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Nº 25-26

Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia


é uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Território e Comu-
nicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade.
Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia Vermelha
Escola de Serviço Social, sala 33
22290-240 Rio de Janeiro, RJ

EQUIPE EDITORIAL
Alexandre do Nascimento
Alexandre Mendes
Barbara Szaniecki
Fábio Malini
Gerardo Silva
Gilvan Vilarim
Giuseppe Cocco
Leonora Corsini

DESIGN Barbara Szaniecki


REVISÃO DE TEXTOS Leonora Corsini
DESENHO DA CAPA: Luca Szaniecki Cocco
APOIO: Este volume foi realizado em parceria com o LABIC/Universidade Federal do Es-
pírito Santo

CONSELHO EDITORIAL
• Alexander Patez Galvão - Rio de Janeiro, Brasil • Ana Kiffer - Rio de Janeiro, Brasil • Antonio
Negri - Roma, Itália • Beppe Caccia - Veneza Itália • Bruno Cava - Rio de Janeiro, Brasil • Caia
Fittipaldi - São Paulo, Brasil • Carlos Alberto Messeder - Rio de Janeiro, Brasil • Carlos Augusto
Peixoto Jr. - Rio de Janeiro, Brasil • Christian Marazzi - Genebra Suíça • Elisabeth Rondelli - Rio
de Janeiro, Brasil • Henrique Antoun - Rio de Janeiro, Brasil • Ivana Bentes - Rio de Janeiro, Brasil
• Karl Erik Scholhammer - Rio de Janeiro, Brasil • Maria Alice R. de Carvalho - Rio de Janeiro,
Brasil • Maria José Barbosa - Belém, Brasil • Maurizio Lazzarato - Paris, França • Micael Hersch-
mann - Rio de Janeiro, Brasil • Michael Hardt - Durham, Estados Unidos • Michèle Colin - Paris
França • Patrícia Daros - Rio de Janeiro, Brasil • Paulo Henrique de Almeida - Salvador, Brasil •
Paulo Vaz - Rio de Janeiro, Brasil • Peter Pal Pelbart - São Paulo, Brasil • Rodrigo Guéron - Rio de
Janeiro, Brasil • Suely Rolnik - São Paulo, Brasil • Tatiana Roque - Rio de Janeiro, Brasil • Thierry
Baudouin - Paris, França • Yann Moulier Boutang - Paris, França •

Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia


Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e Comunicação
– LABTeC/ESS/UFRJ – Vol 1, n. 1, (1997) – Rio de Janeiro: UFRJ, n. 25-26
mai-dez 2008

Quadrimestral
Irregular (2002/2007)

ISSN – 1415-8604
1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –
Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação. LABTeC/ESS.
CDD 302.23
306.2
EDITORIAL 7

UNIVERSIDADE NÔMADE
• Os novos manifestos sobre as cotas 11
Alexandre do Nascimento
• Vida no e contra o trabalho: afetos, crítica feminista
e política pós-fordista 17
Kathi Weeks
• Os direitos humanos no contexto da globalização:
três precisões conceituais 39
Joaquín Herrera Flores
• Análise da Nova Constituição Política do Estado 73
Raúl Prada Alcoreza

MÍDIA E CULTURA
• Mídia, Subjetividade e Poder: Construindo os
Cidadãos-Consumidores do Novo Milênio 89
João Freire Filho
• Resistências criativas: os coletivos artísticos e
ativistas no Brasil 105
Henrique Mazetti
• Guerra Civil Imaterial: Protótipos de Conflito
dentro do Capitalismo Cognitivo 121
Matteo Pasquinelli
• Midialivristas, uni-vos! 137
Adriano Belisário, Gustavo Barreto, Leandro Uchoas,
Oona Castro e Ivana Bentes

CIDADE E METRÓPOLE
• Cidade e Metrópole: a lição da barragem 145
Gerardo Silva
• Potências do samba, clichês do samba –
linhas de fuga e capturas na cidade do Rio de Janeiro 157
Rodrigo Guéron
• Trabalho – operação artística: expulsões 171
Cristina Ribas
• Cidades, cegueira e hospitalidade 191
Márcia de N.S. Ferran
• Dispositivo metrópole.A multidão e a metrópole 201
Antonio Negri

A CULTURA MONSTRUOSA
• A potência da hibridação –
Édouard Glissant e a creolização 211
Leonora Corsini
• Expressões do monstruoso precariado urbano:
forma M, multiformances, informe 223
Barbara Szaniecki
• Artaud, momo ou monstro? 237
Ana Kiffer
• O corpo e o devir-monstro 245
Carlos Augusto Peixoto Junior
• Do experimental informe ao Quasi-cinema,
observações sobre “COSMOCOCA - programa in
progress”, de Hélio Oiticica 257
Inês de Araujo
• Culturas múltiplas versus monocultura 271
Pedro de Niemeyer Cesarino

NAVEGAÇÕES
• “Faxina” e “pilotagem”: dispositivos (de guerra)
políticos no seio da administração prisional 283
Adalton José Marques
• Lutas operárias em São Paulo e no ABC nos anos 70 291
Jean Tible
• Nas peles da cebola ou da “segunda natureza”
em excesso.A delicada luta pelo estado de exceção
benjaminiano 311
João C. Galvão Jr.

RESENHAS
• Consumismo e Globalização – faces e fases
de uma mesma moeda? 324
João Batista de Almeida Sobrinho
• Um novo Imperialismo? 330
Marina Bueno

RESUMOS 333
Editorial

Com mais esse número duplo, a Lugar Comum continua, com potência
renovada, sua trajetória editorial. O núcleo temático sobre “Cidade e Metrópole”
desenvolve as reflexões propostas em vários outros números da revista sobre a
temática das redes metropolitanas como novos espaços produtivos do capitalismo
contemporâneo. Um tema de grande centralidade, sobretudo depois das recentes
eleições municipais que, por um lado, viram o avanço das forças progressistas e,
por outro, uma instrumentalização nacional das eleições nas grandes capitais que
acabou esvaziando o debate sobre os programas e as propostas de mobilização de-
mocrática da cidade. O segundo núcleo temático, “A Cultura Monstruosa”, mobi-
liza o tema do “monstro” e da cultura. Trata-se de um debate totalmente comple-
mentar à discussão sobre dinâmicas metropolitanas, pois é impossível apreender
essas últimas sem uma teoria dos sujeitos monstruosos que as desenham e atraves-
sam. Além disso, nessa seção, os temas da hibridação, da criação e do corpo são
discutidos, colocando a produção da cultura, sua monstruosidade, no cerne das
dinâmicas contemporâneas. Em “Navegações”, apresentamos uma série de con-
tribuições orginais e inovadoras: desde um estudo antropológico dos dispositivos
de guerra em âmbito prisional, até uma reflexão histórica sobre as lutas operárias
do ABC paulista, passando por discussões sobre os conceitos e as experiências de
resistência. A essas contribuições juntam-se, finalmente, os materiais mais polí-
ticos da seção “Universidade Nômade”, que nos falam da política e das lutas no
capitalismo pós-moderno: desde o manifesto em favor da política de cotas raciais,
até a produção dos direitos humanos no contexto da globalização, passando pelo
movimento feminista diante da dimensão afetiva do trabalho. Temas que serão
reencontrados nos artigos dedicado à temática “Mídia e Cultura”.
Este número da Lugar Comum propõe, enfim, mais um conjunto de re-
flexões teóricas e políticas para pensar os conflitos, a produção de subjetividade
que atravessam e estruturam o mundo contemporâneo. Trata-se de abordagens
inovadoras e criativas, cujo interesse é amplificado pela crise global (a chamada
crise financeira) na qual entramos. Ou seja, a leitura desta edição da Lugar Co-
mum permite-nos melhor apreender e debater o fim de um mundo (aquele da glo-
balização neoliberal) para enxergar horizontes possíveis, dos mundos possíveis,
que se abrem dentro dessa crise. Nessa abertura dramática dos possíveis, pensar
os lugares comuns do trabalho afetivo, comunicativo, articulador das redes me-
tropolitanas e nelas monstruosamente articulado, torna-se um terreno essencial
de resistência e inovação.
Boa leitura.
Universidade Nômade
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 11-16

Os novos manifestos sobre as cotas

Alexandre do Nascimento

O debate sobre as cotas raciais no Brasil parece longe de uma conclu-


são. Apesar de ter sido ratificada pelo Brasil na III Conferência Mundial contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de In-
tolerância e, hoje, ser adotada por mais de sessenta universidades, a proposta
de política de cotas raciais ou reserva de vagas para negros e indígenas ainda é
muito polêmica.
Em 2006, dois manifestos1 à Sociedade e ao Congresso Nacional, um
contra e outro favorável às cotas raciais, abriram um intenso debate (Nascimento,
2008). Em 2008, esse debate ganhou um novo episódio, desta vez com a discus-
são sobre a constitucionalidade das cotas, a partir de dois novos manifestos orga-
nizados pelos mesmos grupos que lançaram os manifestos de 2006.
Como em 2006, os maiores veículos de comunicação do país posiciona-
ram-se contrariamente às cotas raciais. Em 14 de maio de 2008, o Jornal Folha
de São Paulo, em editorial com o subtítulo “Uma política de ação afirmativa que
favoreça estudantes mais pobres beneficiará negros sem racializar relações so-
ciais”, escreveu:

Grupos favoráveis e contrários à adoção de cotas raciais nas universidades


travam uma guerra de manifestos em Brasília. No dia 30 (de abril de 2008),
intelectuais enviaram ao Supremo Tribunal Federal, que julga ações diretas de
inconstitucionalidade sobre o tema, o documento intitulado Cento e treze cida-
dãos anti-racistas contra as leis raciais’. Ontem (13 de maio de 2008) foi a vez
de defensores da reserva visitarem a corte e a Câmara – onde tramita projeto
que institui cotas em todas as universidades federais – para apresentar seu ma-
nifesto. A questão é intricada e provoca debates acalorados, mas não a ponto
de inviabilizar abordagem serena, respeitosa e racional. A sociedade brasileira,
apesar da propaganda em torno da democracia racial, conserva-se discrimina-
dora. Embora seja difícil provar em juízo casos de racismo contra um indiví-
duo em particular, a divisão emerge clara das estatísticas (grifos meus).

1 Manifesto “Todos têm direitos iguais na República Democrática” (Brasília, 29/06/06) e Mani-
festo “Em favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial” (Brasília, 04/07/06).
12 OS NOVOS MANIFESTOS SOBRE AS COTAS

Grupos contrários às cotas argumentam, com razão, que esse tipo de política
afronta o ideal republicano da igualdade de todos diante da lei (grifos meus).

É possível, entretanto, evitar essas armadilhas teóricas e práticas sem renunciar


a medidas anti-racistas. Um dos efeitos do racismo é que os grupos discrimi-
nados acabam perenizando-se nos estratos de baixa renda. Uma política que
favoreça pessoas mais pobres automaticamente contemplará negros, índios e
outras minorias sem o risco de racializar as relações sociais. Uma maneira efi-
caz e mais isonômica de selecionar essa população é beneficiar vestibulandos
oriundos da escola pública, sem distinção de cor. Já para preservar o acesso por
mérito, o melhor é deixar de lado o sistema de cotas, que opera com números
predeterminados de vagas a serem preenchidas. Em vez disso, o mais indicado é
conceder um bônus na nota do vestibular aos estudantes beneficiados pela ação
afirmativa.

Esse editorial foi escrito quatorze dias após a divulgação do documento


intitulado “Centro e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais” (contrário
às cotas para negros) e um dia após a divulgação do documento “120 anos de luta
pela igualdade racial no Brasil: Manifesto em defesa da justiça e constitucionali-
dade das cotas” (favorável às cotas para negros), ambos entregues ao Presidente
do Supremo Tribunal Federal e organizados pelos mesmos grupos dos manifestos
de 2006. Desta vez, os manifestos se dirigiram aos ministros do Supremo Tribunal
Federal, em função de duas ações de inconstitucionalidade, de autoria da Confe-
deração Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN), uma contra o
Programa Universidade para Todos (PROUNI) do Ministério da Educação (que
possui cotas para negros no seu bojo) e outra contra a lei que instituiu cotas nas
Universidades Estaduais do Rio de Janeiro2.
O primeiro documento, assinado por 113 pessoas auto-intituladas “inte-
lectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos
negros e outros movimentos sociais”, apresenta, segundo seus autores, “argumen-
tos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica da Repú-
blica”. Tais argumentos são, basicamente, a defesa da inconstitucionalidade das
cotas raciais (na verdade, das cotas para negros), a partir dos artigos 19 e 208 da
Constituição Federal, e do que, segundo os autores, constitui uma impossibilida-
de, ou seja, a determinação de quem é negro no Brasil, baseando-se nas pesquisas
do Geneticista Sérgio Pena (que é um dos signatários do documento) e na “per-
cepção da mestiçagem, que impregna profundamente os brasileiros”.

2 Lei Estadual No. 4151/2003.


Alexandre do Nascimento 13

O segundo documento, assinado por 740 pessoas em geral e por um gru-


po maior de juristas, artistas, políticos, professores, pesquisadores, ativistas do
movimento negro e de outros movimentos sociais, estudantes e personalidades,
na mesma lógica, apresenta argumentos históricos, sociais, políticos e jurídicos
em defesa da constitucionalidade das políticas de cotas para negros. Basicamente,
defende-se a constitucionalidade e a importância das cotas como política concreta
de redução de desigualdade e democratização, enfatizando as lutas que produzi-
ram o atual debate e as políticas de ação afirmativa no Brasil. De acordo com os
autores, “nosso sistema constitucional, priorizando os direitos fundamentais e a
dignidade da pessoa humana, estabeleceu a isonomia não somente em sentido
formal, mas também em sentido material (art. 3º, inciso III)”. Além disso, o docu-
mento coloca que “a existência de movimentos anti-racistas e de leis de repressão
da discriminação racial não se baseia no reconhecimento da existência das raças,
mas na necessidade de combater as discriminações”.
De 2001 – quando no Brasil o debate sobre ações afirmativas e políticas
de cotas ampliou-se na sociedade – até os dias de hoje, o jornal Folha de São
Paulo, um dos maiores e mais influentes no país, publicou diversos artigos e re-
portagens. Porém, opiniões e informações contrárias às políticas de cotas tiveram
maior espaço do que as opiniões e informações favoráveis.
Em relação aos manifestos de 30 de abril e 13 de maio de 2008 o jornal
Folha de São Paulo foi mais cauteloso. Porém, o editorial de 14 de maio de 2008,
apresentou os argumentos e divulgou o título do documento contrário e não fez o
mesmo em relação ao documento favorável às cotas para negros. Nas publicações
dos documentos (pág. 4 e 5), apresentou o trecho do documento contrário às cotas
em que os autores citam artigos da constituição e também não fez o mesmo em
relação ao outro manifesto.
Diante desses diferentes posicionamentos sobre os manifestos, alguns
elementos merecem aprofundamento. Um elemento que tem sido explorado pela
imprensa no debate é uma suposta “divisão” do movimento negro sobre o tema,
baseando-se na presença de nomes da militância negra nos manifestos contrários
e favoráveis às cotas.
Ora, o chamado “Movimento Negro” é uma multiplicidade de organiza-
ções e não uma única organização. Em relação às cotas, a maioria dessas organi-
zações, grupos e militantes é favorável, o que se expressa nas várias intervenções
políticas da militância negra. Como na II Marcha contra o Racismo, Pela Igualda-
de e a Vida, realizada em Brasília no dia 22 de novembro de 2005 que, em seu Ma-
nifesto assinado por 21 organizações nacionais e militantes de todos os Estados da
14 OS NOVOS MANIFESTOS SOBRE AS COTAS

Federação, apresenta-se como “uma Marcha que vai exigir do Governo Lula e do
Congresso Nacional, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do Projeto de
Cotas nas Universidades”3.
Outro importante elemento do debate a ser destacado são os discursos.
É importante dizer que o debate sobre as cotas é um debate político, um debate
a partir de pontas de vista, onde não apenas a militância e o movimento negro
falam de um determinado lugar. Políticos, pesquisadores e cidadãos em geral
também argumentam a partir do seu lugar de classe, de raça/cor e dos interesses
e preconceitos que os mobilizam. Isso fica nítido no manifesto contrário às cotas,
apesar da tentativa de discurso que defende o princípio da igualdade de todos
perante a lei:
A sociedade brasileira não está livre da chaga do racismo, algo que é
evidente no cotidiano das pessoas com tom de pele menos claro, em especial entre
os jovens de baixa renda. A cor conta, ilegal e desgraçadamente, em incontáveis
processos de admissão de funcionários. A discriminação se manifesta de múltiplas
formas, como por exemplo na hora das incursões policiais em bairros periféricos
ou nos padrões de aplicação de ilegais mandados de busca coletivos em áreas de
favelas. Por certo existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não
é uma nação racista. Depois da Abolição, no lugar da regra da “gota de sangue
única”, a nação brasileira elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista
de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo. Há sete décadas, a
República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões signifi-
cativa de ódio racial.
Ora, a idéia de mestiçagem a qual se refere o manifesto é a mesma abor-
dagem que dá origem, no pensamento social brasileiro, do chamado “mito da
democracia racial”. Trata-se de um reconhecimento da mestiçagem que nega o
que a mestiçagem produz. Nesse discurso a mestiçagem aparece como negação
da existência (social) de raças, como denominação de uma homogeneidade (povo
mestiço) e, pois, como uma negação de que no Brasil existam relações raciais
assimétricas. Nesse pensamento, falar em criar cotas raciais nas instituições seria
criar uma “divisão perigosa” da sociedade em raças (Fry et al., 2007).

3 Manifesto Zumbi + 10 - II Marcha contra o Racismo, Pela Igualdade e a Vida.


Alexandre do Nascimento 15

Do nosso ponto de vista, algumas questões se colocam: falar em mestiça-


gem e miscigenação não seria supor a existência de raças? Além disso, não seria
a política de cotas uma espécie de reconhecimento da diversidade e, pois, de uma
mestiçagem que não aparece em determinadas instituições, como as universida-
des? O que significa dizer que “existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas
o Brasil não é uma nação racista”? Qual é, de fato, a preocupação dos “Cento e
treze cidadãos anti-racistas” em relação às cotas para negros?
As cotas destinadas a pessoas pobres e/ou de grupos sociais historica-
mente discriminados (negros, indígenas, etc.) são importantes medidas de demo-
cratização dos direitos e também das instituições, pois reconhecem a importância
da diversidade, que não é somente diversidade de cores, mas também de multi-
plicidade de singularidades, culturas, visões de mundo, pontos de vista, preocu-
pações de pesquisa e criatividade, fundamentais ao desenvolvimento de qualquer
sociedade. Os discursos abstratos dos contrários às ações afirmativas, de que as
cotas ferem o princípio do mérito e racializam a sociedade, carecem de base em-
pírica, pois os dados concretos nos mostram que na realidade brasileira as ações
afirmativas (e, entre elas, as cotas) constituem uma parte importante de um pro-
cesso de universalização dos direitos e democratização das instituições.

