

146
isto é, está procurando responder aos novos desafios colocados pela rápida urbanização do
Povo Trabalhador do Brasil. Nos anos de 2000, 77% da população brasileira viverá
concentrada em grandes cidades. O cristianismo moderno do Brasil, que Até recentemente
tinha uma aparência marcadamente Rural e camponesa, está se habituando a viver em grandes
cidades. Percebemos ou pulso desse cristianismo nas mais variadas atividades com as quais as
populações marginais das grandes cidades enfrentam problemas de seu dia a dia: calçamento
de rua, abastecimento de água, serviço de esgoto, transporte, saúde, educação, segurança
pública, habitação, custo de vida, salário. As atividades vão desde clubes de mães passando
pelos grupos de jovens, Associação de Moradores, movimentos de terrenos ali (para
conquistar um terreno para morar) até assumir formas mais ligadas aos sindicatos e órgãos
representativos da classe trabalhadora.
O movimento popular mantém diversos laços com grupos organizados de católicos. Só
queremos aqui aponta três tipos de grupo que ao nosso ver influenciam movimento popular:
As pequenas comunidades de religiosos e sobretudo religiosas inseridas em ambientes
de Periferia das grandes cidades constituem uma das formas mais dinâmicas de reformulação
na vida religiosa sobretudo feminina nos últimos anos. As religiosas que vivem nas periferias
ainda são uma pequena minoria, mas o movimento tem uma ascensão lenta e a de influir, de
uma forma ainda não previsível, nas orientações pastorais da hierarquia católica. Estamos
diante de um movimento popular dentro da própria "Igreja Grande" que no setor mais
residente que ao setor feminino. Um outro movimento muito mais conhecidos são as
Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) como atualmente há muitas discussões Acerca das
CEB’s remetemos o leitor a literatura acessível sobre o assunto pois o limite destas páginas
não permite comentários mais amplos.
Uma terceira iniciativa de união de forças cristãs dentro do movimento popular são as
diversas "pastorais" que foram surgindo ao longo desses 25 anos e das quais diversas foram
oficialmente assumidas pela CNBB: a Pastoral da Terra (CPT) e atualmente talvez o
movimento mais dinâmico; a Pastoral Operária (PO); a Pastoral da Juventude do Meio
Popular (PJMP) . E, a Pastoral dos Pescadores (PP) podem, a Pastoral da Mulher
Marginalizada; o Movimento de Negros dentro da Igreja; o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI). Estas “pastorais” reúne as forças cristãs jovens de Muita criatividade. Acreditamos
que não há atualmente no Brasil em uma paróquia que não seja de uma ou de outra forma
atingida pelos trabalhos de uma dessas "pastorais", ou de movimentos que se orientam na
linha da teologia da libertação.

147
Fragilidade das CEB’s
No final destas páginas acerca dos desencontros entre os movimentos de
evangelização e o cristianismo Moreno no Brasil não podemos deixar de tecer algumas
considerações críticas acerca dos grupos cristãos que trabalham em meio popular na linha da
operação pelos pobres o problema que vem pelo momento nos parece estar na própria
conceituação de "religiosidade popular", com que os agentes de pastoral indicam o
cristianismo vivido pelo povo. Essa conceituação não ajuda a ver claro, atrapalha em vez de
esclarecer. Ela faz esquecer que aqui se trata de uma experiência Histórica de quase 500 anos
de existência, de procura de maior coesão social, de peregrinação e a dança por cima dessa
terra vendida aos interesses estrangeiros. Trata-se de um cristianismo autêntico, tão autêntico
quanto o cristianismo dos Padres, dos bispos e dos religiosos. Por mais que a Pastoral no
Brasil tenha caminhado em termos de análise política e social, em termos de aprofundamento
das questões culturais ela ainda está bastante amarrada aos esquemas que nos foram impostos
tanto na primeira como na segunda evangelização. Desse desencontro básico decorrem
algumas consequências como queremos brevemente apontar aqui, seguindo a análise de
Cláudio Perani:
. Os movimentos de base ainda não conseguiram, após mais de 15 anos de trabalho, uma
liderança Popular autônoma, como era o inteiro Inicial. Os agentes de pastoral ficam se
perpetuando na liderança ou na orientação das CEB’s e outros grupos, assim como os
assessores intelectuais.
. A relação entre os grupos de base e as associações civis voluntários, que recebem dinheiro
de organismos internacionais, permanece confusa.
. A proposta dos agentes de pastoral acerca da conscientização permanece ambígua. Os
agentes de pastoral não partem da experiência histórica do Povo da base mais trazem
elementos novos de fora para dentro.
. Há um impulso latente no sentido de converter o grupo de base numa nova "cristandade", ou
seja, um novo modelo de aliança com estado, seja ele popular ou de esquerda. A ideologia da
cristandade não está de todo superada nas novas experiências eclesiais.
(HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 129-
153.)

148
5. O PENTECOSTALISMO BRASILEIRO

Contribuições para uma tipologia do Pentecostalismo Brasileiro

O pentecostalismo brasileiro, em suas primeiras décadas, não obstante sua acentuada e


expansão geográfica, apresentou uma formidável uniformidade doutrinária. Nem mesmo a
fragmentação institucional ocorrida a partir dos anos 50 conseguiu romper essa uniformidade
doutrinária, pois o cerne da mensagem pentecostal manteve-se intacto, apesar das
comunicações ocorridas em termos de expansão dessa mensagem. Assim é possível falar de
um pentecostalismo clássico, que se tornou referência nos estudos sobre pentecostalismo.
Mesmo quando o segmento de protestantismo histórico, a partir dos anos 60
pentecostalizaram -se, eles abraçaram a doutrina clássica do pentecostalismo. Esse fenômeno,
afetou o protestantismo mundialmente, foi dominado "Renovação Carismática" no Brasil e
"neopentecostalismo" nos Estados Unidos em outros lugares.
A uniformidade doutrinária do pentecostalismo foi rompida, com tudo e meados dos
anos 70 quando vários setores do pentecostalismo clássico começaram a experimentar
mutações em seus séculos doutrinários pontos essas mutações provocaram uma diversidade de
dobramento, alguns bastante diferentes de sua origem comum, e outros nem tanto. Hoje
convivem no campo Pentecostal brasileiro uma infinidade de pentecostalismos, diferentes
entre si não apenas no comportamento ético-social, como também no campo doutrinário.
A irrupção dessa pluralidade de pentecostalismos tornou-se as tipologias existentes
inadequadas. No presente, falta uma tipologia que permita a distinção, no mínimo, dois
grupos majoritários e suas características principais isso têm permitido o surgimento de
generalizações e deduções que ao serem analisadas mais detalhadamente se mostram
imprecisas. Uma delas postula que o pentecostalismo é politicamente passivo e, por isso tem
atraído as massas que não concordam com o engajamento político do catolicismo
Progressista. Em sentido contrário outra defende que o pentecostalismo encoraja a ação
coletiva e desenvolve a conscientização social. Uma terceira afirma que o pentecostalismo
coloca no centro de seu programa uma versão da ética protestante similar à do metodismo do
início do século passado e que a ética ascética e de poupança de pentecostalismo estabelece
uma resistência singular a ética hedonista brasileira. Todas estas proposições refletem uma
realidade específica e, portanto, precisam ser entendidas em seus contextos relativos.

