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Olhar de Professor

ISSN: 1518-5648
olhardeprofessor@uepg.br
Departamento de Métodos e Técnicas de
Ensino
Brasil

Imbiriba Sousa Colares, Maria Lília; Gonçalves, Tadeu Oliver; Alencar Colares, Anselmo; Leão,
Jacinto Pedro P.
O professor-pesquisador-reflexivo: debate acerca da formação de sua prática
Olhar de Professor, vol. 14, núm. 1, 2011, pp. 151-165
Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino
Paraná, Brasil

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DOI: 10.5212/OlharProfr.v.14i1.0009

O professor-pesquisador-reflexivo:
debate acerca da formação de sua prática

The teacher as a reflective researcher:


debate on his/her educational practice development
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares*
Tadeu Oliver Gonçalves**
Anselmo Alencar Colares ***
Jacinto Pedro P. Leão****

Resumo: O presente artigo tem como finalidade analisar a necessidade da formação da prática do
professor-pesquisador-reflexivo. Objetiva refletir o processo da formação da prática do professor, tanto
a pautada na racionalidade técnica quanto a norteada na epistemologia da prática. Compreendemos que
a formação da prática do professor-pesquisador-reflexivo tem como fundamento o diálogo ininterrupto
com as outras ciências. A reflexão, a pesquisa e o ensino estão sendo problematizados e (re)construídos
pela práxis docente investigativa, à medida que (re)pensam e (re)constróem a complexidade da vida,
isto é, do texto-contexto. Educar, nesta concepção, é, sobretudo, por um lado, desconstruir a racionali-
dade técnica e, por outro lado, construir a epistemologia da práxis investigativa do professorado. Além
disso, é estar indignando-se e intervindo no mundo para transformá-lo e torná-lo mais justo e humano.

Palavras-chave: Professor pesquisador. Prática reflexiva. Formação.

Abstract: This article aims to analyze the necessity of practical training for teacher-as-reflective-
researchers. In particular, it reflects on the process of teaching practice, both in terms of technical
rationality and the epistemology of practice. It assumes that teaching practice is based on a continuous
dialogue with other sciences. Reflection, research and teaching are constantly being problematized and
(re)constructed through investigative teaching praxis, as they help to (re)think and (re)construct the
complexity of life, that is, of text-context. From this standpoint, on the one hand educating is above all
about deconstructing technical rationality and on the other hand it is about constructing the epistemology
of investigative praxis of the teacher. Furthermore, it is also about being indignant and intervening in the
world to transform it and make it more equal and humane.

Keywords: Researcher teacher. Reflective practice. Development.

*
Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Docente do Programa de
Mestrado em Educação da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail: <liliacolares@ufpa.br>.
**
Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: <tadeuoliver@yahoo.com.br>.
***
Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal do Oeste do Pará/UFOPA. Docente do Programa de
Mestrado em Educação da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail:< anselmo.colares@hotmail.com>.
****
Mestre em Educação em Ciências e Matemática. Professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
E-mail: <jacintoleao@yahoo.com.br>.

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O professor-pesquisador-reflexivo: debate acerca da formação de sua prática

Incursões introdutórias programas, as metodologias, a evolução, as


práticas etc., com o fim de dotar os novos
educadores de uma formação científica,
Há o reconhecimento entre os
psicopedagógica e cultural competente.
educadores crítico-dialéticos, fundamentados
na ética universal humana (FREIRE, 1997), Imbernón (1994, p. 46) afirma que é
da inadiável formação de professores que indispensável formar a prática dos professo-
consigam corporificar atitudes críticas res, pois
e reflexivas sobre as implicações da
racionalidade técnica e da epistemologia da Cuidar [da práxis] dos professores novos
prática à vida dos professores e ao cotidiano será fundamental para o sistema educati-
escolar. Para tanto, “(re)pensar a [...] prática vo [para a sociedade], sobretudo em um
reflexiva é imprescindível [para] encará-la coletivo donde as categorias profissionais
como a vida à superfície das teorias práticas realizam tarefas iguais e muito similares.
do professor, para análise crítica e discussão”
A participação crítico-dialética do pro-
(ZEICHNER, 1993, p. 21).
fessor na vida escolar e fora dela contribuirá
É importante esclarecermos, de início, sem sombra de dúvida para a sua permanen-
que te formação: científica, tecnológica, política
[...] o movimento do prático reflexivo e do e psicopedagógica. Ela pode contribuir na
professor pesquisador surge em oposição discussão, na elaboração, na organização e
às concepções dominantes de ‘racionali-
na efetivação do planejamento pedagógico
dade técnica’, em que as práticas profis-
da escola. Com relação às necessidades da
sionais se produzem num contexto de di-
visão social do trabalho entre concepção comunidade extra-escoltar, poderá proble-
e execução, ou seja, entre teoria e prática. matizar, junto com eles, as condições mate-
(LÜDKE et al, 2001a, p. 28) riais e simbólicas favoráveis à construção da
qualidade de vida. Portanto,
A práxis do educador investigador-re-
flexivo é multidimensional, pois tem como [...] a formação permanente do período
substrato a afetividade, a emoção, a cog- de iniciação, ao longo do qual o professor
recebe informação de seus companheiros,
nição, o lúdico, a memória e o imaginário.
facilita a assistência a cursos e
Essas são algumas das dimensões presentes conferências sobre temas pedagógicos
na vida dos professores. Todavia, várias das básicos. É de se supor o professor receber
instituições de formação para o magistério, uma fundamentação psicopedagógica
como salienta Imbernón (1994, p. 20), de- para afrontar os problemas que surjam
monstram pouca preocupação com a forma- para poder construir posteriormente
ção psicopedagógica dos docentes, provo- os novos conceitos didáticos na hora
cando, assim, de elaborar o currículo adequado aos
alunos [considerando o contexto social,
[...] grandes disfunções tanto na formação cultural, político e econômico, onde estão
inicial como na permanente, [pois] unica- inseridos]. (IMBERNÓN, 1994, p. 50)
mente a partir de uma definição clara das
necessidades formativas dos futuros pro- A prática formativa docente do in-
fessores poderia se estabelecer um cur- vestigador-problematizador é prenhe de co-
riculum coerente e um plano de estudos nhecimentos científicos, do mundo, da vida.
que contemplasse harmonicamente os Por isso, consideramos [...] inquestionável