Referências

D’ADESKY, Jacques. Anti-racismo, liberdade e reconhecimento. Rio de Janeiro,


Daudt, 2006.
FRY, Peter; MAGGIE, Yvonne; MAIO, Marcos Chor; MONTEIRO, Simone; SAN-
TOS, Ricardo Ventura (orgs.). Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Con-
temporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo mestiçagem no Brasil: identidade nacional
versus identidade negra. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
MANIFESTO ZUMBI. Documento da II Marcha Zumbi+10 contra o racismo, pela
igualdade e a vida. Brasília, 22/11/2006.
NASCIMENTO, Alexandre do. Os Manifestos, o debate público e a proposta de co-
tas. In: Revista Lugar Comum. Estudos de Mídia, Cultura e Democracia, n. 23-24,
Rio de Janeiro, 1o semestre 2008.
NEGRI, Antonio e COCCO, Giuseppe. Global: biopoder e luta em uma América
Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.
16 OS NOVOS MANIFESTOS SOBRE AS COTAS

MANIFESTO “Centro e treze cidadãos anti-raciais contra as leis raciais”. Brasília,


30/04/2008.
MANIFESTO “120 anos de luta pela igualdade racial no Brasil: Manifesto em defesa
da justiça e da constitucionalidade das cotas”. Brasília, 13/05/2008.

Alexandre do Nascimento, educador e doutorando em Serviço Social pela UFRJ, é


professor do Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e professor da Fun-
dação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC), onde integra o Nú-
cleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações Afirmativas. Juntamente com José Jorge de Carvalho
(UNB), Frei David Raimundo dos Santos (EDUCAFRO), Renato Ferreira (LPP/UERJ) e ou-
tros. É articulador do Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial
(entregue ao Congresso Nacional em 2006) e do Manifesto em Defesa da Constitucionalidade
das Cotas (entregue ao Supremo Tribunal Federal em 2008).
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 17- 38

Vida no e contra o trabalho: afetos,


crítica feminista e política pós-fordista4

Kathi Weeks

As teóricas do feminismo vêm há muito se interessando pelo trabalho


imaterial e afetivo, mesmo que esses termos sejam invenção mais recente. Suas
primeiras abordagens das práticas e relações laborativas imateriais faziam parte
de uma estratégia de luta para expandir a própria categoria do trabalho, de modo
a incluir de maneira mais abrangente as formas-gênero do trabalho. O trabalho
afetivo, em particular, vinha sendo interpretado por algumas tradições do feminis-
mo como fundamental, tanto para as modalidades contemporâneas de exploração,
quanto para a possibilidade de transgredi-las. Discussões contemporâneas acerca
dos conceitos de trabalho imaterial e afetivo muito teriam a se beneficiar com a
melhor compreensão dessa linhagem. Com esse intuito, analisarei nesse artigo
dois projetos pioneiros do feminismo: o da segunda onda de feministas socialis-
tas, que visavam a adicionar uma perspectiva crítica do trabalho de reprodução a
uma análise marxista do trabalho produtivo; e a instigante contribuição de Arlie
Hochschild, que agregou – às análises críticas do trabalho imaterial de colarinho
branco, exemplificado na obra de C.W. Mills –, o trabalho emocional das presta-
doras de serviço de “colarinho rosa”. Ao focar em cada uma dessas intervenções
feministas (por um lado, a crítica marxista, e por outro, a perspectiva sociológica
dos trabalhadores do setor de serviços), podemos apreender melhor a especifici-
dade dos trabalhos no modo de produção imaterial, e as dificuldades trazidas por
essa teorização.
A importância desses dois projetos feministas reside, no entanto, não
apenas na qualidade de suas análises, mas na força de sua crítica; ou seja, análises
e críticas continuam a ser válidas não somente pelo modo como as feministas fi-
zeram um mapeamento teórico desses estudos mas, sobretudo, pelo modo político
como os criticam. Nesse sentido, gostaria de dar atenção especial às contribuições
das feministas a um projeto de crítica politizada: avaliações críticas com orien-
tação política, ou análises que levam em conta, necessariamente, as possíveis li-

4 Este artigo é uma versão abreviada do texto originalmente publicado em Ephemera, theory
and politics in organization, v. 7(1), p. 233-249, 2007 (disponível em www.ephemeraweb.org).
Tradução Leonora Corsini.
18 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

nhas de antagonismo. As feministas socialistas, por exemplo, trabalham com a


perspectiva marxista da política econômica, para conceber o trabalho reprodutivo
não-remunerado, particularmente o trabalho doméstico do cuidado, tanto como o
locus da exploração quanto como o lugar em que emergem sujeitos resistentes e
visões alternativas. Mills e Hochschild desenham, ao contrário, versões da teoria
marxista da alienação, para desenvolver uma crítica da crescente dependência do
capital às formas imateriais e especificamente afetivas do trabalho.
Ambas estratégias críticas acabam falhando, no meu ponto de vista; suas
falhas são, no entanto, muito instrutivas. Apesar dos vários desafios colocados,
cada uma das abordagens vê-se limitada pelo recurso a uma perspectiva crítica e
a uma noção de resistência política ancorada em um “fora”: em outras palavras,
apoiada na separação da esfera reprodutiva da própria produção capitalista, ou
num modelo de self anterior a sua alienação. Além de essas abordagens terem
ou não terem sido adequadas em algum momento, tal dependência em um “fora”
tem-se mostrado cada vez mais insuficiente e inadequada diante das condições da
produção e reprodução pós-fordista.
Na primeira parte do artigo, fazemos uma breve revisão da tradição so-
cialista feminista para, na segunda parte, em discussão um pouco mais extensa,
avaliar as contribuições de Mills e Hochschild. Na seção final, começo a pensar
em termos de uma abordagem teórica alternativa. Considerando tanto os insights
quanto os pontos cegos desses projetos pioneiros, proponho algumas idéias ainda
bastante preliminares sobre como poderíamos pensar o desenvolvimento de uma
estratégia imanentista de intervenção crítico-política, que dê conta de um novo
ângulo de visão, que emoldure um novo tipo de resposta política aos regimes pós-
fordistas de trabalho.

Feminismo socialista e a exploração do trabalho doméstico


Para que possamos trabalhar melhor com o conceito de trabalho imaterial
e, ao mesmo tempo, aprofundar a compreensão dos desafios por ele lançados,
acredito que seja útil retomar a tradição do feminismo socialista anglo-americano,
especificamente as análises desenvolvidas no período entre o final da década de
60 e o início da de 80. Essas foram as primeiras tentativas de apreender as espe-
cificidades do trabalho imaterial numa época ainda dominada pelo paradigma da
produção material. Com um projeto dedicado a mapear as economias capitalistas
e os regimes de gênero a partir de uma perspectiva simultaneamente marxista e
feminista, essas correntes do feminismo buscavam entender como determinadas
práticas de gênero eram mobilizadas e representavam, ao mesmo tempo, uma
Kathi Weeks 19

potencial força disruptiva das relações capitalísticas de produção. Isto valia tanto
para a corrente que predominou no primeiro período (final dos anos 60), quanto
para a perspectiva desenvolvida nos anos subsequentes. Os debates focalizavam
as questões relativas ao trabalho doméstico em articulação com a teoria de Marx
da exploração e a perspectiva da teoria feminista, a qual estava mais interessada
nos sujeitos situados no interior dos sistemas capitalistas e patriarcais, bem como
nos agentes potencialmente contrários a esse modo de produção5. Em um plano
mais amplo de generalização, podemos dizer que o feminismo socialista desse pe-
ríodo enfatizava as contradições existentes entre os processos de acumulação de
capital e a reprodução social. Apesar de esboçarem um movimento em direção a
uma noção ampliada da reprodução como criação e sustentação de formas sociais
e relações de cooperação e socialidade, essas teorias acabaram lançando as bases
para uma concepção mais estreita, circunscrita ao trabalho doméstico não-remu-
nerado e aos cuidados, num âmbito de trabalho confinado ao espaço dos lares.
Abraçaram as questões de entender, assessar e confrontar a relação entre produção
capitalista e reprodução doméstica. O reconhecimento do lar como local de repro-
dução social delineia a luta fundamental para expandir as noções prevalentes do
trabalho. Provavelmente, uma das maiores conquistas das feministas socialistas
desse período foi repensar as concepções hegemônicas a respeito do que contava
como trabalho num tempo em que o trabalho era ainda tipicamente equiparado à
produção assalariada de bens materiais.
Mas, como já observamos, a tradição do feminismo socialista dos anos
1970 é instrutiva não apenas por seus sucessos, mas também pelos seus fracassos.
De modo particular, acho que seria útil relembrar a resistência que havia contra
a ampliação das categorias trabalho e produção. O primeiro daqueles projetos,
que reúne os debates sobre o trabalho doméstico, é particularmente interessante,

5 Um terceiro discurso, o da teoria feminista sistêmica, que se concentrou na relação existente


entre os sistemas capitalistas e patriarcais, predominou no período compreendido entre os de-
bates sobre o trabalho doméstico e os primeiros postulados da perspectiva feminista socialista.
Para exemplos deste debate ver Malos (1995); para algumas das contribuições originais da
perspectiva do socialismo feminista consultar Harding (2004); para representantes da teoria de
sistemas, consultar Sargent (1981). Desdobramentos alternativos desses três projetos, que, no
entanto, não possuem as mesmas limitações que serão destacadas neste artigo e que continuam
válidas até hoje, incluem a luta por salários para o trabalho doméstico (cf., por exemplo, Dalla
Costa e James, 1972), a teoria pós-fordista do socialismo feminista (ver, por exemplo, Haraway,
1985), e os trabalhos da teoria dos sistemas unificados ou em interseção (cf. I. Young, 1981, e
Glenn, 1985). Apesar do feminismo socialista ainda existir (às vezes sob outras denominações)
o final da década de 60 até o início da de 80 marca o auge deste movimento.
20 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

justamente pelos termos específicos de dissenso, e por seus efeitos. Apesar de os


debates terem sido razoavelmente abrangentes, com o passar do tempo os argu-
mentos empacaram na questão de determinar se o trabalho doméstico deveria ser
considerado interno ou externo à produção capitalista propriamente dita. O domí-
nio doméstico faria parte do sistema capitalista, ou, antes, deveria ser considerado
um modo de produção à parte? Seria o trabalho doméstico um trabalho “impro-
dutivo”, uma vez que, ao não gerar valor excedente, não é central ou fundamental
para o capital? Ou seria, ao contrário, uma forma de trabalho “produtivo”, que
produz sim valor excedente, seja direta ou indiretamente e, portanto, deve ser con-
cebido como parte integrante da produção capitalista? Seria um tipo de trabalho
regido pela lei do valor, ou estaria fora dela? Seria marginal ou parte integrante do
processo de valorização? Em suma, estaria o trabalho doméstico dentro ou fora
da produção capitalista?6 O debate ficou assim basicamente polarizado em duas
posições: os mais heterodoxos concebiam o trabalho assalariado e a economia
doméstica em termos mais integrados e lutavam para pôr em xeque o mapa básico
da produção capitalista; por outro lado, os que aderiam à linha mais ortodoxa, que
acabou prevalecendo no debate, insistiam em uma espécie de distinção entre siste-
mas duais. Com base na distinção original feita por Marx entre trabalho produtivo
e improdutivo, os autores mais ortodoxos defendiam uma compreensão mais es-
trita da produção capitalista, completamente vinculada ao paradigma industrial.
Dada a prevalência desse enquadramento essencialmente industrial for-
dista dos debates sobre o trabalho doméstico, não nos surpreende que, em ambas
as vertentes, houvesse uma tendência a privilegiar o trabalho doméstico em de-
trimento das formas afetivas da atividade doméstica. Com efeito, um dos aspec-
tos mais impactantes dessa literatura, analisada sob uma ótica contemporânea, é
a pouca frequência com que eram abordadas as especificidades das práticas do
cuidado, tendência que talvez possa ser atribuída (i) à feminização do trabalho
(e, pois, ao seu estatuto de “trabalho invisível”); (ii) à prevalência de uma deter-
minada vertente marxista bastante ortodoxa; e (iii) à hegemonia do imaginário
fordista. Mesmo os mais heterodoxos participantes do debate, que defendiam o
caráter fundamentalmente capitalista do trabalho doméstico, tendiam a negligen-
ciar ou a subestimar o “cuidado”. Por um lado, reconheciam que o trabalho não é
apenas atividade de criar objetos; mas, por outro, seguiam uma tendência bastante
comum naquele período, de enfatizar as semelhanças entre o trabalho doméstico e

6 Parte do que está em questão aqui é a definição de uma estratégia política: as lutas feministas
deveriam seguir uma linha autônoma, ou deviam se integrar com os movimentos e agendas da
classe trabalhadora?
Kathi Weeks 21

a atividade de criar objetos), possivelmente com o intuito de elucidar os casos em


que o trabalho doméstico – e as mulheres que dele se incumbiam – eram objetos
privilegiados da análise marxiana e sujeitos de uma prática política revolucioná-
ria. De tal modo que a atividade doméstica, à medida que pudesse ser caracteriza-
da em termos da produção de valores de uso para consumo, fosse mais facilmente
aceita como trabalho. Nesse contexto, tornava-se certamente mais difícil apreen-
der a relação entre práticas de cuidado e produção de valor.
Nos finais da década de 1970, o debate sobre trabalho doméstico esgotou-
se e encalhou na controvérsia “dentro versus fora”. O que havia emergido como
uma investigação ampla e abrangente da relação entre capitalismo e trabalho do-
méstico foi-se estreitando até ecoar os momentos iniciais da discussão, quando se
discutia se as práticas e relações domésticas fariam parte da produção capitalista,
ou se seriam relativamente autônomas em relação a ela.7 Firmou-se então como
linha dominante a perspectiva mais ortodoxa, que considera o trabalho doméstico
como distinto e, portanto, integrante de um circuito também distinto e externo ao
circuito da produção capitalista. O trabalho de reprodução no domínio doméstico
foi ou relegado a um território exterior à produção propriamente capitalista, ou
incluído, mas sob a condição de poder ser assimilado ou, até, de poder ser direta-
mente implicado, na produção industrial. A lógica dos sistemas duais construída
sob um modelo de esferas separadas acabou predominando, pautando não apenas
os termos específicos do debate, mas grande parte da posterior literatura feminista
socialista do período.

A perspectiva feminista socialista e os sujeitos da resistência


Contrastando com os debates anteriores sobre o trabalho doméstico, a
perspectiva feminista socialista – e aqui me refiro basicamente ao período que vai
dos últimos anos da década de 1970 aos primeiros anos da década dos 80 – focava
com mais frequência o trabalho do cuidado, abraçando as suas especificidades em
relação à produção industrial como potencial fonte de epistemologias e ontologias
alternativas. Com efeito, essa perspectiva será particularmente relevante para o
nosso propósito nesse ensaio, tanto pelas investigações sobre o trabalho afetivo
quanto pela atenção dada às possibilidades de resistência que esse tipo de trabalho
poderia suscitar. Entre as esferas do lar e da economia, a contradição entre as exi-
gências da acumulação do capital e da reprodução social dá lugar a uma variedade

7 Para uma revisão crítica dos debates do trabalho doméstico ver Ellen Malos (1995), especial-
mente a introdução e a conclusão.
22 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

de disjunções e conflitos, que poderiam derivar em pensamento crítico e ação


política. Ali, onde a literatura do trabalho doméstico concentrava-se em mapear
a dimensão de gênero da exploração do trabalho, as primeiras teorias da perspec-
tiva feminista focavam mais a possibilidade de que tais práticas de exploração e
de marginalização fizessem emergir projetos revolucionários. A reprodução, mais
uma vez tipicamente circunscrita ao espaço doméstico, seria o locus a partir do
qual se poderiam constituir sujeitos políticos feministas e no qual se poderiam
engendrar e imaginar visões alternativas.8
Os termos da clivagem dentro/fora figuram de maneira diferente nesse
discurso. No âmbito dos debates sobre trabalho doméstico, as contribuições mais
expressivas, vistas de uma perspectiva contemporânea, foram as da argumentação
heterodoxa, que pressionava por uma reconceituação mais radical da produção
capitalista que abarcasse a esfera doméstica como núcleo integrante do circuito
de criação de valor. Porém, uma vez mais, dadas as características e o típico en-
quadramento desse debate, o trabalho doméstico foi, de modo geral, considerado
como interno ao capital, a ponto de ser assimilado – e, portanto, tornando-se com-
parável – ao trabalho assalariado industrial fordista. As teorizações da perspectiva
feminista, ao contrário, passaram a explorar as idiossincrasias das práticas labo-
rais domésticas, valorizando a alteridade do trabalho de cuidado como alavanca
de mudança e lugar de agenciamento. Esse trabalho reprodutivo “feminino”, que
é ao mesmo tempo necessário e marginalizado nos processos de valorização ca-
pitalista, foi colocado como fonte primordial das perspectivas feministas: sabe-
res alternativos, subjetividades resistentes, coletividades feministas. As possíveis
alternativas residiam justamente na produtividade das práticas, na reivindicação
“do que a gente faz”, não “do que a gente é”.
Insistindo em que “a produção de pessoas é (...) qualitativamente diferen-
te da produção das coisas”, Hilary Rose, para dar um exemplo desse período, ar-
gumenta que o trabalho das mulheres em suas casas envolve uma espécie distinta
de atividade emocionalmente demandante, o trabalho do amor (2004, p. 74). Ela
investiga então a possibilidade de uma epistemologia feminista que possa integrar
os conhecimentos aos trabalhos das mãos, do cérebro, e do coração. “Trazer para
plano de análise o trabalho do cuidado e o conhecimento que dele deriva”, diz
Rose, “torna-se fundamental para um programa transformativo, tanto nos domí-
nios da ciência, quanto na sociedade” (ibidem, p. 78).