149
O pentecostalismo clássico
Lavile d’Epinay, teólogo e sociólogo suíço, foi um dos primeiros estudiosos que
procurou fornecer uma tipologia do pentecostalismo na América Latina. Ele conclui o que "o
pentecostalismo sintetiza o protestantismo (cristocentricidade, biblicista, união da fé com a
ética) com uma forma de espiritualidade que é característica das religiões "populares"
(emoção, ritos de possessão, participação coletiva)". No pentecostalismo clássico é Jesus
Quem salva, cura, batiza com o Espírito Santo e voltará como Rei e Juiz lógico. Essa
cristocentricidade não foi enfraquecido pelos pentecostalismos que enfatizam a cura divina.
Neles a cura é sempre atribuída a Jesus. Frases como "Jesus me curou" são muito mais
comuns do que "O Espírito me curou" ou mesmo "Deus me curou".
No entanto, o caráter cristocêntrico do pentecostalismo é percebido melhor em sua
escatologia. Esse foi o elemento estrutural de todo o sistema Pentecostal em seu início na
primeira década do século 20 nos Estados Unidos. Até mesmo a glossolalia , seu elemento
mais distintivo, deve ser compreendida a luz da escatologia. Os Pentecostais entenderam que
o fenômeno que estava ocorrendo em seu meio era o mesmo que ocorrera com os discípulos
em Jerusalém e narrado no segundo capítulo do livro do Atos dos Apóstolos. A interpretação
escatológica dada pelo Apóstolo São Pedro aquele evento, vendo nele o prenúncio dos
últimos tempos, foi assumida inteiramente pelo Pentecostais. A nova visita ação do Espírito
Santo representava a consumação dessa era.
A escatologia Pentecostal tem como elemento central a crença em um período de mil
anos de paz e prosperidade da terra, ou seja um Milênio. Portanto, o pentecostalismo é um
movimento milenarista. Mas, ao contrário da escatologia reinante no protestantismo norte-
americano do século 19, que era pós-milenarista, ou seja, acreditava que o retorno de Cristo
ocorreria no final do milênio, a escatologia Pentecostal é acentuadamente pré-milenarista,
centralizada na expectativa do iminente retorno de Cristo para inauguração de seu reino
milenar.
As implicações da concepção pré- milenarista no comportamento Pentecostal são
demasiadamente conhecidas. Podemos lembrar o afastamento das questões sociais, o desprezo
pelos Prazeres mundanos, o cultivo da sobriedade e da temperança, entre outras pontos a
expectativa do eminente retorno de Cristo, atualizada constantemente por meio dos sermões,
das profecias e principalmente dos cânticos um dos mais populares diz assim:, - talvez mais
tarde, esta noite ou amanhã, Jesus em breve virá -, também funcionava como um instrumento

150
Regulador do comportamento, uma vez que quem fosse encontrado em Pecado quando vindo
de Cristo não participaria de seu reino milenar.
Quanto ao biblicismo no pentecostalismo, em certas regiões do Brasil os Pentecostais
ficaram conhecidos como "bíblias" por sempre portar em suas bíblias. Nos cultos vírgulas Os
Sermões e as profecias são sempre com base ou em referência a um texto bíblico, que
normalmente é interpretado de maneira literal ponto também o pentecostalismo aproxima-se
bastante do fundamentalismo, ao aceitar a inerência do texto bíblico. A bíblia é tida como a
única regra de fé e prática. As prescrições presentes na Bíblia sobre qualquer assunto, não
deve ser questionadas mas obedecidas.
Já a união da fé com a ética no pentecostalismo clássico pode ser avaliada pelo
prestígio alcançado pelo Pentecostais no que se refere as qualidades Morais. Durante muito
tempo o Brasil ser crente era sinônimo de honestidade e bom comportamento moral. A
literatura sobre pentecostalismo no Brasil é cheia de referências e essa característica dos
crentes. A e tecnologia francesa Marion Aubrée, por exemplo, em sua pesquisa no Recife que
ali as mulheres Pentecostais levavam vantagem na disputa por vagas para empregadas
domésticas devido a sua reconhecida probabilidade.
Em relação à emoção, aos ritos de possessão e a participação coletiva de Lalive
d’Epinay, a literatura também esta está saturada de exemplos. Para citar apenas um, Aubrée
constatou que, para pertence plena inteiramente a um grupo Pentecostal, a pessoa deve em
primeiro lugar fazer uma declaração no seio da comunidade de que aceita Jesus como
salvador. Depois vem o batismo por imersão, em uma cerimônia coletiva, e o batismo do
Espírito Santo caracterizado pela glossolalia. Este último pode acontecer antes do primeiro.
Para uma melhor compreensão a mutação de alguns segmentos do pentecostalismo
clássico veicula essa tipologia de Lalive d’Epinay pode ser enriquecida com a tipologia
oferecida por Fry e Howe na década de 70 .Em uma comparação entre o pentecostalismo e a
umbanda, eles dizem que os Pentecostais são tão abertos ao ritualismo quanto aos urbanistas
são a favor, e que "a manipulação mágica, que é central nos rituais de umbanda encontra-se
totalmente ausente do ritual Pentecostal" ponto assim segundo esses dois autores, enquanto os
umbandistas percebem o universo como passível de manipulação mágica, os Pentecostais o
consideram não manipulável.

Neopentecostalismo ou pós-pentecostalismo?

