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TIC E FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES: A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA

PROFISSIONALIDADE DOCENTE?

Manuela Esteves
Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (PORTUGAL), mesteves@ie.ulisboa.pt

Resumo
O projeto “Aprendizagem com tecnologias e design do futuro da formação de professores”1, em cuja
equipa de investigação participamos, parte de dois pressupostos: o de que é necessário e possível
melhorar a qualidade das aprendizagens proporcionadas nas escolas, aos alunos, e o de que
programas de formação inicial de professores enriquecidos pelas tecnologias podem representar uma
mais valia para a intervenção desses futuros profissionais.
Pretende-se obter respostas para três questões: o que é distintivo acerca da formação de professores
em espaços enriquecidos com tecnologias? Que competências-chave deve o professor do futuro
possuir? Como repensar e concretizar a formação tendo em conta os novos cenários possíveis?
A abordagem investigativa é do tipo design-based research. A análise de cenários de aprendizagem
construídos pelos formandos, a observação direta da concretização dos mesmos feita pelos
formadores, o recurso a questionários, entrevistas de focus group e a análise de interações em redes
sociais constituem as fontes dos dados empíricos com que se trabalha.
Estando a decorrer o terceiro e último ano deste projeto, os resultados são ainda parcelares e as
conclusões, prematuras. Parece-nos, todavia, poder desde já explorar os sentidos em que as
competências docentes podem / devem evoluir para se tirar efetivo proveito dos recursos digitais
disponíveis. Tal implicará repensar os currículos atuais de formação inicial de professores, ainda
frequentemente alheados da revolução tecnológica comunicacional em que vivemos. E implicará,
também, discutir se estaremos perante o advento de uma nova profissionalidade docente ou se se
tratará apenas de preencher de novos conteúdos algumas conceções mais exigentes (ainda que pouco
postas em prática), acerca do desempenho profissional e dos saberes e competências específicos que
o podem suportar.

Palavras-chave: profissionalidade docente, formação inicial de professores, prática de ensino


supervisionada, ambientes enriquecidos por tecnologias

Abstract
The project "Technology enhanced learning at future teacher education lab"2, in whose research team
we participate, starts from two assumptions: that it is needed and possible to improve the quality of
learning provided by schools and that the initial teacher training programs enriched by technologies
may represent an added value for the intervention of these future professionals.
The aim is to obtain answers to three questions: what is distinctive about teacher education in
technology enhanced environments? What key competences should the future teacher have? How to
rethink and put in place the training taking into account the possible new scenarios?
A design-based research approach was decided. The analysis of the learning scenarios constructed by
the trainees, the direct observation of their implementation by the teacher educators, the use of
questionnaires, focus group interviews and the analysis of interactions in social networks are the
sources of the empirical data we are working with.

1 Projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/MHC-CED/0588/2014)

2 Research project financed by the Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/MHC-CED/0588/2014)


As the third and final year of this project is still taking place, the results are at present piecemeal and
the conclusions premature.
It seems to us, however, that it is already possible to explore the meaning and the ways in which teacher
competences can / shall evolve to take full advantage of the available digital resources. This will imply
to rethink the current curricula of initial teacher training which are still often oblivious to the
communicational technological revolution we are experiencing. And it will also imply discussing whether
we are facing the advent of a new teachers’ professionality or whether it is only about filling with new
content some of the more demanding (though little implemented) conceptions about professional
performance and specific knowledge and skills that can bear it.