8 Cf., por exemplo, os ensaios clássicos de Hartsock e Rose (Harding, 2004). Exemplos de
como a teoria da perspectiva feminista se manteve ativa depois deste período podem ser encon-
trados em Harding (2004) e também em Hartsock (1998).
Kathi Weeks 23

O problema é que, apesar de o trabalho do cuidado e sua diferença po-


tencialmente subversiva ter sido trazido à luz, os avanços desse projeto foram
prejudicados por duas crenças: pela crença de que a resistência deva vir de fora;
e pela crença na divisão espacial entre produção e reprodução, mediante a qual
esse fora estaria garantido. Assim, apesar de Rose reconhecer formas remunera-
das de trabalho afetivo, ela, não obstante, tende a assumir que o trabalho afetivo
do coração seria o traço que distingue trabalho reprodutivo e trabalho produtivo.
Assim, empurrava a distinção entre trabalho material e imaterial para uma divisão
de domínios sociais. Ou seja: a mesma lógica de esferas separadas, que presidira
os debates sobre trabalho doméstico, garantiria a especificidade do trabalho no
modo afetivo. Essa diferença nas práticas laborativas e nas subjetividades que
se poderiam desenvolver a partir delas foi ao mesmo tempo transplantada – pela
lógica de esferas separadas – num modelo dual de gêneros, no sentido estrito. As
práticas do trabalho feminino no domínio doméstico, no domínio da reprodução,
apesar de necessárias, são postuladas como fundamentalmente distintas das prá-
ticas laborativas dos homens no domínio da produção. Ao se basear na lógica de
esferas separadas, para postular uma diferença radical entre trabalho masculino e
trabalho feminino, tais perspectivas correm o risco, apesar de seu forte empenho
metodológico na direção contrária, de replicar modelos de gênero indiferenciados
e naturalizados. As teorias da subjetividade revolucionária foram então prejudica-
das pela crença no dualismo de gênero generalizada naquele período, bem como
pela homogeneização e reificação de identidades de gênero, que aquela crença
suscita.
A utilidade dessas análises é mais ainda questionável hoje, em função
das especificidades do trabalho e da produção pós-fordista. Em primeiro lugar,
a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo (em que se assentam os argu-
mentos sobre o que estaria dentro ou fora da esfera do trabalho, nos debates sobre
o trabalho doméstico) baseia-se, por sua vez, no paradigma da produção industrial
e no modelo de commodities materiais. Sem considerar se tal argumento teria
sido adequado em algum momento, especialmente sob as condições da produção
pós-fordista, vê-se que as mesmas práticas, que se tornam improdutivas num con-
texto, produzem diretamente valor em outro; assim, até a distinção entre o que
está dentro ou fora dos circuitos da valorização capitalista torna-se cada vez mais
insustentável (ver, a esse respeito, Negri, 1996, p. 157).
Em segundo lugar, a distinção entre trabalho de homens e trabalho de
mulheres, sobre a qual se construiu a expectativa de uma perspectiva feminis-
ta fora do capital, é, de modo semelhante, perturbada pela crescente integração
24 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

do que havia sido imaginado como esferas separadas de produção e reprodução.


Os estudos subsequentes do pós-taylorismo e dos processos de trabalho pós-in-
dustriais, por exemplo, embaralharam o modelo de esferas separadas, tanto em
termos de seus respectivos produtos, quanto em termos de seus vários processos
de trabalho. Por exemplo, a junção da reprodução e da reprodução é visível na
maneira pela qual as commodities continuam a substituir mercadorias e serviços
produzidos no âmbito doméstico; e muitas formas de atividade de cuidado e de
trabalhos domésticos são transformadas em formas feminizadas, racializadas e
globalizadas de trabalho assalariado no setor de serviços. Além disto, hoje em dia,
particularmente no setor de serviços, processos de produção integram cada vez
mais os trabalhos da mão, do cérebro e do coração, à medida que mais e mais pos-
tos de trabalho requerem que os trabalhadores usem seus conhecimentos, afetos,
capacidade de cooperação e habilidades comunicacionais para criar não apenas
bens materiais, mas produtos cada vez mais imateriais (ver, por exemplo, Hardt e
Negri, 2004, p. 108).
Assim, produção e reprodução são mais completamente integradas tan-
to em termos do que é (re)produzido, quanto em termos de como se dá essa (re)
produção. O que talvez tenha sido imaginado um dia como algum “fora” é agora
completamente “dentro”; a reprodução social não pode mais ser identificada com
um lado em particular, ou isoladamente imaginada como esfera insulada da lógica
do capital.
Tampouco devemos identificar reprodução e um gênero determinado,
apesar de a história aqui ser um pouco mais complicada. Enquanto as mulheres
continuem a deter majoritariamente a responsabilidade pelos serviços do cuidado
na esfera privada, e permaneça a tendência de relegá-las a nichos ocupacionais
feminilizados – tendência que a divisão doméstica do trabalho ajuda a manter –,
a prática do trabalho afetivo e os sujeitos políticos que potencialmente se consti-
tuem sob essa base rompem as antigas divisões binárias, tanto espaciais quanto
de gênero. Mulheres e homens são ainda frequentemente engajados em diferentes
práticas laborais, mas essas diferenças não podem mais ser mapeadas em qualquer
esquema binário sustentado no modelo de esferas separadas. Dessa maneira, a
reconfiguração da ordem do gênero no contexto pós-fordista mantém a divisão
sexual do trabalho numa situação em que se tornam cada vez mais inadequados os
binarismos do tipo produtivo versus reprodutivo, assalariado versus não-assala-
riado, trabalho de homens versus trabalho de mulheres. Sob as condições do pós-
fordismo, o que Donna Haraway descreveu como “uma paradoxal intensificação
Kathi Weeks 25

e erosão do próprio gênero” (1985, p. 87) requer mapeamentos mais complexos


das divisões de gênero do trabalho material e imaterial.9

Mills e Hochschild: colarinho branco e trabalho dos afetos


Um dos motivos pelos quais análises construídas pelas feministas socia-
listas chegaram a um impasse foi a incapacidade para registrar adequadamente a
passagem do fordismo para o pós-fordismo. Ao deslocarmos nossa atenção da tra-
dição do feminismo socialista para uma outra tradição intelectual – a das análises
de Mills e Hochschild sobre o trabalho pós-industrial –, podemos superar essa li-
mitação. Quando passamos dos textos clássicos das feministas socialistas para as
contribuições da sociologia do trabalho, vemos que o foco passa do fordismo para
o pós-fordismo, do trabalho assalariado para o não-assalariado, e da crítica da
exploração para a crítica da alienação. Embora os dois conjuntos de textos sejam
comparáveis em termos da perspectiva de análise e do aparato crítico, a ênfase
dada por Hochschild à especificidade do trabalho emocional e a atenção às suas
dimensões de gênero permitem alguns insights fundamentais sobre o significado
do advento das formas imateriais de trabalho.10
Em livro de 1951, White Collar [Colarinho Branco], Mills oferece uma
análise antecipatória da natureza e da significância do deslocamento de uma or-
dem industrial para uma ordem pós-industrial, empreitada teórica para a qual,
segundo ele, contava com poucos precedentes instrutivos ou guias eficazes. “As
bases de uma nova sociedade surgiram entre nós”, declara; e a categoria colarinho
branco de classe média – classe situada entre ou além do proletariado e da bur-
guesia – “é uma tentativa de apreender esses novos desenvolvimentos da estrutura
social e do caráter humano” (Mills, 1951, p. xx). De acordo com a explicação
do autor, o trabalho do colarinho branco – que abrange desde funções gerenciais
até o ensino, o trabalho em escritórios, o trabalho em vendas – envolve colocar
a subjetividade para trabalhar em empregos que têm menos a ver com manipular

9 Este é um projeto que Haraway (1985), para citar um exemplo, antecipou de forma brilhante,
ao ampliar e transformar a tradição da teoria da perspectiva feminista socialista.
10 Ao comparar as duas abordagens, é difícil não se impressionar com as diferenças de estilo.
Cada um dos textos é conduzido a partir de um registro afetivo diferente. Um assume a forma
de um libelo contundente, inflamado e indignado, enquanto o outro segue uma linha argumen-
tativa mais compreensiva, expressando compaixão e preocupação. Um vai no sentido de marcar
posição num tempo de complacência política, e o outro insiste, em congruência com a tradição
do feminismo, nas relações entre o pessoal e o político, para provocar identificação e disparar
a auto-reflexão.
26 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

objetos e coisas, e mais com lidar com pessoas e símbolos (ibidem, p. 65). Numa
visão contemporânea, as idéias de Mills sobre o que ele designa como “mercado
da personalidade”, no qual “aspectos pessoais ou mesmo íntimos do empregado
são trazidos à esfera de negociação”, estão na ordem do dia (ibidem, p. 182). Esse
comércio de personalidade impõe novos parâmetros ao recrutamento e à seleção
de pessoas; esses parâmetros passam a ser baseados na avaliação da personalidade
(não mais na competência), criando novos ideais para a educação, novos alvos de
intervenção gerencial e, acima de tudo, criando um novo tipo de “comodificação”
dos sujeitos do trabalho. Como observa Mills, a rápida expansão e dissemina-
ção da atividade de vendas para novos espaços e relações sociais ampliou esse
mercado, tornando-o paradoxalmente “mais impessoal e mais íntimo” (ibidem,
p. 161).
De certa maneira, Hochschild retoma a reflexão em 1983, a partir do
ponto onde Mills havia parado (1951); mas desvia o foco, da ampla faixa do
trabalho imaterial em ocupações de colarinho branco, para o trabalho emocional
das trabalhadoras “colarinho rosa”, categoria da qual os(as) comissários(as) de
bordo são exemplos emblemáticos. No prefácio a The Managed Heart [O cora-
ção gerenciado], Hochschild reconhece sua dívida com a pesquisa conduzida por
Mills a respeito do modo como nós “vendemos nossa personalidade”, ao mesmo
tempo em que observa algumas insuficiências naquela análise (Hochschild, 1983,
p. ix). A categoria trabalho emocional, ou trabalho dos afetos, a qual “pressupõe
que possamos induzir ou suprimir os sentimentos, de forma a ativar e susten-
tar uma aparente tranquilidade que produza nos outros uma desejada disposição
mental” (ibidem, p. 7), poderia, como sugere a autora, ajudar a resgatar e trazer
à luz alguns aspectos das análises de Mills sobre o mercado da personalidade
que haviam ficado obscurecidos. Mais especificamente, faltaria “um sentido do
ativo trabalho emocional envolvido nas operações de vendas” (Hochschild, op.
cit., p. ix). Enquanto Mills “parecia assumir que, para que alguém possa vender
sua personalidade, basta possuí-la” (idem), a análise de Hochschild esclarece que
esse “ativo trabalho emocional” é, antes de mais nada, uma atividade que envolve
competência e, em segundo lugar, uma prática que tem efeitos constitutivos. Ao
contrário de Mills, Hochschild reconhece certas competências específicas que são
requisitos do trabalho emocional. Ao passo que Mills enfatiza o intercâmbio re-
lacional no “mercado da personalidade”, a categoria de “trabalho emocional” de
Hochschild desloca o foco para o próprio processo do trabalho.
O vendedor ou a vendedora, a aeromoça ou o comissário de bordo, por
exemplo, não apenas vendem suas “personalidades” em troca de salário, mas es-
Kathi Weeks 27

tão engajados em um tipo bem distinto de atividade. Com efeito, o trabalho dos
afetos não é simplesmente mais uma forma de trabalho, mas um exemplo de tra-
balho socialmente necessário. Quando Mills considera essas atividades apenas do
ponto de vista da troca comercial, aparentemente não está identificando nenhum
valor nessas práticas que, como observa Hochschild, também fazem parte do tra-
balho de reprodução social que ajuda a estabelecer e a manter relações de coope-
ração e civilidade. Através de uma lente feminista, Hochschild identifica a gestão
estratégica das emoções para efeitos sociais como uma prática do dia-a-dia que,
por ser tradicionalmente privada e feminizada, geralmente não é reconhecida e
valorizada como trabalho. Assim, sobretudo no domínio do “privado”, subsiste o
empenho em afirmar, reforçar e celebrar o bem-estar dos outros (ibidem, p. 165),
da mesma maneira que o trabalho doméstico, como uma forma de trabalho invi-
sível (ibidem, p. 167). E continua difícil apreender as habilidades e competências
envolvidas nesse tipo de gestão, de tal modo a expressão da emoção é não apenas
feminizada, mas também naturalizada nesse processo – como manifestação es-
pontânea, e não como algo que tenha de ser cultivado.
Em segundo lugar, quando fala de trabalho “ativo” Hochschild desen-
volve, ao contrário de Mills, uma instigante análise dos efeitos constituintes do
trabalho imaterial. Mills não reconhece os elementos de competência e habilidade
exibidos pela “vendedora”, por exemplo, características que ele reduz à categoria
pejorativa de manipulação: “o comportamento predatório e maquiavélico desses
praticantes de habilidades pessoais de aluguel” (Mills, 1951, p. xvii). E, além
disto, Mills parece não ter entendido o processo do trabalho como um processo
de subjetivação, como a performatividade específica do trabalho emocional. O
que para Mills era tão somente produção de insinceridade nesse novo “tempo de
venalidades” (ibidem, p. 161), é reconhecido em Hochschild por seus efeitos pro-
fundamente constituintes. De acordo com a explicação da autora, não se trata ape-
nas do trabalhador emocional “parecer ser” e sim de ele “vir a ser”; esse trabalho
não supõe apenas o uso da subjetividade, mas, principalmente, supõe produção
de subjetividade. Como exemplo, quando a expressão emocional do trabalhador
é parte do que esteja sendo vendido na prestação de serviço, “parecer amar o que
se faz torna-se parte do emprego”; e mais, “o empenho em realmente amar o que
se faz, em satisfazer os clientes, acaba ajudando o trabalhador em seu esforço”
(Hochschild, 1983, p. 6). Com efeito, o impacto dessa função de coordenar mente
e sentimento não se restringe ao que fazemos ou pensamos, à saúde e à energia do
nosso corpo ou aos nossos pensamentos. Esse impacto se estende à vida afetiva
28 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

do sujeito, à própria fabricação da personalidade.11 Na linguagem de Hochschild,


envolve não apenas uma atuação superficial mas, de fato, uma atuação profunda,
uma prática cujo exercício produz um efeito de transformação em quem a exerce.
A questão formulada por Hochschild, e que permanece válida e atual ainda hoje,
pergunta sobre o que acontece com os indivíduos e com as relações sociais, quan-
do as técnicas de atuação profunda são capturadas pelos propósitos do capital.12
O gênero também é produzido e se torna produtivo, quando a personali-
dade é posta a trabalhar. Como ressalta Hochschild, as personalidades são “gene-
rificadas”, e isto é parte do seu valor para os empregadores. Apesar de Mills ter
relatado que as mulheres já ocupavam 41% dos empregos de colarinho branco em
1940 (1951, p. 74-75), ele parece não ter compreendido o significado desse fato
em termos da generificação do trabalho assalariado pós-industrial. No entanto,
isto não implica que Mills ignorasse o gênero ou se abstraísse de uma retórica de
gênero. Na verdade, ele apela a uma masculinidade traída, para dar mais impacto
a sua crítica do “Homenzinho” de colarinho branco que recorre a um ideal nostál-
gico de autoridade masculina, para enfatizar a realidade enfrentada por uma nova
geração de trabalhadores subordinados e sem poder. Valendo-se de metáforas de
emasculação, os integrantes da “vanguarda” do colarinho branco são caracteri-
zados por Mills, em profundo contraste com uma imagem de um proletariado
heróico, como “eunucos políticos (...) sem potência e sem entusiasmo pela dis-
cordância política” (ibidem, p. xviii). Assim, reconhecendo um deslocamento no
processo de generificação do trabalho, Mills interpreta o fenômeno como questão
de des-generificação, não de re-generificação. Como Hochschild corretamente re-

11 Para dar conta do impacto constituinte dessas práticas, a categoria dos afetos é mais uti-
lizada nas análises de Hochschild do que a categoria das emoções. O fato de a categoria dos
afetos atravessar as oposições mente e corpo, razão e emoção, acaba diluindo a redução onto-
lógica provocada por este tipo de dicotomia. Além do mais, sendo uma categoria que ressalta
as qualidades produtivas do fenômeno, torna-se mais resistente ao tipo de naturalização das
emoções que Hochschild vai justamente problematizar. Aqui podemos também ver melhor uma
das vantagens da ênfase no trabalho afetivo em detrimento do tipo de trabalho cognitivo, mais
frequentemente privilegiado nas argumentações de Mills, bem como em várias análises con-
temporâneas acerca do trabalho imaterial.
12 Consequentemente, Hochschild reconhecia que o desafio lançado pela nova ordem do tra-
balho aos ideais do individualismo liberal não era apenas, como Mills defendia, o fato dele
reduzir o indivíduo à condição de um ‘homenzinho’; tratava-se, ao contrário, do permanente
desafio à identidade “no país que mais celebra o indivíduo, mais e mais pessoas se perguntam,
sem conseguir identificar as raízes sociais mais profundas da questão: o que eu sinto realmen-
te?” (Hochschild, 1983, p. 198).
Kathi Weeks 29

gistra, o gênero dos trabalhadores – comissários de bordo feminilizados e conta-


dores masculinizados – é moldado e posto a trabalhar.