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a importância do papel da formação teórica importância dos saberes da experiência e


para o pesquisador. É a teoria que vai muni- da reflexão crítica na melhoria da prática,
-lo de elementos para interrogar os dados [atribuindo] ao professor um papel ativo
e procurar entender a trama de fatores que no próprio processo de desenvolvimento
profissional, e [defendendo] a criação
envolvem [a formação de sua prática de pro-
de espaços coletivos na escola para
fessor-pesquisador-reflexivo de matemática] desenvolver comunidades reflexivas.
(LÜDKE, 2001b, p. 42). (ANDRÉ, 2001, p. 57)
A pesquisa1 da prática docente, ou
seja, da sua formação (enquanto espaço pro- A formação inconclusa da prática do
blematizador-reflexivo) é hoje reconhecida professor-pesquisador-reflexivo é forjada
na comunidade educacional. Lüdke (2001a, no contato e na presença do diálogo insofis-
p. 49), no entanto, espanta-se quando não mável entre ciência, tecnologia, sociedade e
encontra em algumas instituições de ensino cultura. Logo, a

[...] um tipo de pesquisa bastante popular [...] prática reflexiva é composta de dois
na comunidade educacional atual, aquela níveis fundamentais: a reflexão-na-ação e
voltada para a análise da própria prática reflexão sobre a prática, incluindo a refle-
do professor, que merece atenção pelo seu xão sobre a reflexão-na-ação. (LÜDKE et
potencial de desenvolvimento crítico, bas- al., 2001a, p. 23)
tante acessível ao professor.
A prática crítico-dialética docente é
A prática é um espaço corpóreo e mul- renovada pela e na pesquisa sobre o cotidia-
tilateral (inclui o todo), onde convivem a no de sala de aula. É fundamental considerar
sensibilidade, a ciência e a empiria. O diálo- [...] a pesquisa como uma espécie de fa-
go entre elas é o fulcro da dimensão humana cilitadora da prática reflexiva; [...] a pes-
e ética da prática educativa docente. Adicio- quisa como um estágio avançado de uma
nando-se o diálogo na práxis, multiplica-se prática reflexiva; [...] a prática reflexiva
a possibilidade de interagir, conhecendo, sa- como uma espécie de pesquisa. (LÜDKE
bendo, apalpando e cheirando o cosmo. et al., 2001b, p. 41)
Schön (1992, 2002), Zeichner (1993),
É preciso invadir e ocupar as biblio-
Freire (1997) e Bortoni-Ricardo (2008) con-
tecas, as escolas, as universidades, no sen-
cebem a pesquisa da prática docente e da vida
tido de aguçar a prática da leitura das pala-
escolar como um instrumento metodológico
vras e dos contextos. Muitos estão distantes
para repensá-las e para aumentar a qualidade
desses lugares. Acompanhando a (re)leitura
do trabalho educativo-crítico-emancipatório.
crítico-dialética, a problematização e a re-
Esses autores, cada um com pontos específi-
flexão (cálcio e oxigênio da prática docente
cos de trabalho, consideram primordial a
emancipatória), o professor-pesquisador-re-
[...] articulação entre teoria e prática na flexivo, com os alunos, desvelará o mundo.
formação docente, [reconhecendo] a Porém,
A preguiça intelectual inibe a prática refle-
1
“A questão da importância da pesquisa na prática xiva. [...] os professores que querem dele-
docente vem há muito tempo sendo discutida em as-
gar suas preocupações profissionais para
sociações, com os conceitos de reflexão e crítica, sob
a escola e que não gostam de desesperar-
a perspectiva de uma prática reflexiva, do professor re-
flexivo ou pesquisador” (LÜDKE et al., 2001a, p. 36). -se não se tornam profissionais reflexivos.
(PERRENOUD, 2002, p. 52)

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Um convite irrecusável aos indig- dialogicamente, penetrem em sua compreen-