Key words: teacher professionality, initial teacher training, supervised teaching practice, technology-
enhanced environments

1. INTRODUÇÃO
Desde os anos 80 do século passado, o aparecimento sucessivo e a disseminação de novas
tecnologias de informação e comunicação produziram uma revolução que alguns têm comparado à
revolução produzida por Guttenberg ao inventar a imprensa. A distingui-las estão, contudo, aspetos
muito importantes da revolução atual, de que destacamos:
– a velocidade crescente da evolução dos meios tecnológicos (hardware e software);
– a rapidez, também cada vez maior, da sua disseminação à escala planetária;
– o enorme universo humano capacitado para se apropriar das novidades;
– a multiplicidade dos fins visados e das esferas da vida afetadas, se considerarmos os planos
económico e financeiro, pessoal e social, político e cultural, científico, técnico e humanístico.
A globalização, já de há muito em marcha, ampliou-se e aprofundou-se desde a 2ª metade do séc.XX.
Nada com que Guttenberg e os seus contemporâneos pudessem sequer sonhar no dealbar dos tempos
modernos.
A esfera educacional, porque relacionada dialeticamente com todas as acima referidas, não poderia
ficar alheia nem deixar de ser afetada pelo movimento em curso que transcende em muito o campo
tecnológico.
A expressão “ambientes de aprendizagem enriquecidos pela tecnologia” traduz um ideal de uso
pedagógico das TIC capaz de produzir maior eficácia e eficiência dos processos de ensino dos
professores e dos processos de formação dos alunos, ao mesmo tempo que uns e outros se tornam
destros na sua manipulação inclusivamente fora dos espaços de educação formal.
Ainda subsiste algum pensamento ingénuo ou mágico de que bastaria expor professores e alunos a
essas tecnologias para que verdadeiros milagres de inovação pedagógica, de melhoria qualitativa das
aprendizagens e de superação do insucesso escolar acontecessem.
À medida que vamos sabendo mais, tais ilusões vão-se desfazendo.
As TIC podem consentir um ensino profundamente tradicional, dogmático, autoritário e centrado no
professor e na matéria, onde os alunos não são estimulados a uma apropriação crítica dos
conhecimentos, antes os tornando reprodutores do saber já feito.
Por outro lado, não se constata que, quanto maior a frequência do uso das TIC na escola, mais e melhor
os alunos aprendem. Isso mesmo foi mostrado em um estudo recente da OCDE (2015) que, a partir
dos resultados do último PISA, correlaciona a frequência do uso das TIC e os resultados de
aprendizagem dos alunos, num conjunto de 35 países. Os estudantes que usam moderadamente
tecnologias digitais na escola tendem a ter resultados melhores do que os daqueles que as usam
raramente e dos que as usam muito frequentemente.
Chegados a este ponto, uma questão geral se impõe: que forma ou formas de trabalho de professores
e alunos é preciso desenvolver para que o uso das TIC na escola e na sala de aula se traduza numa
mais-valia em relação ao passado?
O tópico nuclear a que esta comunicação se reporta é o da formação inicial de professores e o da sua
responsabilidade em preparar futuros profissionais, interrogando se iniciativas já em curso e objeto de
investigação permitem falar na emergência de uma nova profissionalidade dos professores face à
revolução digital.

2. APRENDIZAGEM COM TECNOLOGIAS E DESIGN DO FUTURO DA


FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Sob este título, vem a desenvolver-se desde 2016, no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa,
um projeto de investigação-ação que se pensa concluir em 2019. Incide sobre alguns dos mestrados
em ensino professados na instituição, nomeadamente os destinados a formar os futuros professores
de Biologia, Informática, Matemática, Física e Economia. Envolve cerca de vinte investigadores, duas
instituições de ensino superior e quatro empresas tecnológicas.
Visa-se, desde o início, encontrar respostas válidas para três perguntas:
1. O que é distintivo acerca da formação de professores em espaços enriquecidos pelas
tecnologias?
2. Que competências – chave deve o professor do futuro possuir?
3. Como pensar e concretizar a formação tendo em conta os novos cenários possíveis?
Adota-se uma abordagem metodológica do tipo “design-based research” colocando em diálogo a
investigação empírica em educação com o desenho de ambientes de aprendizagem baseados na teoria
para se compreender como, quando e porquê as inovações em educação funcionam na prática.
O projeto estruturou-se em três fases que têm estado a ser percorridas.