151
A síntese observada por Lalive d’Epinay, oficialmente, não é equilibrada nem
homogênea, podendo haver e fazer maior em um ou mais dos dois fatores em detrimento do
restante ponto na realidade, isso ocorreu com tal magnitude nas últimas décadas que a própria
síntese pode ser questionada. Essa mutação só pode ser percebida mediante a análise do
desenvolvimento histórico do pentecostalismo de fato,
Se levarmos em consideração que os fenômenos religiosos refletem estruturas mentais e que estas se
inserem entre as de longa duração veremos a necessidade de elaborar análises que levam a considerações
eventuais defasagens existentes no seio da estrutura social global e as estruturas mentais.
Contudo, devido a ausência de pesquisa histórica, nossa compreensão do
pentecostalismo tem sido moldada por antropólogos e sociólogos. Como observa Freston, um
cientista político inglês radicado no Brasil, “a história do pentecostalismo brasileiro não tem
recebido praticamente nenhuma atenção acadêmica... A sociologia do pentecostalismo tem
inovado apenas no nível micro; a pouco estudo sobre a evolução das igrejas e seu
relacionamento com a sociedade" ponto sua reivindicação de ter parcialmente coberto essa
lacuna e sua tese de doutorado precisa ser qualificada. Nela, e limita-se a uma história factual,
descritiva. Por exemplo, ao descrever o início da Assembleia de Deus no Pará em 1911 e sua
expansão para o Nordeste, ele em nenhum momento relacione esse fato com a crise do ciclo
da borracha e o refluxo de migrantes nordestinos.
Essa dificuldade que Freston demonstra em situar o pentecostalismo nas estruturas
sociais vírgulas econômicas, mentais e assim por diante reflete-se em sua proposta de
perceber o pentecostalismo em três ondas de criação institucional ponto a de liberdade dessa
tipologia a rigor não é uma tipologia, mas uma genealogia das formações pentecostais já foi
demonstrada pelo sociólogo Mariano. Embora ele concorde com Freston na rejeição da
terminologia de Bitencourt (pentecostalismo autônomo), de Mendonça (cura divina) e de
Brandão (pequenas seitas), que não distinguem entre a segunda e a terceira onda, por outro
lado conclui que “a segunda a onda nada mais é do que um desdobramento institucional do
pentecostalismo clássico (primeira onda)”.
Mariano Está correto, pois a rigor da avaliação teológica entre primeira onda
pentecostal e a segunda é bem menos significativa do que aquela entre os vários
protestantismo de Missão, por exemplo. Ademais, Aimee Semple McPherteson, fundadora da
Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular, que para a Freston não inicia a segunda
onda no Brasil, é do mesmo contexto teológico dos iniciadores da Assembleia de Deus e da
Congregação Cristã no Brasil . Foi ordenada ao Ministério por William H. Durham no início
de 1909, um ano antes do mesmo Durham ter enviado Daniel Berg e Gunnar Vingren para o
152
Brasil foi na igreja de Durham, em Chicago, onde Luigi Francescon havia experimentado a
benção pentecostal, que McPherteson recebeu o dom de interpretação de línguas e seu
tornozelo quebrado foi curado instantaneamente.
As técnicas modernas trazidas pela Quadrangular ao Brasil não representa uma ruptura
com venda mesmo clássico e, portanto, Mariano tem fundamento para designar essa segunda
a onde de “pentecostalismo neoclássico" contudo, convém ressaltar que a chegada do
Evangelho Quadrangular representa um passo, embora tímido, em direção ao surgimento de
novas formações pentecostais que eventualmente se distanciar iam do modelo clássico
Uma vez que o pentecostalismo é uma estrutura de longa duração, é fundamental
lembrar, como fizemos a pouco, que o pré-milenarismo estava no cerne de sua mensagem .
Estava claro para os primeiros seguidores do pentecostalismo que o batismo do Espírito
Santo, evidenciado pelo dom de línguas, era um revestimento de poder para testemunhar as
boas novas, visando a rápida evangelização no mundo, apressando, portanto, a volta de Jesus
como juiz rei escatológico para julgar e governar as nações. A quadrangular, ao chegar ao
Brasil, ainda é fiel a esta visão, mas com uma pequena alteração teológica, pequena, porém
muito importante para a história das mentalidades. Para Quadrangular o revestimento de
poder não era apenas para evangelizar, mas também para realizar obras maiores do que as que
Jesus realizou. Como Jesus era percebido como salvador, o que batizava com Espírito Santo,
médico e rei que voltará daí o nome evangélico quadrangular a cura divina acabou se
tornando se Central. Cabe lembrar que o cristianismo histórico e portanto também o
pentecostalismo clássico, sempre anunciou a cura divina mas nunca a buscou ostensivamente,
com um direito. A ênfase na cura divina refletiu um arrefecimento na expectativa escatológica
que provocava profunda desvalorização deste mundo, forte sectarismo e rigoroso ascetismo.
Essa aí fazendo a cura divina já era comum nos Estados Unidos desde o fim do século
19 pontos além da própria McPherteson, que cruzavam o país realizando cultos de cura
divina, havia muitos outros pontos mas o grande pulso nos ministérios de cura divina
aconteceu e mediatamente após a Segunda Guerra Mundial os grupos Pentecostais receberam
muito bem esse reavivamento e não obstante a controvérsia sobre a infância da profecia, a
qual dividiu muitas igrejas pentecostais. Os grandes nomes desse período são William M.
Branham e Oral Roberts a chegada da quadrangular ao Brasil representa a expansão
internacional desse movimento .
E Mariano foi feliz ao classificar a segunda onda de pentecostalismo neoclássico vida
o mesmo não aconteceu em relação a terceira onda, pois ele aceita de forma não critica o

