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ROMANTISMO NO SECULO Xx Maria Licia Fernandes Guelfi* Para Ant6nio Candido, o mestre que me inspirou estas reflexdes. I saw the best minds of my generation destroyed by madness. (Allen Ginsberg) RESUMO Paralelo cuure poctas dos anos 60170 ¢ poctas do Romantismo, cujos tacos comuns se déo en contextos histdricos marcados pelas transfonnacoes pollti- cas, de valores ¢ das instimi¢des. A criacdo pottica reflete wm ser fragmenidrio, que busca a liberdade, usando a ante como anna de luta. Rebeldia que, cal un nove mal do século, volta-se por vezes a auto-desmuicéo. Tais elementos, pre- Seites nao 56 nos movimentas da Contracultura e poesia marginal, mas no comportamento, tomam as experitncias vitais mais marcames que a heranga antstica, an varies dos casos apontados. Unitermos: Romantisno; poesia social; arte engajada; contraculntra; Centro Popular de Cultura. Na década de 60 do século passado vamos epcontrar nosso Cas- tro Alves pondo aqueles versos sonoros e grandilogiicntes a servigo de uma causa humanitaria que até hoje nos comove: o Abolicionismo. Na década de 60 do século atual, os poetas ligados ao CPC (Centro Po- pular de Cultura) fazem poesia para conscientizar as massas de que ainda vivem em plena escraviddo, espoliadas pelas classes dominantes, tentando tev4-las a luta de libertagéo. Qual a semelhanga entre as duas geracGes? Suscitando o sonho de harmonia c igualdade, o Romantismo gcrou uma utopia social. Revoluciondrio por natureza, 0 pocia roman- * Prof de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Vigosa-MG. 124 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 tico pode ser definido como aquele que repudia as conveng6es sociais, as injusticas, tudo o que prejudique os direitos do individuo. Nem sem- pre, porém, ele encarna o papel de herdi, portador da elevada missio de transformar a sociedade. Nao raras vezes, esse poeta incorpora a rebeliao de forma destrutiva. Extravazando tudo 0 que estava repri- mido nos pores do inconsciente, encontra outra mancira de se livrar da opressdo da sociedade, levando o negativismo as ultimas conse- qiéncias. Essa tendéncia, conhecida por mai do século, levou muitos jovens a autodestruigao. No final da década de 50 ¢ infcio da seguinte, descrentes do ca- pitalismo e do socialismo, os jovens da Beat Generation pregavam nova safda: a contracultura. Drogas, filosofias orientais, rock eram 0s novos ingredientes da luta, armas "pacificas" para a destruigao da socie- dade capitalista. Mas esse novo surto de mal do século acabou na des- truigdo dos proprios jovens. Foram muitos os que empreenderam a mesma viagem sem volta ao mundo do vicio, da loucura ¢ do suicidio. O que tinham eles de romantico? Segundo Schlegel, mestre de todos os roménticos, foi o sentimen- to do-pecado que, levando ao ditaceramento interior, marcou o fim do Classicismo pagao € 0 inicio do Romantismo. A visio que o romantico tem do homem é de um ser cindido, fragmentado, dissociado. Daf o sentimento de inadequagao social ¢ o sentimento negativo de angustia € niilismo, bem como, do ponto de vista formal, a adogéo do" frag- mento". A fragmentacao do texto, depois de ter exercido fascinio entre 0s romanticos, volta a ser mania entre poetas ¢ narradores, na litera- tura experimental dos anos 70 no Brasil. Romantismo e revolugao Atmosfera revoluciondria, que cnvolveu todos os sctores da so- ciedade ocidental, o Romantismo ultrapassou a csfera da estética, po- dendo ser detectado também nas ciéncias e na vida econdmica, na re- ligio ¢ na politica. A mentalidade romantica, que tinha no pensa- mento de Jean-Jacques Rousscau um dos scus fundamentos, incitava a uma prdtica rebelde, modificando comportamentos ¢ criando lingua- gens. Como estilo de época, ¢ imposs{vel compreendcr o Romantismo sem situd-lo naqucle momento de construgéo da sociedade moderna, entre a Revolucao Francesa e a Revolugao Industrial, quando institui- gbes politicas tradicionais, como 0 absolutism, sofrem fortes abalos, cedendo terreno a novas aspiragées, permeadas todas clus por novas idcologias, como o nacionalismo, ¢ novas teorias acerca do Estado. Aos poucos todos os povos comegain a sonhar com o progresso social, No perfodo que se estende de 1770 a 1848, hd uma intensa agi- Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 125° tagdo revoluciondria, de formid4vel influéncia na historia das Am¢1 cas ¢ da Europa. A crista dessa onda foi a Revolugao Francesa, cujos programas, enfatizando idéias de liberdade e igualdade para os indivi- duos, levam a historia ocidental a caminhar num rumo socializante. Camadas marginalizadas da sociedade comegam a participar das deci- sdes polfticas ligadas ao seu destino. A Revolugdo Francesa nao aboliu a desigualdade entre os ho- mens, cada vez mais profunda na sociedade moldada pela Revolucdo Industrial, mas suscitou a preocupacdo em criar condigées para o sur- gimento de uma sociedade harmoniosa ¢ justa. Nessa época surgem muilas teorias precursoras do socialismo. Trata-se ainda de um socia- lismo bastante idealista, cheio de picdade pelos pobres, mesclando ética social com ética religiosa. De qualquer forma ¢ a primeira vez que, pelo menos na arte, os pobres s4o tratados com dignidade. Para as artes, a maior contribuigéo da Revolugdo Francesa foi a idéia de liberdade. Toda a arte moderna 6, até certo ponto, o resultado dessa luta roméntica pela liberdade. A autonomia estética e politica incentiva a busca de identidade pessoal e nacional. Daf os tragos mais salientes do Romantismo: 0 conceito de individuo € 0 senso da Hist6- ria. O cardter fenoménico do ser ¢ enfatizado j4 que a existéncia passa a ocupar o lugar privilegiado da esséncia. E o homem fica sendo o centro de si mesmo, do sentido do seu viver. O individualismo ¢ 0 relativismo se opdem radicalmente a tendéncia racionalista dos clds- sicos para o geral ¢ 0 absoluto. A quebra de estruturas repressivas, que sufocam a liberdade in- dividual, corresponde, na arte, a superagdo das regras ¢ padrOcs csté- ticos que davam a arte dos antigos gregos ¢ romanos uniformidade ¢ universalidade. Nao se trata mais de isolar a obra de arte, purificando-a e protegendo-a de contaminagées nao estéticas, mas, ao contrdrio, de mergulhd-la na torrente perturbadora das cxperi¢ncias vitais. Com o maximo de vibracdo, os artistas romdnticos procuram transpor suas experiéncias