A 1ª fase consistiu em desenhar e montar o Laboratório de Formação de Professores do Futuro,


explorar perspetivas sobre o quadro de competências dos professores do séc. XXI e sobre o desenho
de cenários de aprendizagem e, ainda, proceder ao desenvolvimento e adaptação de instrumentos de
investigação.

A 2ª fase partiu dos referidos trabalhos e consistiu no desenvolvimento de dois ciclos sucessivos de
seis meses de pilotagem de módulos de formação assentes na produção e avaliação de recursos
educativos a serem posteriormente integrados numa caixa de ferramentas (toolkit) para a formação de
professores. As experiências-piloto seguiram uma estratégia de planificação conjunta, por formadores
e formandos, de cenários de aprendizagem que foram, em seguida, implementados com alunos, em
contextos escolares reais, no âmbito da Iniciação à Prática Profissional.

A 3ª fase, ainda em curso, está sobretudo focada na disseminação e ampliação do projeto, mediante a
organização dos produtos alcançados e a criação e dinamização de uma comunidade de prática, online,
de professores das instituições de ensino superior (universitário e politécnico), responsáveis pela
formação inicial, comunidade que se pretende que prossiga para lá do termo do projeto.

O conceito de “cenário de aprendizagem” é estruturante de todo o processo de investigação e


intervenção. Em termos de ação, o trabalho dos formandos, em diversas disciplinas, deve garantir que
cada cenário de aprendizagem se ajuste ao contexto, implique atividades de planificação / preparação
e de concretização em sala de aula seguindo trajetórias onde se usam ferramentas interativas
baseadas sobretudo em tecnologias móveis, bem como atividades de avaliação dos processos e dos
produtos.

O desenvolvimento destes cenários, para além do diálogo entre formador e formando que exige e
favorece, permite uma recolha de dados multifacetada mediante a observação direta das situações
com a respetiva gravação, entrevistas de focus group e aplicação de questionários.

O site http://www.ftelab.ie.ulisboa.pt/tel/ permite recolher mais informação sobre as experiências que


os formandos desenvolveram. Com a mesma finalidade, podem também ser consultados nos
Repositórios Científicos de Acesso Aberto de Portugal (https://www.rcaap.pt) relatórios finais da Prática
de Ensino Supervisionada (PES), produzidos pelos mestrandos em ensino das disciplinas consideradas
no projeto, desde que este se iniciou.
3. QUADRO TEÓRICO E CONCETUAL
3.1 Modelos e estratégias de formação inicial de professores
A elaboração teórica acerca dos modelos de formação inicial de professores não tem progredido
significativamente desde os anos 80.

Certamente ocorreram mudanças nas conceções dominantes: a hegemonia do modelo behaviorista


terá enfraquecido e influências dos modelos personalista e orientado para a pesquisa fizeram sentir-se
com mais frequência, traduzidas no uso de documentos pessoais na formação (diários de aula,
portfolios, narrativas, histórias de vida) e no desenvolvimento de competências investigativas dos
formandos. A universitarização da formação inicial, o avanço das ciências da educação e, dentro delas,
o conhecimento científico sobre estratégias de formação de professores trouxe para primeiro plano o
perfil do futuro professor como um investigador, dando desse modo realce ao modelo centrado na
análise a que Ferry (1983) se refere ou ao paradigma inquiry-oriented de que Zeichner (1983) fala.