153
termo neopentecostal. Mesmo reconhecendo que o termo tem sido empregado por imprecisão,
ele aceita ou simplesmente por ser “que mais vem ganhando terreno nos últimos anos entre os
pesquisadores brasileiros para classificar novas igrejas pentecostais" a inadequação do termo
fica evidente quando o próprio Mariano reconhece que "enquanto as duas primeiras ondas não
apresentam diferenças teológicas significativas entre si, verifica-se justamente o oposto
quando se compara ao neopentecostalismo as Vertentes Pentecostais que o precederam" hora,
se o neoclássico é Neo porque não difere significativamente do clássico, porque
neopentecostalismo se ele difere sobremaneira do pentecostalismo o que se percebeu?
Ademais, tradicional mente, o prefixo Neo tem sido relacionado com o continuidade e não
com o futuro. É com isso que tem outros lugares neopentecostalismo é utilizado para indicar a
renovação carismática ocorrida no seio das denominações protestantes, pois ela não diferiu
significativamente no pentecostalismo anterior.se Renovação Carismática também aconteceu
na igreja católica mas ali, não havia um pentecostalismo anterior, foi designada simplesmente
renovação carismática .
Para Mariano, as diferenças teológicas significativas entre o neopentecostalismo e as
Vertentes Pentecostais que os precederam são a ênfase na guerra espiritual, a teologia da
prosperidade e a eliminação dos sinais externos de santidade ponto na realidade, Tais
diferenças teológicas são consequências de uma mudança na escatologia e representa um
distanciamento substancial dos novos pentecostalismos em relação aos precedentes. Qual a
distanciamento salta aos olhos quando percebemos que paralelamente ao desenvolvimento, e
de certa forma provocando os do conceito de Guerra é espiritual, na teologia da prosperidade
e do abandono sinais externos de santidade, houve uma alteração escatológica
importantíssima, tênue no princípio mas agora já bastante perceptível. A roda da história geral
novamente, provocando um paulatino abandono do Pré-milenarismo e um lento, porém
seguro, retorno pós-milenarismo. Tamanho distanciamento indica que o fenômeno não é
simplesmente uma nova forma de pentecostalismo e neopentecostalismo, mais um pós-
pentecostalismo.
Assim o pós-pentecostalismo é um afastamento do pentecostalismo tendo como cerne
a teologia da prosperidade e o conceito de guerra espiritual. Tal afastamento só foi possível
mediante a gradual substituição do pré-milenarismo pelo pós-milenarismo. Os traços
característicos incluem uma mistura deliberada de religiosidade popular a utilização
autoconsciente de estilos e Convenções anteriores, a construção de estruturas comerciais, o
abandono dos sinais externos de santidade e, frequentemente a incorporação das imagens

154
relacionadas com consumismo e a comunicação de massa da sociedade pós-industrial no final
do século 20. Seu objetivo declarado é estabelecer uma nova cristandade por meio da
atividade política e seus principais representantes são a Igreja Universal do Reino de Deus, a
Igreja Internacional da Graça de Deus, a Renascer em Cristo e a comunidade Sara Nossa
Terra.

Pré- milenarismo ou pós-milenarismo?


A escatologia cristã normalmente é dividida em duas categorias: individual e geral. A
primeira trata do destino do indivíduo após a morte. A segunda trata do destino dos Cosmos.
No meio protestante, do qual o pentecostalismo é proveniente, a escatologia geral tem como
eixo central a parousia, ou segunda vinda de Cristo. Tradicionalmente, esse retorno de Cristo
tem sido associado com a questão do milênio, um período de paz e prosperidade na terra. Esta
questão é oriunda de uma leitura específica de uma passagem do Capítulo 20 do apocalipse de
São João. O Retorno de Cristo pode se dar antes de tal Milênio (pré-milenarismo), depois
(pós- milenarismo) ou, ainda, simplesmente não haver milênio algum (a milenarismo).
O pré-milenarismo advoga que, após seu retorno, Cristo estabelecerá seu reino na terra
por um período antes da consumação final da história humana. Esse período pode ou não ser
literalmente Mil Anos. Será um período de paz, justiça e prosperidade só possível porque em
seu início Satanás será acorrentado, permanecendo assim até o fim do período, quando será
libertado por um breve momento e então lançado ao Lago de fogo, onde permanecerá
eternamente. O reino não será implantado gradualmente, progressivamente. Pelo contrário,
será inaugurado de forma e repentina, em um evento cataclísmico quando do retorno de Cristo
sua inauguração será percebida por uma deterioração na condição social e espiritual da
humanidade, que culminará em um período de muito sofrimento, a grande tribulação. Os pré-
milenarismo divergem quando a presença dos fiéis nesse período. Uns acreditam que os fiéis
serão poupados desse sofrimento mediante o arrebatamento pré-tribulacional; e outros
acreditam que tal arrebatamento se dará no meio da tribulação. Ainda os pós tribulacionistas,
que acreditam que os fiéis passaram por todo período de tribulação
O pós-milenarismo por outro lado defende que o reino messiânico já foi inaugurado
por Cristo na terra em sua primeira vinda. Esse hino exerce uma influência sociocultural na
civilização, expandido se gradualmente no decorrer da história humano. Eventualmente, tal
influência será tamanha que a humanidade ao câncer há um período de paz, justiça e
prosperidade, ou seja um Milênio. O clímax desse Milênio será o retorno de Cristo.

155
Pré-milenarismo e pós-milenarismo tem-se alternado na história do cristianismo.
Normalmente, o pré-milenarismo tem-se popularizando em períodos de crise social e
econômica. Já o pós-milenarismo é caracterizado de períodos de paz social e o progresso
econômico ponto no protestantismo norte-americano, no seio do qual surgiu o
pentecostalismo, de meados do século 18 até meados do século 19, o sistema e catológico
dominante era pós-milenarismo. Com a guerra civil começava acontecer uma mudança de
paradigma que se acentuará ara com a industrialização e a imigração. Na virada para o século
20, quando e rompe o pentecostalismo ou pré-milenarismo já reinava absoluto. A
característica Central desse milenarismo era convicção demite retorno de Cristo. O
surgimento do pentecostalismo foi percebido como um Evidente sinal dos Últimos Dias.
Gerado em um contexto pré-milenarista, o pentecostalismo fez do pré-milenarismo o
cerne de sua mensagem. A pregação pentecostal era que o reino estava voltando. O batismo
no espírito santo era evidência do retorno iminente de Cristo. O dom de línguas era
capacitação para grande comissão, cujo comprimento era condição para retorno de Cristo. Os
fiéis deveriam purificar-se para encontro com Cristo, pois as vestes da noiva do Cordeiro não
podiam conter nenhuma mácula. Os santos deveriam afastar-se do mundo, uma vez que este
estava se corrompendo rapidamente sua corrupção final estaria o início do milênio.
Assim, o pré-milenarismo é responsável pela separação do mundo característica do
pentecostalismo. Essa separação revela-se, por exemplo, no desprezo ao prazer, no isolamento
cultural, na passividade sócio-política e no pessimismo em relação a qualquer esforço para
transformação da sociedade. Essa separação do mundo também é, como Troeltsch observou,
um dos elementos centrais da definição sociológica de seita, a qual ainda segundo Troeltsch,
possui um rígido código de ética que deve ser estritamente observado por seus membros.
Contudo, como vimos a pouco, vários estudiosos do Pentecostalismo brasileiro tem
observado uma redução, senão o desaparecimento, nessa separação do mundo presente do
Pentecostalismo ponto alguns Pentecostais já não mais prezavam o prazer, outros já
romperam o isolamento cultural, envolveram-se ativamente na política, acreditaram na
possibilidade da sociedade melhorar e não possuem mais um rígido código ético. Os
pentecostais, de fato, estão mudando. E esta mudança reflete o abandono do pré-milenarismo,
que como vimos era essência do próprio pentecostalismo. A guerra espiritual, a teologia a
prosperidade e o abandono dos sinais externos de santidade são impossíveis em um esquema
pré-milenarismo, mas se encaixam perfeitamente na escatologia pós-milenarismo. Por isso
não podemos falar de neopentecostalismo, mais de pós-pentecostalismo.