nados e aos incomodados da terra é a (re) são. (FREIRE, 1987, p. 25).
criação da prática do professor-pesquisador A vida é problemática. Educar para vi-
crítico e dialético, movimentado pelo amor ver de forma inquieta, crítica, dialética, para
às pessoas. Freire (1997, p. 58) enaltece esse desconfiar das certezas dos discursos, dos
amor dizendo: conteúdos e das práticas de qualquer pessoa,
Gosto de ser homem, de ser gente, por- deve-se compreender nelas a presença da
que não está dado como certo, inequívo- concreticidade da existência das pessoas, do
co, irrevogável que sou ou serei decente, mundo e da realidade.
que testemunharei sempre gestos puros, A luta, no sentido nietzscheano, signifi-
que sou e que serei justo, que respeitarei
ca a presença da superação das dificuldades e
os outros, que não mentirei escondendo o
seu valor porque a inveja de sua presença dos obstáculos que negam a possibilidade da
no mundo me incomoda e me enraivece. (re)construção da vida, ou seja, da existência.
Gosto de ser homem, de ser gente, porque A luta, desse modo, corresponde ao “[...] querer
sei que minha passagem pelo mundo não ir sempre além, num vir-a-ser eterno, portanto
é predeterminada, preestabelecida. sem pensar em preservar-se. Viver é superar-se
constantemente” (NIETZSCHE, 2002, p. 19).
Precisa-se formar a prática de profes-
O pensamento único neoliberalizante
sores que sejam amigos do saber e do conhe-
tenta a todo custo sepultar as práticas contra-
cer, da (re)leitura inveterada (mas prudente e
hegemônicas existentes nas instituições do
humilde) da linguagem conceitual, empírica
ensino público. A ética mercantil, refúgio
e cósmica. Essa prática é própria do profes-
do neoliberalismo, invade as escolas e as
sor-educador. O [...] educador problematiza-
universidades públicas, ceifando princípios
dor refaz, constantemente, seu ato cognoscen-
da ética, soterrando vários direitos sociais e
te, na cognoscitividade dos educandos. Estes,
trabalhistas. Assim,
em lugar de serem recipientes dóceis de de-
pósitos, são agora investigadores críticos, em [...] as noções econômicas e tecnocráticas
diálogo com o educador, investigador crítico, de eficácia, produtividade, eficiência e
também. (FREIRE, 1999b, p. 69). êxito tomam o lugar de outras, mais po-
A prática docente é o oxigênio da re- líticas, como de participação democrática
na tomada de decisões educacionais, ou
lação do pensar, do fazer, do saber, do ser e
relacionada com problemáticas sociais,
do sentir, corporificada ao texto e ao con- como a de expansão quantitativa da ma-
texto. Ela não é vazia, e nem sem conteú- trícula escolar. Esta transformação não só
do. Não é improvisada, e nem imediatista. tende a tornar cada vez mais econômico
É (re)planejada, dialogicamente, junto aos e menos político o discurso educacional,
interesses e às necessidades da comunidade como também leva a traduzir valores pró-
escolar. É prenhe de saberes e de conheci- prios da ética pública e cívica na clave da
mentos (re)construídos sob a égide da dia- ética do lucro de mercado e do consumo:
lética texto-mundo. Assim, [...] seu objetivo a solidariedade e cooperação cedem lugar
não é fazer a descrição de algo a ser memo- assim à competição e ao mérito individual.
(SUÁREZ, 1995, p. 261)
rizado. Pelo contrário, é problematizar situa-
ções. É necessário que os textos sejam em A prática docente insensível aos con-
si um desafio e como tal sejam tomados denados da terra, aos indigentes, aos miserá-
pelos educandos e pelo educador para que, veis (não que sejamos a favor da miséria, da

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indigência) é a favor da reprodução das ma- reflexivo mais do nunca se faz necessária.
zelas, provocada pelo terrorismo dos donos A sua formação não é construída apenas em
do capital internacional e nacional (capita- cursos de licenciatura, mas no permanente
lismo financeiro e especulativo). O que mais desenvolvimento profissional e na
nos indigna e nos apavora é perceber pessoas problematização da práxis do ensino e da
(consideradas esclarecidas científica e politi- aprendizagem, conectada com o mundo,
camente) adotarem o ethos neoliberalizante isto é, com a eticidade da educação. Esta é
como referencial educativo e como modelo o substrato da
de vida. Apple (2001, p. 11) salienta que nesse
momento histórico “[...] um número excessi- [...] prática educativa, enquanto prática
formativa. Educadores e educandos não
vo de nos que se acostumou ao sofrimento,
podem, na verdade, escapar à rigorosidade
nacional e internacionalmente”. E alerta:
ética. Mas é preciso deixar claro que a ética
“[...] Este é um período difícil para qualquer de que falo não é a ética menor, restrita, do
um que esteja comprometido com uma trans- mercado, que se curva obediente aos inte-
formação social e educacional progressista.” resses do lucro. (FREIRE, 1997, p. 16)
A formação da prática sensível é pre-
nhe de amor às pessoas. A todo instante luta O local de trabalho (a escola pública)
pela vida. A ausência de amor e de prazer, educativo-crítico do professor está sendo
na prática docente, permitirá concentração atacado pela lógica mercantil. Suas inves-
da riqueza (pelos donos do mundo), visto tidas visam converter tudo em mercadoria
que, naquela, não se fará presente a reflexão altamente lucrativa. Exige-se uma formação
e a problematização dialética sobre quem profissional polivalente, politécnica e flexí-
se beneficia das invenções e das descober- vel do trabalhador, inclusive do professor.
tas científicas e tecnológicas, tornando estas Transforma qualidade, descentralização,
propriedades patenteadas daqueles, comer- municipalização (defendidas pelos educa-
cializáveis por eles. dores progressistas) em categorias (na sua
A educação, que norteia a formação essência mercantilizadas) à disposição de
da prática do professor-pesquisador-reflexi- todos, bastando ter competência e habilidade
vo conforme Apple (2001, p. 15), é (baseadas no neodarwinismo social) prag-
mática, utilitária e instrumental.
[...] um empreendimento ético. O aspecto
Há vários processos de luta cultural
pessoal é visto como um caminho para re-
entre os educadores progressistas e os tec-
despertar sensibilidades éticas e estéticas
que cada vez mais vinham sendo expulsas
nocratas neoliberais, envolvendo diferentes
do discurso científico de uma quantidade concepções atribuídas às categorias trabalho,
excessivamente de educadores. Ou, então, educação, qualidade2 e formação. Para os
é visto como um caminho para dar vez às primeiros, o trabalho
subjetividades de pessoas que tinham sido
silenciadas. 2
Quando se fala em qualidade social na educação se
entende que “[...] a qualificação humana diz respeito
ao desenvolvimento de condições físicas, mentais,
A formação da prática do professor- afetivas, estéticas e lúdicas do ser humano (condições
pesquisador-reflexivo omnilaterais) capazes de ampliar a capacidade de tra-
balho na produção dos valores de uso em geral como
condição de satisfação das múltiplas necessidades do
A formação da prática do professor- ser humano no seu devenir histórico.” (FRIGOTTO,
educador, ou seja, do professor-pesquisador- 1996, p. 32).