Alienação no trabalho imaterial


Mills e Hochschild, apesar das diferenças em suas abordagens, fazem
críticas bem parecidas, sempre baseadas na análise de Marx do trabalho alienado,
pondo em foco os novos modos de trabalho cognitivo, afetivo e comunicativo.
Ambos estendem a crítica marxiana do processo industrial de produção fabril
– que aliena o trabalhador dos produtos, dos processos, de si mesmo e dos ou-
tros – às novas formas de trabalho, atividades relativamente bem remuneradas e
de alto nível de status. “As condições alienantes do trabalho moderno”, observa
Mills, “agora passam a incluir os empregados assalariados bem como os não-as-
salariados” (1951, p. 227). Hochschild acrescenta que, tanto nas formas manuais
quanto nas modalidades emocionais de trabalho, existe semelhança em termos do
eventual custo de realização da atividade: o trabalhador pode tornar-se alienado
do ponto de vista do self – seja o corpo ou o espírito – mobilizado para executar o
trabalho (1983, p. 7). Mills e Hochschild fazem uma interessante demonstração de
que a crítica do trabalho alienado torna-se até mais pertinente, sob as condições do
trabalho imaterial, do que jamais foi, antes, sob as condições da produção indus-
trial fordista. A alienação dos produtos e processos do trabalho no imaterial são
comparáveis à experiência do trabalho na fábrica, mas o trabalho que envolve a
aplicação e a adaptação da “personalidade” leva “a alienação do self e a alienação
social a níveis ainda mais explícitos” (Mills, 1951, p. 225). Hochschild reforça a
potencial alienação social do trabalho imaterial: as implicações para o sentido de
self e para a qualidade das interações sociais sempre que as “artes psicológicas
desses trabalhadores” (1983, p. 185) são submetidas à lei do valor e, com isto, aos
ditames do comando e da padronização. “A alienação da expressão, do sentimento
e do que os sentimentos nos dizem não é apenas um risco ocupacional de algumas
poucas funções”, observa Hochschild; ao contrário, “essa alienação estabeleceu-
se na cultura do trabalho como algo permanentemente possível” (ibidem, p. 189).
Com a crescente interpenetração de produção e troca, de fabricação, prestação de
serviços e vendas, os problemas da auto-alienação e do cinismo social se conju-
gam. “Os homens [sic] são alienados uns dos outros à medida que tentam instru-
mentalizar o outro; com o tempo, o círculo se fecha: alguém instrumentaliza a si
mesmo e, ao mesmo tempo, aliena-se de si” (Mills, 1951, p. 188).
Uma vez mais, a abordagem de Hochschild mostra-se mais atual. Mills
utiliza a crítica do trabalho alienado para apontar algo muito próximo do que
30 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

Marx já antecipara, ou seja, que o problema do trabalho é que ele mobiliza muito
pouco de nossas habilidades e capacidades criativas. Em função da frustração de
nossa criatividade, somos levados a encontrar meios de canalizá-la nas atividades
de lazer (Mills, 1951, p. 236). “A cada dia, os homens vendem pequenos pedaços
de si mesmos para tentar comprá-los de volta depois do trabalho e nos fins de
semana com a ‘moedinha’ da diversão” (ibidem, p. 237). Esse foco na questão do
trabalho que não mobiliza suficientemente o self é uma versão da crítica da alie-
nação do trabalho feita na década de 1970 sob a forma de um discurso público. As
novas formas de gestão preconizadas como cura, pelo menos até os anos 80 – que
promoviam a reengenharia das culturas de trabalho de modo a incentivar o maior
comprometimento e lealdade dos trabalhadores e recompensar as iniciativas cria-
tivas – introduziram um novo conjunto de problemas. Hochschild, escrevendo no
âmbito de uma economia de serviços mais desenvolvida, percebeu o que Mills
ainda não havia enxergado: o fato de que aquilo que os trabalhadores põem à ven-
da e submetem ao comando do trabalho, ou seja, “um sorriso, uma disposição, um
sentimento, uma relação” (Hochschild, 1983, p. 198), significa que esse trabalho
requer muito, não pouco, de quem o executa. Assim, trata-se de perceber que o
trabalho não nos abandona simplesmente quando nos encontramos em situação
de não-trabalho; o trabalho transfere-se para as temporalidades, subjetividades e
socialidades do não-trabalho. Ao invés de enfocar somente a crítica tradicional da
colonização da vida pelo mercado – através da crítica do consumismo – Hochs-
child estende sua análise à colonização da vida pelo trabalho.
Em dado momento, a crítica da alienação torna-se problemática. Tanto
Mills quanto Hochschild estavam cientes das limitações inerentes à teoria do tra-
balho alienado conforme foi empregada pelo marxismo humanista: essa crítica
dependia de um ideal nostálgico de trabalho pré-industrial, de trabalho artesanal,
e de uma ontologia essencialista do trabalho. Mesmo que cautelosos com relação
e esse tipo de raciocínio nostálgico, eles acabam, mesmo assim, empregando, se-
não exatamente esses mesmos argumentos, algumas variações, mediante as quais
tentam mensurar a alienação do trabalho no contexto atual. Assim, como no caso
dos teóricos da perspectiva feminista socialista, que ancoravam suas análises num
fora que se reproduz, encontramos os dois autores, Mills e Hochschild, ainda de-
pendentes de um fora – nesse caso, de um lugar de trabalho não-alienado – e de
um modelo de self anterior à sua alienação, para animar sua crítica.
A crítica do trabalho alienado está tradicionalmente ancorada em um ou-
tro tipo de fora, não apenas um ideal de trabalho não-alienado, mas um determi-
nado modelo de trabalhador do qual somos alienados e para o qual deveríamos
Kathi Weeks 31

retornar. Os dois autores são críticos do essencialismo presente nesse tipo de abor-
dagem. Mills recusa-se a basear suas análises numa “visão metafísica em que o
sujeito se expressa primordialmente na atividade do trabalho” (1951, p. 225). Ho-
chschild, por sua vez, evita atrelar sua abordagem à autenticidade das emoções,
insistindo em que a expressão dessas emoções jamais é independente dos atos
de gerenciamento e, portanto, é sempre social (1983, p. 17-18). Porém, apesar
dessas precauções, o fato é que a crítica da alienação opera evocando um self já
dado, cuja alienação desencadeia uma crise. Mills argumenta que podemos adotar
a crítica sem entrar numa metafísica do trabalho, muito embora acabe também
ele evocando uma ontologia do indivíduo liberal. Encontramos, igualmente, uma
tensão, no coração da análise desenvolvida por Hochschild: ela insiste na constru-
ção social e na maleabilidade das emoções, ao mesmo tempo em que postula que
essas emoções são fundamentais para o self , de tal maneira que a alienação do
sujeito dessas emoções constitui um problema. Sua estratégia de fazer referências
a um self “real”, “verdadeiro” e “autêntico” entre aspas acaba paradoxalmente
problematizando uma certa dose de essencialismo do qual essa análise, em últi-
ma instância, depende. Em outras palavras, sua argumentação é animada por um
ideal de “coração não gerenciado”, associado a um mundo privado de práticas e
contatos emocionais, ou àquilo que poderia ser experimentado como um “verda-
deiro” self . Portanto, tanto Mills quanto Hochschild reconhecem as limitações
das abordagens críticas que dependem de ideais nostálgicos do trabalho e de mo-
delos essencialistas do sujeito, mas acabam reproduzindo de certa maneira esses
mesmos ideais.

Vida, Trabalho e a Lógica da Imanência


Os aprofundamentos dessas duas tradições permitem resgatar algumas
premissas importantes, ao mesmo tempo em que expõem alguns problemas. Diri-
gindo o foco primeiramente para as contribuições que permanecem atuais, gosta-
ria de destacar a ênfase do feminismo socialista na contradição entre acumulação
e reprodução, tanto no que diz respeito à dimensão funcional, quanto ao aspecto
da realização e sustentação da exploração do trabalho e seu potencial disruptivo
como um espaço de antagonismo. Revendo as argumentações de Mills e Hochs-
child sobre trabalhadores de colarinho branco e colarinho rosa, vejo como par-
ticularmente relevante hoje a ênfase que colocam no impacto que esse tipo de
trabalho tem na subjetividade. A análise de Hochschild dos efeitos constitutivos
do trabalho afetivo e da colonização da vida pelo trabalho é de suma importância,
a meu ver, tendo em vista o projeto contemporâneo de proceder ao mapeamento
32 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

e a uma nova organização do trabalho imaterial/afetivo. Além disto, tanto a pers-


pectiva de Hochschild quanto a visão das feministas socialistas vêm-nos lembrar
da necessidade de atentar para a crescente generificação do trabalho em sua moda-
lidade afetiva, tanto nas instâncias assalariadas quanto nas não-remuneradas.
A despeito de suas várias contribuições, essas críticas mais antigas do
trabalho reprodutivo e emocional apresentam limitações no sentido de possíveis
intervenções futuras. Ao ancorar suas análises na lógica da separação das esferas
da existência (produção e reprodução) e na teoria da alienação, ambas análises
são tributárias de uma visão atrelada a um fora: ficam presas a uma distinção do
capitalismo enquanto tal, ou a um modelo de self que antecede a alienação, ou
seja, em uma espécie de posição ontológica ou espacial de exterioridade.
Porém, como observei anteriormente, podemos aprender mais com os
desvios dessas abordagens do que com seus pontos fortes. Com efeito, talvez a
lição mais importante a ser extraída desse exercício genealógico seja uma maior
clareza para entender nossa situação atual.
Uma vez que o modelo das esferas separadas da produção torna-se final-
mente insustentável, o problema passa a ser como desenvolver uma política na
ausência de um fora sobre o qual se apoiar. Seria possível desenvolver diferentes
versões dessas abordagens, que não se fiassem em uma esfera da existência ou
em um modelo de sujeito fora do capital? Como conceber uma crítica da organi-
zação pós-fordista do trabalho, em termos de imanência e resistência? Se, como
argumentam Hardt e Negri (2000), “não é mais possível identificar um signo,
um sujeito, um valor, ou uma prática que esteja ‘fora’ [do capitalismo]” (p. 385),
sobre que bases construir-se-ia nossa argumentação crítica? Quais os meios para
avançar uma teoria dos agenciamentos, que não passe por um modelo de sujeito
a priori, que algum dia tenha estado, ou que agora esteja, fora do alcance do capi-
tal? Nas palavras de Judith Butler (1997) “será que há algum modo de afirmar a
cumplicidade como a base do agenciamento político e, ao mesmo tempo, insistir
em que o agenciamento político faça mais do que reiterar as condições de subor-
dinação?” (p. 29-30). Finalmente, existe o eterno problema do feminismo: como
tornar visível e confrontar a divisão sexual do trabalho em relação à construção de
subjetividades e hierarquias, sem reproduzir modelos naturalizados de dualismos
de gênero?
A insistência das feministas socialistas nos antagonismos gerados pela
interseção da acumulação do capital e da reprodução social pode servir como um
desafiador ponto de partida13. Os pressupostos, por vezes contraditórios, de criar

13 Para um exemplo atual deste projeto, ver em Bakker e Gill (2004).


Kathi Weeks 33

mais valia e manter as relações de socialidade da qual essa mais valia depende dão
ensejo a uma série de problemas, cuja análise pode alavancar críticas importantes.
Uma tal problematização serviria, por exemplo, para dar novo contorno à discus-
são sobre o valor relativo das práticas, incluindo particularmente, a subvaloriza-
ção das práticas de cuidado – tanto as remuneradas quanto as não-remuneradas
– em relação aos seus efeitos na generificação e na racialização da divisão do
trabalho. Mas, uma vez que “a própria vida torna-se máquina produtiva” (Hardt e
Negri, 2004, p. 148), os termos dessa distinção e seus conflitos complexificam-se
ainda mais. Em contextos nos quais a reprodução já não é identificada a um es-
paço particular, ou assimilada a um conjunto de práticas específicas, tornando-se
coextensiva à produção, é preciso recolocar de outro modo o antagonismo.
Nesse sentido, gostaria de propor – de modo apenas especulativo – o es-
boço de uma possível estratégia alternativa. E se substituíssemos a antiga divisão
entre produção e reprodução pela distinção entre vida e trabalho? Será que essa
nova maneira de mapear o terreno das relações capitalistas e das linhas de antago-
nismo ajudaria a inverter os termos da análise política do trabalho pós-fordista?
Acredito que um enquadramento desse tipo traria alguns benefícios potenciais.
Por um lado, em comparação com a categoria da reprodução, a vida tem a vanta-
gem de ser conceito mais amplo. E, sendo categoria mais abrangente, não corre
o risco de circunscrever as práticas constitutivas da vida social aos domínios do
trabalho doméstico ou, pior, equipará-las à instituição família. Dessa forma, a luta
política que confronta a vida ao trabalho é menos equiparável ou redutível a um
projeto de re-valorização do mundo privado da família e de defesa de seus valores
tradicionais.
Porém, parece-me mais instrutivo para os propósitos da nossa discussão
aqui interrogar se a distinção crítica entre vida e trabalho pode dar conta das
premissas fundamentais reunidas a partir das análises de Mills e, sobretudo, de
Hochschild, acerca do trabalho e da construção de subjetividades.
Se se reconhece que o trabalho produz subjetividades, os limites subja-
centes são postos em evidência. E não apenas porque trabalho e vida não podem
ser confinados a lugares específicos, uma vez que, na perspectiva da produção de
subjetividade, vida e trabalho se interpenetram completamente. As subjetividades
moldadas no trabalho não ficam circunscritas ao espaço do trabalho, mas invadem
todos os espaços e tempos do não-trabalho, e vice-versa. Não existe posição de
exterioridade nesse sentido: o trabalho é inexoravelmente parte da vida; e a vida
faz parte do trabalho.
34 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

Isto não significa, no entanto, que trabalho e vida sejam indiscerníveis.


De fato, as próprias linguagens do trabalho e da vida são também comumente usa-
das para fazer referência a um conflito existente entre essas duas instâncias. Con-
sideremos a observação de que alguém que se “mata” de tanto trabalhar deveria
“ter sua vida”. Que distinções e antagonismos entre trabalho e vida estariam im-
plícitos nessa afirmação? Não se trata, obviamente, de alguém precisar conquistar
algo que não possui, porque se presume que todos já tenham ‘uma vida’. Não se
está falando, tampouco, de engajar-se em outras práticas. Se, por exemplo, a pro-
fissão de uma pessoa envolve exercer um trabalho afetivo para poder estabelecer
e manter relações com clientes e consumidores, e esse tipo de atividade é também
o que esse profissional deseja fazer quando está com sua família ou com seus
amigos, “ter sua vida”, não quer dizer poder fazer algo que não possa ser feito no
trabalho. Ao invés disto, esse tipo de comentário parece refletir uma concepção de
qualidade de vida que se almeja conquistar ou expandir. E se transformássemos
essa linha de demarcação em base para um projeto político?
No momento em que pudesse funcionar como uma perspectiva crítica
imanentista, a vida estaria imediatamente implicada, embora não potencialmente
colocada contra, nos espaços, nas relações e nas temporalidades agora dominadas
pelo trabalho.14 Portanto, essa perspectiva crítica e política pressupõe não a defesa
de uma subjetividade que esteja fora, mas a luta por uma diferente qualidade de
experiência.
Permanece a questão, entretanto, de como registrar e questionar a or-
ganização generificada do trabalho sob essa perspectiva. A divisão produção/
reprodução foi estabelecida para chamar a atenção para a divisão de gênero do
trabalho remunerado e não-remunerado, mesmo que nem sempre em termos que
evidenciem a equiparação entre reprodução e a esfera dos serviços domésticos e
do “trabalho de mulher”. Para que essa perspectiva alternativa possa servir a um
projeto feminista, as hierarquias e as divisões de gênero no âmbito da vida e do
trabalho devem ser visíveis e expostas à contestação. Talvez se deva distinguir
entre vida e trabalho, para levantar algumas questões importantes; por exemplo,
acerca do status e da organização – incluindo a divisão de gênero – dos serviços
domésticos não-remunerados e de cuidado. Mas, nesse caso, como traçar uma

14 Aqui, a categoria da vida tem uma função crítica análoga a que desempenhou na filosofia de
Nietzsche: instrumento para formular a crítica dos valores ascéticos; vida é empregada como
uma espécie de abreviação daquilo que os valores do ascetismo – neste caso, o trabalho e sua
ética tradicional – não reconhecem e que excedem e desconstroem os reducionismos conceitu-
ais e institucionais subjacentes a este ascetismo.
Kathi Weeks 35

fronteira entre o que é trabalho e o que é vida? O que conta como trabalho e como
vida, e a fronteira entre os dois, não são dados a priori. Essa, ao contrário, é uma
questão política e, eu acrescentaria, alvo importante das lutas feministas. Isso
posto, parece-me que a contínua integração das mulheres no universo do trabalho
remunerado no regime pós-fordista e a re-privatização do trabalho doméstico sob
o neoliberalismo, torna ainda mais difícil o projeto de dar visibilidade e criticar as
divisões de gênero, as divisões raciais e internacionais do trabalho doméstico (ver,
a esse respeito, B. Young, 2001).
Retornando às contribuições de Mills e Hochschild, acredito que suas aná-
lises a respeito do impacto dos mercados do trabalho imaterial sobre os indivíduos
e sobre a sociedade sugerem a importância cada vez maior de uma perspectiva
crítica assentada no discurso da subjetividade e numa noção alternativa de sujeito.
Hoje, a expansão das formas afetivas do trabalho torna ainda mais impactantes as
investigações a respeito de em quê (ou em quem) nos transformamos como tra-
balhadores dos afetos, num contexto de “mercado da personalidade”, no âmbito
da tessitura e da qualidade das relações sociais. Uma vez que reconhecemos a
força constituinte do trabalho em sua modalidade afetiva, uma vez que a subjeti-
vidade é contratada, gerenciada e posta a trabalhar “a prescrição e a definição de
tarefas transforma-se em prescrição de subjetividades” (Lazzarato, 1996, p. 135).
A questão, a meu ver, é como dedicar atenção crítica ao trabalho considerado
mecanismo de subjetivação, sem contar com o aparato conceitual da alienação e
da distinção entre existência e essência da qual somos herdeiros. Como formular
uma avaliação crítica a respeito do quê estamo-nos tornando mediante o trabalho,
sem depender de um modelo prévio do que ‘verdadeiramente’ seríamos?
Uma possibilidade seria apoiar nossa crítica na subjetividade, não na
crença de um verdadeiro e essencial self , mas na busca de um self potencial. E
se imaginássemos um modelo alternativo de subjetividade, não em termos dos
modelos existentes agora e que podemos acessar, mas em termos das modalidades
de vida que poderiam vir a existir? Uma vez que o horizonte de um futuro possível
substitua os limites espaciais de uma esfera já existente de padrões de identidade,
o padrão mediante o qual o presente é julgado poderia ser ampliado para visões do
que poderíamos desejar, em lugar da defesa do que já temos, sabemos, ou somos.
O self no trabalho poderia assim ser avaliado em termos do que alguém possa
desejar vir a ser, e tanto o tempo de trabalho quanto o de não-trabalho poderiam
ser julgados em relação à possibilidade de nos tornarmos algo diferentes do que
somos. Assim, a crítica desenvolvida em torno da lógica da alienação poderia ser
36 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

recodificada de tal maneira que não se aplicasse mais a um self a preservar, mas
a um self a inventar.
Mais uma vez, no entanto, surge a questão do que aconteceria com o
gênero, se as análises se deslocassem nessa direção. À medida que o trabalho
é dotado de sentido e dividido por gênero, a crítica do trabalho como modo de
subjetivação deve convergir para um projeto que justamente problematize a ade-
quação da identidade de gênero como base para reivindicações políticas e como
meio de engajamento político.
Muitos já perceberam, sobretudo no que diz respeito à sexualidade e raça,
os problemas que envolvem modelos identitários que acabam reforçando estere-
ótipos de gênero exclusivos e normativos. Mas, e se as análises feministas não
ficassem restritas à afirmação do que somos como mulheres ou homens, sendo
nossas identidades produzidas por aquilo que fazemos, e, ao invés disso, enfati-
zássemos as visões coletivas do que gostaríamos de vir a ser ou fazer? Criticar e
enfrentar as contínuas formas de generificação do trabalho não seria assim muito
mais reproduzir identidades de gênero, do que expressar o desejo feminista?15
Mais do que um self verdadeiro em contraposição a sua forma alienada,
ou mesmo uma esfera reprodutiva versus uma esfera da produção propriamente
capitalista, uma proposição crítica alternativa dever-se-ia voltar para a distinção
entre vida e trabalho, partindo da percepção do que os sujeitos em relação poder-
se-iam tornar, mantendo em perspectiva e valorizando o que gostaríamos de nos
tornar, não em essência, mas na lógica de um desejo político imanente à existên-
cia. Essas são perspectivas biopolíticas que podem, talvez, nos conduzir a linhas
mais promissoras e a um conjunto de respostas políticas à organização do trabalho
sob o pós-fordismo.