156
O pré-milenarismo pentecostal reflete não apenas influência do meio religioso do final
do século XIX, mas também um ambiente socioeconômico dessa época. Em outras palavras, o
pré-milenarismo foi fruto de condições históricas objetivas.com a pergunta óbvia, então, se o
pré-milenarismo pentecostal poderia sobreviver em condições históricas radicalmente
diferentes desde seu início. Outra pergunta é qual o desgaste que o passar do tempo impõe
sobre a escatologia baseada no eminente retorno de Cristo. Com o passar das gerações, a mais
do que um relaxamento dessa expectativa; surge a necessidade de lidar com a frustração,
transformando-a em força construtiva. Isso aconteceu com a comunidade cristã primitiva por
volta da virada do primeiro século, com fim da nação apostólica, como vemos em um dos
textos mais Apocalípticos do novo testamento, a Segunda Carta de São Pedro. A permanência
dos pentecostais da terra por um período maior do que desejavam os outros a viverem como
os demais mortais. Tiveram que mandar seus filhos para escola, investir em planos de
aposentadoria, fazer financiamento de longo prazo, enfim, foram forçados a alargar seus
horizontes. Para isso foi necessário a reestruturação de sua escatologia a única forma de
manter a esperança em um milênio foi reverter para o pós-milenarismo.
As mudanças teológicas na história do cristianismo raramente são frutos do labor
teológico. Até a teologia é sempre feita a posteriori, como uma articulação das crenças da
comunidade de fé. Isso é especialmente verdadeiro em relação à escatologia, cuja história não
é uma direta de desenvolvimento, mas resposta a desafios sociais e eclesiais, e pode ser
verificado na atual reversão do pré-milenarismo para o pós-milenarismo.
O pré-milenarismo fez muito sucesso no século 20. Em todo o culto havia uma alusão
a volta de Cristo, quer por meio de hinos, sermões, profecias ou orações. Milhões de livros
que procuravam relacionar os eventos do presente com as profecias bíblicas relativas a
segunda vinda de Cristo foram vendidos. As duas grandes guerras, à formação do Estado de
Israel, a expansão do comunismo, tudo parecia confirmar o eminente retorno de Cristo mas
essa expectativa começou a apresentar rachaduras nos anos 70. Ironicamente o grande golpe
no pré-milenarismo veio exatamente de seu principal elemento, o cumprimento da grande
comissão.
O envio e missionários para a evangelização do mundo foi considerado pelo nascente
pentecostalismo fundamental para o retorno de Cristo. O cumprimento da grande comissão, só
possível com o derramamento do espírito santo levantado em Exército de missionários, era o
sinal final dos últimos tempos. Mas, paradoxalmente, no esquema pré-milenarismo esses
missionários não poderiam ser bem-sucedidos, pois de acordo com a sua própria lógica a

157
conversão de grande número de pessoas iria obrigatória mente melhorar o mundo e não piorar
o ponto ademais, a promessa de Cristo aos que dedicassem a expansão do Evangelho era o
poder do Espírito Santo para efetuar em milagres. Quando os missionários revoltavam dos
campos e testemunhavam que as igrejas missionárias estavam crescendo e que milagres
estavam acontecendo, principalmente no que se refere a expulsão de demônios expressão do
conflito entre o cristianismo e as religiões locais, ou guerra espiritual, houve necessariamente
uma revisão na percepção do que era o Reino de Deus e a cronologia de sua implantação. O
pós-milenarismo voltava fazer sentido.
No contexto do confronto com outras religiões e do conflito com a cultura, uma que o
pré-milenarismo não há espaço para Cristo e cultura, mas apenas Cristo ou cultura, a
separação do mundo passou a ser vista como uma derrota. A ordem agora era atacar Satanás
que passou a ser visto primariamente como usurpador, resgatando não apenas as pessoas, mas
a cultura também. Em outras palavras, o avanço do Reino de Deus representava o recuo do
reino de satanás e vice-versa.
Um dos primeiros teólogos a perceber o paradoxo entre a separação do mundo e o
avanço do direito de Deus foi R. J. Rushdoony iniciador do movimento denominado
Reconstrução Cristã no início dos anos 70, que depois veio a ser conhecido como Teologia do
Domínio. Com uma escatologia baseada na grande comissão e afirmando que os pactos
vétero-testamentários são válidos atualmente Rushdoony e seus companheiros elaboraram um
pós-milenarista pactual de caráter teonômico. Tal pós- mineralista afirma que haverá um reino
milenar terrestre é resultante da propagação do evangelho e da aplicação das sanções civis e
culturais encontradas na Bíblia, especialmente do Antigo Testamento alguns anos mais tarde,
segmentos do pentecostalismo abraçaram essa proposição.
No cerne desse pós-milenarismo reside o conceito que os observam as leis vétero-
testamentárias não são afetados pelas sanções negativas de Deus na história. Baseados
principalmente em Deuteronômio 28, os novos milenaristas afirmam que " a mensagem da
Bíblia é pactual: a fidelidade traz as bênçãos de Deus, ao passo que rebeldia traz as maldições
de Deus". Uma das consequências dessa cosmovisão pactual é que os observadores do pacto
herdarão na história a riqueza a autoridade daqueles que não observarem ponto em outras
palavras, os cristãos receberam as bênçãos de Deus neste mundo, ou seja, poder e riquezas,
enquanto quem não observar as leis de Deus será castigado, despojado de poder e riquezas.
Ao contrário do pré-milenarismo, que aguardavam o iminente retorno de Cristo, o
pós-milenarismo afirma que o retorno de Cristo será em um futuro distante imprevisível. De