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[...] não reduz a fator, mas é, por exce- [...] luta justa para que a qualidade huma-
lência, a forma mediante a qual o homem na não seja subordinada às leis do mer-
produz suas condições de existência, a cado e à sua adaptabilidade e funcionali-
história, o mundo propriamente huma- dade, seja sob a forma de adestramento e
no. Trata-se de uma categoria ontológica treinamento da imagem do monodomesti-
e econômica fundamental. A educação ficável dos esquemas tayloristas, seja na
também não é reduzida a fator, mas é forma da polivalência e formação abstra-
concebida como uma prática social, uma ta, formação geral ou policognição recla-
atividade humana e histórica que se de- madas pelos modernos homens de negó-
fine no conjunto das relações sociais, no cio e os organismos que os representam.
embate dos grupos ou classes sociais, (FRIGOTTO, 1996, p. 31)
sendo ela mesma forma específica de
relação social. O sujeito dos processos Forma-se, assim, a prática crítico-dia-
educativos aqui é o homem e suas múlti- lética do professor, principalmente, quando
plas e históricas necessidades (materiais, se pretende desconstruir as práticas e os dis-
biológicas, psíquicas, afetivas, estéticas, cursos da lógica neoliberal. Nóvoa (2002, p.
lúdicas). (FRIGOTTO, 1996, p. 31)
38), afirma:
O que já está acontecendo é a simbio- Hoje em dia, apresenta-se aos professo-
se dos significados sociais daquelas catego- res como grupo profissional um desafio
rias em sentidos estritamente mercantis. Há decisivo: fazer face [às investidas neoli-
intelectuais que abandonaram valores éticos berais], criando a possibilidade, pouco a
e humanos e outros que estão prestes a fazer pouco, ir construindo um saber [contra-
parte da ortodoxia mercantil. O credo mer- -hegemônico] emergente da prática que
cantil os convenceu de que não tem saída não negue os contributos teóricos das
para a crise da educação pública, ao não ser diversas ciências sociais e humanas, mas
que os integre com base em uma reflexão
que introduzam no seu cotidiano os valores
sobre a experiência pedagógica concreta.
do mercado (GENTILI, 1995)

Por outro lado, os intelectuais críticos


Os saberes escolares e os saberes empí-
concebem a formação da prática do pro- ricos cotidianos se completam na medida em
fessor-pesquisador-reflexivo como em que refletem a vida dos sujeitos da educação
permanente (re)construção científica, crítico-dialética. A prática, um território em
tecnológica e social, baseada na [...] ética movimento dialético de (des)construção, se
propriamente humana, ou seja, a antropo- (re)faz pelos saberes (re)construídos e proble-
ética deve ser considerada como a ética matizados diariamente pelos professores e pe-
da cadeia de três termos, indivíduo/socie- los educandos, no contexto do texto e no texto
dade/espécie, que emerge da nossa cons- do contexto da construção das vivências das
ciência e do nosso espírito propriamente
pessoas. É inconteste que os cursos de forma-
humano. Essa é a base para ensinar a ética
do futuro. (MORIN, 2000, p. 106)
ção de professores-pesquisadores-reflexivos
não prescindam da investigação dialógica,
A práxis dos educadores crítico-dialé- radical, rigorosa e inquieta do
ticos, fundamentada na ética humana, ainda,
se materializa na [...] saber dos professores – como qualquer
outro tipo de saber de intervenção social
– não existe antes de ser dito. [...] Os
professores possuem um conhecimento

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vivido [prático], que cada um é capaz didático-pedagógicos é fundamental para o


