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Rafael Kalaf Cossi

Stoller e a psicanálise:
da identidade de gênero ao
semblante lacaniano
Stoller and psychoanalysis:
from gender identity to
the lacanian semblance
Rafael Kalaf Cossi

Resumo
Neste texto, incialmente examinamos a obra de Robert Stoller, notadamente em seu percurso
pela psicanálise. Detectamos que, ao longo de seu trabalho, Stoller tratou das diferentes ma-
nifestações da sexualidade até aos estudos antropológicos. Pioneiro do uso do termo “gender”
no contexto psicanalítico, Stoller propôs várias modificações à teoria do Édipo freudiana. Suas
teses foram largamente disseminadas em solo anglo-saxão e exerceram influência decisiva
em expoentes da psicanálise inglesa. Mais conhecido no Brasil por sua pesquisa a respeito
da transexualidade, verificamos que sua insistente intenção era engendrar o que denominou
como “núcleo de identidade de gênero”, e que foi alvo de crítica de Lacan no Seminário 18. A
proposição stolleriana foi o ponto de partida para o desenvolvimento lacaniano da noção de
semblante e acompanhamos que, se uma modalidade de relação pode ser inferida a partir dela,
posteriormente Lacan vai se dedicar à formalização da não relação sexual.

Palavras-chave: Stoller, Psicanálise, Identidade de gênero, Semblante, Não relação.

Robert Jesse Stoller (1924-1991) foi um psi- investigar como se dava a constituição das
canalista e psiquiatra norte-americano de identidades sexuais e a expressão dos dife-
grande impacto, cujas teses ressoam até hoje rentes papéis de gênero em outras culturas.
muito além de seu país. Atuou como profes- Stoller dialogava tanto com o meio médi-
sor de psiquiatria da Universidade da Ca- co quanto com meio psicanalítico, preferen-
lifórnia de Los Angeles (UCLA), fundou a cialmente a escola kleiniana e a psicologia do
Gender Identity Research Clinic-UCLA e era ego, na qual Hartmann era um interlocutor
filiado à Los Angeles Psychoanalytic Society. privilegiado. É vasta a quantidade de traba-
Num primeiro momento, nos anos 1950, lhos em medicina aos quais se refere, princi-
ele partiu do estudo dos casos de intersexo; palmente os de John Money, de quem Stoller
depois se dedicou a transexuais e sujeitos esteve perto na Johns Hopkins University em
perversos, notadamente nas décadas de 1960 Baltimore.
e 1970; enfim, em torno dos anos 1980, ao Nesse universo, em que as pesquisas cien-
estudo da pornografia e da dinâmica da exci- tíficas são marcadas por métodos quantita-
tação sexual. Além da clínica e da pesquisa, tivos baseadas em evidências e regidas pelo
voltava-se a estudos antropológicos, visando positivismo, Stoller teve a coragem de estu-
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dar o que considerava “patologias do gênero o primeiro a abordar esse assunto em psi-
sexual” adotando referenciais psicanalíticos canálise recorrendo ao termo “gênero” em
como parte do seu modo de pesquisa e da 1968. Para Stoller, faltava ao freudismo uma
análise de resultados. categoria que permitisse diferenciar radical-
Sua teoria sobre a transexualidade, inova- mente o sexo, como determinação orgânica
dora e muito contestada, serviu como ponto do homem e da mulher, do sentimento so-
de partida para a sistematização do pensa- cial de identidade, o “sexo social” masculino
mento de autores de destaque da psicanálise ou feminino, a ser contemplado por “gênero”
lacaniana concernente a esse quadro, entre (Roudinesco; Plon, 1998, p. 291-292).
eles, Catherine Millot, Moustapha Safouan, Cabe esclarecer que, em Stoller, sexo se
Henry Frignet e Marcel Czermak. Ademais, refere a estados biológicos: genética, carac-
foram justamente Money e Stoller que trou- teres primários e secundários do sexo, apa-
xeram o termo “gênero” para dentro dos estu- rato anatomofisiológico, endócrino e cere-
dos sobre a sexualidade, absorvido pelas ciên- bral; gênero diz respeito a um conjunto de
cias sociais norte-americanas nos anos 1970. fenômenos como sentimentos, pensamen-
A renovada e controversa teoria que Stol- tos, comportamentos e fantasias relaciona-
ler desenvolveu sobre identidade de gênero dos à masculinidade e à feminilidade, e não
também incidiu nas pesquisas de autores da apresentam nenhuma ancoragem biológica
psicanálise como Omo Ralph Greenson,1 – é consolidado culturalmente, adquirido
Margareth Mahler, Richar Green, J. Chas- na vida pós-natal. Sexo e gênero não andam
seguet Smirgel e Emilce Bleichmar. Além necessariamente lado a lado; um pode se de-
disso, foi alvo da crítica de teóricas dos es- senvolver a despeito do outro.
tudos de gênero do porte de Butler e, no Stoller também é conhecido pela releitura
meio psicanalítico, do próprio Lacan – por e pelas inversões que propôs à teoria freudia-
sinal, suas elaborações teóricas a respeito do na. Enquanto Freud privilegiava o investi-
núcleo da identidade de gênero, pensamos, mento sexual primário como decisivo para a
foram o contraponto lacaniano para que se posição sexual primária (investimento hete-
compusesse a noção de ‘semblante sexual’ do rossexual do menino e homossexual da me-
Seminário 18. nina, os dois tomando a mãe como primeiro
Toda dedicação a casos que intitula como objeto sexual), Stoller valorizava a posição
“distúrbios de gênero” tem, no fundo (e isso identificatória inicial, ambos assumindo-a
Stoller confessa em vários momentos), como como primeiro objeto de identificação (Fer-
razão principal descobrir o desenvolvimento raz, 2001, p. 123).
da masculinidade e da feminilidade em ge- Seria o menino, e não a menina, que teria
ral – a anormalidade esclareceria a norma- de enfrentar o caminho mais tortuoso com
lidade, em seus termos. Stoller desconfiava, vias de consolidar sua identidade como ho-
assim como Money, da unanimidade das raí- mem – ao contrário de Freud, para quem a
zes biológicas da identidade de gênero, indo menina padeceria mais. Para Stoller, a femi-
contra a vigorosa corrente organicista da psi- nilidade, e não a masculinidade, é primária.
quiatria da época. O complexo de Édipo não seria o único nem
Apesar de Freud já em muitos textos ter mesmo o mais importante processo pelo qual
se dedicado ao tema da identidade sexual e se daria a constituição da identidade sexual.
suas condições de constituição, Stoller foi Faziam parte do seu método de investi-
gação a observação naturalista, a avaliação
1. Stoller cita tal pesquisador em Sex and gender (1968). A e o tratamento psicológico de pessoas com
tese de “desidentificação da mãe”, defendida por Greenson
como processo necessário ao direcionamento do filho à distúrbios de gênero, assim como o acom-
masculinidade, é especialmente cara a Stoller. panhamento de suas famílias durante anos.