15 Propondo uma alternativa semelhante a uma política feminista identitária, Wendy Brown
interroga “e se tentássemos suplantar a linguagem do ‘eu sou’ ... com a linguagem do ‘eu desejo
isto para nós’”? (1994, p. 75).
Kathi Weeks 37

Referências

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38 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO

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Kathi Weeks graduou-se em teoria política e é atualmente professora associada no


departamento de Women’s Studies na Duke University. Autora de Constituing Feminist Sub-
jects (Cornell University Press, 1998), seu tema de trabalho atual é política e a ética do trabalho.
E-mail: kweeks@duke.edu
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 39-71

Os direitos humanos no contexto da


globalização: três precisões conceituais16

Joaquín Herrera Flores

O ser humano só é alguém (ou se expressa como


alguém) como condensação de tramas de relações.
Helio Gallardo, Política y transformación social.
Discusión sobre Derechos Humanos

1. As três precisões

1.a A precisão filosófica


Na tradição de direitos humanos que se veio impondo durante a época
da Guerra Fria, a fundamentação filosófica daqueles direitos plasmou-se em duas
tendências: a universalidade dos direitos e sua pertinência inata à pessoa humana.
Nada nem ninguém pode ir contra dita “essência”, já que ao fazê-lo pareceria que
atentamos contra as próprias características da “natureza” e da dignidade humana
universal.
Os desmandos e atrocidades que se cometeram durante o século XX e a
memória do horror que temos acerca da escravidão ou dos genocídios imperia-
listas, dentre outros fenômenos, ou, para citar exemplo mais próximo, a irracio-
nalidade, o terror e a indiferença em relação a qualquer normativa internacional
que deriva do campo de concentração de Guantánamo, induz-nos a pensar que
tal fundamentação é a adequada, que há essências humanas abstratas que não
podem ser contrariadas sequer pelos próprios seres humanos, que há, enfim, uma
espécie de reserva espiritual intocável que nos preserva do mal desdobrado na
história. Apresentando-se como “humanistas”, as fundamentações abstratas dos
direitos humanos defendem, na realidade, um anti-humanismo que postula que os

16 Este trabalho é parte de um texto mais amplo, realizado por Joaquín Herrera Flores e Ale-
jandro M. Médici, intitulado Derechos Humanos y Orden Global: tres desafios teórico-políti-
cos, a ser publicado em Desclée de Brouwer. Traduzido do espanhol pelo Coletivo de tradução
attraverso (Désirée Tibola, Leonardo Retamoso Palma, Lúcia Copetti Dalmaso e Paulo Fernan-
do dos Santos Machado).
40 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

direitos humanos são entidades que estão – ou devem estar – à margem de nossas
ações, à margem do humano e devem ser entendidos como se dependessem de
uma entidade transcendente a nossas debilidades humanas que nos protegerá, em
última instância, do horror e das violações. Os direitos suporiam, pois, uma esfera
“objetiva” de limites à própria ação do homem, sobretudo quando esse ostenta o
poder sobre a vida e a morte de seus congêneres.
Ainda que os benefícios “imediatos” dessa fundamentação filosófica se-
jam importantes para mobilizar as consciências e denunciar o horror da tortura,
da discriminação, da indiferença frente ao homem ou ante a destruição do meio
ambiente, sob um olhar mais atento, vemos que os problemas que acarretam são
maiores que os benefícios que trazem.
Pretender colocar os direitos em um mais além, liberado de qualquer tipo
de impureza contextual, pode nos servir, como dissemos, para conscientizar de
modo ingênuo e imediato os que tenham, como única bagagem, a esperança de
um mundo melhor e sem injustiças: daí a forte legitimação que conseguiram as
propostas da teologia da libertação no campo dos direitos humanos. Contudo,
bastaria inflar a esperança, para solucionar os problemas concretos e reais? É
suficiente confiarmos em uma instância transcendente e benevolente, para funda-
mentar práticas sociais que articulem movimentos de luta pelos direitos? E mais:
por que lutar pelos direitos, se já os temos garantidos metafísica, ideal ou reli-
giosamente? De que nos vale a essência metafísica que dizem nos pertencer pelo
mero fato de sermos seres humanos, ante as práticas depredadoras das grandes
corporações transnacionais? O que se conseguiu nos mais de cinquenta anos da
assinatura da Declaração Universal, que contribua, hoje, para resolver os pro-
blemas de condições de vida de mais de oitenta por cento da humanidade? Não
estaremos universalizando um só ponto de vista: o judaico-cristão-ocidental, e
apresentando-o como a essência imutável de algo que tem necessariamente de
contar com outras formas de conceber e resolver os problemas que subjazem aos
particulares conceitos de dignidade? Como garantir o acesso à justiça àquelas e
àqueles que defendem e praticam um conceito diferente de dignidade humana, ou
que hierarquizam de modo diferente os valores?
Nietzsche ensina que, quando falamos de conhecimento ou de realidade,
é preciso negar a existência em si (separada de suas condições de existência) e
negar termos tais como espírito, razão, consciência, alma ou pensamentos “verda-
deiros”. “O conceito de verdade é um contra-senso... todo o reino do verdadeiro
e do falso refere-se tão somente a relações entre seres, não ao em si... Não há
nenhum ser em si, como tampouco dá-se ou pode dar-se algum conhecimento
Joaquín Herrera Flores 41

em si” (Nietzsche, 1998, p. 14-122); ambos, conhecimento e ser, constituem-se


no conjunto de relações em que se integram. Nesse sentido, qualquer produto
cultural – como os direitos humanos – tem de ser integrado no que denominamos
o circuito cultural:

Com nós mesmos


Produtos culturais............. Realidade: Trama de Relações: Com os outros
Com a natureza

Todo produto cultural surge em uma determinada realidade, num marco


específico e histórico de relações sociais, morais e naturais. Não há produtos cul-
turais à margem do sistema de relações que constitui suas condições de existência.
Não há produtos culturais em si mesmos. Todos os produtos culturais surgem
como respostas simbólicas a determinados contextos de relações. Ainda mais, os
produtos culturais não só estão determinados por esses contextos, mas, por sua
vez, eles condicionam a realidade na qual se inserem. A isso se chama “o circuito
cultural”. Nada há, pois, que possa ser considerado em si mesmo, à margem do
contexto específico em que surge e sobre o qual atua.
O exemplo filosófico por excelência é Platão. Haveria A República se
Platão não tivesse sido impulsionado a escrever contra a democracia de seu tem-
po? Acaso Platão não influiu nos desenvolvimentos reacionários posteriores? Fa-
lamos, então, de um produtor de produtos culturais que reagiu frente a um deter-
minado complexo de relações humanas e que colocou como objetivo de todo seu
pensamento afastar ao máximo os seres humanos concretos do conhecimento e da
política “verdadeiros”. Com argumentos denominados “dialéticos”, pela tradição,
mas que não eram mais que reduções ao absurdo, Platão vai depreciando tudo o
que soe a pacto entre seres humanos e tudo o que se baseie no fluir contínuo dos
acontecimentos. As coisas não têm relação nem dependência conosco – afirma
Platão –, são em si por sua própria natureza; e, além disso, não podem mudar,
são estáticas, alheias aos fluxos naturais e históricos. Não fosse assim, o co-
nhecimento seria impossível (o conhecimento puro, o conhecimento de essências
imutáveis, o conhecimento não humano, haveria que acrescentar.
Nada, nem a justiça, nem a dignidade e muito menos os direitos huma-
nos procedem de essências imutáveis ou metafísicas que se situem além da ação

17 Platão, Crátilo, 386 e.


18 Platão, Crátilo 411 c, 437c, 439 d. Como ampliação do que tratamos, ver Rodolfo Mondol-
fo, La Comprensíon del Sujeto en la Cultura Antigua, Buenos Aires, 1968.
42 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

humana para construir espaços onde desenvolver as lutas pela dignidade humana.
Por mais que se fale de direitos que as pessoas têm por serem seres humanos,
quer dizer, por mais que se fale de essências “anteriores” ou “prévias” às práticas
sociais de construção de relações sociais, políticas ou jurídicas, inevitavelmente
teremos de decifrar o contexto de relações – a trama densa de relações que de-
finem o sujeito – que lhe dão origem e sentido, sobretudo se queremos fugir da
tentação de “imputar” a toda a humanidade o que não é senão produto de uma
forma cultural de ver e estar no mundo.

1.b A precisão teórico-política: os quatro planos da luta pelos direitos


humanos e os quatro mal-estares culturais

O homem é um animal suspenso em redes que ele mesmo teceu


C. Geertz, La interpretación de las culturas

Desde 1948 até a atualidade, fomo-nos acostumando a denominar “direi-


tos humanos” os diferentes processos sociais, políticos e culturais que tenderam
a positivar institucionalmente tanto as exigências de proteção cidadã contra a he-
gemonia do Estado sobre nossas vidas cotidianas, como as demandas políticas
de intervenção do próprio Estado, com o objetivo de impedir o desdobramento
irrestrito do mercado nas relações sociais e suas consequências buscadas inten-
cionalmente ou não.
Essa dupla atitude frente ao Estado conduz ao que se pode denominar o
mal-estar da dualidade. Essa tendência supõe, por um lado, um forte componente
de ambiguidade, dado que nos coloca ante a reivindicação de uma esfera autôno-
ma livre de interferências e, ao mesmo tempo, ante a exigência de interferir para
impedir o desdobramento sem restrições das consequências perversas do mercado
capitalista: destruição do meio ambiente, desemprego, privatização do patrimônio
histórico artístico, desproteção contra enfermidades... Por outro lado, essa ten-
dência coloca-nos ante a riqueza do conceito que, ao longo da segunda metade do
século XX, foi sendo “convencionalmente” chamado de direitos humanos.
Quando utilizamos o termo da “convenção” terminológica (portanto,
ideológica) e falamos de “direitos humanos”, não nos referimos a processos uni-
laterais ou abstratos nos quais só se vê uma parte do problema: as ingerências do
Estado na autonomia individual, dos quais se exige, ao mesmo tempo, adaptação
aos níveis de complexidade de uma realidade humana submetida a processo eco-
nômicos, sociais e culturais em que predominam as distribuições injustas de bens,
Joaquín Herrera Flores 43

e nos quais os objetivos políticos são reduzidos às necessidades de garantir pro-


teção jurídica à esfera econômica. Por convenção terminológica, denominamos
direitos humanos os processos que asseguram nossa esfera de atuação autônoma;
mas, também, os processos que afrontam as consequências perversas dessa auto-
nomia, sobretudo quando a autonomia é entendida como a possibilidade de atuar
irrestrita e corporativamente com o objetivo de aprofundar os diferentes modos de
acumulação e apropriação do capital.
Esse “mal-estar da dualidade” pode ser enfocado a partir de outra pers-
pectiva. Como defende Jurgen Habermas, se falamos de direitos humanos remete-
mo-nos a meras instâncias ideais e morais de justificação e legitimação das ações
individuais e das políticas públicas, o que o filósofo de Frankfurt rechaça abso-
lutamente. Mas se falamos direitos humanos – opção admitida por Habermas –,
referimo-nos ao conjunto de normas constitucionais, válidas positivamente, que
controlam os hipotéticos desvios despóticos do poder, ao mesmo tempo em que
asseguram uma obediência baseada na lei, e não em meras instâncias morais ou
metafísicas. Deixando de lado o fundamento filosófico dessa distinção terminoló-
gica – não pode haver consenso racional discursivo baseado em questões morais
ou de bem comum, mas unicamente em direitos formais – a causa eficiente da
distinção reside no repúdio que a teoria jurídica liberal manteve contra a estreita
relação que existe entre direitos e deveres. Para Habermas, os direitos humanos
não obrigam a nada, mas nos oferecem um marco de autonomia para nossa ação
pública: por isso podem ser justificados apenas por serem positivados. Mas os
direitos humanos, ao se basearem em questões morais, estabelecem uma sime-
tria absoluta entre direitos e deveres, a qual excede a positivação e nos conduz a
perguntar se os atores públicos e privados atenderam ou não as responsabilidades
que lhes competem, como critério de justificação de suas ações. Como afirma o
próprio Habermas (1999, p. 204), tratar um problema social a partir de um ponto
de vista jurídico requer, dentre outras condições, reconhecer que o direito é formal
(o que não está proibido, está permitido), individualista (não existem direitos co-
letivos, dado que o sujeito jurídico é o indivíduo, nunca as comunidades) e justifi-
cável exclusivamente por critérios racionais de procedimento discursivo (não por
responsabilidades e deveres). Qual esfera dos direitos Habermas defende? A de
interferência social, econômica e cultural que controle as consequências perversas
do mercado, ou a puramente individual abstrata que exige a não intervenção e a
não responsabilização dos âmbitos públicos e institucionais nas vidas cotidianas
dos seres humanos? Se o direito tem como única função estabelecer e garantir
marcos de ação sem referência a deveres e responsabilidades, como obrigar as
44 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

instituições a intervir contra os horrores produzidos pelo processo de acumula-


ção, hoje global, do capital? Como exigir das grandes corporações privadas que
renunciem a depredar o conhecimento tradicional das comunidades populares?
Como garantir a reprodução do ecossistema e a diversidade sociobiológica da
humanidade?
O problema é que, ao rechaçar os fundamentos morais dos direitos e só
aceitar os direitos constitucionalmente positivados, Habermas – como Bobbio,
para quem não importaria a justificação dos direitos, só a aplicação deles – está
aceitando implicitamente uma fundamentação moral que ele não traz ao debate;
e que, aceita como natural e não modificável, torna-se invisível. Essa fundamen-
tação moral é a do liberalismo, ideologia dualista que separa os direitos humanos
em duas esferas irreconciliáveis e defende a impossibilidade de garantir jurídica e
institucionalmente os direitos sociais, econômicos e culturais.
Se estamos diante de direitos unicamente formais, que permitem o que
não proíbam expressamente, como resistir ante inovações técnicas muito mais
rápidas que as reformas jurídicas, e que, se não encontram proibições expressas,
têm campo livre para provocar consequências que podem ser gravosas para a
humanidade? Como controlar as astúcias das grandes corporações, sempre muito
hábeis para escapar às poucas regulações jurídicas que a nova ordem global dei-
xou ilesas? Dados esses fatos, não seria melhor mudar o adágio jurídico e institu-
cionalizar que será proibido o que não esteja expressamente permitido?
Reside aí a verdadeira razão do mal-estar da dualidade. Não falemos de
direitos humanos, nem de direitos humanos, mas de direitos humanos. “Direitos
humanos” são mais do que as normas que os reconhecem nacional ou internacio-
nalmente, e são menos que as propostas idealistas que repetem que haveria uma
esfera moral externa aos seres humanos. Contudo, e à parte outras considerações
que exporemos adiante, falar de direitos humanos implica afrontar diretamente
esse dualismo castrante que divide ideologicamente o que a própria realidade não
pode distinguir.
De nosso ponto de vista, o problema tem outros três planos de análise: o
jurídico-cultural, o social e o político. Os quatro planos estão estreitamente imbri-
cados num entrelaçamento de tal complexidade que deixar de considerar um deles
implica tergiversar, fugir ao debate19.
No plano jurídico-cultural, falamos das tensas relações entre as catego-
rias de identidade e diferença. Já desde os debates da Assembléia revolucionária
na França pós-1789 fala-se da necessidade de um mínimo de homogeneidade ci-

19 Cf. o texto de Fraisse (1995) “Entre égalité et liberté”.


Joaquín Herrera Flores 45

dadã como base para a construção de um Estado democrático. Os cidadãos de-


vem compartilhar uma série de traços comuns que lhes permitam auto-entender-
se como partícipes da vontade geral. Esses traços comuns tornam possível falar
da igualdade frente à lei e apresentá-la como se se tratasse de um “fato”: somos
todos iguais perante a lei. Portanto, qualquer diferença “real” entre as pessoas ou
grupos somente entra no debate jurídico sempre e quando não provoque algum
tipo de discriminação perante a lei. Tomar partido “unicamente” por esse aspecto
jurídico-cultural, que superpõe a identidade à diferença, conduziu à preponderân-
cia das teorias formais ou procedimentais da justiça. Teorias segundo as quais as
diferenças – sejam as representadas pelas reivindicações igualitárias de Babeuf,
sejam as propostas feministas de Olimpe de Gouges – eram, e seguem sendo, con-
sideradas obstáculos, distorções ou, meras proposições de dever ser – anuláveis
do discurso, frente ao risco de cair na “humeana” falácia naturalista. As diferen-
ças parecem interferir em dito processo de construção jurídica e política, o qual
requer a homogeneidade como base imprescindível (Birulés, op. cit., p. 19-29 e
Honig, 1993, p. 76-125). Grande parte do debate teórico de classe (Marx), de etnia
(Fanon) ou de gênero (Livraria das Mulheres de Milão), centrou-se na denúncia
do que podemos chamar “o mal-estar da emancipação”: a conquista da igualdade
de direitos não parece ter se apoiado, nem parece ter impulsionado o reconheci-
mento das, e o respeito pelas, diferenças. O afã homogeneizador prevaleceu sobre
o da pluralidade e diversidade.
A problemática funda suas raízes na figura clássica do “contrato” como
fundamento da relação social. Paradoxalmente, a idéia de contrato, que parece
ter uma clara raiz econômica ou mercantil (e, de fato, é trazida à filosofia política
a partir da economia), situa-se na separação, fundamental para o liberalismo po-
lítico, entre política e economia. Como afirmam Rosanvallon e Fitoussi (1997),
apesar dessa proclamação ideológica de esferas separadas, é o mercado que im-
põe as linhas de transformação social que a política tem que acatar. Qual melhor
representação da ordem política que a proporcionada por um modelo explicativo
que “ao mesmo tempo que se articula sobre a organização capitalista das rela-
ções sociais, esquiva toda referência à economia?”20. Por conseguinte, e apesar de
suas conotações concretas, a figura do contrato baseia-se num conjunto de abs-