O ideal da formação do professor como um profissional reflexivo generalizou-se, pesem embora os


equívocos que o têm caracterizado nas ações práticas que dele se reclamam. Contudo, formar
professores reflexivos não constitui um novo modelo de formação. Numerosos autores assinalaram que
a reflexividade é uma disposição genérica que pode ser estimulada no quadro de todos os modelos já
existentes (Calderhead, 1989; Feiman-Nemser, 1990; Adler, 1991; Gilroy, 1993; Alarcão e Moreira,
1993; et al). Dependendo de um dado modelo de formação radicar ou na racionalidade técnica, ou na
racionalidade prática, ou na racionalidade crítica, emergem (ou podem emergir, se se trabalhar nesse
sentido) formas de reflexão profissional diferenciadas entre si quanto aos âmbitos e aos níveis de
profundidade alcançados.

No projeto de investigação que estamos a caracterizar e no que se refere à componente de IPP, ocorre
uma combinação de estratégias inspiradas nos diversos modelos acima referidos, com predomínio da
metáfora do professor como investigador que decide com autonomia em função do conhecimento do
contexto onde atua e dos efeitos da intervenção que realiza, conhecimento esse que cabe a ele próprio
produzir. A níveis distintos de consecução é isso que os relatórios finais da Prática de Ensino
Supervisionada evidenciam.

3.2 Competências profissionais docentes


O projeto inspira-se, sem o ter referido explicitamente à partida, na definição de competência proposta
por Jonnaert (2002, p.31): “uma competência faz, no mínimo, referência a um conjunto de recursos que
o sujeito pode mobilizar para tratar uma situação com sucesso.”

Decorrem desta definição e ajudam a explicitá-la melhor os seguintes aspetos a que em outra
oportunidade já aludimos (Esteves, 2009):

• A competência não se refere exclusivamente a recursos cognitivos;


• A competência está subsumida numa ação contextualizada;
• Entre os recursos que o sujeito mobiliza poderão estar disposições inatas;
• A mobilização de recursos pelo sujeito é feita segundo redes operatórias e não por simples
adição ou numa lógica de sequência linear;
• A competência não se confunde, portanto, com a performance.

A ação dos formandos com os seus alunos constitui o cerne do projeto – uma ação em que eles devem
mobilizar recursos oriundos das distintas componentes (área do conteúdo a ensinar, formação
educacional geral, didática específica, formação cultural, social e ética), avaliar os efeitos produzidos e
reformular o plano de ação, se necessário.

3.3 Conhecimento profissional


As competências sustentam-se em conhecimentos ainda que não se confundam com os mesmos.
O projeto de investigação acolheu a revisão do conhecimento profissional dos professores proposta
por Mishra e Koehler (2006). Estes autores partiram do quadro de referência apresentado por Shulman
(1987) que contemplava as vertentes do conhecimento do conteúdo de ensino, do conhecimento
pedagógico geral, do conhecimento do currículo, do conhecimento pedagógico do conteúdo, do
conhecimento dos alunos e das suas características, e dos fins, propósitos e valores da educação e
dos seus fundamentos filosóficos e históricos. A estas sete vertentes, os referidos autores propõem
que se acrescente o conhecimento tecnológico-pedagógico do conteúdo, abreviadamente conhecido
como T-PACK (Technological Pedagogical Content Knowledge), um conhecimento de síntese
suportado em três pilares: o conhecimento tecnológico, o conhecimento tecnológico pedagógico e o
conhecimento tecnológico do conteúdo.

3.4 Quadro de referência europeu sobre a competência digital dos educadores


A União Europeia, a OCDE e a UNESCO têm prestado atenção sistemática às transformações do
trabalho dos professores e dos ambientes de aprendizagem dos alunos induzidas pela entrada das
tecnologias digitais nas escolas e nas salas de aula. Transformações que têm ficado aquém do
desejado, como múltiplos relatórios internacionais e trabalhos de investigação têm mostrado.

A conceção e o desenvolvimento do nosso projeto de investigação implicaram uma atenção particular


às competências dos professores para o séc. XXI, já consagradas, no sentido de as tomar como
referentes no planeamento prévio e na recolha de dados ao longo do processo e, no final, conducentes
a uma análise e interpretação de resultados.