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Stoller acreditava que distúrbios de gênero contudo a genitália externa era masculiniza-
poderiam ser evitados se detectados preco- da. Ao nascimento, uma delas foi designada
cemente, no caso de crianças que apresentas- como menina e a outra, como menino. Por
sem seus traços rudimentares. Para entender volta dos cinco anos, a primeira acreditou
as origens da masculinidade e da feminilida- ser uma menina: dizia sentir-se como tal e
de, Stoller pregava que se deveria recorrer à não levantava questões sobre isso. Da mesma
teoria psicanalítica, às teorias de aprendiza- forma a segunda, com relação a ser um me-
gem e à biologia. Cada uma dessas áreas, se nino. Concluíram daí que o que determinou
tomadas isoladamente, levaria a explicações o gênero não foi o sexo biológico, mas expe-
equivocadas. riências pós-natais, um complexo processo
De partida, estava focado em quadros pelo qual a sociedade rotula um ser como
clínicos nos quais as questões biológicas in- homem ou mulher (Stoller, [1968] 1984, p.
fluenciavam os comportamentos de gênero 5). Apesar de tal evidência, Stoller questiona
e a aparência anatômica do sexo. Segundo se, em todos os casos, a atribuição do sexo é
Stoller ([1968]1984, p. 3), Freud nunca teria um fator a prevalecer sobre outros na defini-
abandonado a ideia de que, em muitos ca- ção da identidade de gênero.
sos, forças biológicas influem na determi- Ao contrário daqueles pesquisadores,
nação da masculinidade e da feminilidade, Stoller sustenta que forças biológicas não
apesar das expectativas sociais e do papel da só interferem como também são, em alguns
nomeação. O fator biológico é que prepon- casos, decisivas para a construção da forma-
deraria nos casos de sujeitos intersexo e por- ção identitária. Essa hipótese surgiu a partir
tadores de síndromes genéticas, como as de do trabalho com uma paciente que tinha
Klinefelter e Turner. aparência anatômica feminina normal ao
Como fruto de dez anos de estudo e tra- nascimento e foi criada como uma menina
balho dedicados a 85 pacientes que apresen- pelos pais, mas que expressava já na infân-
tavam distúrbios de gênero e 63 membros de cia tantos comportamentos masculinos que
suas famílias, Stoller publica em 1968 a obra chegou a ponto de ser diagnosticada como
Sex and gender, em que aborda temas refe- portadora de distúrbio de identidade de gê-
rentes ao desenvolvimento, à manutenção e nero. Na puberdade, seu corpo se virilizou e
à manifestação da masculinidade e da femi- passou a viver como um homem. Submetida
nilidade; a certas síndromes genéticas e ao a testes, averiguou-se que a paciente apresen-
tratamento de distúrbios de gênero, além de tava um déficit na produção da enzima res-
defender teoricamente a relevância do perío- ponsável pela metabolização de testosterona
do pré-edípico. Mesmo com a “força bioló- – daí Stoller ter concluído que não é possível
gica” em jogo, Stoller estava particularmente afirmar que o gênero imputado e sob o qual
atento à hipótese – já levantada por Money a criança foi tratada tem sempre primazia so-
e os Hampson ainda nos anos 1950 – de que bre os fatores anatomofisiológicos ou forças
o comportamento ligado ao gênero é predo- biológicas.
minantemente marcado pela designação do Como forma de ilustração, passemos
sexo do sujeito e outros fatores ambientais. ao relato de um desses casos (Stoller,
Tal tese provém das constatações oriun- 1968/1984):
das do estudo clássico desses dois pesqui-
sadores: duas crianças manifestavam certa A criança foi anatomicamente reconhecida
síndrome genética que interferia nos andró- e designada como menina ao nascimento.
genos. Ambas eram genética e endocrino- Contudo, comia muito rapidamente como
logicamente mulheres e possuíam estrutura um glutão; só brincava e participava de jogos
interna também típica do sexo feminino, de meninos, nos quais sempre assumia papéis

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masculinos; era agressiva e destrutiva, sua harmonia para produzir a masculinidade em


