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SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. – 1. ed.

Rio de Janeiro: Estação Brasil,


2019. Capítulo 1.

Phylippe Pimentel Pinto.

Introdução
Jessé de Souza, sociólogo, doutor em filosofia e psicanálise, professor e ex-presidente do Ipea,
constrói a obra A elite do atraso: da escravidão à lava jato, como uma resposta crítica ao livro de
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, publicado em 1936. Souza analisa também a obra de
diversos autores, como Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, dentre outros, para formar o seu
pensamento e explicar a sua teoria.
O livro é dividido em três capítulos, além de um prefácio e uma introdução que serve como
ponte para o início de sua crítica. Resumirei aqui o prefácio, a introdução “O racismo de nossos
intelectuais: o brasileiro como vira-lata”, e o primeiro capítulo “A escravidão é nosso berço”, onde o
autor aborda o mundo criado pela escravidão a partir de um olhar crítico sobre as teses de Gilberto
Freyre.

O culturalismo brasileiro e a síndrome de vira-lata


Souza inicia a obra explicando o objetivo de sua tese: Contrapor a ideia dominante que foi
passado ao longo de gerações no nosso país, de que a sociabilidade brasileira seria fruto de uma
suposta e abstrata continuidade sanguínea, “patrimonialista” e quase “mágica” com Portugal,
trazendo para o centro do debate e tornando a real semente da nossa sociabilidade, a experiência da
escravidão. O autor afirma que Sérgio Buarque e seus seguidores nunca compreenderam e criticaram
de fato, a escravidão, percebendo a singularidade excludente e perversa que esta criou. Como não
houve compreensão e critica de fato a este período, o que se observou, segundo o autor, foi uma
perpetuação desta sociabilidade perversa.
O outro objetivo é compreender como a luta das classes (através de uma ótica sociocultural –
diferente do padrão liberal e marxista), por privilégios e distinções construiu alianças e preconceitos
que perduram até os dias atuais, nas lutas políticas. Segundo o autor, é possível compreender as nossas
condutas no Brasil Moderno, a partir da reinterpretação da herança de classe de cada um. A ação das
classes sociais não é percebida na obra de Sérgio Buarque, tampouco os conflitos existentes entre
elas, sendo substituídos por um falso conflito entre o Estado corrupto e patrimonial e o mercado
virtuoso. Reinterpretar esses conceitos se faz necessário para pensarmos os problemas brasileiros fora
das visões patrimonialista e populista, criadas, segundo Souza, para tornar possível a aliança
antipopular que caracteriza o Brasil Moderno desde 1930.
Por fim, o autor pretende também, com a obra, traçar um diagnóstico sobre o momento atual
em que vivemos, partindo de um estudo mais profundo e veraz que o paradigma do “racismo
culturalista”, termo que será melhor explicado a seguir.

Segundo o autor, o ponto central de toda a sociedade é o poder. Quem o detém, determina
quem manda e quem obedece, que herda os privilégios e quem é excluído. O dinheiro, uma mera
convenção, age em nome de quem detém o poder. Desta maneira, para se conhecer uma sociedade,
se faz necessário reconstruir a estrutura do processo que permite a reprodução poder.

O exercício do poder precisa ser legitimado. E, no mundo moderno, quem o faz são os
intelectuais. Segundo o autor as teses de pensadores como Sérgio Buarque e Raymundo Faoro,
ajudaram a criar uma interpretação dominante – a de que o Estado abrigaria uma elite corrupta que
advém de uma herança de Portugal – que nega a escravidão como semente societária. O paradigma
essencialmente racista que até 1920 tinha a sua base calcada na cor da pele e traços fisionômicos, o
racismo fenotípico, para explicar o comportamento das pessoas em sociedade, passa a ser substituído
pelo que Souza chama de paradigma “culturalista”. A ideia que passou a ser difundida aqui, no âmbito
nacional e internacional, é de que os estoques culturais herdados pelas pessoas influenciam os seus
comportamentos e explicam por que alguns vivem no luxo e outros na miséria.