20 “La expulsión de las relaciones sociales, la exclusión de las determinaciones efectivas de


los sujetos reales, posibilita una representación del orden político como un asunto de raciona-
lidad, consenso, legalidad...la escisión entre economía y política convierte a los teóricos del
contrato en liberales ilustrados, seguramente bien intencionados y progresistas, pero cada vez
más impotentes para articular la teoría a los procesos efectivos, cada vez más impotentes para
46 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

trações que, ao separar-se ideológica e ficticiamente dos contextos onde ocorrem


as situações concretas entre os indivíduos e os grupos21, normalizam, legitimam
e legalizam posições prévias de desigualdade, com o objetivo de reproduzir-se
infinitamente. Nesse processo, vai-se instaurando uma segunda separação muito
importante para nosso tema: aparece um espaço ideal/universal – o espaço públi-
co – onde se moveriam idealmente sujeitos idealizados e idênticos que gozam da
igualdade formal perante a lei. Nos termos de Sheila Benhabib, instaura-se a idéia
de um sujeito “generalizado”, tão distante dos contextos nos quais vive, que as si-
tuações conflitivas desaparecem frente ao consenso que supõe a igualdade formal,
e as situações de desigualdade se esfumaçam ante a aparência de justiça em que
consistem os procedimentos. Enquanto que junto a esse espaço público ideal sur-
ge a consciência de um espaço material/particular – o espaço do privado – onde
se fazem presentes não só os interesses econômicos dos sujeitos “concretos”, suas
inserções nos âmbitos produtivos e reprodutivos, mas também os nós de relações
que os ligam a outros sujeitos no espaço doméstico, às crenças particulares e às
identidades sexuais e raciais22.
O contratualismo supõe, então, a construção de uma percepção social
baseada na identidade que se dá no espaço público garantido pelo direito e na
expulsão das diferenças ao âmbito desestruturado (e invisível para o institucional)
do privado. Daí as dificuldades que a teoria política liberal encontra na hora de
reconhecer institucionalmente a proliferação de reivindicações de gênero, raciais
ou étnicas. Para o liberalismo político, há que entender a diferença como “di-
versidade”, como mera dessemelhança que, no melhor dos casos, há que tolerar,
estabelecendo medidas que permitam aproximar o diferente ao padrão universal
que nos faz idênticos a todos23, e não como um recurso público a ser fomentado

detener la avanzada de la nueva derecha, ese enemigo que no ha dejado de vencer” (Alejandra
Ciriza, 1999, p. 237).
21 “El capitalismo alcanza su mayoría de edad cuando automatiza lo que en el periodo de
la acumulación originaria era simple expropiación arbitraria, desposesión salvaje...La nor-
malidad sucede a la anomalía, la legitimidad a la ley de la jungla, la plusvalía al robo. Todo
es conforme a la ley, conforme al valor, y el ciclo de la reproducción se basta por sí solo, con
muda constricción, para garantizar su continuidad ampliada” (Antonio Negri, 1989, p. 21).
22 “Lo privado incluye no sólo los intereses económicos de los sujetos, su forma de inserción
en el proceso de producción y reproducción de la vida misma, sino además el conjunto de re-
laciones que los ligan a otros sujetos en el espacio doméstico, las creencias particulares, las
prácticas e identidades sexuales y raciales” (Alejandra Ciriza, op. cit. p. 239).
23 Desde uma perspectiva liberal, a tolerância com os diferentes se reduz à mera contemplação
da diversidade. Nesse sentido “la diversidad es débilmente democrática: reconoce la mera de-
Joaquín Herrera Flores 47

e garantido. O argumento ideológico que se usa, uma e outra vez, é que não se
deve “contaminar” o debate filosófico jurídico com questões como as sexuais,
étnicas ou raciais. Todas as questões estão embebidas no princípio universal de
igualdade formal que constitui o sujeito “generalizado”. Qualquer argumentação
que parta das características concretas e das inserções contextuais específicas dos
sujeitos “concretos” é rapidamente apelidada de comunitarismo, evitando a co-
nexão que tal categoria ou esquema tem com a realidade norte-americana para a
qual foi criada24. A questão não consiste em introduzir o sexo, a raça ou a etnia no
jurídico e no político, diluindo o debate com perguntas tais como: as normas têm
sexo? Precisamente, a reclusão das diferenças em um âmbito separado do público,
faz com que a raça, o sexo e a etnia adquiram importância para o direito e para
a política. Se num Parlamento a ratio homem-mulher é de 80 para 20%, nessa
instituição o sexo tem muita importância: é um critério configurador do pertenci-
mento à instituição. Se em um código civil ou em uma teoria da justiça segue-se
utilizando o termo “pai de família”, o sexo daquele que firma os contratos ou
daquele que pode se dizer uma pessoa representativa, tem muita importância: é
um critério discriminatório em benefício de uma das partes. Agora, numa confi-
guração institucional onde a diferença, nesse caso sexual, reconhece-se como um
recurso público a garantir e onde a percentagem se aproxima a 50%, a caracterís-
tica sexual deixa de ser algo relevante ao ter todas as partes sua cota de participa-
ção e visibilidade: estamos frente à encarnação real, não somente formal/ideal do
princípio de não discriminação. Reconhecer pública e juridicamente as diferenças
tem o objetivo de erradicar o sexual, o étnico ou o racial do debate político, já que
todos teriam a possibilidade de apresentar suas expectativas e interesses sem ter
em conta, agora sim, suas diferenças. Não estaríamos diante de uma política de
discriminação inversa, com toda a conotação adversa que tem a palavra discri-
minação; mas diante de políticas de inversão da discriminação e dos privilégios

semejanza. Se podría decir que su padrino intelectual es John Locke en su Letter on Toleration.
Enfrentado a la diversidad de visiones de los grupos religiosos adoptó una táctica que reducía
el poder a religión organizada ... la religión era ante una cuestión de creencias individuales y
no de representaciones colectivas” (Sheldon Wolin, 1996, p. 154).
24 Quando os conceitos aplicáveis a um contexto que goza de hegemonia, sem maior refle-
xão, “exportam-se” para outros contextos hegemonizados, chega-se à conclusão de que ditos
conceitos não são particulares, mas de aplicação universal. Ver Bourdieu e Wacquant 2000, p.
110 e 113. Sobre o contexto da polêmica liberais-comunitaristas, ver “Universalism ‘x’ Comu-
nitarianism: Contemporary Debates in Ethics”, em Philosophy & Social Criticism, nº. 3-4, V.
14, 1998.
48 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

tradicionalmente ostentados pelos grupos que dominaram a construção social da


realidade que vivemos.
O plano social da problemática nos faz dar um passo adiante. Já não se
trata de analisar as tendências homogenizadoras, que pretendem aparentemente
evitar as discriminações, com o efeito perverso de reduzir a cinzas as diferenças
e impor uma só visão de mundo como universal. Trata-se agora de contrapor os
conceitos de igualdade e desigualdade. Nesse nível abandonamos o terreno do
“sameness”, do esforço tendente a potencializar a igual identidade de todos peran-
te o direito, para entrarmos na problemática da igualdade, a qual conceitualmente
não se opõe à “diferença”, mas à desigualdade. Nessa sede já não falamos de não-
discriminação das cidadãs e dos cidadãos perante a lei, mas das diferentes condi-
ções sociais, econômicas e culturais que fazem uns terem menos capacidades para
atuar do que outros: seja por razões de etnia (Amílcar Cabral); de gênero (Simone
de Beauvoir); de classe (Mariátegui); de poder cultural (Gramsci); de situação
geográfica (Samir Amin); ou, para colocar um ponto final, de “má sorte” (Ronald
Dworkin). Nesse nível contata-se o que podemos denominar “o mal-estar do de-
senvolvimento”: o progresso nas técnicas e na abundância para uns, não somente
não redundou em benefício das imensas maiorias populares que povoam nosso
mundo, mas, precisamente, parecem alimentar-se da exploração e empobrecimen-
to de 80% da humanidade.
Danilo Zolo (1997) tentou sair desse mal-estar afirmando que, enquanto
a cidadania provocava desigualdades e, ao mesmo tempo, liberdade, o mercado
provocando desigualdades, também criava riqueza (p. 111)25. O problema dessa
equação reside em analisar que tipos de condições possibilitam a riqueza e a li-
berdade, sem provocar o aumento das desigualdades existentes. Ficando, por en-
quanto, no aspecto jurídico do problema, poderíamos afirmar que se dá uma pro-
porção inversa entre a quantidade de recursos que se use e a relação que se tenha
com os direitos (nesse caso, sociais, econômicos e culturais): maior quantidade
de recursos disponíveis, menor referência a esses direitos, e menor quantidade de
recursos, maior referência aos mesmos. Mas, pelo contrário, dá-se uma proporção

25 De acordo com A. Ciriza (op. cit., p. 245), “La aceptación plena de las premisas liberales
e individualistas en relación a la ciudadanía conducen, mal que le pese a Zolo, a predicar,
sin saberlo y probablemente sin desearlo, un retorno a la barbarie. Efectivamente, una de las
tensiones de la ciudadanía es precisamente la de requerir de un mínimo de inserción con vista
al goce de los derechos. De ahí la importancia de tener en cuenta la tensión, y no la mutua
exclusión, entre economía y política. La consideración puramente política de los derechos
deriva en su configuración como privilegios”(o grifo é do autor do artigo).
Joaquín Herrera Flores 49

direta entre a quantidade de recursos a que tenhamos acesso e a relação que se


tenha com os direitos (individuais: civis e políticos); maior quantidade disponível
de recursos, maior importância concedida a esses direitos, e menor quantidade
de recursos, maior indiferença e desdém para com os mesmos (entendendo por
recursos não somente os econômicos, mas também os sociais e culturais com os
quais enfrentaremos o que mais adiante chamaremos as diferentes caras da opres-
são). Está claro que o denominador comum que distingue as diferentes posições
perante os direitos é o acesso aos recursos. O que nos leva a uma reflexão sobre a
igualdade e a necessidade de abstração que toda tarefa jurídica requer. O direito
não reconhece necessidades, mas formas de satisfação dessas necessidades em
função do conjunto de valores que predominam nas sociedades de que se trata. Ao
não formalizar necessidades, mas formas de satisfação das necessidades, o direito
ostenta um forte caráter de abstração. O problema não reside nisso: formalizar
implica necessariamente abstrair. O problema é o que se abstrai para poder levar
adiante a tarefa de formalização sem aprofundar, ou criar novas, desigualdades.
Se abstrairmos as normas das diferentes situações no momento de ter acesso aos
recursos disponíveis, os direitos, sobretudo os individuais, serão vistos como pri-
vilégios dos cidadãos que têm acesso às condições materiais que permitem gozar
dos mesmos, e a um consequente desprezo pelos direitos sociais, econômicos e
culturais como meros indicadores de tendência. Nesse sentido, o direito privile-
giaria os membros de uma classe, de um sexo, de uma raça ou de uma etnia em
prejuízo dos que não pertencem ao viés privilegiado, mantendo ou aprofundando
a distância entre a proclamação formal da igualdade e as condições que permitem
seu gozo. É esse o objetivo da democracia e do Estado de direito? Agora, se ao
formalizar uma forma de satisfazer alguma necessidade, não abstrairmos as dife-
rentes posições sociais, na hora de ter acesso aos recursos que permitam pôr em
prática os direitos, estaremos, primeiro, denunciando os privilégios gozados pelos
poucos; segundo, estabelecendo vias para ir fechando o abismo entre o formal e
o material; e, terceiro, colocando em funcionamento o princípio de não discrimi-
nação por razões econômicas, sexuais, raciais ou étnicas, já que o importante para
o direito será essa função ou tendência de igualação no acesso aos recursos e não
defender e garantir os privilégios dos membros de uma classe, sexo, raça ou etnia.
Nesse sentido, tanto uma política de redistribuição das possibilidades no acesso
aos recursos, como uma política de reconhecimento da diferença enquanto recur-
so público a garantir, conduziriam a uma revitalização e a uma democratização
do jurídico, sempre e quando ficar superada a tradicional cisão entre as esferas da
economia e da política e, a partir daí, teremos o marco adequado, não para seguir
50 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

gozando de privilégios formais, mas para criar as condições que permitam gozar
de maiores cotas de liberdade e riqueza sem a contrapartida da desigualdade.
Por essa razão, devemos acrescentar um quarto plano aos anteriores: o
plano político. Nesse plano trata-se de compreender as relações entre os conceitos
de igualdade e de liberdade. A luta pela igualdade – ou, o que é o mesmo, a socia-
lização dos recursos – é uma condição da liberdade – vista, por enquanto, como
socialização da política. A luta pela igualdade não esgota a luta contra a discrimi-
nação nem contra as desigualdades (Grupo DIOTIMA, 1995). Há que introduzir
no debate a luta pela liberdade que, baseando-se nas condições de não discrimina-
ção e da igualdade de recursos, sempre irá “mais além da igualdade”. Dependendo
do que entendamos por liberdade, assim interpretaremos essa reivindicação.
Da liberdade existem, ao menos, duas interpretações: a primeira, e mais
estendida dada a força expansiva da ideologia “liberal”, entende a liberdade como
autonomia, como independência radical de qualquer nexo com as “situações”,
os contextos ou as relações. A liberdade, a partir dessa interpretação, supõe um
gesto de recusa a toda relação de dependência ou de contextualização, dado que
tende à garantia de um espaço moral e autônomo, de desdobramento individual,
considerado como “o universal”. Nesse espaço moral individual todos somos se-
melhantes e todos nos vemos envolvidos em um só tipo de relação, a de indiví-
duos morais e racionais, sem corpo, sem comunidade, sem contexto. Esse espa-
ço da semelhança garante que os indivíduos morais e racionais possam dialogar
“idealmente” na pura abstração da linguagem, relegando ao terreno do irracional
toda reivindicação de dessemelhança, diversidade, de pluralidade ou de diferen-
ça. Essa interpretação da liberdade conduz ao que denominaríamos “o mal-estar
do individualismo abstrato”: a proposta de independência do contexto supõe um
tipo de sujeito imóvel ou passivo frente aos diferentes e mutáveis embates que
procedem do contexto social “irracional” em que, necessariamente, ditos indiví-
duos “racionais” se debatem. Para evitar, ou melhor, para ocultar a entrada desse
contexto irracional na ação individual, há que garantir política e juridicamente
um espaço moral-racional ideal – definido pelos direitos civis e políticos e pela
“mão invisível do mercado” – que permita a ação isolada e apolítica de indiví-
duos dirigidos por seus próprios e intocáveis interesses. O paradoxo está exposto:
indivíduos que se definem como “não situados”, dependem da “situação” em que
vivem. Recusa da política – como construção de condições sociais, econômicas e
culturais – e dependência dela – como garantia do espaço moral individual. Como
não proteger a liberdade enquanto autonomia?
Joaquín Herrera Flores 51

Essa última pergunta conduz inevitavelmente à segunda interpretação do


conceito de liberdade. Mais que de autonomia e independência, falar de liberdade
supõe falar de política ou, o que é o mesmo, de construção de espaços sociais nos
quais os indivíduos e os grupos possam levar adiante suas lutas por sua própria
concepção de dignidade humana. Exercer a liberdade supõe, portanto, ir mais
além da luta pela igualdade. Como afirma Amartya Sen, a liberdade, entendida
desde essa segunda interpretação tem, por sua vez, duas facetas: uma “consti-
tutiva”, na qual prevalece a construção “política” de condições que permitam à
cidadania exercer sua luta pela dignidade humana ou, em palavras de Sen, de
“abordar o mundo com coragem e liberdade”: evitar privações como a inanição,
a desnutrição, a morbidade evitável ou prematura; e outra “instrumental”, na qual
a liberdade, nesse caso a liberdade política, possa servir como instrumento de
progresso e igualdade econômica. A faceta constitutiva da liberdade nunca deve
ficar eclipsada pela instrumental, dado que a partir daquela se possibilita que “...
os indivíduos (vejam-se) como seres que participam ativamente – se lhes é dado a
oportunidade – na configuração de seu próprio destino, não como meros recepto-
res passivos dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento” (Amartya
Sen, 2000, p. 54 e 75).
A luta pelos direitos humanos exige a imbricação dos quatro níveis que
mencionamos. Evitar os mal-estares da dualidade, da emancipação, do desen-
volvimento e do individualismo somente será possível à medida que vamos cons-
truindo um espaço social ampliado no qual a luta contra a discriminação leve em
conta, por um lado, a progressiva eliminação das situações de desigualdade e,
por outro lado, converta as diferenças em um recurso público a proteger. Trata-
se, portanto, de se tomar a sério o pluralismo, não com mera “superposição” de
consensos, mas como a prática democrática que reforça a diferença das posições
em conflito e se sustenta na singularidade de suas interpretações e perspectivas
acerca da realidade.

1.c A precisão filosófico-jurídica. A crítica à utopia da validade formal


Insistimos mais acima que o termo direitos humanos é uma convenção
adotada em 1948 nos começos da época da Guerra Fria, convertendo-se no dis-
curso ideológico hegemônico do novo processo de acumulação dos capitais sim-
bólicos, sociais e culturais da fase keynesiana do modo de produção capitalista.
Se antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos não se podia falar de
direitos humanos “propriamente ditos”, mas de direitos da nova classe emergente
que vai conquistando ao longo dos séculos XVI ao XX todas e cada uma das esfe-
52 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

ras do poder26, depois da “grande vitória” frente ao nacionalismo e, indiretamente,


frente ao comunismo soviético e a substituição do imperialismo europeu pelo de
matriz estadunidense, a ideologia liberal – com seus componentes individualis-
tas, abstratos e formalistas – se consolida como a visão “natural” e “universal”
que se expressa nítida e com matizes universalistas nas “normas” e textos que
vão surgindo da ordem institucional global das Nações Unidas. Essa ordem, que
se mantém intacta até a crise do keynesianismo a princípios dos setenta e que
se desmorona a finais dos oitenta com o “triunfo” do capitalismo anglo-saxão e
suas justificações englobadas sob o rótulo do “fim da história” e do “Consenso de
Washington”, está sendo substituída por outro conjunto de processos que estão
ampliando a idéia liberal de direitos humanos a outras esferas antigamente con-
sideradas “malditas”, por “pertencerem” aos pressupostos básicos do marxismo
e do socialismo real (Negri e Hardt, 2002). O que nos interessa, no momento, é
ressaltar a visão liberal individualista dos direitos humanos que, a partir desse afã
universalizador e garantista da ideologia liberal, prevaleceu no período da Guerra
fria e que ainda segue funcionando como pressuposto ideológico no campo da
produção jurídica. Por um lado, o termo “humanos” serviu para a imposição de
uma concepção, como dissemos, liberal-individualista da idéia de humanidade
que sobrevoaria por cima da divisão do mundo nos dois blocos antagônicos, e que
funciona “como se” expressasse a essência abstrata da pessoa. Por outro lado, o
termo “direito” serviu para apresentar os direitos humanos “como se” pudessem
ser garantidos por si mesmos, sem a necessidade de outras instâncias. Isto levou
a polêmicas falaciosas e desfocadas que discutiam se era melhor falar de direitos
fundamentais ou de direitos humanos (ou como no caso de Habermas, de “di-
reitos” formais versus direitos “humanos”). O fato da existência de um direito
nacional dos direitos humanos (os direitos fundamentais) e um direito internacio-
nal dos direitos humanos clarifica o que viemos defendendo: quando falamos de
direitos humanos, o fazemos a partir de uma convenção, de um acordo ideológico,
que aponta a algo que tem mais conteúdo que o puramente formal e que, também,
nos afasta das visões essencialistas da Declaração de 1948. E, contudo, como vi-
mos com Habermas – visão ratificada pelo ceticismo que professa a teoria jurídica
em relação ao conceito de direitos humanos – predomina a concepção formalista
dos mesmos.