mãe não conseguia ser próxima dela; vestia- homens e a feminilidade em mulheres.
-se com roupas de homem e só requisitava Todavia, não é sempre assim. E Stoller
a companhia deles. Apesar dos esforços da ([1968] 1984, p. 19) divaga que em algumas
família para que se comportasse como uma pessoas as forças biológicas são mais poten-
menina, tudo falhou. Queria, inclusive, ser tes do que em outras e sobrepujam os fato-
vista como um menino. Na adolescência, res ambientais. Mas, de toda forma, não era
passou por exames médicos e se verificou a descoberta de qual seria o fator universal
que era um menino cromossomicamente mais vigoroso nesse processo o que o guiava.
normal. Apesar da genitália externa se asse- Stoller estava voltado à pesquisa do que de-
melhar à de uma menina, no fundo era um nominou “núcleo de identidade de gênero”,
pequeno pênis do tamanho de um clitóris. elemento a ser constituído por fatores hete-
Também portava hipospadia, criptorquidia rogêneos. No caso dos sujeitos transexuais,
bilateral, escroto bífido e próstata normal. a constituição do núcleo da identidade do
Na adolescência dizia se sentir atraído se- gênero se daria exclusivamente por fatores
xualmente por mulheres e que era em torno psicológicos e é a essa tese que Stoller dedica
delas que giravam suas fantasias sexuais. Ti- sua pesquisa no fim dos anos 1960.
nha prazeres, preocupações, atitudes e ma-
neirismo típicos de um rapaz. Núcleo de identidade de gênero
Stoller ([1968] 1984) sustenta que o esperado
Stoller salienta que não é que a criança é que, por volta dos dois anos, desenvolva-se
tivesse mudado sua identidade de menina o senso de pertencer a um sexo: a consciência
para menino, mas que sua identidade sem- que permite que afirmemos, para nós mes-
pre foi masculina. Consta na descrição do mos “Eu sou homem” ou “Eu sou mulher”. É
caso que, antes de ser aceito como homem, importante frisar que isso é diferente do sen-
reagia neuroticamente às pressões do am- so de masculinidade ou feminilidade. Este
biente – seus sintomas teriam cessado após a diz respeito ao que se aprende sobre como
autenticação familiar de que se estava diante homens e mulheres agem, é marcado pelas
de um menino. A partir de então, passou a expectativas transmitidas pelos pais sobre
atuar de forma “edipicamente” comum (mãe como devemos nos comportar, é um atribu-
tomada como objeto de amor e pai como ri- to cultural. Já a constatação “Eu sou homem”
val). Stoller conclui desse caso que a tentativa ou “Eu sou mulher” é instituída biológica e
de criar o filho como uma menina, e mesmo psicologicamente, e começa antes do “Eu sou
o fato de ele possuir uma genitália de apa- masculino” ou “Eu sou feminino”.
rência feminina, não foram suficientes para Notamos tal anterioridade quando verifi-
o desenvolvimento da feminilidade – um camos certa dinâmica presente nos travestis
impulso mais poderoso conduziu a criança fetichistas, tal como Stoller denomina, que
rumo à masculinidade. podem se vestir, se comportar, se enfeitar
Contudo, Stoller confessava não saber como mulheres, contudo não asseveram ser,
como tais fatores orgânicos atuavam. Talvez de fato, mulheres – seus “núcleos de identi-
essa tendência biológica em direção à mas- dade de gênero” (Stoller, [1968] 1984, p. 2)
culinidade e à feminilidade trabalhasse em são masculinos.
silêncio no feto, e espera-se que, na maioria Os comportamentos de gênero podem
dos casos, elas sejam suplantadas pelos fato- mudar ao longo do tempo e dependem da
res ambientais. Tal como Money e os Hamp- cultura, mas a convicção de que se é homem
son preconizavam, os fatores biológico e am- ou mulher, não. Cabe salientar que identida-
biental se manifestariam mais ou menos em de de gênero nuclear não delibera papéis ou

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relações objetais, ou seja, não decreta com- menta em detrimento do dos outros, desvios
portamentos de gênero, escolha de objeto e de gênero podem ser provocados. Em tese, os
práticas sexuais (Stoller, 1993, p. 29). dois primeiros seriam mais ‘possantes’; po-
A formação identitária, o “núcleo da rém, há casos que contradizem tal hipótese.
identidade de gênero”, é válida tanto para Somente em um ponto Stoller é enfático: em-
meninos quanto para meninas; e, uma vez bora a presença do órgão genital participe da
composta, é praticamente imutável. Sua ins- constituição de tal núcleo, ela não é essencial.
tauração se daria a partir de três coeficientes: Stoller cita o caso de dois meninos que
o primeiro diz respeito à relação pais e filho. nasceram sem pênis e tinham desenvolvido
Trata-se de atitudes, expectativas, gratifica- o núcleo de identidade de gênero masculi-
ções, frustrações que os pais e parentes en- no. Apresentavam maneirismos e interesses
viam à criança. Também faz parte desse pri- tipicamente masculinos. Esses dois meninos,
meiro fator a designação (ou assignação) dos quando hospitalizados, inventaram substitu-
pais de que seu filho é homem ou mulher, a tos para seus pênis com os mesmos signifi-
partir da visão de sua genitália externa. cados de agressividade e intrusão que se cos-
O segundo diz respeito à percepção e tuma atribuir a eles – o primeiro colecionava
às sensações que o órgão sexual fornece à garrafas; o segundo, facas.
criança — tal percepção contribui para a Apesar de Stoller não arriscar uma hi-
formação do ego corporal. Stoller também pótese sobre a causa determinante em jogo
inclui nesse segundo fator o processo de im- no ato dessas crianças, aqui se mostra que,
printing, tal como se manifesta nas experiên- quando o menino sabe que ele é um homem,
cias dos gansos de Lorenz. Daí ele considera se não for dotado de um pênis, ele tenderá a
que humanos respondem sexualmente a hu- instituir para si um objeto que funcione sim-
manos, não (ou nem tanto, em alguns casos) bolicamente da mesma forma que tal órgão
a outros animais ou objetos, em parte por sexual – o caráter expedido ao pênis pode se
causa de uma ainda obscura ação do sistema materializar em outro elemento. O núcleo da
nervoso central que é produzida ou impressa identidade de gênero se constitui indepen-
pela mãe, dada sua qualidade de ser humana dentemente da genitália em si.
e mulher (Stoller, [1968]1984, p. 10). Ao lado dessas proposições, Stoller arris-
No livro escrito sete anos depois, Sex and ca outra, tão insistentemente enfocada ao
gender II (1975) e no Brasil intitulado A expe- longo de sua obra: o núcleo de identidade de
riência transexual (1982), Stoller soma àque- gênero é fixado antes da fase fálica.
le ainda outro processo, retirado do behavio- Enquanto o processo de desenvolvimento
rismo, no caso, o que denominou “reforço”’, da identidade de gênero vai até a adolescên-
“modelagem” ou “condicionamento”: alguns cia, o núcleo de identidade de gênero se es-
comportamentos de gênero são encorajados tabelece precocemente. Stoller nunca descar-
pelo meio, enquanto outros são desvaloriza- tou a concepção clássica de que a ansiedade
dos. Dessa maneira, ao lado dos fatores psi- de castração e a inveja do pênis sejam agen-
cológico e biológico, há um outro, designado tes fundamentais para a construção da iden-
por Stoller como “biopsíquico” (imprinting e tidade de gênero; contudo, antes da ocorrên-
condicionamento), que também se faria pre- cia desses efeitos, segundo ele, o núcleo de
sente. Já o terceiro ponto contempla as forças identidade de gênero já estaria formatado
biológicas atuantes. (Stoller, [1968] 1984, p. 2).
Stoller admite que tem dificuldade em sa- Nesse sentido, Stoller contesta a teoria
ber o peso de cada um desses fatores para a freudiana. Além do mais, ele se diz espantado
formação da identidade de gênero nuclear, com o fato de como um observador do gaba-
mas aponta que, se o peso de um deles au- rito de Freud pôde acreditar que o desenvol-