de transferir de uma situação para outra, desenvolvimento qualitativo-quantitativo
mas que é dificilmente transmissível a do processo de ensino e de aprendizagem.
outrem. Ora, na medida em que no campo No entanto, se os conteúdos trabalhados,
educativo o saber não preexiste palavra
mediante a utilização desses instrumentos,
[dita ou escrita], os conhecimentos de que
os professores são portadores tendem a ser
não estiverem sendo problematizados, des-
desvalorizados do ponto de vista social e velados e desmistificados a prática docente
científico. (NÓVOA, 1992, p. 36) tornar-se-á tecnicista, instrumental e acrítica.
Os tecnocratas da educação, quando
A qualidade da prática profissional do se referem à formação do novo trabalhador,
professor-pesquisador-reflexivo implicará supervalorizam a prática em detrimento da
na qualidade do trabalho educativo, crítico teoria, no sentido de anular e de decapitar o
e emancipatório, que é desenvolvido dentro pensar crítico-emancipatório. Alves (1996,
e fora da escola. A importância de se estar p. 16) argumenta:
investigando a formação da prática docen-
te, entre outras finalidades, almeja preparar [...] A questão não é aumentar a prática
o [...] professor no exercício de sua prática em detrimento da teoria ou vice-versa –
como ator que reflete sobre as ações que o problema consiste em adotarmos uma
realiza em seu cotidiano. O significado da nova forma de produzir conhecimento no
interior dos cursos de formação do edu-
preparação de docentes para o exercício de
cador.
uma prática reflexiva se tornou um tema re-
corrente nas discussões sobre a formação do A conexão teoria-reflexão-prática ne-
professor nas últimas duas décadas. (PAIVA, cessária não se concretiza sem a problema-
2003, p. 47-48). tização dos sujeitos da educação acerca da
Paiva (2003, p. 48), após analisar as con- relação inevitável eu-outro-mundo. Desse
tribuições dos estudos feitos por Tardif, modo,
Lessard e Gautier, sobre as reformas dos
cursos de formação de professores do [...] A reflexão crítica sobre a prática se
Brasil, Canadá, Estados Unidos, Fran- torna uma exigência da relação Teoria/
ça, Inglaterra, conclui que o processo da Prática sem a qual a teoria pode ir virando
construção da identidade dos professores blábláblá e a prática, ativismo. (FREIRE,
assume as seguintes características: a do 1997, p. 24)
“[...] tecnólogo do ensino, do ator social e
do prático reflexivo.” O professor é, junto com o discente, o
ator social, político e cultural, quando a sua
A prática do saber e do fazer do tecnó- prática e a sua teoria (numa relação indisso-
logo do ensino centra-se em ciável) são ética e moralmente sensíveis aos
[...] conhecimentos formalizados, saídas excluídos da terra. Estes, cotidianamente, são
da pesquisa científica, instaurando um acometidos pelas mazelas da fome, da misé-
ensino estratégico que tem por base o co- ria, da violência etc., provenientes da ação
nhecimento referenciado na cognição dos insana e mórbida do lucro por aqueles que
alunos. (PAIVA, 2003, p. 48) se consideram donos do mundo. Por causa
disso, também, provocam guerras, bloqueios
O conhecimento, pelos professores, econômicos e crises financeiras.
dos instrumentos tecnológicos como meios

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O professor-pesquisador-reflexivo: debate acerca da formação de sua prática

A prática do professor-educador, [...] Creio que é preciso examinar o modo


centrada na relação ciência/tecnologia/so- como, nos níveis mais baixos, os fenô-
ciedade, é nutrida pela dialética da denún- menos, as técnicas, os procedimentos de
cia daquelas intempéries e pelo anúncio da poder atuam; mostrar como esses procedi-
mentos, é claro, se deslocam, se estendem,
possibilidade de um mundo melhor, mais
se modificam, mas, sobretudo, como eles
humanizado. Para tanto, é necessária a (re) são investidos, anexados por fenômenos
construção da prática contra-valorativa aos globais, e como poderes mais gerais ou lu-
valores do capital financeiro e do capital es- cros de economia podem introduzir-se no
peculativo. Isso só é possível na medida em jogo dessas tecnologias, ao mesmo tempo
que nos conhecemos e reconhecemos como relativamente autônomas e infinitesimais.
(FOUCAULT, 2005, p. 36)
[...] seres condicionados, mas não deter-
minados. Reconhecer que a história é tem- A prática docente é gravitada por mi-
po de possibilidade e não de determinis- crorrelações de poder, sem as quais seria
mo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é impossível a reprodução do status quo he-
problemático e não inexorável. (FREIRE,
gemônico elitista. O ritual didático-peda-
1997, p. 21)
gógico, centrado na transmissão mecânica
A necessária antipatia à lógica do mer- e descontextualizada, almeja estabelecer e
cado reside, professor-pesquisador, na práti- instituir o consenso silenciador dos valores
ca docente ética e humana, porque contra-hegemônicos existentes no ambiente
escolar.
[...] a ideologia fatalista, imobilizante, que O professor na sala de aula, com o seu
anima o discurso neoliberal anda solta no olhar e com a sua fala, vigiando e contro-
mundo. Com ares de pós-modernidade, lando o tempo, o espaço e o raciocínio dos
insiste convencer-nos de que nada pode- alunos, atribui notas (valores), classifica e os
mos contra a realidade social que, de his-
seleciona meritocraticamente. Somos vigia-
tórica e cultural, passa a ser ou vir a ser
quase natural. Frases como a realidade é dos e incorporados como “[...] as crianças,
assim mesmo, que podemos fazer? Ou o os escolares, os colonizados, sobre os que
desemprego no mundo é uma fatalidade são fixados a um aparelho de produção e
do fim do século expressam bem o fata- controlados durante toda a existência.[...].”
lismo desta ideologia e sua indiscutível (FOUCAULT, 2000, p. 28).
vontade imobilizadora. (FREIRE, 1997, O trabalho docente, conivente com o
p. 21-22)
poder hegemônico dos donos do mundo (que
impõe o ideário da formação do trabalhador,
O professor-pesquisador-reflexivo
baseado na filosofia toyotista), garante a ma-
consegue (re)articular ciência/tecnologia/
nutenção da ordem do cenário neoliberali-
sociedade e problematizá-las junto aos con-
zante (maquiada de um discurso da prática
textos socioculturais dos homens e das mu-
solidária e cidadã), ou seja, oculta a essência
lheres, na perspectiva de esclarecer e de de-
da face deste. Neste contexto, ele é o agente
molir o mito da “sociedade da normalidade”
do processo de dominação:
(FOUCAULT, 2005) e das relações de poder
reproduzidas no cotidiano local e global. [...] dominação, não que dizer o fato maci-
Para isso, ço de uma dominação global de um sobre
os outros, de um grupo sobre o outro, mas