Entretanto, já no decurso do projeto, foi publicado pela União Europeia um relatório produzido por
Redecker (2017) que contempla seis áreas onde as competências digitais dos professores se devem
manifestar, a saber:

1) Comprometimento profissional (usar tecnologias para comunicação, colaboração e


desenvolvimento profissional)
2) Recursos digitais (obter, criar e partilhar recursos)
3) Ensino e aprendizagem (gerir e orquestrar o uso das tecnologias)
4) Avaliação (usar as tecnologias para enriquecer a avaliação)
5) Dar poder aos aprendentes (utilizar as tecnologias digitais para fortalecer a inclusão, a
individualização e a participação ativa dos alunos)
6) Facilitar a competência digital dos aprendentes (torná-los capazes de usar as tecnologias de
forma criativa e responsável, para fins de informação, comunicação, criação de conteúdos,
bem-estar e resolução de problemas).

Os indicadores fornecidos sobre cada uma destas dimensões podem constituir um suporte importante
para conduzir e/ou avaliar processos formativos orientados para o desenvolvimento da competência
digital, como é o caso daquele que estamos a caracterizar.

3.5 Cenários de aprendizagem


No âmbito do projeto, entende-se um cenário de aprendizagem como uma situação hipotética de
ensino-aprendizagem (puramente imaginada ou com substrato real) composta por um conjunto de
elementos – cada cenário deve descrever (i) o contexto em que a aprendizagem tem lugar, (ii) o
ambiente em que a mesma se desenrola e que é condicionado por fatores relacionados com a
área/domínio de conhecimento, (iii) os papéis desempenhados pelos diferentes atores (e respetivos
objetivos) organizados numa história/narrativa.

São, pois, relevantes os seguintes elementos:

a) Desenho organizacional do ambiente – organização dos elementos contextuais de um cenário,


requisitos, tempos, artefactos materiais;
b) Papéis e atores – posturas e responsabilidades, formas de estar, organização da atividade
coletiva, modos de interação e de comunicação;
c) Enredo, estratégias de trabalho, situações e propostas de trabalho – arquitetura da situação,
estrutura da atividade, sentido teleológico da implementação do cenário;
d) Reflexão e regulação – processos de reificação daquilo que será aprendido e da ação,
monitorização do desenvolvimento dos atores e do contexto, avaliação crítica, produtos.

Um cenário de aprendizagem deve caracterizar-se, pois, pela inovação e pelo potencial de


transformação no trabalho dos professores, representar um exercício de previsão/ antecipação, ou seja,
de planeamento e de imaginação.

O recurso a tecnologias digitais é apenas uma possibilidade na configuração de cenários de


aprendizagem, mas no projeto de investigação em análise, esse recurso foi obrigatório, tendo em conta
os objetivos definidos de habilitar os futuros professores para o seu uso.

4. EMERGÊNCIA DE UMA NOVA PROFISSIONALIDADE DOCENTE?

4.1 Pontos de partida


Porque o termo “profissionalidade”, introduzido ainda recentemente em Portugal, se presta a frequentes
confusões com outros já anteriormente consagrados (profissionalismo, profissão, profissionalização,
desenvolvimento profissional, identidade profissional), importa que aqui recordemos o que queremos
significar com o uso deste termo:
“pretendemos refletir a especificidade do trabalho docente face a outras ocupações
socialmente úteis e remuneradas, especificidade essa que implica a posse de um
saber profissional especializado e posto em ação de acordo com princípios e valores
éticos e deontológicos, ou seja, um saber que se manifesta em competências (…) “
(Esteves, 2014)

A formação inicial específica para a docência desempenha um papel muito importante na construção
da profissionalidade, sem, com isso, esquecermos que se impõe, a todos os títulos, que o seu
desenvolvimento prossiga ao longo de toda a vida, tanto viabilizado pela formação formal (formação
contínua), como pela formação não formal que se faz nos contextos de trabalho com outros professores
e com os alunos, ou ainda fruto da formação informal.