158
fato, a negação do retorno eminente de Cristo é um dos principais traços do pós-milenarismo.
Isso elimina o sentimento de separação do mundo, característica do pré-milenarismo. Como
Cristo não retornará imediatamente, e como a melhora da sociedade é pré-condição para seu
retorno, os povos milenares são convocados a efetuarem transformações sociais daí são
interesses na política. Também, com a expectativa de um retorno iminente de Cristo
estimulava os sinais externos de santidade (a noiva de Cristo tinha que estar Imaculada para
seu encontro com Cordeiro), os pós-milenaristas apresentam uma acomodação à sociedade e
aos seus valores e interesses muito superior à demonstrada pelos pré-milenaristas.
A diferença entre essencial entre o pré-milenarismo e o pós-milenarismo é que,
enquanto para o primeiro o reino milenar de Cristo é futuro, e introduzido na história por uma
ação cataclísmica exclusiva de Cristo, no pós-milenarismo o reino já foi iniciado, por Cristo
em seu ministério terreno como prova de que o reino já foi iniciado os pós-milenaristas
apontam as palavras de Jesus no evangelho de Mateus: " se, porém, eu expulso os demônios
pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós" (Mt 12: 28). Assim, a
expulsão de demônios é crucial para o pós-milenarismo. Não coincidentemente, a principal
igreja pós Pentecostal brasileira traz em seu próprio nome - Igreja Universal do Reino de
Deus - a ideia de que o reino de Deus não é futuro, mas está presente acessível a todos e seu
fundador apregoa que seu ministério é a libertação de pessoas endemoniadas.
O conceito de que o reino de Deus expande-se por meio da expulsão de demônio, ou,
em outras palavras, pelo conflito com outras religiões, é o elo que une o pós milenarismo de
Rushdoony e seus companheiros aos defensores da guerra espiritual, como John Wimber e
Peter Wagner estes últimos, muito mais próximos do pós-pentecostalismo brasileiro, são
oriundos de um meio pré-mineralista dispensacionalista que paulatinamente vem abraçando o
pós-milenarismo. A causa dessa mudança é exatamente a percepção que mediante a guerra
espiritual o reino de Deus expande-se no presente.

Considerações finais
No pós-pentecostalismo, a expectativa escatológica de um reino de Deus futuro (pré-
milenarismo) característica do início do pentecostalismo é modificada para uma escatologia
realizada. O reino de Deus já está presente aqui agora, embora ainda não se não de forma
definitiva, para usufruto dos Escolhidos. O batismo do Espírito Santo é o revestimento de
poder para vencer os entraves para tal usufruto. Esses entraves são as ações de Satanás e seus

159
anjos e, portanto devem ser perseguidos e amarrados. Sem os espíritos do mal para atrapalhar,
os fiéis podem viver com saudade e prosperidade.
A centralidade da Teologia da prosperidade e a ênfase na guerra espiritual à distância
o pós-pentecostalismo do pentecostalismo, pois desequilibram sobremaneira a síntese
observada por de finais citada anteriormente. Os elementos protestantes do pentecostalismo -
cristocentricidade, biblicismo, união da fé com a ética - estão praticamente ausentes no pós-
pentecostalismo. Isso sugere que se o pós-pentecostalismo distanciar-se do pentecostalismo
seu distanciamento do protestantismo é ainda maior, rompendo com os princípios centrais da
reforma. Os pós-pentecostalismo é genealogicamente protestantes, mas não é teologicamente
E nisso tem profundas implicações sociológicas portanto as conclusões obtidas sem essa
distinção precisam ser revistas.
Fica evidente na revisão da bibliografia existente há necessidade de uma nova
tipologia do campo religioso brasileiro que faça a distinção entre os diversos
pentecostalismos. Os novos pentecostalismos não se encaixam nas gerações anteriores. Sem
dúvida, eles não são politicamente passivos. Por outro lado, sua participação na política
normalmente têm sido no âmbito de lideranças clientistas que até agora poucas vezes tem
criado o espaço para participação das massas na sociedade civil. O conceito de guerra
espiritual e a teologia da prosperidade, presentes no cerne desses novos pentecostalismos,
respectivamente não desenvolve a conscientização social Nem promovem uma ética ascética e
de poupança semelhante aquela do metodismo do início do século 20. Ao contrário, seguem a
ética hedonista brasileira. Por tudo isso, esses novos pentecostalismos merecem a designação
de pós-pentecostalismo.

(SIEPIERSKI, Paulo D. Contribuições para uma tipologia do pentecostalismo brasileiro. In:


GUERREIRO, Silas (Org.). O estudo das religiões. São Paulo: Paulinas, 2003, p.71-86.)

160
6. AS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Texto para estudo:


“Referências sociais das religiões afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento,
africanização”.
Autor: Reginaldo Prandi (USP)

Obs: O texto será enviando separadamente porque está em PDF.

161
ANEXOS

162
ANEXO I

163
ANEXO II

A Carta de Plínio, o Moço, ao Imperador Trajano


Plínio, o Moço era governador da Bitínia, província romana da Ásia Menor, de 111 a
113 dC.. Ele tem dúvidas a respeito da atitude de ser tomada em relação aos cristãos e pede
conselho ao Imperador de Roma.
Eis alguns trechos da correspondência entre as duas autoridades:
"Adotei, Senhor, como regra inviolável recorrer às vossas luzes em todas as minhas
dúvidas, pois quem mais apto a remover os seus escrúpulos ou a guiar-me nas minhas
incertezas. Nunca tendo assistido os julgamentos de cristãos, ignoro o método e os limites a
serem observados no processo e na punição deles. Se, por exemplo, alguma diferença deve
ser feita com respeito à idade ou, ao contrário nenhuma distinção se observe o jovens e o
adulto se o arrependimento admite perdão: se o indivíduo que foi Cristão, aproveitar
retratar-se; se é punível a mera confissão de cristianismo ainda que sem nenhum ato
criminoso, ou se só é punível o crime a ela associado. Em todos esses pontos tem o grandes
dúvidas.
Por enquanto o procedimento seguido por mim para com aqueles que me foram
denunciados como cristão é este: pergunto-lhe se são cristãos. Confessam, repita duas vezes
a pergunta, acrescentando uma ameaça de pena capital. Se perseveram, mando executá-los,
pois estou convencido de que a, qualquer que seja a natureza de seu credo, uma teimosia
grande e inflexível certamente merece castigo. Outros fanáticos dessa espécie me tem sido
trazidos mas, por serem cidadãos romanos, remeti-os para Roma.
Essas acusações, pelo simples fato de estar sendo o assunto investigado, começaram
a estender-se a várias formas do mal vieram à luz. Aqueles que negaram ser ou ter sido
cristãos que repetiram comigo uma invocação aos deuses e praticaram os ritos religiosos
com vinho e incenso perante a vossa estátua - a qual para esse propósito mandei buscar
juntamente com a dos Deuses - e, finalmente, amaldiçoaram o nome de Cristo (o que não se
pode arrancar de nenhum verdadeiro cristão) julguei acertado absorver. Outros que foram
denunciados pelo informante, confessaram-se a princípio cristãos, mas depois o negaram. De
fato, haviam sido cristãos, mas abandonaram a crença (uns faz 3 anos, outros há muito mais
tempo, sendo que alguns há cerca de 25 anos). Todos prestaram culto a vossa estátua e as
imagens dos Deuses e lançaram maldição ao nome de Cristo.
164
Plinio, o Moço, governador da Bitínia