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vimento da masculinidade e da feminilidade to no decréscimo da qualidade de ser ho-


é o mesmo nos meninos e nas meninas até a mem. Por fim, seus pais vêm ao seu auxílio
fase fálica, até que “fatores biológicos” fizes- para solucionar essa trama e transferir seu
sem com que elas tomassem outro caminho.2 investimento libidinal da mãe para outras
Passemos, então, ao debate Stoller-Freud mulheres; e seu pai lhe serve de modelo de
e, em seguida, à fração do pensamento stol- identificação. Então, podemos ver aqui que
leriano, que abarca os motivos psíquicos que a masculinidade e a heterossexualidade são
operam na identidade de gênero. Para essa essenciais e tomadas como dados a priori.
empreitada, recorre-se à transexualidade. Já a menina, ainda acompanhando a lei-
Na leitura de Stoller, Freud tomava a bis- tura stolleriana de Freud, se depararia com
sexualidade como um dado inato e univer- mais problemas: seus genitais são desprovi-
sal. Seria como uma condição constitucional dos de valor, o que culmina na inveja do pê-
de todo ser humano, cujas raízes são bioló- nis; seu objeto de amor original é homosse-
gicas e psicológicas, que influenciaria tanto xual; sua feminilidade deve ser conquistada,3
a escolha de objeto quanto o grau de mascu- não é um atributo dado de início e teria de
linidade e feminilidade – as pessoas seriam haver uma alteração quanto ao órgão sexual
um misto dessas duas tendências. a ser priorizado. Na melhor das hipóteses –
Stoller discorda: não existiriam raízes bio- quando a inveja não é excessiva, não se fixa
lógicas a determinar a bissexualidade; além a uma desesperança passiva e masoquista
do mais, para ele, as pessoas podem apresen- nem porta a fantasia de obter um pênis ou
tar uma mescla de masculinidade e feminili- alçar o clitóris ao papel de substituto dele –,
dade, mas nunca uma mistura da qualidade a menina adentra na feminilidade. Daqui em
de ser homem e da qualidade de ser mulher diante, ela assume o pai como seu novo obje-
– estas últimas duas referentes ao núcleo da to de amor (ou seja, há um esforço para ir da
identidade de gênero. homo para a heterossexualidade), o clitóris
Outra crítica que Stoller endereça a Freud é deslocado pela vagina como seu principal
é que ele tomaria a qualidade de ser homem e órgão de investimento libidinal e, finalmen-
a masculinidade como um estado primário – te, identifica-se com a mãe. Mesmo assim,
ser mulher e a feminilidade desfrutariam de seriam poucas as meninas que teriam o pri-
status inferior. Além do mais, a menina teria vilégio de chegar a esse final feliz no seu pro-
uma trilha mais custosa a percorrer para a cesso edípico. De toda forma, a feminilidade
constituição de sua identidade sexual do que o é um estado secundário, e o drama edípico é
menino. Contra tudo isso, Stoller propõe que mais brandamente solucionado pelo menino
a bissexualidade não seja nem original, nem do que pela menina.
biológica; que a masculinidade não seja pri- Para dar corpo a seu argumento, Stoller
mária e que o percurso edípico talvez não atue ([1968] 1984, cap. 6) se mune do trabalho
como o processo mais relevante para a cons- de outros teóricos, dizendo-se acompanha-
tituição da identidade sexual. Vejamos como. do de Horney, Jones e Zilboorg. As críticas
Para Stoller, na vertente masculina do a Freud se sustentam basicamente nas suas
Édipo freudiano, o menino, na medida em considerações de que, num primeiro mo-
que deseja a mãe, toma o pai como rival e se mento, não existiria diferença psicossexual
vê ameaçado pela perda de seu órgão geni- entre meninos e meninas. Jones, a esse res-
tal – angústia essa alimentada pela visão dos peito, recusa o postulado freudiano de que
órgãos genitais femininos. A ameaça de cas- o fator comum para meninos e meninas na
tração incide tanto na perda do órgão quan- fase fálica é a crença de que só existiria um