para a linguagem da arte, encurtando a0 maximo a distancia entre a emocdo vivida ¢ a construgdo da obra. Essa altitude envolve o artista rom4ntico numa série de clementos conflituo- sos, que acabaram por definir as caracteristicas desse novo estilo de viver e de fazer arte. Por outro lado, porém, levou os artistas 4 toma- rem consciéncia da sua participagdo numa realidade social. Até um Joaquim Manuel de Macedo, por exemplo, em meio a tanta banalidade, revela alguns momentos de profunda lucidez quando focaliza a realidade brasileira: “A miséria ¢ assinalada em Os Dois Amores com senso bastante agudo, que escapa ao sentimentalismo 126 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 habitual das suas paginas e apreende o sentido contradit6rio das rela- gOes entre pobre € rico," (1) Ramificagdo dos movimentos europeus, 0 Romantismo Brasi- leiro foi uma convergéncia de fatores locais e externos. Coincidindo o seu desenvolvimento com a fase da Independéncia, a literatura rom4n- tica foi considerada parcela do esforgo mais amplo de construir a nagdo fundamentando-se na busca de elementos que pudessem caracicrizar 0 homem ea arte brasileiros. Assim, os rom4nticos iniciam uma pesqui- sa, que ser4 retomada pelos modernistas, em busca dessas caracter{s- ticas, inclusive na 4rea da lingua. Com lentes de aumento, eles focali- zam tudo 0 que pudesse nos diferenciar dos colonizadores portugue- ses. Uma das expressdes mais fecundas desse comportamento foi a valorizagdo que fizeram dos poetas da Inconfidéncia. E a intensa par- ticipagao de muitos na vida publica do pals demonstra que esse ideal de construir a patria nao ficava no papel ¢ nas discuss6es intelectuais. Mas, se os est{mulos externos cram grandes, reproduzindo um contex- to social € polftico semelhante ao que produzira o clima romantico curopeu, faltavam os estimulos internos, poticos, para que surgisse uma poesia participante, de vulto, 0 que s6 vai ocorrer com a terceira geracdo, a de Castro Alves, scu maior representante. Além de celebrar novos temas, como a liberdade da patria e a democracia, Castro Alves foi o grande pocta social quando cantou o negro, dando-ihe nao so- mente um "brado de revolta", mas, segundo Ant6nio Candido, uma “atmosfera de dignidade Ifrica". O tom revoluciondrio do Violao de Rua A década de 60 ressuscita diversas tendéncias vanguardistas do {cio do século, que haviam tido repercuss6es no Modernismo Brasi- leiro, a ponto de terem sido batizadas de neovanguardas. Enquanto concretistas e praxistas retomavam o experimentalismo estético, ou- {ros grupos reviviam a preocupagdo com a realidade emergente, vol- tando-se para a neccssidade de buscar 0 novo nao nas conquistas ex- Pressivas € nas rupturas formais, mas na libertagdo do povo, rompendo com estruturas sociais arcaicas. "O novo ¢ 0 povo", diziam esses jovens que sonhavam com a justiga social. Esteticamente, esses artistas deram um passo atrds, voltando ao Romantismo, quando as preocupagées sociais também levaram os poe- tas a por o seu canto a servigo de causas externas a arte. Idcologica- mente, cstavam afinados com novas correntes influenciadas, de um la- 1 = CANDIDO, Antonio. Formagao da Literatura Brasileira, Sio Paulo, EDUSP/tati 1975. p. 144, Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993. 127 do, pelo socialismo e, de outro, pelo engajamento polftico-social do artista pregado por Sartre. Identificados com o sofrimento das camadas populares da socic- dade brasileira, esses artistas incorporam como sua principal fungdo a atividade guerrilhcira: a obra de arte é a sua arma para sabotar os cir- cuitos ideolégicos dominantes. Ser guerrilheiro ¢ scr artista de van- guarda torna-se a mesma coisa: instaurar 0 caos no cotidiano das clites burguesas, levando as massas ao poder, € 0 objetivo de ambos.(2) Havia realmente muito de rom4ntico no idealismo com que se cultuavam os herdis revolucionérios, como 0 médico guerrilheiro, Er- nesto Guevara, o famoso Che que, ao lado de outro mito, Fidel Castro, iniciara a primeira revolucao socialista no continente. Os jovens sc identificavam com seus fdolos e sonhavam, empunhando uma arma ou dizendo um poema, com a liberdade dos povos latino-americanos. No Brasil, as massas populares ganhavam terreno no processo polftico desde o populismo de Getilio Vargas, com o Estado Novo, mas nunca tinham sido mobilizadas com tanta intensidade como no governo de Jofo Goulart, quando diversos sctores intelectuais, ope- rarios, estudantis, trabalhadores do campo ¢ até militares se uniram para uma radical mudanga na sociedade. Entre cles estavam os jovens ligados aos Centros Populares de Cultura e 4 UNE (Unido Nacional dos Estudantes). Em suas reflex6es sobre a sociedade brasileira ¢ a cultura po- pular, esses jovens concluem que a dominagdo das minorias sobre as massas nao se |i va 4 economia, mas alingia a drea dos sentimentos, dos valores, das aspiragdes, da sensibilidade ¢ da vontade. Cabia, en- {Go, aos artistas do CPC inverter esse quadro: como “armas espiri- tuais da libertagao material e cultural do povo" (3) eles constitufam uma forga modificadora do ser social. Como os poetas rom4nticos, esses jovens revoluciondrios atri- buem-se uma missdo superior: a de conduzir ¢ libertar o que chamam de povo brasileiro. O eu Ifrico se identifica com 0 coletivo. O poeta se transforma no bardo, no guia espiritual. Além disso, hd outro ponto €m comum com Os rom4nticos: o sentimento nacjonalista, muito forte na fase em que as esquerdas e a burguesia nacional se deram as mdos para expulsar o capital estrangeiro. Entre 1962 € 1963, o CPC promoveu a edigdo de uma antologia, cujo critério de selegdo foi unicamente social, conforme a nota de 2 — HOLLANDA, Helofsa Buarque de. fmpressies de viggem, CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, Sio Paulo, Brasilicnse, 1980, 3. — MARTINS, Carlos Estevam. Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura. In: Helofsa Buarque de Hollanda. Op. cit. p. 132. 