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as múltiplas formas de dominação que po- estejam atentos aos saberes que circundam a
dem se exercer no interior da sociedade. vida dos seus formandos. No processo de des-
(FOUCAULT, 2005, p. 31-32) coberta dos saberes implícitos em seus discur-
sos e em seus fazeres, há a possibilidade de (re)
A formação da prática docente con- inventar as práticas (re)afirmativas da cultura
traideológica (nucleada na concepção do do saber problematizado e, paulatinamente,
professor-pesquisador-reflexivo) requer, ain- (re)construir as possibilidades de ensinar e de
da, a perene leitura do mundo (com o olhar, aprender reciprocamente. Desse modo,
com palavras, com o tato, com o olfato, com
a audição) com amor à vida. Aquela é (re) [...] é fundamental fazer com que os pro-
criada com a leitura crítica dos discursos, que fessores se apropriem dos saberes de que
são portadores e os trabalhem do ponto
estão subjacentes aos contextos, escondidos
de vista teórico e conceptual (CONTOIS;
nas entrelinhas dos textos. Freire (1999b, p. PINEAU, 1991). [Enquanto] A maneira
11) elucida: como cada um de nós ensina está direc-
tamente dependente daquilo que somos
A leitura do mundo precede a leitura da como pessoa quando exercemos o ensino.
palavra, daí que a posterior leitura desta (NÓVOA, 1992, p. 17)
não possa prescindir da continuidade da
leitura daquela. Linguagem e realidade se Se o professor formador de profes-
prendem dinamicamente. A compreensão sores pesquisadores-reflexivos não estiver
do texto a ser alcançada por uma leitura impregnado de esperança e da utopia ético-
crítica implica a percepção das relações
humana da possibilidade de uma educação
entre o texto e o contexto.
crítica, radical e insubmissa, jamais dará tes-
As vivências, (re)produzidas no con- temunho dos sonhos e dos desejos dos ex-
texto escolar, são atravessadas pelas ideo- cluídos da terra, impedindo-os de se tornar
logias que interferem nas práticas docentes, concretude, ou seja, realidade. Sua prática
seja o da sala de aula, o do hall e o do corre- será marcada e atravessada, caso não se con-
dor, isto é, em todos os espaços da institui- vença de que não está imune das intempéries
ção. Assim, as da globalização neoliberal, pelo discurso do
impossível, do “não tem jeito”.
[...] escolhas em relação ao saber, ao fa- Cuidado, professor formador, a sua
zer e à forma de ser que se privilegia, aos prática direta ou indiretamente influenciará
caminhos trilhados pela escola pública e na (re)construção da identidade do profes-
pela sociedade em geral são, ao mesmo sor-pesquisador-reflexivo. A identidade não
tempo, efeito e instrumento de poder. é um atributo do determinismo biológico e
Emergem de confrontos que fortalecem cultural:
algumas tendências e geram outras. [...]
Admitimos que a formação acadêmica é A identidade não é um dado adquirido,
uma parte importante no processo de for- não é um produto. A identidade é um lugar
mação da identidade profissional, mas não de lutas e de conflitos, é um espaço de
é o único aspecto que determina os perfis construção de maneiras de ser e de estar
assumidos pelo professor ao longo de sua na profissão. Por isso, é mais adequado
carreira. (CARDOSO, 2003, p. 24) falar em processo identitário, realçando
a mescla dinâmica que caracteriza a
É fundamental que os formadores da maneira como cada um se sente e se diz
prática do professor-pesquisador-reflexivo professor. (NÓVOA, 1992, p. 16)

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O professor-pesquisador-reflexivo: debate acerca da formação de sua prática