2. Cf. FREUD, (1931) 2010, p. 216-217. 3. Cf. FREUD, (1925) 2011, p. 262-263.

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órgão sexual, o masculino. Horney reprocha na. A peculiaridade do vínculo inicial com a
duramente a ideia de que as mulheres são mãe induz a menina à feminilidade, facilita
descontentes com a atribuição de seu sexo e a formação de sua identidade como mulher.
que só sob certas circunstâncias superam tal Só que o mesmo não se dá para o menino.
“aborrecimento”. Jones aponta que a impor- Então, é ele quem tem que se empenhar mais
tância dos órgãos genitais femininos sempre para a constituição de sua identidade de gê-
foi subestimada pela tradição psicanalítica nero masculina. Ele deve se encontrar sufi-
falocêntrica. Stoller lança dúvidas a respeito cientemente apartado da mãe para entrar
da ideia de que o clitóris seja como um pe- no Édipo, acessar a heterossexualidade e a
queno pênis, masculino e mais ativo que a masculinidade, vencendo aquele estado fe-
vagina. Além do mais, aposta que o senso de minilizante inicial. A masculinidade é uma
ser mulher e se sentir feminina não está atre- conquista, não é uma disposição natural a
lado à genitália. Assim, tais autores aos quais ser mantida.
Stoller recorre também propõem revisões à Por sinal, a hipótese stolleriana de que a
teoria freudiana e advogam que formações condição de homem é algo a ser adquirido
como inveja do pênis e o ódio aos homens seria corroborada por estudos antropológi-
seriam posteriores – a feminilidade seria pri- cos analisados por ele, como os realizados
mária e só a saída da womanhood criaria as junto à tribo dos Sâmbia, da Nova Guiné.
condições indispensáveis para que uma mu- Um dos ritos aos quais os meninos devem se
lher reconhecesse e se confrontasse com a submeter para se tornarem masculinos é in-
diferença masculina. gerir o sêmen de homens solteiros, via fela-
Ao lado dessas contestações, o embate for- ção (Stoller, 1993, p. 250-251), assim como
te que Stoller trava com a psicanálise clássica evitar o contato com as mulheres na infância
se dá a partir da consideração de que Freud e na adolescência. Ou seja, tornar-se homem
não teria dado a devida importância ao pe- exige um longo trabalho de dedicação.
ríodo pré-edípico. Segundo Stoller, seu con- A teoria stolleriana tem o mérito de inter-
ceito de identidade de gênero nuclear modi- pelar concepções da psicanálise tradicional
fica a teoria freudiana. Haveria um estágio que sustentam o julgamento de que as mu-
anterior ao Édipo, momento em que o me- lheres são inferiores aos homens. Stoller é
nino estaria “fundido com a mãe” (Stoller, contra o falocentrismo,; contra a centralida-
1993, p. 35). Mãe e filho ainda não seriam de da inveja do pênis na sexualidade femini-
objetos separados, e este se sentiria como na, contra a tese de que o clitóris é uma ver-
uma parte do corpo dela, o que o conforma- são menor do pênis, contra as proposições
ria à feminilidade. Caso esse estado não seja de que o acesso à feminilidade é mais duro e
superado, corre-se o risco de ser implantada raro para mulheres do que a masculinidade
na sua identidade de gênero nuclear a quali- para os homens e de que, como resultado da
dade ou senso de ser mulher. A não separa- diferença anatômica entre os sexos, as mu-
ção da mãe provoca distúrbios de gênero, e lheres possuem um senso ético diferente do
a transexualidade é seu caso mais extremo. dos homens como fruto de seus superegos
Essa teoria da protofeminilidade4 trans- ou senso de justiça mancos;5 e, por fim, aves-
porta a “vantagem” do menino para a meni- so às suposições de que a feminilidade é algo
depreciativo para elas e queficam decepcio-
4. Em contexto biológico, Stoller (1982, p. 14) afirma que é nadas quando constatam que não vão ter um
preciso que o cérebro fetal seja organizado pelo andrógeno pênis.
para que se produza um corpo masculino e o fundamento
da masculinidade – nesse sentido, o pênis seria como um
clitóris masculinizado; o cérebro masculino, um cérebro fe-
minino androgenizado. 5. Cf. Freud, (1925) 2011, p. 267-268.

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Stoller e a psicanálise: da identidade de gênero ao semblante lacaniano

Depois de se aplicar ao estudo de casos de conhecimento do seu sexo e ao mesmo tem-


intersexo em sua pesquisa sobre as condições po, relata ter a convicção ou sentimento de
de desenvolvimento da masculinidade e da que pertence ao gênero oposto ao que o seu
feminilidade e ter comprovado a influência corpo indica. Um transexual masculino, por
de aspectos biológicos nesse processo, Stoller exemplo, é biologicamente um homem; po-
vai para o outro lado e passa a se interessar rém, afirma que sua identidade de gênero é
mais, notadamente nos anos 1960, pelo pa- feminina.
pel dos fatores ambientais ou pós-natais na Vale esclarecer que com o termo “tran-
constituição da identidade de gênero. sexual masculino”, Stoller se referia a um
Para tanto, foca sua pesquisa na transe- sujeito cujo corpo de nascença era biologi-
xualidade. O motivo para tal escolha é que camente masculino e cuja identidade sexual
se trataria de um quadro clínico de forma- era feminina, ou seja, Stoller pautava-se
ção identitária não decidido por forças bio- pelos caracteres anatomofisiológicos para
lógicas. Transexuais seriam sujeitos que não a sistematização dos termos transexuais
apresentariam disfunções anatomofisiológi- masculinos ou femininos. Hoje em dia, a
cas, endócrinas ou genéticas que levariam a tendência é oposta: a primazia é do gêne-
um distúrbio de gênero. Ou seja, um quadro ro. Então, o termo “mulher transexual”, por
clínico que escancararia a determinação de exemplo, indica um sujeito cujo sexo de
fontes ambientais ou pós-natais para a cons- nascimento é masculino e manifesta o gê-
tituição identitária sexual. nero sexual feminino. Para evitar maiores
Ademais, segundo Stoller, a transexuali- confusões de leitura, optamos seguir a ter-
dade contesta as sentenças consolidadas da minologia do autor em destaque.
psicanálise de que a ansiedade de castração Após muitos atendimentos com transe-
e o complexo de Édipo – ou seja, processos xuais e seus parentes, Stoller detecta certo
relacionados ao tema do conflito – são os padrão nas dinâmicas familiares em que um
estandartes do estabelecimento da masculi- filho é transexual,6 no qual uma rara coin-
nidade e da feminilidade. Stoller se pauta na cidência de fatores ocorre: a mãe é cronica-
hipótese de que um processo não conflitivo mente deprimida, apresenta intensa inveja
– segundo ele, não contemplado por Freud do pênis e desejo apenas parcialmente supri-
– é que seria resolutivo para a formação do mido de ser homem; o pai é distante, física
núcleo da identidade de gênero. e psicologicamente, e passivo; subsiste entre
Stoller acreditava que existiria um contí- mãe e filho uma simbiose feliz, vínculo mais
nuo entre os distúrbios de gênero: uma das intenso do que o que se costuma observar na
extremidades seria a transexualidade. En- maternagem comum – o contato físico é ex-
quanto perversão de identidade de gênero, cessivo e se firma um prolongado laço sem
travestismo fetichista – nos seus termos – e hostilidade ou frustrações, não movido por
homossexualidade decorrem de conflitos e desejo sexual, mas identificação (eles são
defesas, a transexualidade, não: “[...] vejo o praticamente um, o filho é o falo da mãe e
transexualismo como uma identidade per se” suaviza a depressão dela); o pai não o rompe,
(Stoller, 1982, p. 2). pelo contrário, chega a encorajá-lo; esse filho
O sujeito transexual, na ótica stolleriana, é escolhido para ser enredado nessa simbiose
não distorce a percepção do seu corpo, tem por apresentar uma beleza fascinante. Con-
sequentemente, o menino não entra no Édi-
6. Segundo Stoller (1982, p. 223), há diferenças clínicas con- po, não toma seu pai como rival e sua mãe
tundentes entre as versões masculina e feminina da tran- como objeto de desejo, ficando preso à femi-
sexualidade. Ao “transexualismo feminino”, segundo ele,
mais raro, Stoller se dedicou menos – dai a moderação em nilidade primária – a masculinidade não se
sustentar uma tese mais decidida. desenvolve. Pode-se dizer, então, que o sen-