128 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 apresentacéo: "visa divulgar poetas que usam seus instrumentos de trabalho para participar, de modo mais direto, nas lutas em que ora se empenha 0 povo brasileiro, revolucionariamente voltado para as exi- géncias de um mundo melhor e mais humano. " (4) Daf a heterogenei- dade dessa colegéo que arrota poctas de varias geragées e tendéncias. S6 € possivel compreender 0 valor de Violdo de Rua situando-o no projeto que procurava fazer uma arte util, com énfase em objetivos diddticos e doutrindrios, em detrimento do fazer poético. Nesse deslo- camento a poiesis levou desvantagem e a literatura brasileira ganhou aleijées mas, em meio aquela panfletagem ingénua, sobressaem poe- mas de grande beieza, justamente quando o elemento social, incor- porado entre os demais estratos poéticos, ganha funcionalidade e ren- dimento estético. Affonso Romano de Sant’Anna, Félix de Athayde, José Carlos Capinam e Cassiano Ricardo assinam alguns desses poe- mas. O que nos interessa aqui, porém, sdo justamente os poemas que, por supervalorizarem a mensagem social, aproximam seus autores dos roménticos do século passado. Paulo Mendes Campos, por exemplo, explora cuidadosamente as técnicas populares no "Poema para ser cantado" (5). Com estrofes regulares de oito versos, em redondilha maior (um dos metros preferi- dos pelos poetas populares), 0 poema testemunha a presenga de ele- mentos romnticos, dos quais 0 mais significativo € a concepgéo do poeta como um herdi libertador, identificado com as dores do povo, sendo este Ultimo, por sua vez, idealizado como entidade homogénea, unida pela igualdade e fraternidade, marchando para conquistar um ideal superior, ou seja, o estabelecimento da justiga social. Bastante brega aos nossos ouvidos pés-modernos, acostumados. com a sofisticagdo da linguagem poética dos anos 80 ¢ totalmente sur- dos aos apelos sentimentais populistas,o "Poema para ser cantado" incorpora 0 gosto e 0 estilo de seu piblico-alvo, em perfcita conso- nancia com os ideais de conduzir as massas. O canto de vitdria do povo ecoa por todo o poema, pelo simbolismo sonoro no jogo das sibilantes, vibrantes, nasais — sem falar na evocagdo de instrumentos musicais. Tambores ¢ cornetas acompanham essa marcha vitoriosa do povo: “Nas maremas nordestinas, Nas ratoeiras das minas, Nas falazes leopoldinas, O povo nao morrerd. 4 — Violao de Rua. Rio de Janciro, Civilizagio Brasileira, 1962. Vol. 1p. 4, 3 — Idem. p. 64-7. Rey, Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 129 Usineiros de acidez, Mangan6es de manganés, Fabricantes de aridez, Sei que o povo viverd." O 42 € o 8? versos se repetem, estrategicamente, no mesmo lu- gar, enfatizando a oposigaéo “morrer x viver", numa mensagem oti- mista. Apesar do ritmo ingenuamente alegre, as dez estrofes descre- vem, exaustivamente, todas as injusticas, torturas, espoliagdes, opres- ses e sofrimentos impingidos as camadas pobres da populacdo. A re- gularidade dos versos, o mesmo esquema rimico —- AAABCCCA — e Fitmico (todos os versos tm acentuacio na 37 7? sflabas) ea simila- ridade das estrofes universalizam os problemas do povo: nao € s6 no espago nacional que ele sofre, mas em todo o mundo: "No Brasil, na Argentina,/USA, Cuba, Franga, China Rimas internas, paralel mos, andforas ajudam na exploracdo das indmeras conotagoes sugeri- das pelo vocabuldrio. Todos os planos se fundem nesse vibrante canto de vitoria. A mesma valorizagdo da mensagem social ocorre também no poema de Vinfcius de Morais, "Os Homens da Terra" acompanhado da seguinte epigrafe: "Em homenagem aos trabalhadores da terra do Brasil, que enfim despertam ¢ cuja luta ora se inicia". Ejustamenteo “inicio dessa luta” que dé forma ao poema cm todos os niveis. Estrato fOnico, unidades de sentido, unidades ritmicas, rimas, imagens, tudo isso compdc uma trama bem tecida em torno de uma oposi¢ao bdsica: donos de terra x trabalhadores. A construgao do poema segue um modelo rigidamente dialético, onde a tese é a explo- ragdo, a ant{tese é a escravidao e a sintese, a revolugao. “Senhores Bardes da terra Preparai vossa mortalha Porque desfrutais da terra Ea terra ¢ de quem trabalha Bem como 0s frutos que encerra Senhores Barées da terra preparai vossa mortalha Chegado é 0 tempo de guerra." HA todo um vocabulério especffico que compée o mundo dos senhores da terra, que agora comega a ser ameagado. O vocativo do primeiro verso é repetido ao longo de todo 0 pocma, mas com algumas variagGes que, além de quebrarem a monotonia, mostram as indmeras nuances da exploragéo bem como a sua amplitude. A terra é a palavra- chave que une os dois eixos estruturais do poema: ela deve pertencer a quem trabalha mas est4 nas maos de ociosos. Essa € a maior injustiga, © motivo primeiro da revolta: "Porque desfrutais da terra/E a terra € de quem trabalha./Bem como os frutos que encerra." Do confronto 130 Rev. Inst, Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 entre a mesquinhez dos senhores de terra e do sofrimento intenso dos trabalhadores s6 se pode chegar a uma grande revolia:a "nossa guer- ra", diz o poeta, totalmente identificado com a luta do camponés ¢ do operdrio. O poeta fala para 0 povo em nome do povo. Os abismos da alma: o negativismo romantico Uma corrente téo desenvolvida dentro do Romantismo, 0 ne- gativismo ficou conhecido como o mal do século, passivel de ser expli- cado de diversas maneiras, sob diferentes enfoques. Uma delas di que © poeta, tentando exprimir a natureza, cm toda a sua grandeza, sente- se incapaz. Isso criaria uma consciéncia de desajuste, decorrente da desconfianga diante da palavra. Daf odescjode fuga do real, j4 que este ndo pode ser expresso pela palavra humana. A propria vida Ihe parece, assim, um mal. Entretanto, por trds desse desajuste e da inadequacdo da paiavra existem problemas mais complexos, derivados de um mer- gulhar profundo nos abismos da alma humana, que trouxe como con- seqiéncia uma onda de pessimismo e sadismo responsdvel por uma das manifestag6es mais originais do espfrito romantico. A negacdo ¢ a revolta contra valores sociais, quer pela ironia co sarcasmo, quer pelo ataque desabrido, remontam as origens do Ro- mantismo, sendo encontradas j4 no movimento alemao Sturm und Drang, que o precedeu, preparando seus caminhos. Antes de ser ruptu- Ta estética, a renovacao romAntica foi, com Rousscau, tuptura moral, social € politica: ser romantico era viver de uma determinada mancira, abrir-se sem reservas para a vida afetiva desembaragar-se das con- vengoes sociais, ndo consentindo que a coletividade, por intermédio de forgas reguladoras como a raziio ¢ a voniade, sufocasse a espontanci- dade-do instinto e a sabedoria natural do sentimento. A conquista dessa liberdade do individuo nas artes nao 6 um fato isolado, mas acontece, nessa época, em todos os segmentos da socie- dade. Pode-se até fazer um paralclo cntre 0 principio da livre concor- réncia € 0 direito a iniciativa privada da 4rea econOmica ¢ a tendéncia do escritor expressar seus sentimentos subjetivos, pondo em ccna sua Personalidade ¢ fazendo do leitor uma testemunha dos scus conflitos intimos. Muitas vezes esse individualismo se transforma em Protesto contra a mecanizagio da sociedade industrial ¢ contra a despersonali- zagdo da vida ligada a economia do /aissez-faire. Assim, a atitude do poeta rom4ntico diante da sociedade 6 am- bigua: de um lado, cle pode se identificar como colctivo, num protesto Contra o poder estatal € 0 dominio das classes privilegiadas; de outro lado, porém, ele pode se revoltar contra o coletivo, vivenciando um Profundo conflito entre seu ideal de personalidade e o Processo da cultura, De qualquer forma, os romAnticos revelaram uma coragem sem . Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 131 precedentes ao descerem aos subterrancos da vida afetiva ¢ da vida social. Foram fundo nas experiéncias conflituosas do individuo, tra- zendo a tona, muitas vezes, contextos muito préximos da loucura. Tais experiéncias sempre foram acompanhadas de uma permanente refle- x40 sobre 0 infinito, a morte, a angdstia, a divida, misturando admi- ravelmente intuicdo e fantasia com incrivel lucidez analitica. Byron simboliza muito bem a esiética dos contrérios que 6 0 Romantismo: é um exemplo perfeito da tendéncia para o desmedido e contradit6rio ao fundir em O Manfredo aspectos aparentemente in- coneilidveis do comportamento. E por isso que o maf do séculotambém ficou conhecido como byronismo, representado no Brasil principal- mente por Alvares de Azevedo. Trata-se de uma literatura que se ca- racteriza pela voltipia dos opostos, pela filosofia do belo-horrivel, da devassidao e da melancolia. A linguagem, sempre expressando direta- mente as emogGes 6 marcada pela falta de equilibrio, pela pressa, pela improvisagdo, sem muita preocupacdo com a construgao da obra. Na sua forma a obra de arte romantica é sempre aberta, incor- Porando com freqiléncia o fragmentdrio e o inacabado. Se o discurso literério el4ssico procurava ser fator unificador do ser, encobrindo a divisdo, o desequilfbrio, 0 texto romAntico, ao contrério, poe a mostra a diviséo do ser, o desequilfbrio, a fragmentagao no seu proprio corpo. Aos temas preferidos das rutnas, da morte, da angustia, do desajusta- mento social, da cisdo interior correspondem as formas inacabadas ¢ fragmentadas, Debrucados sobre si mesmos, os rom4nticos deparam-se com os misteriosos conflitos intcriores. Sentindo-se 4 margem da sociedade, como alguém dissociado dela, experimentam o estranhamento, o des- conforto, 0 tédio e uma estranha sensagao de desterro. Por outro lado, a consciéncia dessa cisao interna leva-os a uma intensa busca de uni- dade, de sintese, de fusdo absoluta com o universo. O infinito torna-s¢ uma obsessdo para os rom4nticos e aumenta mais ainda a angistia ¢ o niilismo, E, uma vez que o infinito ndo pode caber no finito, a obra de arte também ndo pode fechar-se como um todo perfeito ¢ acabado. A solugdo é adotar formas abertas. Com eles, a obra de arte deixa de ser perfeigéo objetiva para se tornar exploséo subjetiva. Um novo mal do século Os famosos versos de Allen Ginsberg — "I saw the best minds of my generation destroyed by madness" — sao representativos de uma geragdo que ficou conhecida como Beat Generation, nos EUA dos anos cinqilenta, quando o quadro polftico internacional se caracteri- zava pela guerra fria, como se chamou o confronto entre capitalismo ¢ comunismo apés 0 término da Segunda Grande Guerra. 132 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 Embora nao comprometidos com nenhum programa de trans- formagdo ou revolucao social com base no marxismo, esses jovens tra- ziam novo estilo de contestagdo da sociedade capitalist A utopia por eles desencadeada ficou sendo, portanto, uma ' revolugdo ' a nivel de uma certa minoria social, predominantemente de classe média, exis- tindo numa posigdo marginal e periférica dentro do sistema capitalista, assumindo posturas, imediatas e radicais, de contestagdo, em termos de contrapor uma gama muito variada de novos comportamentos e va- lores aos valores e comportamentos estabelecidos. " (6) Com diversos desdobramentos na década de 60, essa "revolu- do" ultrapassou as fronteiras dos EUA, difundindo-se como rebelido juvenil internacional, sendo depois absorvido pelo sistema. As calgas desbotadas, por exemplo, usadas pclos jovens dentro de um estilo de agressiva contestagéo passaram a ser vendidas pelos fabricantes de jeans. A palavra underground, fundamental para se compreender esse movimento significa uma comunidade socialmente minoritaria que, habitando os subterraneos do sistema social, tem como objetivo fazer circular uma informagdo desvinculada do esquema institucional cs- tabelecido pelos grupos que detém o poder. Dessa forma se pretendia langar as bases de uma nova cultura, freqiientemente denominada con- tracultura. Se, para os revoluciondrios ligados av marxismo, o capitalismo trazia em si contradigdes que levariam a sua propria superagdo hist6- rica, para esses jovens rebeldes nem essa esperanga seria possivel, j4 que tanto o capitalismo quanto o comunismo apoiavam-se numa cstru- tura desumana e destruidora. Se nao valia a pena se cngajar nas lutas contra 0 capitalismo, a divulgagdo recente dos horrores do stalinismo demonstrava que o socialismo também ndo merccia confianga. tivemos, na década de 70, uma espécie de réplica na- cional do underground. Foi a época da contracultura, marcada pelo intenso consumo de drogas, pela valorizagéo da psicandlise, pelo culto 40 corpo, ao rock, € aos circuitos alternativos. A imprensa alternativa, por exemplo, floresceu com periddicos como Pasquim, Flor do Mal, Bondinho, A Pomba cc outros, cujo objetivo era romper com os princf- pios de prdtica jornalfstica estabclecidos pela grande imprensa, dei- xando de lado o tom neutro, objetivo ¢ assumindo um discurso quc ndo dissimulava a parcialidade. Julgando a participagdo polftica da geragao anterior uma care- tice, esse jovens substituem os ideais de pratica politica pela valori: ¢40 de novos comportamentos, que levassem a uma radical mudanga de 6 — BUENO, André Lufs. Contracultira. As utopias em marcha. Rio de Janciro, PUC, Depto, Leiras, nov/i979. p. 5. Dissert, Mestr. (mimeo). Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 133 vida. Nao acreditavam em qualquer possibilidade de revolugdo social sem uma transformacdo individual. Nao sentindo mais qualquer iden- tificagdo com as massas, trocam os {dolos guerriiheiros pelos cantores de rock, buscando inspiragdo nas minorias marginais (homossexuais, negros, marginais de morro, pivetes). A tebeldia ¢ o pessimismo cultural desses jovens tém muito da atitude rom4ntica como demonstram os temas cuituados por eles: berdade, desrepressdo, procura de autenticidade ¢ liberagdo de sen: mentos e instintos. O individualismo exacerbado acaba no irracionalis- mo € a supervalorizac4o da experiéncia de vida transposta para a arte, com o minimo de preocupagdo com a forma, levam esses jovens a ver na poesia uma curtigdo existencial. A ingenuidade, o tom irénico, 0 cinismo, a fragmentagao do eu ¢ dos textos, as contradigdes, a melan- colia mérbida'e o misticismo sao outros ingredientes que mant¢m 0 Parentesco desses poemas extremamente subjetivos com o Romantis- mo. Acuriosidade com relagao a correntes esotéricas ¢ religidcs oricn- tais leva-os também, como ocorrera com os romnticos do século pas- sado, a certo fascinio pelo espiritualismo e até pelo satanismo. O sistema é constantemente agredido pela subversdo da lingua- gem e€ pelo comportamento. H4 uma identificagdo total com o mundo do rock: mais do que um género musical, este € adotado como um ritmo de vida, uma maneira nova de pensar as coisas, a socicdade. O rock representa a liberagdo do corpo e da mente, a percep¢ao moder- na, a marginatidade, Nesse empenho de encontrar nova forma de pensar o mundo, a loucura também tem um papel importante, sendo vista como um ca- minho alternativo, capaz de romper com a ldgica racionalizante da es- querda e da direita. Infelizmente, porém, a expcriéncia da loucura nem sempre foi simples experiéncia literaria: com a radicalizagdo do uso de t6xicos e da exacerbagdéo das experiéncias sensoriais € emocionais, eram freqientes os casos de internamento ¢ até suicidios, bem pouco estéticos. A rejeigéo do sistema, que abalou todas as instituigdes sociais, bem como a descrenga com relacgdo A esquerda ocorrem num momento de desilusGes com a polftica, quando os movimentos de massa sio no- vamente derrotados pelo regime que decreta o AI-5, Além da intensi ficagdo da repressdo policial no pafs, o quadro internacional sugere novas desilusdes: a invaséo da Tchcecoslovaquia nao dcixa dividas quanto ao totalitarismo soviético. Intensifica-se também cm Cuba a repressdo as artes, aos homossexuais etc. "“Instala-se a dcsconfianga em todas as formas de autoritarismo, inclusive os que sio exercidos cm nome de uma revolugdo ¢ de um fruto promissor, promovendo a valo-- rizagdo polftica de prdticas tidas como alienadas. O moralismo comu- nista € recusado como uma alitude de 'saléo' que resguarda 0 corpo, 134 Rev. Inst. Est. Bras. SP, 35:124-144, 1993 teme as forgas revoluciondrias do erotismo ¢ evita pensar as préprias contradigécs." (7) Torquato Neto, que participou do Tropicalismo, compondo di- versas milsicas com Gilberto Gil ¢ Caetano Veloso, foi um dos Ifderes mais idolatrados dessa geragao. Sua letra mais famosa foi Geléia Geral, inspirada na denominacdo que Décio Pignatari fez da poesia brasileira, na revista Invencdo, n° 5, em 1966. Assinava uma coluna no Ultima Hora, com 0 mesmo tftulo. Suicidou-se em 1972, deixando um bilhete t4o sucinto quanto repleto do espirito negativo de sua geragio com relacdo 4 sociedade e A vida: "Pra mim, chega". Scus textos, pocmas e prosa, foram reunidos no volume de publicagéo péstuma, Ultimos dias de Paupéria, espécie de biblia das novas geragdcs. Enfatizando os temas da loucura ¢ da morte, o livro apresenta textos onde se misturam a poesia, a prosa, a fragmentagao, a ironia ¢ a agressividade, Suas contradigGes e obsessdes afloram numa cxpressao esponténeado "eu" em cstilo romantico: individualismo cxagerado, valorizagéo da experiéncia vital, aceitagdo do lado indisciplinado, “desferrolhado", do ser, fragmentagao interior séo marcas desse es- tilo. “Cogito eu sou como eu sou pronome pessoal intransferfve do homem que iniciei na medida do impossfvel eu sou como eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos secretos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedago de mim eu sou como cu sou vidente ¢ vivo tranqiilamente todas as horas do fim". A despeito dos pontos scmelhantes, existem também indmeras diferengas entre esta geragao ¢ as geragdes romAnticas do século pas- 7 — HOLLANDA, Helofsa Buarque de. Op: cit. p. 69. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 135 sado. Talvez uma das maiores seja a supervalorizagao do presente. O aqui e agora é o imperativo m4ximo de nossos jovens, enquanto os primeiros rom4nticos viviam sonhando com 0 passado ou com o futu- ro. Entretanto, é preciso observar que o poeta de "Cogito" vive esse presentecomoum "vidente",e, nessc presente, vive "todas as horas do fim". Portanto, jd nao é o presente normal que ele vive. E como se © tempo cronolégico fosse abolido, trazendo todo aquele misterioso fasctnio dos romAnticos pelo eterno. Isso demonstra também um rela- cionamento contraditério com o presente, com o seu momento de vida, 0 que enfatiza a angistia eo mo. A nega lade aparece freqiientemente no tema da morte que, paradoxalmente, é vista como um bem, uma libertagdo do mal que, no caso, € a propria vida: “Quando Chegar Quando eu morrer, Anjos meus, Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar Desta terra louca Permiti que eu seja mais um desaparecido Da lista de mortos de algum campo de batalha Para que eu nao fique exposto Em algum necrotério branco Para que ndo me cortem o ventre Com propésitos autopsianos Para que nao jaza num caixao frio Coberto de flores mornas Para que nao sinta mais os afagos Desta gente téo longe Para que eu ndo ouga reboando eternos Os ecos dos teus solugos Para que perca-se no éter O lixo desta meméria Para que apaguem-se bruscas As marcas do meu sofrer Para que a morte s6 seja Um descanso calmo e doce Um calmo ¢ doce descanso". Esse melancélico poema foi escrito pela jovem Ana Cristina César que um dia se cansou de cantar a morte ¢ sc jogou ao seu encontro, de uma janela, dois meses depois de ter registrado: "Estou vivendo de hora em hora, com