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Introdução
Jessé de Souza, sociólogo, doutor em filosofia e psicanálise, professor e ex-presidente do Ipea,
constrói a obra A elite do atraso: da escravidão à lava jato, como uma resposta crítica ao livro de
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, publicado em 1936. Souza analisa também a obra de
diversos autores, como Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, dentre outros, para formar o seu
pensamento e explicar a sua teoria.
O livro é dividido em três capítulos, além de um prefácio e uma introdução que serve como
ponte para o início de sua crítica. Resumirei aqui o prefácio, a introdução “O racismo de nossos
intelectuais: o brasileiro como vira-lata”, e o primeiro capítulo “A escravidão é nosso berço”, onde o
autor aborda o mundo criado pela escravidão a partir de um olhar crítico sobre as teses de Gilberto
Freyre.
Segundo o autor, o ponto central de toda a sociedade é o poder. Quem o detém, determina
quem manda e quem obedece, que herda os privilégios e quem é excluído. O dinheiro, uma mera
convenção, age em nome de quem detém o poder. Desta maneira, para se conhecer uma sociedade,
se faz necessário reconstruir a estrutura do processo que permite a reprodução poder.
O exercício do poder precisa ser legitimado. E, no mundo moderno, quem o faz são os
intelectuais. Segundo o autor as teses de pensadores como Sérgio Buarque e Raymundo Faoro,
ajudaram a criar uma interpretação dominante – a de que o Estado abrigaria uma elite corrupta que
advém de uma herança de Portugal – que nega a escravidão como semente societária. O paradigma
essencialmente racista que até 1920 tinha a sua base calcada na cor da pele e traços fisionômicos, o
racismo fenotípico, para explicar o comportamento das pessoas em sociedade, passa a ser substituído
pelo que Souza chama de paradigma “culturalista”. A ideia que passou a ser difundida aqui, no âmbito
nacional e internacional, é de que os estoques culturais herdados pelas pessoas influenciam os seus
comportamentos e explicam por que alguns vivem no luxo e outros na miséria.
O culturalismo torna-se, nesse ponto, senso comum internacional e a principal tese para se
explicar as diferenças sociais e de desenvolvimento relativo no globo. Tendo sido produzida nos EUA
e disseminada pelo mundo, teve sua “Era de Ouro” no pós-guerra, quando foi introduzida a
modernização. Ela explicava precisamente o motivo da ascensão e atraso de algumas nações. Os EUA
foram, então, transformados em um modelo exemplar para o mundo e, segundo Souza, comparações
empíricas com outras nações passaram a ser realizadas de forma massiva para demonstrar que a
superioridade dos estadunidenses. Na base desse argumento, estava a herança cultural do
protestantismo individualista americano como paradigma insuperável para a constituição de uma
sociedade rica e democrática.
Para o autor, o Culturalismo é uma falsa ruptura com o racismo científico “racial” e as ciências
sociais dominantes no Brasil, repetem este mesmo esquema, este falso rompimento, e seu
culturalismo na verdade está impregnado de um racismo implícito, sendo, portanto, uma continuação
do racismo científico da cor da pele e não sua superação. Para Souza, a separação ontológica entre
seres humanos de primeira, e segunda classe, comprovam a sua teoria e legitimam a ideia de
superioridade inata de uns e suposta inferioridade inata de outros. Os seres superiores, nesse caso, os
americanos, seriam mais democráticos e mais honestos que os inferiores, como os latino-americanos,
por exemplo.
Esta tese cumpre, segundo o autor, o mesmo papel do racismo científico fenotípico. Qual seja,
“garantir a sensação de superioridade e distinção para os povos e países que estão em situação de
domínio e, desse modo, legitimar e tornar merecida a própria dominação” (SOUZA, 2019, p. 21).
No âmbito brasileiro, Gilberto Freyre foi o principal expoente dessa tese para explicar a nossa
sociedade. Vigente até hoje, o paradigma culturalista brasileiro é dominado pelas falsas ideias da
continuidade cultural com Portugal e da emotividade como um traço especifico dessa cultura.
Neste capítulo, Souza revisita algumas obras de Freyre para demonstrar que a sociedade
brasileira não está pautada por uma herança com Portugal, mas sim na escravidão.
Quando o país passa se tornar o centro do Império Português, saindo do olhar rural, para o
urbano, o patriarca deixa de ser referência absoluta. Ele passa a ter que igualmente ser curvar a um
sistema de valores com regras próprias aplicáveis a todos. Neste Brasil moderno, segundo Souza, a
passagem do sistema de casa-grande e senzala para o sistema urbano de sobrado e mocambo,
fragmenta a unidade orgânica até então existente e acentua os problemas sociais existentes. A
urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros libertos e dos mestiços pobres
que viviam na cidade.
Para Souza, são as relações sociais e instituições concretas que produzem a semente social do
Brasil atual. O sadismo sai da esfera privada e invade a esfera pública, a elite adentra o Estado e o
privatiza. Indo de contra a tese do patrimonialismo. Para o autor, as consequências política e social
dessas tiranias privadas, quando se transmite do eixo familiar/sexual para a esfera pública das relações
políticas e sociais, tornam-se evidentes na dialética de mandonismo e autoritarismo do lado das elites
com o abandono e desprezo das massas por outros. Ademais, o autor percebe também a formação de
uma classe intermediária, uma classe decisiva para a construção do Brasil moderno: a classe média,
cujo privilégio irá se concentrar na reprodução social do capital cultural valorizado. A formação dessa
classe no século XIX já aponta para um mecanismo que viria ser tornar mais forte com tempo: a
distinção em relação aos de baixo, ou o ódio ao pobre. O processo de incorporação do mestiço à nova
sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Para Souza a função
desta nova classe que se perpetua até o Brasil de hoje não mudou: servir às classes incluídas para lhes
alimentar o prazer da “superioridade” e do mando e, por ser uma classe sem futuro, pode ser explorada
a preço vil.
O autor termina o capítulo, afirmando que a partir desta análise, podemos começar a entender
a relação entre a classe social e raça no Brasil. Ser branco não seria exclusividade de mistura étnica
de povos europeus, mas seria um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais.
Embranquecer significava, em uma sociedade que se europeizava, “compartilhar os valores
dominantes dessa cultura, ser um suporte dela”. A posse, real ou suposta, de valores europeus
individualistas, passou a “legitimar a dominação social de uns sobre os outros, justificar os privilégios
de uns sobre os outros, calar a consciência da injustiça ao racionalizá-la e permitir a pré-história da
naturalização da desigualdade como a percebemos e vivenciamos hoje”.