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Rafael Kalaf Cossi

so de ser mulher do transexual masculino se menino expressa sua masculinidade (Stol-


deu livre de conflitos ou traumas. ler, 1982, p. 159). Nesses dois quadros, o
Usando expressões comuns às de Winni- núcleo de identidade de gênero é masculino
cott, como “mães suficientemente boas”, Stol- e tende a ser preservado. Na transexualidade
ler aponta que “mães boas demais”, e não só masculina, não.
as que não são suficientemente boas, causam De toda forma, Stoller conclui que, em
problemas aos filhos. Mães superpoderosas geral, quanto mais intensa e prolongada é a
e superprotetoras são comuns nas dinâmicas simbiose inicial mãe-bebê, mais feminino o
familiares de filhos homossexuais. menino será. Um pai forte e masculino deve
No caso dos transexuais, aquela longa impedir o prolongamento daquele laço e se-
“simbiose feliz” traz como consequência um parar o menino do corpo e da psique da mãe,
ajudando-o a desenvolver a identidade mas-
[...] distúrbio profundo no ego corporal da culina. Desligado da mãe, o filho a reconhece
criança, pelo que ele se sente como sendo, de como um ser do outro sexo, pode passar a
alguma forma, mulher, apesar de ter conheci- desejá-la e se defrontar com o conflito edí-
mento de que é um homem (Stoller, 1982, pico. No caso das meninas, a simbiose mãe-
p. 54). filha não deve ser fendida rapidamente: ela
deve ser alimentada, já que promove a fe-
E mais adiante finaliza seu diagnóstico: minilidade. Sem tais procedimentos, não há
desenvolvimento da masculinidade nem da
[...] essas mães não danificam o desenvolvi- feminilidade (Stoller, 1993, p. 90).
mento das funções do ego em geral, ou mes- Mas existe outro ponto: para o rompi-
mo do ego corporal, exceto em relação a esse mento dessa simbiose, há também que levar
senso de feminilidade (Stoller, 1982, p. 55). em conta a contribuição do menino: Stoller
presumia que haveria forças biológicas (sé-
Ao contrário do que se poderia esperar, ries complementares de Freud) que os com-
transexuais masculinos, segundo Stoller, não peliriam, mais em alguns meninos do que
são meninas edipianas: não são românticas, em outros, a escapar da simbiose e superar
sedutoras do pai, não assumem a mãe como a protofeminilidade. O menino construiria
rival e como futura fonte de identificação. barreiras intrapsíquicas contra seu próprio
O menino transexual teria como principal desejo de se manter fundido à mãe. A insti-
ocupação compor uma aparência feminina tuição desses bloqueios provém de compo-
(Stoller, 1982, p. 96). nentes biológicos, habilidades aprendidas e
Stoller também mostra que diferentes ti- prazer em tomar a via da masculinidade, que
pos de laços simbióticos estão na base das anda ao lado do encorajamento do meio ao
diferenças etiológicas entre o transexual menino tomar tal partido, incentivando-o a
masculino, o travesti fetichista e homosse- não só desenvolver, mas também a preservar
xual masculino. Nos travestismos há não a a masculinidade. O menino criaria um escu-
intensidade da simbiose transexual, mas um do protetor contra a “ansiedade de simbiose”
progressivo distanciamento da mãe e desen- (Stoller, 1993, p. 243).
volvimento da masculinidade do filho; con- O grau de feminilidade que se planteia em
tudo, esse processo é combatido por uma um menino depende também de outros pon-
mulher (vestindo-o com roupas femininas, tos da dinâmica familiar a que ele foi subme-
por exemplo), com a finalidade de dificultar tido na infância, de características da mãe e
a aquisição do senso de masculinidade. Já na do pai e da relação mantida entre eles. Stoller
homossexualidade masculina há um misto parece operar com variações sobre o mesmo
de excessiva gratificação e punição quando o tema. Critérios análogos aos observados nas

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Stoller e a psicanálise: da identidade de gênero ao semblante lacaniano