muito temor./Um dia me safarei — aos poucos me safa- rei, comegarei um safari." (8) E foi assim que cla "se safou" da frag- B- CESAR, Ana Cristina. Inéditos ¢ dispersos; poesiaiprosa. Sio Paulo, Brasiliense, 1985. p. 181, 136 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 mentagéo de um mundo louco, encontrando, enfim, 0 equilfbrio: " Agora, imediatamente, € aqui que comega o primeiro sinal/ do peso do corpo que sobe. Aqui troco de m4o e comego a ordenar 0 caos." (9) No Romantismo, muitas vezes, o negativismo, aliado ao fascinio pelo mundo do oculto, das trevas mesmo, leva a uma evocagdo mérbida de satanismo. Isso também esté presente entre os jovens marginais dos anos setenta. Nao falta nem mesmo o célebre tema da "venda da alma" ao deménio retomado por Chacal, outro poeta dessa geragdo, embora num tom irénico de desmistificagdo. O tratamento dado ao tema, porém, se por um iado o despoja da aura roméntica da ambigili- dade, do conflito e da dilaceragao interior, ganha, por outro lado, um efeito corrosivo como critica aos valores judaico-crist4os da sociedade burguesa. Alids, ndo € bem contra esses valores que ele investe, mas contra a hipocrisia de uma sociedade que, pregando a fraternidade, a justica, a bondade etc, comete as maiores barbaridades contra os indi- viduos. O texto citado chama-se "Barganha Belzebu" e foi publicado no livro Comicio de Tudo: 0 personagem vai penhorar a alma ¢ fica de- cepcionado ao saber que o diabo j4 nao se interessa por almas virtuo- sas. "Ora, meu caro idiota, da sua confeccdo, meu chalé anda chcio. Justiceiros renegados, cagadores de recompensa, franciscanos desbun- dados esto aia dar com pé de cabra. Na tabela ali na parede, pode con- ferir, s6 um tipo de alma est4 valorizada. A dos portadores de miste- tiosa malandragem dos morros, becos, buracos urbanos. Desses mes- tre-salas clandestinos, desses dignos representantes do breque ¢ do brilho, desses sim seré o Reino das Sombras". Em outro poema de Ricardo de Carvalho Duarte (Chacal), do mesmo livro vemos um tema que revela 0 mesmo gosto pelo mérbido: "Vamp a rua escura deserta acclera o desejo eu piso fundo no mundo com o farol aceso uma sirene: policia no retrovisor nao sei se € paranéia ou se sou infrator em cada curva fechada espero pelo pior estranho cheiro de sangue ninguém ao redor No carro, 0 radio anuncia mais um assassinato vejo seu corpo na esquina paro o carro e salto 9 — Idem, thidem. p.192 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 137 Como vou te esquecer um dia seu nome é Ana seu beijo €é mesmo assim no outro dia Janette marcas no pescogo dizem 0 tempo todo na cama que o tempo todo sé afiando a gilete". queria assistir a meu fim QO satanismo e os temas mérbidos, que evocam assassinatos, orgias ma- cabras, so formas de protesto, de agredir a sociedade. Isso fica muito claro, também, numa espécie de manifesto punk publicado pelo mesmo autor na obra ja citada: “punk + acontribuigdo miliondria de todos os erros 0 desespero cosmopolita de todos os meninos/meninas + punk punk + a vinganga vindo a cavalo nas asas de um aviio punhos cerrados caras fechadas fogo cruzado + punk punk + 0 cco do capitalismo selvagem da impunidade burguesa um jeito de corpo um corpo torcido estilhago + punk punk + a resposta da vida contra a morte chamada sistema de agora em diante cada vidraga corre perigo + punk punk + vandalos barbaros vickings devorando qualquer légica 0 obsceno abscesso do ABC contaminando cartilhas cristas + punk punk + pluritinico prazer de ser livre ¢ feroz agora todos os projetos para simular o massacre deram em + punk punk + um plug ligado na sintonia do salanico espirto elétrico a sociedade em chamas panico em Sao Paulo + punk punk + a burguesia que se cuide 14 vai lata € sempre em vao varrer a sujeira para baixo do lapete + punk" Meroarrolamento de temas,o "poema" dceixa uma sensagdo de algo inacabado. O negativismo € intenso: j4 que a sociedade fal; bom que se destrua tudo, liberando todos os “erros", todo o primiti- vismo ¢ firiados "vandalos", todos os instintos selvagens, decretan- do guerra ao mundo, dando um "tiro na jugular da razdo" e dizendo um sonoro "nao" ao sistema. Waly Sailormoon (pscud6nimo de Waly Salomao) ¢ outro pocta marcante da geracdo marginal, tanto por sua atuag4o combativa, quan- 138 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 to pelo tipo de texto que produziu. Publicou, em 1972, Me Segura Que Vou Dar Um Trogo — texto ambiguo, fragmentdrio, oscilante entre v4- trios pélos ¢ pendendo, quase sempre, para os impasses ¢ as desagrega- gées, ora refletindo problemas pessoais, ora abordando temas de maior amplitude, como a condi¢ao subdesenvolvida e colonial do Brasil. De- finindo criagéo como 0 ato de encaixar tudo ¢ nao se definir por coisa alguma, mistura em seus textos 0 niilismo, as hipéteses misticas € apocalipticas, a morbidez rom4ntica, o narcisismo auto-promocional, com sugestées de uma moral nietzcheana, individual, do mais forte vencendo o mais fraco e negando sempre a idéia de poesia como cons- trugdo. O tempero final ¢ dado pela profunda descrenga no processo politico do pais. Navilouca, a principal publicagéo em conjunto do grupo foi or- ganizada por Torquato Neto e Waly Sailormoon, reunindo textos de muitos poetas, artistas plésticos, musicos, cineastas, 0 que mostra 0 intercambio entre as artes praticado por esta geragdo, fato que reforga © parentesco deles com os romanticos que iniciaram, no século passa- do, ndo s6 a mistura dos géncros mas também o didlogo entre as dife- Tentes manifestagGes art{isticas. O nome desta publicagdo foi sugerido por Sruttifera Navis, navio que, na Idade Média, circundava a costa européia, recolhendo os idio- tas da familia, os desgarrados e fora da ordem. Navilouca também re- cothe a intelectualidade desgarrada, louca, marginal. Seus viajantes es- t4o fora mas, ao mesmo tempo, dentro do sistema e essa ambigiiidade se revela no préprio projeto sofisticado da publicagao: o tratamento grafico obedece a um nivel técnico semelhante ao das revistas indus- triais, mas os textos marcados pela fragmentacao, pela critica andr- quica, pela rebeldia dos temas ¢ pelo desprezo a forma, introduzem elementos de resisténcia nos canais legitimados pelo sistema. O tema centrai 6 a marginalidade: nas fotos de qualidade técnica excelente, os poetas aparecem vestidos de vampiro, travestidos em homosscxuais, ou 4 moda da imprensa sensacionalista, com barras pretas nos olhos, en- Costados em muros Ou em automéveis antigos, com pose de gangsters. Apalavra “gilete", muito comum nesses textos ¢ um dos elementos utilizados para revelar ambigiidade: pelas multiplas conctagocs, cla significa ora arma de crime, utilizada por pivetes, ora um objeto de embelezamento, ora, como na gfria, um ser bissexual — “concregdo de ambigilidades; que lado da gilete voct prefere? sao os dois iguais? 