165
ANEXO III

Lamentação sobre a Tomada de Constantinopla

Mateus Camarotes, escritor bizantino que presenciou a conquista de


Constantinopla e aí perdeu filhos e irmãos, redigiu sobre esse acontecimento um
extenso lamento, de que transcrevemos o passo que se segue.

Esta nossa pátria foi pois capturada: o império dos Romanos desapareceu e com ele a
dignidade desse império, venerando por si mesmo e pelo seu nome. A imagem divina e
sublime da Igreja foi derrubada: o hino que da terra subia ao encontro de Deus e porfiava na
vida angélica e no canto calou-se.
Os templos de Deus foram derrubados, os altares, profanados, os objetos sagrados,
espezinhados. A velhice foi desprezada, a juventude, desperdiçada. A maior parte daqueles
que, pelo vigor de idade, puderam pegar as armas faz derrubada pelo ferro; os outros sofrem
uma torpe servidão. As matronas foram desonradas. Da prole, não só as raparigas, como
igualmente os rapazes, entregue a libidinosidade dos bárbaros. Também muito deles foram
convertidos ao ímpio culto de Muhammad.
Muitos homens da nossa cidade, dispersas pelo orbe da Terra, andam mendigando e
procurando o alimento, colocando a necessidade perante os olhos de todos nós. Miseráveis
imploram o nosso amparo, mas ninguém pode consolar essas misérias.
Insultam os bárbaros as nossas desgraças, troçam das nossas calamidades, e
glorificam-se na sua impiedade, insurgem-se contra a nossa pia religião, invectivando os
insultos a nossas coisas honestas e santas [...]
Na realidade, naqueles lugares onde prestávamos o verdadeiro culto a Deus pode ver-
se agora instalado o abomínio da desolação. Antigamente era cidade dos cristãos, agora é a
cidade dos ímpios[...]

[Matthaei Camariote, Lamentario de Constantinopoli Capta, in J.P. Migne Cusus Completus, Series Graeca, t,
CLX. Paris, 1866.]

166
ANEXO IV

DA LIBERDADE RELIGIOSA À RELIGIÃO OFICIAL


As decisões imperiais foram reunidas várias vezes em compilações. Os
códigos. Os mais importantes são o código Teodosiano (do nome do imperador
Teodósio II, em 1438) e o Código Justiniano (do nome do Imperador Justiniano em
529) conservou-se o nome dos autores das leis. Em 392. religião passa a ser sinônimo
de cristianismo
Do Imperador Constantino em 319
(Código Teodosiano. IX, 16.2)
Proibidos que os arúspices, sacerdotes e outros e tenha o costume de praticar
esse rito (exame das entranhas de animais) entre numa casa particular e transponham o
umbral de outrem, mesmo sob o pretexto da Amizade: é proposto um castigo contra
eles caso desprezem esta lei. Mas vós que consideras que isto é útil ide aos altares
privados, aos templos, e celebrai os ritos com os quais está habituado: com efeito, não
impedimos que se celebre abertamente os ritos consagrados por um longo uso.

Do Imperador Constâncio em 356


(Código Teodosiano. XVI, 10. 6)
Informamos que são passíveis de pena de morte aqueles acerca dos quais
ficaram estabelecidos que participaram dos sacrifícios ou prestaram homenagem aos
Ídolos.
Do Imperador Teodósio, Édito de Tessalônica, em 380
(Código Teodosiano XVI. 1,2)
Desejamos que todos os povos que se encontram sob a branda autoridade de
Nossa Clemência vivam na fé que o santo Apóstolo Pedro transmitiu aos romanos, que
é pregada até os dias de hoje, como ele próprio a pregava e que é seguida como é do
conhecimento de todos, pelo Pontífice Damaso e pelo bispo Pedro de Alexandria[...]
Decretamos que só terão o direito de se dizer cristãos católicos aqueles que
submeterem a esta lei e que todos os outros são loucos e insensatos sobre o quais
pesará a vergonha da heresia. Eles poderão contar, em primeiro lugar, com serem o
objeto de vingança divina e, em seguida, com serem castigados também por nós,
segundo a decisão que o céu nos inspirou.
167
Dos imperadores Teodósio, Arcádio e Honório em 392
(Código Teodosiano XVI, 12)
Se alguém depõe o incenso para venerar estátuas feitas pelo trabalho do homem[...]
Enfeita uma árvore com pequenas tiras, eleva um Altar por meio de placas de terra tiradas do
solo[...], Tal coisa configura um ataque pleno e integral a religião. Culpado de haver violado a
religião, esse homem será punido com o Confisco da moradia ou propriedade na qual se tiver
mostrado escravo dessa superstição pagã.

