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A felicidade está cada vez mais Correntes filosóficas surgidas antes e depois de
distante Cristo apontavam a razão como condição
fundamental para chegar à felicidade. Como a razão
O filósofo Franklin Leopoldo e Silva admite que uma pessoa é vista hoje?
não precisa saber o que é a felicidade para ser feliz. No * A princípio havia uma razão que correspondia à
entanto, seu espírito crítico logo alerta para o fato de que, totalidade da vida humana e que era o princípio diretor
sendo felizes ou não, as pessoas julgam se estão satisfeitas a de tudo o que o indivíduo podia almejar. Na
partir de uma idéia de felicidade apresentada por um modelo contemporaneidade , a razão utilitária e tecnicista é a
político e psicossocial. Trocando em miúdos, o homem nutre a que dirige hoje o indivíduo. Quando o homem precisa
necessidade de ser feliz não porque tem somente um desejo de algo que governe outras dimensões existenciais que
subjetivo, mas porque sofre uma manipulação externa. O
professor de história da filosofia contemporânea da USP
não seja a ciência ou a tecnologia, utiliza a mesma
escreveu Felicidade - Dos Filósofos Pré-Socráticos aos racionalidade porque não há outra. A vida ética e
Contemporâneos para apresentar a vontade de satisfação como política se submete ao tecnicismo. Os problemas éticos
uma questão ética, e não como uma idéia abstrata, longe de ser são entendidos como coisas a ser resolvidas
realizada e causadora de imensas angústias. tecnicamente. A política perdeu hoje a dimensão de
busca de finalidades humanas mais gerais, e passou a
O enfraquecimento da democracia em Atenas ser uma administração de interesses. Essa racionalidade
promoveu uma atuação política pautada pela menor toma uma parte da vida como se fosse a
ambição pessoal, no lugar da defesa do interesse totalidade. É mais estreita, mas é dominante.
coletivo. A sociedade do século 21 vive situação O cristianismo criou o conceito inédito de felicidade
parecida? eterna depois da morte. Como essa idéia cristã lida
* Vive uma situação que lembra Atenas - uma com uma sociedade à procura da realização
decadência da democracia. Mas agora é pior porque se imediata do prazer?
constata a extinção da democracia real, substituída por * A separação rígida entre sofrimento inevitável nesta
mecanismos técnicos e publicitários que tomam o lugar existência e felicidade na vida futura foi mudando aos
da política. Mesmo com a democracia ateniense poucos, quando a Igreja passou a ter preocupações
enfraquecida, havia a permanência da discussão política sociais. O indivíduo não tem inevitavelmente de sofrer
em público. O indivíduo que queria a prevalência de em benefício de uma recompensa posterior. Ele tem
seus interesses pessoais se submetia a uma discussão direito a uma vida digna, e a própria Igreja incorporou
pública e ao crivo dos demais, ainda que fosse para essa idéia. Dos anos 50 para cá, aquela separação não
enganá-los. A diferença é que esse espaço público vigora mais na Igreja, a não ser nos círculos mais
desapareceu na época contemporânea . Aquele que ortodoxos. Embora o cristianismo mantenha a crença da
deseja defender seus interesses pode fazê-lo de maneira felicidade após a morte, não se exclui mais a exigência
privada. de dignidade durante esta vida, até do ponto de vista
E como a derrocada da democracia real interfere na material.
felicidade?
* A democracia real foi substituída por uma democracia
formal que equivale a um certo tipo de totalitarismo Como o homem contemporâneo se relaciona com a
velado. O indivíduo não tem mais participação nos transcendência, enquanto busca a felicidade?
rumos políticos, ele está à mercê do controle do * A idéia de transcendência perdeu a força espiritual.
totalitarismo. Ele introjeta a percepção de que não tem Ela aparece com outros perfis, que são muitas vezes
condição de controlar efetivamente a sua vida. As ligados à magia ou a uma ilusão que se faz necessária
expectativas de felicidade não dependem mais dele, para consolar a vida. A existência não é vista
pois o que ele pode fazer está dado previamente pelo espiritualmente, ela é transformada em promessas de
sistema: tipo de trabalho, de lazer, de esperanças e de bem-estar que o ser humano aceita como um alimento,
objetivos. tendo em vista a pobreza de horizontes oferecidos pela
Platão estabelece uma relação íntima entre sociedade. O grau de frustração individual é muito
felicidade e transcendência que orienta posteriores grande. Vivemos num mundo que tem todos os meios
concepções da felicidade. Essas concepções têm de proporcionar felicidade, sobretudo suprir as
espaço no mundo atual? necessidades mais imediatas, mas isso não ocorre. O
* Depois que o mundo moderno se tornou mais indivíduo sabe que a sociedade progrediu e que a vida
racionalista e afastado da dimensão teológica, podia ser mais completa e digna do que ela é. Daí
metafísica, religiosa, a necessidade de transcendência sobrevém a frustração: o homem vive numa sociedade
para ser feliz desapareceu. Colocou-se o horizonte de de progresso, de abundância, mas não tem aquilo que
felicidade em outra dimensão, que coincide com a poderia ter, e se sente esvaziado no meio da riqueza.
realização mundana. Os referentes de uma vida bem-
sucedida se situam na esfera do mercado: é o objetivo
de realização pessoal por via da competição, da qual
deve sair um vencedor.