0 corte é cego ou invisivel? pra barbear ou castrar?" Os poemas tematizam a nova sensibilidade, uma das buscas desses artistas, como demonstra 0 poema de Jorge Salomio: "Eu, fragmento de uma scnsibilidade que produz um titmo Eu, que vim ao mundo participar dessa missa louca Rev, Inst. Est, Bras., SP, 35:124-144, 1993 139 com minha doida danga na derrocada dos valores que torturam a alma humana Ev, filho do sol Eu, forte, belo, irmao do poente Eu, dangando nesses esparsos-espagos palco da vida". No clima de decadéncia, a adogao da loucura ¢ uma conscqii¢n- cia da negagdo rom4ntica da razio. O poeta busca nova sensibilidade inventiva, recusando solugées prontas, utilizando uma linguagem mais referencial que poética, que aproxima a arte da experiéncia vivida. A linguagem também revela fragmentagdo, descontinuidade, muito mais pela propria experiéncia de conflitos interiores do que como recursos estéticos. A marginalidade é valorizada pelo que cla tem de ameaga a0 sistema, possibilitando um estilo de agressdo e transgressao. A con- testacdo é assumida conscientemente, revelando-se no uso de téxicos, na bissexualidade, no comportamento descolonizado . A guerrilha ar- mada € substituida, assim, pelo comportamento tido como ilcgal ¢ agressivo. A prosa experimental Negatividade c fragmentacdo, duas caracterfsticas importantes na literatura romantica, ndo estado presentes apenas na poesia margi- nal dos anos setenta. Também o romance experimental dessa época apresenta esses aspectos entre suas principais obscssGes. O livro de Ivan Angelo, por exemplo, A Festa, € 140 fragmentado que suas partes, independentes, podem ser consideradas contos. Na verdade, porém, é uma espécic exotica de romance feito de contos, que se entrelagam ¢ se desdobram, pela composigao cm forma dc monta- gem, onde entram citagdes, noticias de jornal, discursos politicos, ma- nifestos, letras de musica. O descontinuo e o ambfguo sao levados as ultimas conseqiiéncias, em todos os niveis da estrutura narrativa. H4 um esforgo consciente do autor em nao harmonizar os cle- mentos mas ressaltar agressivamente as frestas, os vazios, realgando a natureza fragmentéria do texto. Escrever um romance deixa de ser um ato de construgdo, de composigdo, para se transformar em destruigdo, decomposicgao, desintegragéo do universo ficcional. O real ¢ tdo absur- do, que ndo pode ser captado e/ou transmitido de outra forma. E ver- dade que a obra de arte tem como objetivo criar uma realidade propria, mas os jovens romancistas dos anos sctenta néo estio preocupados com a criagdo literdria propriamente dita. A obsessdo deles é pelo pré- prio real, um verdadeiro pesadelo vivido pela sociedade brasileira nes- Sa fase de intensa repressao politica. A arte deles é documento pun- gente da realidade. A ficcdo se faz colada ao contexto exterior. E por isso que, neste livro, o referente politico, como uma grande sombra, 140 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 penetra até na vida intima dos personagens, sendo 0 principal.fio com que o autor costura os fragmentos da narrativa. Tomando a "festa" como metéfora da socicdade burguesa, 0 autor questiona ¢ ridiculariza todos os seus valores, desmistificando-os na pr6pria cstrutura da obra. As tinicas verdades que ele tem a trans- mitir sdo as duvidas e a obscuridade. Nao fica nada definido, nada é esclarecido ao perplexo leitor. Tal atitude é a negagao absoluta daque- Je narrador onisciente e poderoso, do grande romance totalizador do século passado, reflexo de um autor que tinha visdo definida ¢ idéias esclarecidas a respeito de todo o conjunto da socicdade. Zero, 0 romance de Ignacio de Loyola Brandao, também utiliza a técnica de montagem, que realga a fragmentagdo de um real miiltip! e extremamente contraditério. Colagem absurda de rufnas, alegoria da situagdo violenta ¢ da desagregacao de um pafs, a narrativa incorpora, mo alucinado, os dados do real e o préprio espago grafico do livro. O pessimismo e os detalhes degradantes, o grdtesco, realgam a degeneragio geral da sociedade, em todos os niveis ¢ em todas as areas. A aventura do romance experimental também atrai autores ve- tcranos, como Antonio Callado: a fragmentagao formal iniciada em Bar Don Juanse consolida em Reffexos do Baile, to.almente construf{do em forma de mosaico. Nenhum vestfgio da estrutura tradicional: 0 ¢s- pago, o tempo ¢ até o narrador se diluem. Uma colagem de bilhetes e cartas conta a hist6ria de um seqiiestro politico. Sem divida a frag- mentagdo se revela de grande cficiéncia na documentagdo de uma so- cicdade dilacerada. Mas 6 em Operagdo Siléncio, de Marcio de Souza, que a obsessa0 pelo real abre uma brecha para o drama existencial. Tido como um desajustado, tanto pela esquerda quanto pcla dircita, 0 cincasta Paulo Conti vive dividido entre os amigos revolucionérios, empenhados na gucrrilha, com seus métodos violentos, ¢ 0 seu préprio métado de re- sisténcia pacffica ao sistema, através da arte. Entre 0 idealismo, a pai- xdo mesmo pelo cinema ¢ o materialismo agrcssivo dos companhciros nenhuma conciliagao é possivel: “Todas as vezes cm que pensava cm Patricia, também nas discusses polfticas dos tltimos dias com cla — talvez porque prezasse muito as posi¢ées polfticas dela; cle se queixava que o artista ndo tinha lugar no partido ¢ nao havia tarefa de artista para cle".(10) Auténtico personagcm roméntico, teima em sobreviver, dilacc- rado pelos conflitos {ntimos. Embora pertencendo a uma geragdo ameacada, que acuba intciramente destrufda — todos os scus amigos ¢ — SOUZA, Marcio. Operagia silencio. 