168
ANEXO V

O CATECISMO NA ALEGRIA
Um diácono de Cartago ponto de geografias tinha dificuldades para ensinar os rudimentos da Fé a
alguns adultos que não pretendiam receber o batismo e imediatamente. Ele abre seu coração a
Agostinho ponto que lhe envia alguns conselhos para uma catequese elementar
[...] Lembra-te de que somos muito melhor escutados quando nós próprios sentimos
prazer em nosso trabalho; aquilo que dizemos reflete a nossa alegria. Sua elocução é mais
fácil e mais interessante. Da mesma maneira, não constitui um problema muito difícil
elucidar de onde parte e de onde deter-se na exposição das verdades da Fé; como variar o
desenvolvimento para que, breve ou longo permaneça não obstante, completo e acabado; e,
ainda, quando abrevia-lo e quando alongá-lo. A grande questão reside sobretudo em
descobrir o método para ensinar na alegria: quanto mais se conseguir tal coisas mas será
escutado.
A verdadeira razão disso é rapidamente encontrada. Se, no que se refere aos bens
materiais, "Deus ama aquele que dá com sorriso" (1Cor 9.7) quanto mais no que diz
respeito aos bens espirituais! Mas que essa alegria que acorre no momento desejado
permaneça um dos misericordiosos d’Aquele que dela me fez o dever[...]
Para ser completa, a exposição deve começar "no princípio, Deus fez o céu e a terra"
os Gênesis a prosseguir até os tempos atuais da igreja. Quer isso dizer que é necessário
recitar de memória supondo-se que o religioso o saiba de cor, todo o pentateuco[...] os
Evangelhos, o Atos dos Apóstolos? Não! É suficiente fornecer os aspectos gerais,
ilustrando-os com alguns fatos mais extraordinários, que atrairão mais facilmente a atenção
e que se terá cuidado de dividir em grandes épocas[...]
Devo dizer-te de como criar um ambiente de alegria[...] Eu o reconheço, trata-se de
uma difícil tarefa e de continuar a falar até o fim do quadro não se vê nenhuma reação do
ouvinte[...] É necessário recorrer a todos os recursos oratórios dos sensíveis de anima-lo e
de tirá-lo de sua reserva nós falaremos com doçura[...] Para diminuir seu respeito humano ,
nós lhe recordaremos que estamos entre irmãos, nós o questionaremos, a fim de perceber
se ele compreende; e nos o encorajaremos a expor com toda a liberdade as suas objeções,
caso a tenha [...] É preciso reanimar a atenção dizendo algum gracejo, mais de bom tom e
sem sair do tema: ou narrando alguma coisa surpreendente ou ainda tocante e triste[...].
(Santo Agostinho. Conselhos para uma Catequese Elementar)

169
ANEXO VI

O Concílio de Trento
[Sobre os livros sagrados sessão de oito a 8-4-1546] "... para rechear as mentalidades
petulantes, decreta (este Concílio) que ninguém, fundado na perspicácia própria, em coisas
de fé e costumes necessárias à estrutura da doutrina Cristã torcendo a seu talento a Sagrada
Escritura, ouse interpretar a mesma Sagrada Escritura contra aquele sentido, que (sempre)
manteve e mantém a Santa Madre Igreja a quem compete julgar sobre o verdadeiro sentido
e interpretação das Sagradas Escrituras, ou também, (ouse interpretá-la) contra a unânime
consenso dos Padres..." (Sobre a justificação sessão de 13 -1 - 1547) "... Ela é não somente
a remissão dos pecados, mas ao mesmo tempo a santificação e a renovação do homem
interior pela voluntária recepção da Graça e dos dons. Por este meio, o homem de injusto
se torna justo e de inimigo, amigo, de modo a ser herdeiro da vida eterna segunda
Esperança ( Tt 3,7)..."
" Ninguém enquanto peregrina por esta vida mortal deve querer penetrar tanto no
mistério oculto da predestinação Divina, que possa afirmar com segurança se ele, Sem
dúvida alguma, do número dos predestinadas, como se o justo não pudesse mais pecar ou,
que se tiver pecado poderá com certeza prometer se a si mesmo uma nova conversão. Pois
sem a revelação poder especial de Deus, não se pode saber quais os que Deus escolheu
para si"
(Cânones sobre a justificação)
(Cân. 1) " se alguém disser que o homem pode ser justificado perante Deus pelas suas
obras vírgulas feitas ou segundo as forças da natureza, ou segundo a doutrina da Lei, sem a
graça Divina (merecida) por Jesus Cristo - seja excomungado...
(Cân 3). Se alguém disser que sem a inspiração preveniente do Espírito Santo e sem
seu auxílio, pode o homem crer, esperar e amar ou arrepender-se como convém para lhe
ser conferida a graça da justificação - seja excomungado
(Cân 4) Se alguém disser que o livre arbítrio do homem movido exercitado por Deus,
em nada Coopera para se preparar e se dispor a receber a graça da justificação - posto que
ele consiste em que Deus o chame - e que ele não pode discordar mesmo se quiser mas se
porta como uma coisa inanimada, perfeitamente inativa a mente passiva - seja
excomungado

170
(Cân 9) se alguém disser que o ímpio é justificados somente pela fé, entendo que nada
mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é
necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação de sua vontade - seja
excomungado
(Cân. 12) se alguém disser que a fé que justifica não é outra coisa, senão uma
confiança na divina misericórdia, que perdoa os pecadores por causa de Cristo ou que é sol
por esta confiança que somos justificados - seja excomungado...

(MATOS, Henrique Cristiano José. Caminhando pela história da Igreja. Belo


Horizonte: O Lutador, 1995, v. 2, p. 55-56.)

171
ANEXO VII

Las casas
No seu Testamento (17 -3-1564) escreve "... Pela Bondade e misericórdia de Deus, ele teve por bem
escolher me para seu Ministro sem que eu merecesse para procurar e desenvolver para aqueles universos
povos que chamamos Índias possuidores e proprietários daqueles reinos e terras sobre os agravos, males e
Danos nunca vistos nem ouvidos outros Tais, de que nós espanhóis receberam contra toda razão e justiça e
para reduzi-los a sua liberdade primitiva de que foram injustamente despojados, e para livrá-los da violenta
morte que ainda padecem e perecem, como desceram e foram provocados por esta causa muitos milhares de
Léguas de terra [...] Deus é testemunha de que nunca pretende outro interesse... [O que fizeram os
conquistadores] foi contra a lei retissima Imaculada de Jesus Cristo e contra toda a razão natural e em grande
cima infâmia do nome de Jesus Cristo e sua religião cristã e em Total impedimento da Fé, em danos
irreparáveis das Almas e corpos daqueles inocentes povos... [Creio por isso que] Deus há de derramar sobre a
Espanha seu furou e ira... [porque] foram pecados e grandes temas de injustiças...
Morreu Dom Frei Bartolomeu de Las Casas OP, no convento dominicano de Atocha
de Madrid no dia 17 de julho de 1566 na idade de 92 anos.

(MATOS, Henrique Cristiano José. Caminhando pela história da Igreja. Belo Horizonte: O
Lutador, 1995, v. 2, p. 119-120)

172
ANEXO VIII - A

173
ANEXO VIII - B

174

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