26 Ver as obras de Richard TUCK, Natural Rights Theories, Cambridge University Press,
1981; Philosophy and government: 1572-1651, Cambridge University Press, 1993; e, sobretu-
do, The rights of war and peace: political thought and the international order from Grotius to
Kant, Oxford University Press, 1999.
Joaquín Herrera Flores 53

Esse entendimento, além de manter uma concepção restrita de cultura


jurídica como algo separado do conjunto de relações sociais, políticas, jurídicas
e econômicas, parte também de uma visão muito estreita das práticas jurídicas. O
direito não é unicamente um reflexo das relações sociais e culturais dominantes;
também pode atuar, ou melhor, pode ser usado, e assim foi historicamente tanto
por tendências conservadoras como revolucionárias, para transformar tradições,
costumes e inércias axiológicas. Não que estejamos ante uma ferramenta neutra:
em primeiro lugar, o direito é uma técnica de domínio social particular (Capella,
op. cit., p. 150) que aborda os conflitos neutralizando-os desde a perspectiva da
ordem dominante. E, em segundo lugar, é uma técnica especializada que deter-
mina a priori quem está legitimado para produzi-la e quais são os parâmetros
desde onde julgá-la. Daí a imensa força de quem controla – em outras palavras,
de quem está dotado de autoridade para a tarefa de “dizer” o direito no momento
de adequar atitudes e regular relações sociais num sentido ideológica e politica-
mente determinado, que na atualidade segue sendo fortemente sexista. Portanto,
nem desprezo da luta jurídica, nem confiança, em que somente através dela se vá
chegar a um tipo de sociedade justa, em que caibam todas as expectativas, não
somente as hegemônicas.
Toda “leitura” da realidade se faz desde duas posições. Em primeiro lugar,
“lemos” o mundo desde as chaves que o presente nos oferece, quer dizer, desde
os parâmetros dominantes que conformam a hegemonia num espaço e num tempo
determinados: estamos frente à posição ideológica. Enquanto que, em segundo
lugar, “lemos” o mundo desde a situação que ocupamos no interior dos conflitos
sociais ou, o que é o mesmo, desde as chaves que a ação social, opositora ou le-
gitimadora frente ao status quo, nos oferece: posição política. Pois bem, a cultura
jurídica – entendida como o conjunto de pressupostos teóricos, conceituais e sim-
bólicos através dos quais se intervém, se explicam e, em seu caso, interpretam-se
as relações sociais desde o direito – desdobra, para dizê-lo em termos Juan Ramón
Capella, um conjunto de “seletores doxológicos” (Capella, op. cit., p. 138) que
induzem a um determinado tipo de “leitura” do fenômeno jurídico.
Em primeiro lugar, há uma leitura “não ideológica”, que possui uma ver-
são forte, aquela que nega a influência das ideologias na produção, interpretação
e aplicação do direito e uma versão débil, que afirma que o direito é suscetível de
ser usado por qualquer ideologia: mesmo reconhecendo que as normas jurídicas
são produtos de uma leitura determinada das relações sociais, ao darem início à
formação do ordenamento jurídico positivo, adquirem o caráter de universalida-
de e generalidade. E, em segundo lugar, uma leitura “não política”, cuja versão
54 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

forte se afirma nos dogmas de auto-suficiência (validade formal) e completude


(mecanismo de ajustes puramente internos) e sua versão débil, a que, ainda re-
conhecendo o apego do direito aos conflitos, primeiro, “esquece” qual de ditos
conflitos esteve na origem das normas e, na sequência, supõe que delas se pode
resolver “tecnicamente” qualquer outro conflito que se apresente, de uma maneira
neutra e ascética.
Tanto em sua versão forte quanto em sua versão débil, essa leitura do di-
reito “seleciona”, hierarquiza e separa os diferentes componentes que constituem
o fenômeno jurídico em sua globalidade e complexidade, invisibilizando ou esfu-
mando, como veremos, as posições ideológicas e políticas do mesmo, sustentadas
na visão patriarcal, vale dizer, sexista, da realidade social.
A costarriquenha Alda Facio (1999) defende que para chegar a um direito
e a uma análise jurídica apropriados para entender a categoria de direitos humanos
de todas e de todos, é preciso adotar, em primeiro lugar, um conceito amplo de
direito que contemple tanto o componente formal/normativo, como o institucio-
nal/estrutural e o político/cultural. Conceito que conduza à conseguinte ampliação
dos conceitos de validade formal, aplicação e interpretação e eficácia das normas;
do que se deduz , em segundo lugar, a exigência de uma visão relacional, não
fragmentária ou idealizada de ditos componentes, dado que não se fala de três es-
feras ou perspectivas, mas de três componentes de uma mesma realidade, somente
separável em termos pedagógicos.
Falar de componente formal-normativo é fazê-lo não somente da perspec-
tiva do conjunto de normas positivas que configuram o que se denomina “orde-
namento jurídico”, mesmo que esse seja seu conteúdo fundamental; mas também,
da perspectiva do conjunto de regras que institucionalizam determinados compor-
tamentos, relegando outros ao perseguido ou perseguível pelas instituições dota-
das de autoridade. Essas regras não esgotam sua funcionalidade em si mesmas,
mas vão marcando o ritmo da atividade interpretativa, criando, ao mesmo tempo,
formas de pensar que estabelecem o que em um determinado momento espaço-
temporal denomina-se sentido comum. Estamos, pois ante a “ordenação” e regu-
lação de quem ostenta poder, de quem interpreta as decisões desse poder, confor-
mando, paralela e simultaneamente, as consciências dos submetidos à autoridade.
Pelo que, os componentes estrutural/institucional e o político/cultural influem e
são influenciados, pelo componente formal. Além disso, falar do componente es-
trutural/institucional não consiste unicamente em descrever as instituições que
criam as normas, aplicam-nas e as tutelam. Também há que se falar do “conteúdo”
que ditas instituições dão às normas formalmente promulgadas ao combiná-las,
Joaquín Herrera Flores 55

selecioná-las, aplicá-las e interpretá-las, criando, como afirma Facio, outras leis


não escritas – como a que impõe a tendência a conceder às mães a guarda dos
filhos nos processos de separação e divórcio – mas tão ou mais importantes para
entender o fenômeno jurídico em sua globalidade. Dessa perspectiva, não se pode
entender a interpretação e aplicação do direito (seja por parte da administração
pública ou da justiça) unicamente desde a atividade do órgão dotado de jurisdição
(ou seja, desde as operações intelectuais realizadas pelas entidades jurisdicionais
na hora de interpretar e aplicar a norma), mas também, desde os resultados aos
quais conduzem ditas atividades, ou o que é o mesmo, desde a atribuição de sig-
nificados aos fatos e às normas em função da cultura jurídica que predomina e
os objetivos e valores dominantes. A interpretação e aplicação que de uma lei
se realiza de forma reiterativa, ou a ausência de ambas – por exemplo, por sua
distância da realidade social ou por uma impossibilidade material de aplicação –
vai dotando de significados a dita lei e outorgando uma determinada vigência ou
falta de efetividade à margem da pura atividade formal. O hermeneuta, tal como
o concebe Juan Ramón Capella, está ligado a dois tipos de exigências: umas, in-
ternas à atividade de decidir; outras, ligadas à estrutura institucional na que está
inserido. Razão pela qual o juiz ou o administrador não só estão sujeitos a normas
preexistentes e a regras institucionais, mas também a valores, ideais, represen-
tações intelectuais, paixões, interesses concretos e condições de factibilidade de
sua atuação jurisdicional, que não temos outro remédio a não ser considerar como
parte do conteúdo da lei. Se é que não queremos, como veremos mais adiante,
cair em uma metafísica jurídica de claros tons conservadores. De igual modo, o
componente político/cultural não se reduz ao mero conhecimento que a cidadania
tenha das leis. Está claro que se não conhecemos nossos direitos, esses não serão
exigidos. Mas nessa tarefa cidadã de “exigência” e reconhecimento de direitos,
esses se preencherão de um conteúdo ausente da pura redação formal. Como afir-
ma Alda Facio, do conteúdo que cada comunidade der aos princípios e valores tais
como liberdade, igualdade, solidariedade, honestidade... dependerá muito do que
se entenda por “igualdade de salário”, “igualdade conjugal”, “igual qualificação”
ou “liberdade de trabalho”, todos eles conceitos relevantes de diferentes campos
jurídicos concretos. Uma lei ou uma norma por mais válida que possa ser, no sen-
tido formal do termo, não poderá ser interpretada ou aplicada pelas autoridades
jurisdicionais se não for auspiciada, impulsionada ou exigida pela cidadania. Des-
se modo, uma norma será ou não considerada conforme a constituição, não por si
mesma, mas até que um Tribunal assim o decida, seja – em nosso ordenamento
constitucional – por duvida razoável, seja pelo recurso apresentado pelos setores
56 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

“sociais” legitimados para isto. Portanto, há que entender os três componentes do


fenômeno jurídico em estreita inter-relação.
No entanto, há que insistir sobre o nível formal do jurídico, já que é aí
onde mais se nutriu a interpretação metafísica ao imputar-lhe uma característica
mais própria dos elementos que compõem o topos uranos platônico que os que
os específicos de uma sociedade democrática: a auto-fundamentação. Apesar da
impossibilidade de um sistema fechado e completo em si mesmo, denunciada por
Gödel e as mesmas dúvidas, do próprio Kelsen, em relação ao caráter de mero
suposto, de hipótese ou de ficção da Grundnorm, a idéia “utópica” de validade
formal (a validade ou invalidade de uma norma pode-se deduzir desde si mesma e
unicamente em relação com outras normas, pelo que o processo jurídico se perce-
be como um mecanismo automático que segue as pautas de algumas entidades)27
segue funcionando, não somente como seletor mas, de um modo mais relevante,
como “indutor” doxológico para os operadores jurídicos. O trato com as normas
jurídicas, como se essas fizessem parte de uma máquina auto-suficiente, faz pen-
sar ao que legisla, aplica ou interpreta – missão básica e tradicional dos anos de
aprendizagem e dos ritos de entrada na prática jurídica legítima – que o direito
sustenta-se a si mesmo e não está submetido a nenhuma “leitura” prévia da rea-
lidade. Uma norma é válida, se e somente se, existe outra norma que corrobora o
enunciado, sem refletir acerca do “mistério” que subjaz à autoridade que outorgou
legitimidade à “Grundnorm” originária, cuja “vontade” é diária e cotidianamente
posta em circulação a partir dos diferentes campos de atividade do direito. Mais
que “conhecer o direito”, o juiz deve saber situar-se nos limites dessa “norma
básica” que se finge aceitar como a doadora originária de validade e que permite
separar os três componentes de todo fenômeno jurídico, outorgando a cada um,
uma esfera independente de atuação, com respeito a um mero texto concebido,
por obra e graça dessa norma fundamental, como uma coisa ou um objeto situado
à margem das diferentes subjetividades.
A utopia da validade formal pressupõe, portanto, a “ficção” de um legis-
lador e um intérprete onisciente que é capaz de conhecer os limites e fundamentos
do direito sem ter que recorrer a alguma entidade externa a ele e, também, baseia-
se na “crença” – ou na ficção – de que o ordenamento jurídico é uma máquina
auto-suficiente que caminha por si só ao outorgar a si mesma os critérios que a
convertem em válida para todos os que vão se regular por ela. A onisciência do
legislador, do intérprete/aplicador e do intérprete/descobridor de lógicas imanen-
tes, ou a referência à auto-regulação e auto-fundamentação da máquina jurídica,

27 Cf. Hinkelammert, Crítica de la razón utópica, 2002


Joaquín Herrera Flores 57

são ambos, pressupostos metafísicos que não podem submeter-se às condições


de factibilidade (leituras condicionadas e contextualizadas das relações sociais e
ausência de todo automatismo dos sistemas) de toda antecipação racional que não
pretenda converter-se em utopia absolutista e coisificada. No entanto, por mais
metafísicos e utópicos que sejam, tais pressupostos são necessários para evitar
reconhecer a presença das ideologias e das relações fáticas de poder e passar a
entender as normas como enunciados normativos neutros e universais. “Porque
se não se ‘finge’ a existência da Grundnorm, ficaríamos unicamente com a des-
crição de fatos ou de relações fáticas de poder” (Dulce Fariñas, 2001, p. 106),
com o que, não se descreve nem se conhece o direito positivo, “... mas se acaba
construindo um discurso político ou uma ideologia acerca de como deve ser con-
cebido o Direito, isto é , uma concepção apriorística do mesmo ... um sistema
jurídico-estatal unificado, hierarquizado, pleno e coerente de normas jurídicas e
autoridades normativas, dotado de validade objetiva e obrigatoriedade intrínseca”
(ibidem, p. 105-106) do qual foram amputados os fatos e as próprias relações
de poder. Afirma muito bem Antonio Tabucchi (1997) em La cabeza perdida de
Damasceno Monteiro, utilizando para isso a “ficção” literária: “é uma proposição
normativa – disse o advogado ao jornalista – está no vértice da pirâmide do que
chamamos Direito. Mas é fruto da imaginação do estudioso, uma pura hipóte-
se... Se você prefere, é uma hipótese metafísica, absolutamente metafísica. E se
você quiser, trata-se de um assunto autenticamente kafkiano, é a norma que nos
enreda a todos e da qual, ainda que lhe possa parecer incongruente, deriva-se da
prepotência de um senhor que se crê com direito a esfolar uma puta. As vias da
Grundnorm – conclui o advogado – são infinitas” (p. 86-87).
Não se pretende dizer que, por exemplo, uma constituição democrática
induz ou protege o torturador, o violento ou o que maltrata uma mulher (ainda
que as novas tendências legislativas antiterroristas, surgidas nos USA – após o 11
de setembro – e rapidamente adotadas, mais ou menos de má vontade, por seus
satélites, contradigam a afirmação anterior, dado sua pretendida constitucionali-
dade), mas que a ficção cultural que está na base das normas, sobretudo daquelas
que “enreda a todos” (legisladores, aplicadores, interpretes e cidadãs/ãos) conduz
à legitimação, agora normativa, de atos de violência, de exploração ou de mar-
ginalização dificilmente controláveis pelo resto de normas jurídicas enredadas
naquela hipótese ou ficção.
Como afirma Robert Cover (2002), habitamos um nomos, um universo
normativo a partir do qual distinguimos entre o bem e o mal, o legal e o ilegal, o
válido e o inválido. “As regras e princípios de justiça, as instituições formais do
58 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

direito e as convenções da ordem social são, sem dúvida, importantes para esse
mundo (normativo) e, no entanto, somente são uma pequena parte do universo
normativo que deveria chamar nossa atenção” (p. 16). Ficarmos no aspecto pura-
mente formal nos faz esquecer, ou oculta ideologicamente, que atuamos no marco
de um conjunto de narrações que situam as normas e lhes outorgam significado
cultural. Toda constituição – afirma Cover – tem uma épica, como todo decálogo
tem uma Escritura. “Quando se o entende no contexto das narrações que lhe dão
sentido, o direito deixa de ser um mero sistema de regras a serem observadas e se
transforma em um mundo no qual vivemos”.
Os direitos humanos funcionam como esse contexto de narrações ao
estabelecer “processualmente” as relações entre o mundo normativo e o mundo
material, entre os limites e obstáculos da realidade e as demandas ético-culturais
da comunidade. Que esse contexto de narrações nos conduza a um paradigma de
passividade e de resignação ou a outro de contradição e resistência dependerá de
nossos “compromissos interpretativos” na relação com o dominante estado de
coisas. Reduzem-se os direitos a sua componente jurídico-formal, perderemos
isso que George Steiner denomina a “alternidade” do “nomos”, ou seja, a faculda-
de de construir “o distinto ao que é”, ou seja, “... as proposições, imagens, formas
do desejo e da evasão contrafática com as quais alimentamos nossa vida mental
e através das quais construímos o meio mutável e em grande medida fictício de
nossa existência somática e social”.28
Se analisarmos as normas (ou, o que é muito importante, as consequên-
cias de sua aplicação a coletivos tradicionalmente marginalizados das vantagens
que supõe a adoção daquela ficção e desse “nomos”) e as teorias ou reflexões
sobre as mesmas, percebemos as dificuldades existentes a nível jurídico e insti-
tucional para incluir as expectativas e os valores de grandes camadas da popula-
ção: o patriarcalismo, o individualismo possessivo e o formalismo estão na base
de dita norma fundamental, de dita hipótese, ficção ou, melhor ainda, de dita
cultura jurídica dominante. Agora, ao toparmos com universos discursivos e não

28 Ver também Cover, op cit., p. 23: “El alcance del significado que se puede asignar a toda
norma –la interpretabilidad de la norma- se define, entonces, tanto por un texto legal, que ob-
jetiva la exigencia, como por una multiplicidad de compromisos implícitos y explícitos que lo
acompañan. Algunas interpretaciones están escritas con sangre, y permiten apelar a la sangre
como parte de su fuerza de legitimación. Otras interpretaciones suponen límites más conven-
cionales acerca de cuánto debe arriesgarse en su defensa. Las narraciones que cada grupo
particular asocia con la ley revelan el alcance de los compromisos del grupo. Esas narraciones
también ofrecen recursos de justificación, condena y debate a los actores del grupo que deben
luchar para vivir su ley”.
Joaquín Herrera Flores 59

com essências absolutas ou metafísicas, poderemos defender que, se a burguesia


teve êxito ao construir um procedimento que lhe permitiu elevar seus valores e
expectativas à categoria de “Grundnorm”, hoje em dia deve-se generalizar dita
possibilidade e possibilitando uma transformação do procedimento jurídico para
que outros coletivos possam constituir – parafraseando a Ignacio Ellacuría – outra
“Grundnorm”, ou seja, outro conjunto de ficções e pressupostos, favoráveis agora,
não somente a uma classe social, a que triunfa com as revoluções burguesas, mas
aos coletivos tradicionalmente marginalizados da ficção hegemônica: indígenas,
imigrantes, mulheres...
Por mais importante que seja defender o princípio de segurança jurídica
que certifica a validade interna das normas e outorga certeza na aplicação do di-
reito, e por mais relevante que seja identificar as normas que promovam desigual-
dade ou discriminações – tanto em sua redação formal como nos resultados que
produzam – quando falamos desde a convenção dos direitos humanos, é muito
mais necessário desvelar e julgar criticamente os traços patriarcais da cultura ju-
rídica: os pressupostos, hipóteses e ficções que impõem um único ponto de vista,
uma leitura particular e parcial da realidade como se fosse a única e universal.
Para isto, necessita-se de uma concepção do direito que inter-relacione suas três
componentes.