O processo de construção da prática sobretudo nas associações de moradores, nas


identitária do professor-pesquisador-reflexi- comunidades eclesiais de base (CEBs) e nos
vo traduz-se na (re)produção crítico-dialéti- novos movimentos sindicais.
ca do currículo. Dessa forma, o A racionalidade técnica fragmenta
e descontextualiza o conhecimento cientí-
[...] currículo, aqui, é uma prática, ou me-
fico do saber popular, como se aquele não
lhor, uma práxis, pois envolve ação e refle-
xão por parte do professor, que se constitui tivesse por base este. A prática do professor
no seu principal protagonista. (PONTE, se intitula neutra. Sob essa ótica, o ensino é
2002a, p. 2) hiperespecializado e estéril, negando, assim,
a possibilidade do diálogo entre as ciências.
A sala de aula, local onde a práxis Além disso, provocou a [...] cisão entre a
identitária do professor emerge (conforme pesquisa e a prática educacional, reforçando
interesses e valores), materializa-se e cor- hierarquização entre o discurso de quem pro-
porifica-se nas produções científicas, tecno- duz e de quem consome conhecimento cien-
lógicas e culturais presentes no ambiente da tífico. Nessa perspectiva, vemos reproduzi-
escola. O fundamento da prática identitária da a distinção entre ciência [teoria] e senso
do educador “[...] tanto na sala de aula como comum [prática] tão própria do pensamento
na escola é a atividade investigativa, no sen- moderno. (CHAVES, 2000, p. 42).
tido de atividade inquiridora, questionante e O irrisório e efêmero diálogo entre as
fundamentada.” (PONTE, 2002b, p. 2) ciências, isto é, entre as disciplinas científi-
A formação do professor-pesquisador- cas corroborou para a fragmentação, com-
crítico-dialético, se desenvolve à proporção partimentalização e hierarquização do saber.
que se entende e se reconhece a investiga- Num passado recente, a cátedra científica
ção como a força motriz de um[...] processo deleitava-se no poder outorgado pelos seus
privilegiado de construção de conhecimento. pares. Poucos a contestaram. Há um distan-
A investigação sobre a prática é, por conse- ciamento entre as descobertas e as invenções
quência, um processo fundamental de cons- técnico-científicas e a sociedade. Assim,[...]
trução do conhecimento sobre essa mesma o desenvolvimento anterior das disciplinas
prática e, portanto, uma atividade de gran- científicas, tendo fragmentado e comparti-
de valor para o desenvolvimento profissio- mentado mais e mais o campo do saber, de-
nal dos professores que nela se envolvem. moliu as entidades naturais sobre as quais
(PONTE, 2002c, p. 3). sempre incidiram as grandes interrogações
O conhecimento unodisciplinar pre- humanas: o cosmo, a natureza, a vida e, a
valeceu, durante muito tempo, na prática do- rigor, o ser humano. (MORIN, 2001, p. 26).
cente, assentado na racionalidade técnica. O A formação da prática do professor-
cotidiano de sala de aula, nessa concepção, é -pesquisador-reflexivo, desse modo, não se
obscurecido e silenciado. As linguagens pre- baseia no paradigma da racionalidade técni-
sentes neste, quando silenciadas e obscureci- ca e neopositivista, porque se fundamenta na
das, são negadas. Fleuri (2002, p. 68) enfatiza educação da complexidade. Morin (2001, p.
que no Brasil [...] O silêncio, o isolamento, 37) contraria aquele paradigma ao refletir:
a descrença, elementos fundamentais da cul-
Trazemos, dentro de nós, o mundo físico, o
tura do medo, começaram, entretanto, a ser
mundo químico, o mundo vivo e, ao mesmo
quebrados no final da década 1970. Emer-
tempo, deles estamos separados por nosso
giram os movimentos de base, assentados,

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pensamento, nossa consciência, nossa cul- para estudá-lo cientificamente. A tecnociên-


tura. Assim, cosmologia, ciências da terra, cia conduziu a diminuição da possibilidade
biologia, ecologia permitem situar a dupla de conhecer e problematizar o homem na sua
condição humana: natural e metanatural. totalidade, ignorando as partes integrantes
A educação da complexidade centra- do todo. Morin (2000, p. 58) salienta:
liza-se, sobretudo, na produção e na proble-
[...] o século XXI deverá abandonar a vi-
matização dos conhecimentos e dos saberes
são unilateral que define o ser humano pela
articulados com a tecnologia, a ciência e so- racionalidade (Homo sapiens), pela técnica
ciedade, num permanente diálogo entre elas. (Homo faber), pelas atividades utilitárias
A prática do professor-pesquisador-reflexivo (Homo economicus), pelas necessidades
toma por base o processo de que “[...] conhe- obrigatórias (Homo prosaicus)
cer o humano não é separá-lo, mas situá-lo”
(MORIN, 2001, p. 24) nos múltiplos contex- A escola é um mundo. O mundo é
tos existentes, sejam culturais e sociais, se- uma escola. Os contextos externos e inter-
jam geopolíticos e geoeconômicos. nos se influenciam mutuamente. Os homens
O paradigma da complexidade mori- e as mulheres não chegam à sala de aula
niano, ao contribuir para a formação da prá- desprovidos de saberes e de conhecimentos.
tica docente, antes de tudo, convida a (re) Trazem consigo as vivências, as marcas, as
pensarmos a relação dialética parte-todo, falas, ou seja, imprimem ao contexto escolar
problematizando as produções dos homens o cotidiano do seu bairro, da sua rua, da sua
e das mulheres, tendo como referência, tam- travessa, sua ponte, seu sítio, seu igarapé,
bém, os seus contextos. Suas linguagens, seu rio, sua vida. Isso acontece no cotidiano
seus pensamentos, suas culturas, as tecnolo- da escola e da comunidade, porque “[...] o
gias, as suas ciências devem ser reconheci- ser humano não só vive de racionalidade e
das, sempre na relação texto-contexto-texto. de técnica, ele se desgasta, se entrega, se de-
dica a danças, transes, mitos, magias, ritos.”
A educação, nessa perspectiva, não
(MORIN, 2000, p. 58-59).
comunga com o pensamento aparentemente
neutro, cientificista, positivista. Todo pen- Educar para a vida passa, então, pelo
sar é intencional, ou seja, está direcionado a rompimento com a educação, pautada na
um contexto, interligado a outros contextos. transmissão, na centralização e na burocra-
(Re)pensar o microcontexto de uma comu- tização da vida escolar. Assim,
nidade negra ou indígena, por exemplo, não
[...] educar realmente na vida e para à
está desligado de (re)pensar o contexto pla-
vida, para essa vida diferente, e para su-
netário. Morin (2001, p. 25) incisivamente perar desigualdades sociais, a instituição
nos alerta: “[...] para pensar localizadamen- educativa deve superar definitivamente
te, é preciso pensar globalmente, como para os enfoques tecnológicos, funcionalistas,
pensar globalmente é preciso pensar locali- burocratizantes, aproximando-se, ao con-
zadamente.” trário, de seu caráter mais relacional, mais
Assim sendo, a formação da prática dialógico, mais cultural-contextual e co-
munitário. (IMBERNÓN, 2000, p. 7)
do professor-pesquisador-reflexivo, para o
século XXI, deverá superar, especialmente, a
Os formadores da prática dos profes-
pseudovisão da racionalidade técnica, que di-
sores devem estar cientes das responsabili-
vidiu e divide o homem em minúsculas partes
dades científicas, políticas, éticas, culturais e