Espera-se atualmente que a formação inicial proporcione a preparação do futuro professor em cinco
componentes adequadamente integradas, em função das exigências do desempenho profissional: área
da docência (vulgo, a matéria ou matérias a ensinar); área educacional geral; didáticas específicas;
área cultural, social e ética; iniciação à prática profissional onde se inscreve a prática de ensino
supervisionada.

Convém, contudo, não ignorar que os estudantes dos cursos que preparam para a docência, quando
decidem tornar-se professores transportam já consigo uma relativamente longa história de vida e
memórias das suas experiências enquanto alunos que os levam a ter uma determinada imagem da
profissão, ora bastante idealizada, ora algo pessimista. Cabe então à formação inicial o desafio de
induzir neles uma atitude de otimismo realista que torne a profissão suportável e gratificante.

Por outro lado, no que respeita aos estudantes de cursos de mestrado em ensino do 3º ciclo e do
ensino secundário constata-se que atualmente, em Portugal, muitos deles já têm alguma experiência
de trabalho em escolas, na condição de professores não profissionalizados. A formação não formal e
a formação informal que, nestes casos, precedem e acompanham a formação formal têm levado os
investigadores em formação de professores a recomendar reiteradamente que, nos cursos de formação
para a docência as representações prévias dos estudantes sejam objeto de identificação explícita e de
trabalho entre formadores e formandos, sob risco de essas disposições prévias prevalecerem acima
de tudo aquilo que a formação lhes possa propor.

Referimos acima as profundas transformações que as TIC vieram significar em todas as esferas da
vida humana. O seu uso tem implicações e consequências de que nos vamos apercebendo como
inevitáveis quer as valoremos positiva quer negativamente. Trata-se de uma perceção frequentemente
confusa e sincrética que, entretanto, veio colocar novos problemas a diversos domínios científicos e
impulsionou o prosseguimento da investigação nos mesmos. Embora não sendo o único domínio com
interesse para a educação, o ensino e a aprendizagem, parece-nos extremamente relevante o que já
se descobriu no domínio das neurociências sobre o funcionamento do cérebro e a cognição em
ambientes digitais. O mundo da educação continua, porém, alheado de tudo isso, tanto quanto nos é
dado observar.

Reportando-nos apenas aos professores, e partindo do princípio de que é uma responsabilidade


indeclinável deles a forma como as TIC, quando disponíveis, são introduzidas nos espaços de
aprendizagem, pode constatar-se uma diversidade de posturas que vão desde a recusa sob os mais
diversos argumentos, até à adoção acrítica, passando (desejavelmente) também pelo seu uso criterioso
e ponderado. Também se pode constatar uma multiplicidade de propósitos isolados ou conjugados (i)
visar fins meramente ilustrativos (traduzidos na apresentação de imagens e de sons virtuais que
materializam ideias transportadas de forma mais abstrata pela palavra oral ou escrita, ou que tornam
presente algo que está longe), (ii) propor a utilização para permitir ao aluno descobrir uma ideia geral,
um conceito, uma lei científica, (iii) considerar fins sobretudo motivacionais da aprendizagem, (iv)
proporcionar o desenvolvimento de formas de comunicação não verbal, (v) pretender promover e levar
a desenvolver múltiplas formas de inteligência, (vi) levar os alunos a produzirem novos recursos digitais,
ou ainda, (vi) proporcionar o desenvolvimento de destrezas na manipulação dos meios.