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humano. Ainda que seja ególatra, o homem nunca se
Santo Agostinho dizia que a causa de infelicidade sente completo. O narcisismo não é uma cultura
está no erro moral de amar bens relativos como se adequada do eu, ele é uma patologia. Se o homem é
fossem absolutos. Hoje os homens estão amando os levado ao egoísmo pela frustração, esta aumenta quanto
bens relativos? mais se desejam coisas para satisfazer o ego. Daí resulta
* Santo Agostinho falava de acordo com uma doutrina algo negativo.
aceita como verdade absoluta, que era Deus. Num A ética da alteridade, de Emmanuel Lévinas, seria
mundo onde a religião não tem papel relevante, a um antídoto à realização egoísta da satisfação?
realização da essência do ser humano, tida como um * Essa ética poderia restaurar o que se perdeu na relação
bem absoluto, não é perseguida como prioridade. contemporânea do indivíduo com a comunidade. A
Acontece que os valores elevados se distanciaram da consideração de si mesmo deveria ser tão importante
nossa consideração, direcionamos a vida por valores quanto a consideração pelo outro. Se essa relação fosse
menores e imediatos, como riqueza, consumo, trabalho, de solidariedade e não de competição e eliminação, a
sucesso. Os bens relativos não precisam ser substituídos ética da alteridade, que considera o outro como aquele
por valores religiosos, mas por valores éticos. O ser em função do qual vale a pena viver, poderia colocar
humano precisa acreditar mais em si mesmo e na limites ao egoísmo.
humanidade. Os riscos do processo tecnológico, que afetam a
Qual a diferença entre o individualismo defendido natureza em escala planetária, exigem que o homem
por Descartes e o contemporâneo? assuma responsabilidade sobre si mesmo e sobre
* Descartes supunha uma comunidade que se pautava gerações futuras. Essa é a ética de Hans Jonas,
pela direção racional da conduta. O indivíduo podia segundo a qual é necessário, além da busca
perseguir os seus objetivos até o ponto que isso não individual de satisfação, preservar as condições
afrontasse a comunidade. Com a evolução do futuras de felicidade. O que essa ética tem de radical
capitalismo, o interesse pessoal se torna um valor que e urgente no mundo atual?
regula a vida do indivíduo. O individualismo racional se * A sociedade capitalista nos habitou à troca. Você faz
torna um individualismo egoísta, muitas vezes alguma coisa pelo outro, na medida em que ele faz por
irracional, pois redunda em violência e injustiça. Não se você. Quando se assume responsabilidade por gerações
compatibiliza mais individualidade com comunidade. futuras, não se faz essa troca. Conserva-se o planeta
Kant separou moralidade de felicidade. Qual a para o usufruto dos que virão. É uma ética radical,
conseqüência disso para a felicidade? porque você pensa no próximo sem esperar
* A conseqüência é uma moral estritamente formal, que recompensa. É uma responsabilidade comprometida
não tem muito a ver com a vida humana no seu sentido com o longo prazo e não com o aqui e agora.
real. Como o ser humano é mais complexo que essa A felicidade pode ainda ser entendida como uma
moral, ele almeja a felicidade para além do questão ética?
cumprimento de regras. A moral de Kant se dissolve * Sempre ela foi e deverá ser entendida dessa forma. Se
num formalismo muito grande, que não contempla o ser a tratarmos como uma questão ética, escapamos do
humano por inteiro. É o homem que se submete a risco da felicidade estritamente material e egoísta. Se
cumprir regras e obrigações, sem que isso resulte numa não se dá à felicidade um conteúdo ético, ela se torna
vida feliz. A criação por Kant de um logicismo na um fim para o qual qualquer meio é válido. Com a
moral não tem muita relação com aquilo que ética, se evita que as pessoas queiram ser felizes a todo
entendemos como uma vida realizada na sua plenitude, custo, mesmo que por meio de ações bárbaras e
além do cumprimento de regras. irracionais.
O que é felicidade para a humanidade do século 21?
* As experiências da História no século 20 estão ligadas
O século 21 persegue uma felicidade pautada pelo ao fracasso, à infelicidade, à barbárie que se instalou no
epicurismo? mundo. O tema não é mais a felicidade e seu sentido
* Quando se fala de epicurismo hoje, se faz uma má positivo. É como diminuir o sofrimento, uma vez que a
aplicação do conceito. Epicuro não baseava a procura felicidade não aparece positivamente possível, como era
do prazer apenas em bens materiais. A felicidade é mais vista pelos antigos ou na Idade média. Entendemos que
ampla, tem uma dimensão intelectual, espiritual e não dá para alcançar a felicidade plena. Nos cabe,
moral. Hoje essa busca do prazer é uma coisa que se então, buscar a diminuição do sofrimento, ao qual a
tornou diminuída. O epicurista busca o prazer que o experiência dos últimos tempos nos tem submetido. De
realize na sua totalidade. Mas isso não acontece, porque nada adianta pensar na idéia de felicidade, quando se
a sociedade só oferece bens que nos satisfazem imediata vive uma experiência concreta em que a felicidade se
e parcialmente. tornou abstrata. A felicidade está cada vez mais
Vivemos uma época de egolatria. Mas, apesar de as distante. Aquilo que os antigos viviam como uma
pessoas estarem voltadas para si mesmas, elas possibilidade real só vivemos como uma idéia.
padecem com falta de autoconhecimento e angústia.
Por que reclamam de infelicidade?
* Porque o narcisismo imperante é um efeito da
frustração. As pessoas se tornam narcisísticas e Filosofia II. Outubro / 2007.
ególatras, porque tentam compensar a frustração que
sofrem. O cultivo do ego é governado por uma lógica
depressiva e não por uma lógica de enaltecimento do
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