O culturalismo torna-se, nesse ponto, senso comum internacional e a principal tese para se
explicar as diferenças sociais e de desenvolvimento relativo no globo. Tendo sido produzida nos EUA
e disseminada pelo mundo, teve sua “Era de Ouro” no pós-guerra, quando foi introduzida a
modernização. Ela explicava precisamente o motivo da ascensão e atraso de algumas nações. Os EUA
foram, então, transformados em um modelo exemplar para o mundo e, segundo Souza, comparações
empíricas com outras nações passaram a ser realizadas de forma massiva para demonstrar que a
superioridade dos estadunidenses. Na base desse argumento, estava a herança cultural do
protestantismo individualista americano como paradigma insuperável para a constituição de uma
sociedade rica e democrática.

Para o autor, o Culturalismo é uma falsa ruptura com o racismo científico “racial” e as ciências
sociais dominantes no Brasil, repetem este mesmo esquema, este falso rompimento, e seu
culturalismo na verdade está impregnado de um racismo implícito, sendo, portanto, uma continuação
do racismo científico da cor da pele e não sua superação. Para Souza, a separação ontológica entre
seres humanos de primeira, e segunda classe, comprovam a sua teoria e legitimam a ideia de
superioridade inata de uns e suposta inferioridade inata de outros. Os seres superiores, nesse caso, os
americanos, seriam mais democráticos e mais honestos que os inferiores, como os latino-americanos,
por exemplo.
Esta tese cumpre, segundo o autor, o mesmo papel do racismo científico fenotípico. Qual seja,
“garantir a sensação de superioridade e distinção para os povos e países que estão em situação de
domínio e, desse modo, legitimar e tornar merecida a própria dominação” (SOUZA, 2019, p. 21).

No âmbito brasileiro, Gilberto Freyre foi o principal expoente dessa tese para explicar a nossa
sociedade. Vigente até hoje, o paradigma culturalista brasileiro é dominado pelas falsas ideias da
continuidade cultural com Portugal e da emotividade como um traço especifico dessa cultura.

Sérgio Buarque, vem posteriormente, interpretar o paradigma culturalista de Freyre,


afirmando que a singularidade brasileira estaria construída a partir da ideia do homem cordial, homem
emotivo e potencialmente corrupto, já que dividiria o mundo entre amigos e inimigos e não de modo
meritocrático e impessoal – como faz o homem norte americano ou europeu –, Roberto DaMatta vem
dar corpo a este pensamento, com a tese de que o estreitamento das relações pessoais no dia a dia do
brasileiro, para conseguir vantagens, seria uma peculiaridade daqui, o famoso “jeitinho brasileiro”.

O Estado patrimonialista seria a principal herança do homem cordial e o maior problema


nacional. Segunda Buarque, a corrupção, o vampirismo, entra-se dentro do Estado, logo, seria o
pecado original, a herança maldita deixada pela colonização portuguesa. É a ideologia do vira-lata
brasileiro. Inferior, posto que percebido como emocional, diferente do norte americano e europeu,
que colocariam a impessoalidade acima de suas preferenciais emocionais. E mais, a realidade
nacional, o atraso do país, a corrupção seria fruto de Portugal, desconsiderando a existência de
corrupção nos países sem influência deste. E principalmente, esta tese ignora o fato de não ter havido
escravidão em Portugal, mas que se constituiu como organização laboral dominante por mais de
trezentos anos.

A escravidão é nosso berço

Neste capítulo, Souza revisita algumas obras de Freyre para demonstrar que a sociedade
brasileira não está pautada por uma herança com Portugal, mas sim na escravidão.