O diagnóstico deliberado das predisposições dos estudantes dos mestrados em ensino, em termos de
atitudes, conhecimentos e capacidades, é particularmente relevante no que toca à sua relação com as
TIC, antes de se pensar em lhes propor formas do respetivo uso pedagógico. Eventualmente, essas
propostas podem não ganhar a adesão dos estudantes se prevalecer a memória de situações passadas
onde tiveram más experiências, situações de aprendizagem frustradas e frustrantes, por uso
inadequado das tecnologias. Conhecidos os pontos de partida reais, compete aos formadores mostrar
pela teoria, mas sobretudo pelas suas práticas de formação, que o uso das tecnologias nos processos
de ensino-aprendizagem, mais do que uma inevitabilidade do nosso tempo, é sobretudo produtivo,
tanto para a aprendizagem dos alunos como para o desenvolvimento profissional docente.

4.2 Para uma agenda de investigação


Em nosso entender, se o recurso a tecnologias digitais da informação e da comunicação se fizer
adequadamente envolvendo todas as componentes de formação acima referidas, poderemos estar de
facto perante o advento de uma nova profissionalidade docente. Porquê? Porque reconhecidas e
exploradas todas as possibilidades dessas tecnologias, todos os efeitos que as mesmas podem ter, tal
como os conhecemos atualmente, quase todos os aspetos do processo educativo, com exceção talvez
das suas grandes finalidades, tendem a mudar significativamente – objetivos a alcançar, estratégias e
metodologias de ensino a concretizar, diferenciação pedagógica e individualização das aprendizagens,
instrumentos de avaliação (entre outros), num quadro que se deseja de flexibilidade do currículo e de
maior autonomia de decisão do professor, dos grupos de professores e das escolas.

A este propósito, parece inspiradora a perspetiva de Mishra e Koehler (2006), acima referida, de
concetualização do T-PACK pela revisão e superação do conhecimento pedagógico do conteúdo
(Shulman, 1987) com incidência, em primeiro lugar, sobre a didática específica de cada disciplina.
Pensamos, porém, que se pode ir mais longe e colocar a nova profissionalidade docente na confluência
do uso de novas linguagens e de novos modos de pensar a elas associados com os saberes inerentes
às restantes componentes da formação, para além da didática.

Ainda não temos dados para concluir se, relativamente aos formandos que têm participado no projeto
“Aprendizagem com tecnologias e design do futuro da formação de professores”, as diversas
componentes de formação proporcionadas integram as TIC, de que formas o fazem nem com que
efeitos.

O que podemos fazer é adiantar a proposta de uma agenda de investigação para caracterizar a
natureza da profissionalidade destes novos docentes e, em função disso, responder à questão posta
em título.

Para essa agenda de investigação, consideramos pertinentes perguntas como:

• Que recurso houve às TIC em cada uma das cinco componentes de formação?
• Qual a natureza dos fins a atingir quando esse uso teve lugar?
• Em que campos foram percebidas, por formandos e formadores, aprendizagens viabilizadas
pelo uso das TIC (conhecimentos/capacidades/competências/atitudes e valores)?
• Que efeitos o formando constatou do uso das TIC para os alunos com quem trabalhou?
• Que vantagens e que prejuízos (ou menores benefícios) o uso das TIC pode ter em situações
de aprendizagem?
• Que mudanças pessoais cada formando experimentou pelo uso de TIC na sua vida particular
e profissional?
• De que modo equaciona o impacto das TIC sobre o presente e o futuro previsível, no âmbito
dos valores sociais associados à educação?
• Como prevê que seja o seu investimento futuro no campo das TIC?

A nossa resposta à pergunta em título fica, pois, em aberto.

Admitimos duas hipóteses: (i) tanto podemos vir a estar perante a emergência de uma nova
profissionalidade, assente na mudança dos saberes especializados de que os professores, no termo
da sua formação inicial, são portadores, como (ii) constatar que o domínio e o uso das TIC não afetaram
globalmente os processos de ensino-aprendizagem-formação, não se tendo passado de uma
exploração banal e/ou superficial das suas potencialidades.

Pensamos que vale a pena investir esforços para testar a validade destas hipóteses no âmbito do
projeto de investigação a que, nesta comunicação, aludimos.

REFERÊNCIAS
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