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O professor-pesquisador-reflexivo: debate acerca da formação de sua prática

sociais, de formar um professor pesquisador, Considerações finais


crítico e dialético capaz de estabelecer o (re)
encontro das ciências e destas com os sabe- O mundo natural está interligado ao
res populares, pois nestes estão subjacentes mundo social, cultural, biológico, físico,
várias compreensões de própria ciência. Para químico, matemático, (re)formando o
tanto, é preciso, antes de tudo, ecossistema e (des)ordenando o cosmo. Eles
estão intrinsecamente presente um no corpo
[...] formar um professor como um profis-
do outro, ou seja, estão no corpo e na alma da
sional prático-reflexivo que se defronta com
situações de incerteza, contextualizadas e terra. Qualquer prática impensada e imbecil
únicas, que recorre à investigação como dos homens e das mulheres provocará a
uma forma de decidir e de intervir prati- presença da desordem e desarmonia, isto é,
camente em tais situações. (IMBERNÓN, do desequilíbrio entre esses mundos.
1994, p. 39) A formação da prática do professor-
-pesquisador-reflexivo, aliada à mudança de
Os cursos de formação docente refle- mentalidade cultural xenófoba e etnocên-
xiva e investigativa devem, ainda, possibili- trica à mentalidade da pluralidade cultural,
tar aos professores ética, cidadã, (re)encontra-se na relação da
antropoética com a natureza. Adiciona-se a
[...] conhecimentos, habilidades e atitudes
para desenvolver profissionais reflexivos
essa relação a utilização prudente e respon-
ou investigadores. Nesta linha, o eixo sável das descobertas e invenções científicas
fundamental do currículo de formação e tecnológicas (das rudimentares, das aper-
do professor é o desenvolvimento da feiçoadas e sofisticadas). Precisamos, assim,
capacidade de refletir sobre a própria converter toda nossa vontade, nosso desejo,
prática docente, com o objetivo de nossa práxis antropológica e cosmológica,
aprender a interpretar, compreender ou seja, nossa vida à centralidade da bios-
e refletir sobre a realidade social e a fera, considerando sempre a conexão fauna,
docência. (IMBERNÓN, 1994, p. 39) flora, pessoas, tecnologias e as ciências.
A prática do professor-pesquisador- A prática do professor não é inocente,
reflexivo é o núcleo do currículo dos cursos nem desinteressada. Escolhemos, ou alguém
de formação continuada de professores, que escolhe, o paradigma da racionalidade técni-
consideram o ensino, a pesquisa e a reflexão ca ou ainda o paradigma da epistemologia da
fundamentos da práxis docente. Por isso, prática, da complexidade da educação, que
lhe é mais conveniente.
Quando se considera que o currículo só se A prática docente da racionalidade
materializa no ensino, momento em que técnico-científica desagrega as ciências da
os alunos e professores vivenciam experi- vida, do devir. A prática do professor da ra-
ências nas quais constroem e reconstroem
cionalidade prática epistemológica religa es-
conhecimentos e saberes, compreende-se
a recorrente referência à prática e à for-
sas construções culturais.
mação docente nos estudos que tomam o O professor-pesquisador-reflexivo (re)
currículo como objeto de suas atenções. constrói o permanente encontro entre os diver-
(MOREIRA, 2001, p. 82) sos saberes. Sua prática é o movimento inin-
terrupto que (re)cria, (re)pensa e (re)articula
os conteúdos científicos e tecnológicos com

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(re)pensar e (re)construir o pensamento teó- científico. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo
rico, com a presença do professor-pesquisa- Universitário, 1985.
dor-reflexivo. Ressalte-se que
BORTONI-RICARDO, S. M. O professor
[...] A própria vida cotidiana passa a pesquisador: introdução à pesquisa
exigir conhecimentos desenvolvidos qualitativa. São Paulo: Parábola, 2008.
entre outras esferas de objetivações, o que
reafirma a importância da apropriação dos CARDOSO, L. A. M. Formação de
conteúdos escolares para a formação do professores: mapeando alguns modos de ser
indivíduo. Da mesma forma, os conteúdos professores ensinados por meio do discurso
escolares tornam-se exigência para a científico-pedagógico. In: ______ PAIVA,
continuada elaboração das objetivações E. V. de (Org.). Pesquisando a formação de
para-si. Os conceitos escolares, além professores. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
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conceitos científicos, promovem também CHAVES, S. N. Por uma nova epistemologia
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abordagens. Campinas: R. Vieira Gráfica e
Pelas razões acima descritas, a expe- Editora Ltda, 2000.
riência cotidiana reúne plenas possibilida-
des de mediar o diálogo da empiria com a FLEURI, R. M. Multiculturalismo
ciência no sentido de instituir o (re)encontro e interculturalismo nos processos
com o mundo. Ainda conforme Bachelard educacionais. In: CANDAU, V. M. (Org.).
(1985, p. 16), “Para interdizer radicalmente Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e
as conclusões de uma teoria, é preciso que pesquisa. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
a experiência nos exponha as razões de sua FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história
explicação.” da violência nas prisões. 22. ed. Petrópolis:
Vozes, 2000.

Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(1): 151-165, 2011.


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