famílias de filhos transexuais servem de refe- formado sobre o senso de virilidade, conflito
rência geral. Em menor grau de intensidade de que as mulheres não padeceriam – o nú-
ou com um colorido diferente, supostamen- cleo de identidade de gênero masculino não
te eles causariam distúrbios de gênero menos é tão inalterável como Stoller acreditou ini-
graves que a transexualidade. Por exemplo, cialmente (Stoller, 1982, p. 297).
se a mãe ama o pai. se a simbiose não é tão E afirma:
veemente. se os comportamentos femininos
do filho não são tão apreciados. se a mãe é O senso de virilidade e o desenvolvimento
feminina em alguns aspectos. se o menino é posterior, masculinidade, são um pouco me-
bonito mas não lindo. se o pai não está tão nos firmemente estabelecidos em homens do
ausente assim, produziriam graus de femini- que o senso de feminidade e a feminilidade
lidade inferiores aos que se nota em sujeitos nas mulheres (Stoller, 1982, p. 299).
transexuais.
Outro elemento a ser destacado é que A simbiose da menina com a mãe fortale-
Stoller evita discutir sua teoria a partir do ce o senso de feminidade. Já para o menino,
kleinismo, pois, segundo ele, a literatura des- tal laço o torna vulnerável à “tentação” de
sa corrente psicanalítica não aborda o desen- retorno, e sua masculinidade pode ser posta
volvimento da masculinidade e da feminili- em perigo. Stoller levanta a hipótese de que
dade (Stoller, 1982, p. 36). Além do mais, talvez por isso homens sejam mais propen-
Klein se consagra especialmente às fantasias sos à perversão que as mulheres, o que o fez
do bebê; Stoller, por sua vez, julgava que não enveredar para a pesquisa desse quadro, das
existiria, nos primeiros meses de vida, apara- dinâmicas da excitação sexual e da pornogra-
to psíquico estabelecido a ponto de suportar fia, no que tange à identidade sexual. Grosso
uma intricada carga fantasística. Daí Stoller modo, no homem, a fuga para a pornografia,
recorrer a dispositivos como imprinting e in- a fetichização e a erotização do ódio contra
fluências condicionadoras, mais fisiológicas, mulheres seriam estratégias de defesa contra
que não exigem refinadas faculdades psíqui- a paixão do regresso à fusão inicial com a
cas. No princípio, a mãe invade o filho e, nesse mãe e sua consequente feminilização e perda
período inicial, o filho ainda não foi capaz de de masculinidade (Stoller, 1998, p. 48-49).
produzir um escudo fantasístico que funcio- Então, para Stoller, a constituição da iden-
naria como defesa (Stoller, 1982, p. 51-53). tidade de gênero e a incidência da diferença
Nessa relação simbiótica se trataria não sexual são explicadas por fatores relaciona-
de uma identificação clássica –que requer dos ao sexo biológico, ao papel da atribuição
recursos de fantasia e memória –, mas de de significados efetuada pelo outro – de que
um tipo de transmissão da feminilidade na se trata de um homem ou mulher –; por ex-
qual o filho a recebe passivamente, derivada pectativas do meio social, fenômenos etoló-
da excessiva imposição dos corpos, vivida de gicos ou de condicionamento; por formações
forma tão gratificante que nenhuma forma egoicas e imaginárias e pela qualidade do
de proteção precisaria ser erguida contra ela vínculo simbiótico feminilizante com a mãe.
(Stoller, 1982, p. 55). Stoller enfatiza a importância do período pré
No final de A experiência transexual, -edípico e, através de diversas manifestações
Stoller (1982) parece rever sua consideração da sexualidade, constrói sua tese a respeito
anterior de que as versões masculina e femi- do “núcleo da identidade de gênero”, posta
nina do núcleo de identidade de gênero têm em xeque por Lacan.
a mesma estrutura. Paira sobre o homem a No Seminário 18, Lacan se refere a Sex and
atração a regressar à primitiva e feminilizan- gender, de Stoller. Num primeiro momento,
te unidade com a mãe. Existe um conflito para criticar seu entendimento da transexua-

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Rafael Kalaf Cossi

lidade, depois para contestar a suposição de genética, não se fia ao modelo da reprodução
que existiria, de fato, um núcleo duro no que sexual nem se molda aos preceitos de rituais
compete à identidade de gênero. Nesse deba- ou instituições culturais – como o casamen-
te, Lacan recorre a “semblante”. to, por exemplo – também não é o ato de
nomeação (Você é uma menina! Você é um
Da identidade de gênero ao semblante menino!), conduta tangente à linguagem, o
Após criticar o “caráter inoperante do apa- que permite ao sujeito se assegurar como um
rato dialético” (Lacan, [1971] 2009, p. 30) homem ou mulher. A identificação sexual
utilizado por Stoller para explicar os casos de consiste não em se crer homem ou mulher,
seus pacientes transexuais – justamente por, tal como defendia Stoller, mas em levar em
para o psicanalista francês, ele ter negligen- conta que há meninas, no caso dos meninos,
ciado o mecanismo da foraclusão e a psico- e que existem meninos, para as meninas (La-
se latente de tais sujeitos –, discorre sobre a can, [1971] 2009, p. 33).
identidade de gênero stolleriana. Nesse sentido, o homem só se pode afir-
Para Lacan, o que só se tem é “parecer” mar como tal em relação à mulher, e vice-
homem ou mulher, semblante: versa – há que assentir a diferença e que um
só existe em relação ao outro. Os gêneros
O importante é isso: a identidade de gênero não têm substância intrínseca a eles. E aqui
não é outra coisa senão o que acabo de ex- entra o semblante na sua dimensão sexuali-
pressar com estes termos, “homem” e “mu- zada: trata-se de “parecer-homem” ou “pare-
lher”. É claro que a questão do que surge pre- cer-mulher”. Esse braço discursivo e dialé-
cocemente só se coloca a partir de que, na tico do semblante sexual controverte a tese
idade adulta, é o próprio destino dos seres de que um gênero se constitui por si só, sem
falantes distribuírem-se entre homens e mu- o seu respectivo oposto e sem o reconheci-
lheres. Para compreendermos a ênfase depo- mento do outro sexo.
sitada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos Avançando na discussão, Soler (2005) de-
darmos conta de que o que define o homem clara que a diferença entre os sexos também
é sua relação com a mulher, e vice-versa. se faz notar no que compete ao semblante
Nada nos permite abstrair essas definições fálico,
do homem e da mulher da experiência fa-
lante completa, inclusive nas instituições em [...] um desfila como desejante, a outra como
que elas se expressam, a saber, no casamen- desejável [...]. De um lado, portanto, a exibi-
to. Para o menino, na idade adulta, trata-se ção ostentatória [...]. Do outro, a armadilha
de parecer-homem. É isso que constitui a disfarçada [...]. As maneiras variam, é claro,
relação com a outra parte. É à luz disso, que mas persiste a estrutura que sempre envolve
constitui uma relação fundamental, que cabe o ponto de falta do sujeito [...] (Soler, 2005,
interrogar tudo o que, no comportamento p. 32).
infantil, pode ser interpretado como orien-
tando-se para esse parecer-homem. Desse Na mascarada feminina, joga-se com se
parecer-homem, um dos correlatos essen- fazer desejar, moldar-se às condições de de-
ciais é dar sinal à menina de que se o é. Em sejo do homem – o que deseja, o que tem e
síntese, vemo-nos imediatamente colocados quer dar as provas de sua potência –, numa
na dimensão do semblante (Lacan, [1971] parada viril. A visão de Soler autoriza pensar
2009, p. 30-31). que semblante-homem e semblante-mulher
estariam em uma relação em que a comple-
Se a sexualidade humana não pode ser mentaridade seria possível. Contudo, a auto-
deduzida da anatomia, da fisiologia ou da ra despreza a verdade e o real em exercício