Para Freyre, a sociedade se pautaria, tanto politicamente quanto culturalmente, no


particularismo da família patriarcal. O chefe da família, o senhor de escravos e terra, era a autoridade
absoluta e despótica, não havendo limites ao exercício de seu poder. Seria um componente
sadomasoquista, na medida em que inclinações pessoais do patriarca, decidiam, em última instância
sobre a amplitude do núcleo familiar e como, a quem e em que proporção seriam distribuídos seu
favor e proteção. Freyre pensa a escravidão brasileira como uma mistura da escravidão semi-
industrial das plantations americanas com a escravidão familiar e sexual moura e mulçumana, aliado
a necessidade de aumento populacional. Outro ponto levantado por Freyre, seria o fato dos filhos dos
senhores com índias e escravas serem aceitos como europeizados, no caso de aceitação da religião e
costumes do pai. Tais características, segundo Freyre, seriam exclusivas do nosso país. Segundo
Souza, esta escravidão peculiar, semi-industrial e sexual, seriam as sementes das relações de classe e
de gênero no nosso país. O Brasil Colônia tinha, na visão de Freyre, um patriarcalismo familiar.

Quando o país passa se tornar o centro do Império Português, saindo do olhar rural, para o
urbano, o patriarca deixa de ser referência absoluta. Ele passa a ter que igualmente ser curvar a um
sistema de valores com regras próprias aplicáveis a todos. Neste Brasil moderno, segundo Souza, a
passagem do sistema de casa-grande e senzala para o sistema urbano de sobrado e mocambo,
fragmenta a unidade orgânica até então existente e acentua os problemas sociais existentes. A
urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros libertos e dos mestiços pobres
que viviam na cidade.

Neste período observou-se também a valorização do talento individual e conhecimento, que


tanto o novo mercado. Em busca de pessoas especializadas, quanto as novas funções estatais exigiam.
Além disso, no âmbito de mercado, a introdução veio desvalorizar ainda mais a base do sistema
escravocrata patriarcal, agindo, segundo Souza, como principal elemento dissolvente da sociedade e
da cultura patriarcais.

Ao desvalorizar a sociedade escravocrata patriarcal, se observou que a possibilidade


europeização dos filhos de “ilegítimos” dos senhores permitiu, de certo modo, a ascensão destes, para
atuar no mercado e junto ao Estado, durante o Brasil Império. Uma espécie de modernidade hibrida,
patriarcal e em alguma medida, burguesa. Era o poder do patriarca sendo ampliado e transmitido para
dentro do Estado.

Para Souza, são as relações sociais e instituições concretas que produzem a semente social do
Brasil atual. O sadismo sai da esfera privada e invade a esfera pública, a elite adentra o Estado e o
privatiza. Indo de contra a tese do patrimonialismo. Para o autor, as consequências política e social
dessas tiranias privadas, quando se transmite do eixo familiar/sexual para a esfera pública das relações
políticas e sociais, tornam-se evidentes na dialética de mandonismo e autoritarismo do lado das elites
com o abandono e desprezo das massas por outros. Ademais, o autor percebe também a formação de
uma classe intermediária, uma classe decisiva para a construção do Brasil moderno: a classe média,
cujo privilégio irá se concentrar na reprodução social do capital cultural valorizado. A formação dessa
classe no século XIX já aponta para um mecanismo que viria ser tornar mais forte com tempo: a
distinção em relação aos de baixo, ou o ódio ao pobre. O processo de incorporação do mestiço à nova
sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Para Souza a função
desta nova classe que se perpetua até o Brasil de hoje não mudou: servir às classes incluídas para lhes
alimentar o prazer da “superioridade” e do mando e, por ser uma classe sem futuro, pode ser explorada
a preço vil.

O autor termina o capítulo, afirmando que a partir desta análise, podemos começar a entender
a relação entre a classe social e raça no Brasil. Ser branco não seria exclusividade de mistura étnica
de povos europeus, mas seria um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais.
Embranquecer significava, em uma sociedade que se europeizava, “compartilhar os valores
dominantes dessa cultura, ser um suporte dela”. A posse, real ou suposta, de valores europeus
individualistas, passou a “legitimar a dominação social de uns sobre os outros, justificar os privilégios
de uns sobre os outros, calar a consciência da injustiça ao racionalizá-la e permitir a pré-história da
naturalização da desigualdade como a percebemos e vivenciamos hoje”.

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