2¥ed. Rio de Jancira, Marco Zero. W985. p. 106-7. Rey, Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 141 companheiros morrem ou desaparecem na guerrilha — como um es- tranho no mundo ele sonha em fazer cinema e tem pesadelos reais em meio a ditadura militar. "As vezes ele se sentia como desses animais que figuram numa lista internacionalmente comovedora." O dilaceramento interior j4 nao se dé por causa do pecado. O conflito nao ¢ mais entre a matéria e o espfrito, um conflito religioso, como na €poca do Romantismo. Nao é, porém, menos doloroso 0 con- flito vivido por essas geragdes atuais, que ganhou conotagoes politicas e ideoldgicas. A atmosfera do romance € mérbida. O tempo algo indefinido flui de modo confuso, sempre escapando ao controle do personagem. A paisagem, tal como a alma de Conti, 6 sempre indefinida e, como os demais ambientes, sempre sugere tristeza, ruinas e decadéncia: "Sim, €ra agosto, com toda a certeza; 0 rotciro, os célculos de produgdo, o elenco. Os generais estavam no Planalto. (...) Deputados, operdrios, industriais € todo o resto dessa gente; envoltos neste macio vomito azul escuro da manha, vomito que durante o dia o sol ndo perdoard, Tevolveré com o vento, dispersaré pelo chao ¢ pelos rostos dos que passam, caminhantes quase levitando de anénimas amarguras. (...) ... a cidade era assim, sempre fora? Uma vocagdo insensivel ¢ dolorosa, com a sua adordvel imitagdo de decadéncia (¢ os cintos apertam-se na voz dos oficiais) onde todos estavam obrigados, todos, a arrastar suas aspitag6es como s¢ nao fossem mais que absurdos de pouca credibi dade... (...) Que estranho viver em agosto, ao entrar no centro comer- cial sem nunca ter safdo da cidade, neste siléncio implosivo de todos os tufdos; o vOmito; o suor envergonhado; os pardais voando para as dr- vores empoadas de fumaga pestilenta, as baralas felizcs nos esgo- tos..." (11) Personagem conflituoso, Paulo Conti sobrevive dividido centre um negativismo extremo ¢ uma esperanca absurda. E um auténtico her6i romAntico, terrivelmente angustiado, superando as contradit € as opressdcs, do seu interior ou do mundo, numa corajosa operacdo siléncio, conforme indica o tftulo do livro. Sentindo-se permanente- mente um fracassado, medroso e sem vontade de enfrentar a luta, ele acaba vencendo os fantasmas préprios de um sobrevivente, o medo ¢ a indefinig&o, e tern morte de heréi, ao enfrentar um general. Esse final, porém, como toda a histéria do livro, ndo fica muito claro, sendo passfvel de outras interpretacgdes, porque a linguagem ¢ de tal forma fragmentada ¢ tantas linhas de narrativa se cruzam, que é diffcil uma compreensdo Iégica do enredo. A desarticulago centre as partes € total. Na primeira parte do livro, por cxemplo, os subtitulos 1 = Idem. fbidem. p.2. 142 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993, dos mini-capftulos ndo tém, aparentemente, nada com o que neles 6 narrado. Enquanto os subtitulos se referem a episddios da revolugdo comunista na China, os micro-textos apresentam flashes da vida de Paulo Conti, numa decomposigao cubista da narrativa. Conclustio Nao se pode dizer que a literatura brasileira dos anos sessenta ¢ setenta tenha qualquer propdsito de repetir o Romantismo do século passado. Mesmo quando um estilo se repete na histéria, como o Clas- sicismo, que volta cm dois periodos distintos, Renascimento ¢ Humi- nismo (Neoclassicismo), sempre h4 novas experiéncias, que enrique- cem ou modificam o estilo com outras contribuigdes. E 0 caso, por exemplo, da nogdo de perspectiva na pintura renascentista. E inegavel, porém, a permanéncia de elementos romanticos na literatura brasileira contemporanea. Mesmo no contexto histérico es- ses elementos estdo presentes. Tanto no perfodo romantico, como na fase da contracultura ¢ da poesia marginal pode-se verificar uma inten- sa transformagéo politica, com derrubada de valores bdsicos da socic- dade. Sdo perfodos de ataques a instituigdcs polfticas, religiosas, so- ciais tidas como superadas. Sao periodos de grande insatisfagdo com a sociedade e de reivindicagGes sociais radicais. Os direitos individuais sdo supervalorizados ¢ a insatisfagdo com a vida social se manifesta de duas manciras bdsicas. Na primeira, de modo positivo, quando a rebcldia ¢ canalizada ¢ dirigida para a recons- Irugdo da sociedade, através da luta, inclusive armada, j4 que s6 uma revolugdo poderia estabelecer a justia e a liberdade. Neste caso, 0 pocta-se transforma num herdi, portador de verdade redentora c de poder para combater as trevas das opressdcs polfticas e sociais. Nessa linha se encaixam os artistas brasileiros ligados aos centros populares de cultura nos anos sessenta, entre os quais incluimos os poctas de Violiio de Rua. No segundo caso, a revolta se dilui ncgativamente, infiltrando-se por tudo, de mancira corrosiva. O artista cxorcisa todos os demGnios, seus ¢ da coletividade, soltando tudo o que estava reprimido. O sata- nismo, por exemplo, quando € evocado pelo jovem marginal, j4 nao tem mero sentido espiritual, adquirindo nova conotagdo politica: ao assimilar o mal, a arte torna-se muito mais corrosiva. Essc novo mal do séculocontinua, porém, o mesmo idcal romantico de libcragdo do eude toda opressdo exercida pela comunidade. Infelizmente, essa rebeldia m@rbida acabou levando muitos jovens a autodestruigdo, sem que dei- xassem uma heranga s6lida em prosa ou poesia. Para isso concorreu 0 fato de terem valorizado mais as experiéncias vitais do que o trabalho com a linguagem. O negativismo ¢ a fragmentacao foram, assim, mais experimentados na prépria vida do que na arte. Produziram, porém, Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993 143 como testemunhas de uma época em que o contexto favorcccu as ma- nifestag6es romanticas, os poemas marginais e os romanccs cxperi- mentais dos anos setenta ¢ inicio da década seguinte. AUSTRACT A parallel between poets from the 60° ond 70° and the Romansic Poets, whose coinion traits come to be in historical comewts mnarked by political changes, changes in values and instinuional changes. Poctic creation refleas a ientary being in search of freedom who uses ant asa weapant of battle. A rebelliousness which, stich a new ~ evil of the centuy", becomes at times auto-deswuction. Such elements, which ore present’ not only in the counter-culture and marginal pocts movements, but also in their reactions to a set of social conditions render the vital experiences more remarkable than tte aniistc legacy in mnany of the cases pointed to. Key-words: Romanticism; social pocty; saciully committed — art; counter-culeure; Popitlar Centers of Citire. 144 Rev. Inst. Est. Bras., SP, 35:124-144, 1993

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