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Stoller e a psicanálise: da identidade de gênero ao semblante lacaniano

do lado ‘mulher’, que implementam a dissi- para o universo da diferença dos sexos. Ou
metria nesse nível. melhor, já anunciam uma não relação.
Se, nos anos 1950, Lacan concebia a di-
Para o homem, nessa relação, a mulher é ferença sexual em termos de ser o falo (mu-
precisamente a hora da verdade. No tocante lher) e ter o falo (homem), e no início desse
ao gozo sexual, a mulher está em condição Seminário 18 fala em parecer-homem e pa-
de pontuar a equivalência entre gozo e sem- recer-mulher – formulações que admitem
blante. É justamente nisso que jaz a distância conceber a pressuposição de uma relação en-
a que o homem se encontra dela. Se falei em tre os sexos –, agora, quando entramos com
hora da verdade, é por ser a ela que toda a a noção de semblante afetada pela verdade,
formação do homem é feita para responder, Lacan dá um passo que nos parece ser deci-
mantendo, contra tudo e contra todos, o sta- sivo e sem recuos, ao propor um tratamento
tus de seu semblante. É certamente mais fácil lógico para o tema que já vinha sendo abor-
para o homem enfrentar qualquer inimigo dado desde o Seminário 14 – não há ato se-
no plano da rivalidade do que enfrentar uma xual7 – sob o enunciado-veredito “a relação
mulher como suporte dessa verdade, supor- sexual não existe”, já no Seminário 18.
te do que existe de semblante na relação do Tal o percurso de Lacan: da fixidez e uni-
homem com a mulher (Lacan, [1971] 2009, lateralidade da identidade de gênero stol-
p. 33). leriana, ao ficcional e bífido semblante; da
relação presumida entre os sexos, ao decre-
Pode-se dizer, então, que a mulher de- to de sua impossibilidade, e que será alvo
nuncia para o homem que o gozo dele se vin- exaustivo de formalização em seus seminá-
cula ao semblante; indica que o semblante, rios subsequentes.
cuja edificação é fálica, acomete as relações
que estabelece – esse é o seu terreno familiar.
Tal cenário se desestabilizaria com a entrada
da mulher, representante do teste de verda-
de para ele – a verdade só pode ser semidita,
tem uma parcela de real, cuja infiltração, no
caso, é encarnada pela figura feminina. Ela
desequilibra os alicerces fálicos nos quais o
homem se escora. Daí ser mais fácil para ele,
segundo Lacan ([1971] 2009, p. 33), enfren-
tar um rival homem – e, nesse contexto, dar
provas de sua masculinidade via semblante
— do que encarar uma mulher e o desnuda-
mento do espaço que o semblante é incapaz
de recobrir.
Adiante, Lacan ([1971] 2009, p. 34) con-
tinua: “Ninguém, senão a mulher – porque é
nisso que ela é o Outro – sabe melhor o que é
disjuntivo no gozo e no semblante [...]”. ‘Ho-
mem’ é atrelado a semblante, campo fálico.
‘Mulher’ é pesada em sua relação com a ver-
dade, o que já nos parece ser um prenúncio
do gozo feminino. Semblante e verdade es- 7. “O segredo, o grande segredo da psicanálise, é que não há
tabelecem uma relação ao serem traduzidos ato sexual” (Lacan, 1966-1967, p. 140)

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Rafael Kalaf Cossi

Abstract LACAN, J. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma


In this paper, we initially examine Robert Stol- (1966-1967). Centro de Estudos Freudianos do Reci-
fe. Publicação não comercial.
ler’work, notably in his course by psychoa-
nalysis.  We have found that Stoller has LACAN, J. O seminário, livro 18: de um discurso que
spread throughout his work from the various não fosse semblante (1970-1971). Texto estabelecido
manifestations of sexuality to anthropologi- por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro.
cal studies.  As the pioneer of the use of the Rio de Janeiro: Zahar, 2009. (Campo Freudiano no
Brasil).
term gender in the psychoanalytic context,
Stoller proposed several modifications to the ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicaná-
freudian theory of the Oedipus.  His theses lise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
were widely disseminated on anglo-saxon
territory and exercised decisive influence on SOLER, C. (2005) O que Lacan dizia das mulheres.
Rio de Janeiro: Zahar.
exponents of English psychoanalysis.  Best
known in Brazil for his research on transse- STOLLER, R. J. Masculinidade e feminilidade: apre-
xuality, we proved that his insistent intent sentação de gênero. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
was to develop what he called “core gender
identity, which was criticized by Lacan in STOLLER, R. J. A experiência transexual. Rio de Ja-
neiro: Imago, 1982.
the seminar XVIII. The stollerian proposition
was the starting point for the lacanian deve- STOLLER, R. J. Observando a imaginação erótica. Rio
lopment of the notion of semblance and we de Janeiro: Imago, 1998.
follow that: if a modality of relation can be
inferred from it, in a second moment Lacan STOLLER, R. J. Sex and gender: the development of
masculinity and femininity (1968). Londres: Karnac
will apply to the formalization of the non se- Books, 1984.
xual relation.
Recebido em: 07/01/2018
Keywords: Stoller, Psychoanalysis, Gender Aprovado em: 10/02/2018
identity, Semblance, Non relation.
Sobre o autor

Referências Rafael Kalaf Cossi


Psicólogo (USP).
Psicanalista.
FERRAZ, F. C. A erotização do ódio na perversão Mestre e doutor em psicologia clínica
(2001). Resenha de STOLLER, R. J. Perversion: the pelo Departamento de Psicologia Clínica
erotic form of hatred (1986). Disponível em: <http:// da Universidade de São Paulo (USP).
revistapercurso.uol.com.br/pdfs/p26_leitura06.pdf>. Vinculado à Escola de Psicanálise
Acesso em: 10/03/ 2018. do Fórum do Campo Lacaniano (EPFCL-SP).
Membro do Laboratório de Teoria Social,
FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da di- Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP).
ferença anatômica entre os sexos (1925). O Eu e o Id, Autor dos livros Corpo em obra: contribuições
“Autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução para a clínica psicanalítica do transexualismo
de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das (nVersos, 2011) e Lacan e o feminismo:
Letras, 2011. p. 168-175. (Obras completas, 16). a diferença dos sexos (Annablume, 2018).

FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). In: ______. Endereço para correspondência


O mal-estar na civilização, novas conferências intro- E-mail: <rkcossi@hotmail.com>
dutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936).
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2010. p. 371-398. (Obras comple-
tas, 18).

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