2. O conceito de direitos humanos: os direitos humanos como


processos

“...a liberdade é o mais apreciado e o mais doce...essa liberdade


não somente se pode conceder sem prejuízo para a paz piedade e
para a paz do Estado, mas, além disso, somente pode-se suprimi-la,
suprimindo com ela a própria paz do Estado e a piedade”
Spinosa, Tratado teológico-político

A capacidade de desfrutar é condição para desfrutar, e é,


portanto, seu primeiro instrumento; essa capacidade equivale ao
desenvolvimento de um talento individual da força produtiva
A. Negri, Marx oltre Marx

Os direitos humanos, em sua integralidade e desde o universo normativo


de resistência que defendemos nessas páginas, constituem algo mais que o con-
junto de normas formais que os reconhecem e os garantem em um nível nacional
ou internacional. Eles fazem parte da ancestral tendência humana de construir e
60 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

assegurar as condições sociais, políticas, econômicas e culturais que permitam aos


seres humanos perseverarem na luta pela dignidade, ou seja, o impulso vital que,
em termos spinozeanos, lhes possibilita manter-se na luta por continuar sendo o
que são: seres dotados de capacidade e potência para atuar por si mesmos. Os va-
lores – liberdade, igualdade, solidariedade – que nessas lutas foram sendo formu-
lados, foram produto do que Spinoza denominou o conatus29, quer dizer, a criação
imanente de potência política da multidão para perseverar na existência e ampliar
o poder do conhecimento e da ação humana30. Esse conatus constitui o funda-
mento imanente dos direitos humanos. Cada formação sociopolítica que ocorreu
na história não teve sua causa em alguma vontade transcendente que dadivosa-
mente lhe outorgou sua possibilidade de existência; a causa é sempre imanente e
identifica-se com esse conatus que nos impulsiona à autoconservação e cuja força
e intensidade não está relacionada com essências metafísicas, mas com o conjunto
de relações que mantemos com outras forças, sejam elas naturais ou sociais. O
conatus, a potência da multidão, é a causa imanente da nossa humana tendência a
atuar em favor da perseveração no ser e da transformação de tudo aquilo que tente
reduzir seu força e seu dinamismo. Se nosso universo normativo sustenta-se no
medo, na superstição e na morte, estamos diante da aniquilação do humano, en-
tendido não como o resultado da manifestação de alguma essência transcendente
à nossa condição humana, mas como o desdobramento de nossas potencialidades
imanentes. Somente a partir da alegria, da felicidade e do desejo de vida, que só
se desdobram quando o social, o jurídico, o econômico ou o político se dedicam
a fortalecer nossa potência cidadã, é que podemos conceber uma definição de
direitos humanos que supere as tentativas de reduzi-los a uma de suas facetas (a

29 Termo latino que significa esforço de, ou esforço para; na filosofia do século XVII, é usado
a partir da nova física que, ao apresentar o princípio da inércia (um corpo permanece em mo-
vimento ou em repouso se nenhum outro corpo atua sobre ele modificando seu estado), torna
possível a idéia de que todos os seres do universo possuem a tendência natural e espontânea
à autoconservação e se esforçam para permanecer na existência. Ver Marilena Chauí, 1995, p.
106.
30 Os valores não constituem uma esfera separada ou objetiva que orienta a ação humana desde
fora de si mesma. Por exemplo, a liberdade, para Spinoza, não se identifica com o livre arbítrio
da vontade no momento de escolher entre várias opções que se apresentam heteronomamente.
De acordo com Spinoza, a liberdade não é um ato de escolha voluntária, mas a capacidade
para converter-nos em agentes ou sujeitos autônomos de nossas idéias, sentimentos e ações, de
acordo com a causalidade interna de nosso “conatus”. Ver Marilena Chauí, op. cit. p. 107.
Joaquín Herrera Flores 61

jurídico-formal), ou de inseri-los em uma transcendência metafísica afastada das


paixões, das necessidades e das determinações de nossa existência31.
Os direitos humanos, então, devem ser vistos como a convenção termi-
nológica e político-jurídica a partir da qual se materializa o conatus que nos induz
a construir tramas de relações – sociais, políticas, econômicas e culturais – que
aumentam as potencialidades humanas. Por isso, devemos resistir ao essencialis-
mo da “convenção” – a narração, o horizonte normativo- que instituiu o discurso
ocidental sobre tais “direitos”. Se, convencionalmente se lhes atribuiu o qualifi-
cativo de “humanos” para universalizar uma idéia de humanidade (a liberal-indi-
vidualista) e o substantivo de “direitos” para apresentá-los como algo alcançado
de uma vez por todas, situamo-nos em outra narração, em outro nomos, em outra
grundnorm, em um discurso normativo de “alternidade”, de alternativa, de resis-
tência aos essencialismos e formalismos liberal-ocidentais que, hoje em dia, são
completamente funcionais aos desenvolvimentos genocidas e injustos da globa-
lização neoliberal.
Sob essas premissas, os direitos humanos, em sua integralidade (direitos
humanos) e em sua imanência (trama de relações), podem ser definidos como o
conjunto de processos sociais, econômicos, normativos, políticos e culturais que
abrem e consolidam – desde o “reconhecimento”, a “transferência de poder” e
a “mediação jurídica” – espaços de luta pela singular concepção da dignidade
humana32.
Para os objetivos desse trabalho, nos interessa ressaltar a idéia segundo a
qual os direitos humanos não são algo dado e construído de uma vez por todas em
1789 ou em 1948, mas trata-se de processos. Ou seja, de dinâmicas e lutas histó-
ricas resultantes de resistências contra a violência que as diferentes manifestações
do poder, tanto das burocracias públicas como das privadas, exerceram contra os
indivíduos e os coletivos. Pois bem, não falamos de processos “abstratos” dirigi-
dos por alguma filosofia ou dialética histórica com pretensões de objetividade e
absolutismo; também não falamos de um poder mistificado em alguma instância

31 Sobre o conatus espinozano, entendido como fundamento imanente dos direitos humanos,
pode-se consultar a Parte III da Ética (RBA, Barcelona, 2002) e o Tratado Político, Alianza,
Madrid, 1986. Ver também em Lucía Lermond Leiden, The form of man: human essence in
Spinoza’ s “Ethic”, E.J. Brill, 1988; G. Deleuze, Spinoza: filosofia práctica, Tusquets, Barcelo-
na, 2001; A. Negri, La Anomalía Salvaje: ensayos sobre poder y potencia en Baruch Spinoza,
Anthropos, Barcelona/UAM Iztapalapa, 1993; e a magna obra da filósofa brasileira Marilena
Chauí, 1999.
32 Joaquín Herrera Flores “Hacia una visión compleja de los derechos humanos”, 2001.
62 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

transcendente a partir da qual a realidade social vai emanando milagrosamente.


Os processos de luta que “convencionalmente” temos denominado direitos hu-
manos começaram a surgir historicamente com o surgimento e a consolidação
paulatina de uma nova forma de produzir e de distribuir bens, que foi dando como
resultado novas formas de relação social: o modo de produção capitalista e seu
dogma dos mercados auto-reguladores.
Como afirma Bourdieu (2001), a essas novas relações de produção que
conformam as diferentes formas de capital – econômico, social, cultural –, que
foram se sucedendo historicamente, correspondem diferentes formas de poder –
político, regulador, simbólico – que asseguram sua produção e sua reprodução
social. “O capital é uma força inscrita na objetividade das coisas, que determina
que nem tudo seja igualmente possível e impossível... a estrutura de distribuição
dos diferentes tipos e subtipos de capital, dada em um momento determinado do
tempo, corresponde à estrutura imanente do mundo social, isto é, à totalidade de
forças que lhe são inerentes e mediante as quais determina-se o funcionamento
duradouro da realidade social e decidem-se as oportunidades de êxito das práti-
cas” (p. 132-133, grifo do autor).
Em primeiro lugar, o capital é uma força inscrita, um tipo de relação
construída e não uma fase histórica objetiva que contém um passado e um futuro
inelutáveis; em segundo lugar, é uma força que constrói a estrutura imanente do
mundo social, ou seja, o marco institucional e a própria natureza das práticas
sociais; isto para, em terceiro lugar, condicionar ditas práticas ao tipo de ação
(“racional”) desmobilizadora e despolitizadora que as reduz a uma inércia política
conservadora a qual “...mantém os agentes dominados em uma situação de grupo
meramente prática, de tal modo que só entrem em contato uns com os outros
mediante a orquestração de disposições, resultando condenados, além disso, a
funcionar como um agregado e a limitar-se a algumas práticas isoladas e aditivas
sempre idênticas (como as decisões eleitorais ou de consumo)” (ibidem, p. 132).
Na medida em que esse tipo de “estrutura imanente do mundo social”
vai se generalizando historicamente e vai consolidando estruturas de poder ade-
quadas ao seu afã voraz de acumulação e dominação, vão surgindo os processos
que, na atualidade, denominamos “direitos humanos”. Esses constituem, por um
lado, dinâmicas sociais de diferente tipo que impulsionaram a ação frente à ex-
tensão e à generalização das relações sociais, políticas, econômicas e culturais
que iam se construindo na interação entre as diferentes formas de capital e suas
consequentes formas de poder. Da mesma forma, funcionaram como marcos ou
esquemas de ação e pensamento que permitiram generalizar socialmente valores
Joaquín Herrera Flores 63

alternativos à forma de relação social dominante. Assim, a burguesia em ascensão


durante os séculos XVII e XVIII utilizou os “direitos do cidadão” – nessa fase
histórica não se pode falar ainda de “direitos humanos” – para resistir ao esquema
de relações que predominava durante as monarquias absolutistas. O processo de
“acumulação originária” exigia, primeiro, a conformação de espaços autônomos
de ação nos quais as burocracias feudais ou monárquicas não pudessem interfe-
rir e, segundo, um tipo de fundamento essencialista “humanista” que propiciasse
uma consideração das relações sociais como produto do desdobramento de uma
natureza humana “individualista” e “possessiva” ancestral que, vá-se entender
por que milagrosa razão, coincidia com os interesses da classe em ascensão. As
“filosofias da história” cumpriram seu papel ao afirmar que o presente não era
mais que a consequência necessária de um passado que, ao mesmo tempo, incluía
em si as próprias chaves do futuro. A garantia filosófica, ética e política da nova
configuração social, econômica, política e cultural e sua própria reprodução esca-
tológica, ficava assegurada. No entanto, no próprio seio dessa nova estruturação
das relações entre capital e formas de poder que se sustentam na categoria de
direitos do “homem” e do cidadão, já iam surgindo quebras impulsionadas pelos
coletivos que ficavam marginalizados das vantagens do sistema e que propunham
novas rearticulações econômicas, filosóficas e políticas: Olimpe de Gouges e suas
reivindicações de gênero; Babeuf e sua luta pela substituição da igualdade for-
mal perante a lei por uma igualdade real de todos; Toussaint L’Ouverture e suas
práticas anti-escravistas e anti-racistas; Marx e sua análise “científica” do funcio-
namento do capitalismo como base de práticas anti-sistêmicas...Todos eles cons-
truindo as possibilidades de outro processo no qual esses direitos dos cidadãos
não funcionassem como obstáculos para práticas sociais diferentes. O quê dizer
dos movimentos feministas dos anos 70 e 80 a favor da aceitação da diferença de
gênero? Onde contextualizar os esforços dos coletivos negros, latinos, indígenas
senão na construção de novos processos e novos espaços de luta por sua específica
concepção da dignidade humana?
Estamos, então, frente a processos e dinâmicas históricas que foram to-
mando forma em textos e declarações e que, desde o século XVIII até a atualida-
de, vêm configurando o marco de adaptação ou reação frente às consequências da
extensão social, econômica, política e cultural do modo de produção capitalista.
Como dizemos, esses textos e declarações são, por um lado, produto da
reação social frente às diferentes fases pelas quais atravessou a construção de dita
estrutura imanente do mundo social; mas, por outro, quiseram ser vistos ideo-
logicamente – idios logos: discurso privado e particular que se apresenta como
64 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

universal – como produto do desdobramento de uma natureza humana essencial


e abstrata. Se nós falamos de direitos humanos como processos de luta – o co-
natus como fundamento imanente dos direitos humanos –, devemos negar essas
fundamentações idealistas e ver os direitos humanos em seus contextos e em suas
relações de adaptação ou crítica frente à estrutura imanente do mundo social que
impõe o capitalismo.
Assim, como vimos, com o primeiro conjunto de textos (século XVIII)
nos encontramos com a formulação dos direitos do cidadão, sob os quais se pre-
tendeu assegurar o âmbito autônomo – individual e essencialista – de liberdade
necessária para a ação “racional” do indivíduo no novo marco de relações sociais
capitalistas que se estava desenhando: Declaração do Bom Povo da Virgínia e
Declaração do Homem e do Cidadão33, textos perfeitamente funcionais, primeiro,
para enfrentar as estruturas do Ancien Regime e, segundo, para a extensão colonial
e imperialista das potências ocidentais. No entanto, após as duas grandes guer-
ras que assolaram o continente europeu durante o século XX e que envolveram,
pela primeira vez, a potência norte americana como “sócia” na rapina colonial e
neocolonial que se aproximava à segunda metade do século, surge o conceito de
direitos humanos: um conceito que pretendia estender-se a toda a humanidade
ao não circunscrever-se unicamente aos direitos do homem burguês, branco e
capitalista, e que “parecia” gozar da garantia jurídica oferecida pelo substantivo
“direitos” (Cortes regionais e internacionais de justiça).
No entanto, devemos levar em conta três questões: 1ª) a inserção de dito
conceito (Declaração Universal de Direitos Humanos) no marco sócio-político da
Guerra Fria entre os países capitalistas e os comunistas – o qual reduziu novamen-
te o conceito à defesa e à garantia dos direitos individuais do sujeito capitalista
à frente dos direitos sociais econômicos e culturais dos coletivos de ideologia
socialista; 2ª) o reconhecimento positivo dos direitos deu-se no marco geoestraté-
gico da descolonização “controlada” das antigas colônias – o que reduziu o papel
liberador dos chamados direitos de autodeterminação – e supôs a consolidação de
um sistema jurídico e político internacional baseado na supremacia da vontade
dos Estados; 3ª) a continuidade da definição “humanista”, isto é, essencialista e

33 No entanto, não devemos ter uma visão unilinear da história; ao lado dessas “declarações”
liberais, foram surgindo alternativas que tentavam superá-las a partir de diferentes âmbitos:
a incorporação da mulher (O. de Gouges), os direitos das massas populares (jacobinos), os
anseios de liberdade e justiça dos escravos (Haiti). Alternativas que foram imediatamente des-
manteladas por um poder burguês que foi assumindo a hegemonia e que não aceitava ir mais
além do que seus ideólogos ilustrados tinham concebido.
Joaquín Herrera Flores 65

abstrata dos direitos, que pretendia vê-los como a modelação histórica do des-
dobramento de uma natureza humana a-histórica, produto de alguma instância
transcendental alheia aos processos de lutas sociais e separada da extensão do
capitalismo como base ideológica, econômica e política da reconstrução mundial
após a segunda grande guerra. Esses três elementos implicaram uma redução do
conceito a seus limites individualistas, etnocêntricos, estatalistas e formalistas,
perfeitamente funcionais diante da nova fase de acumulação do capital que ocor-
reu na segunda metade do século XX e suas correspondes formas de poder social,
econômico e cultural.
Na atualidade, tal como vimos amplamente no “desafio contextual”, esta-
mos assistindo a uma nova fase histórica que está exigindo uma nova perspectiva
teórica e política no que concerne aos direitos humanos. Desde o final dos anos
oitenta e princípios dos noventa do século passado, e em consequência de fenô-
menos como a queda estrondosa do socialismo real e a consequente expansão
global do modo de produção e de relações sociais capitalistas, iniciaram-se novos
processos que estão colocando em questão a natureza individualista, essencialis-
ta, estatalista e formalista dos direitos que prevaleceram desde 1948 até quase a
última década do século XX.
A nova fase da globalização, a denominada “neoliberal”, pode caracte-
rizar-se, em termos gerais, sob quatro características articuladas: a) a prolifera-
ção de centros de poder (o poder político nacional vê-se obrigado a compartilhar
“soberania” com corporações privadas e organismos globais multilaterais); b) a
inextricável rede de interconexões financeiras (que faz as políticas públicas e a
“constituição econômica” nacional dependerem de flutuações econômicas impre-
visíveis para o “tempo” com o qual joga a práxis democrática nos Estados-Na-
ção); c) a dependência de uma informação que circula em tempo real e é captura-
da pelas grandes corporações privadas com maior facilidade que pelas estruturas
institucionais dos Estados de Direito; d) o ataque frontal aos direitos sociais e
trabalhistas (que faz com que a pobreza e a tirania convertam-se em “vantagens
comparativas” para atrair investimentos e capitais) (José Eduardo Faria, 2002).
Essas características próprias da nova fase de apropriação do capital es-
tão provocando uma mudança importante na consideração dos direitos humanos:
primeiro, a nível jurídico, esses “fatos” induziram, em primeiro lugar, à crise do
direito nacional dos direitos humanos, já que as constituições – sobretudo as que
surgiram na América Latina e na Europa Latina após as ditaduras do último terço
do século XX, nas quais verteu a última esperança do Estado democrático de
direito – estão perdendo seu caráter normativo e estão aproximando-se perigosa-
66 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

mente ao que Loewestein denominava constituições nominais e semânticas; e, em


segundo lugar, estão supondo a reconfiguração do direito internacional de matriz
“particularista” e “soberanista” que predominou após a proclamação da Declara-
ção Universal. A paulatina instauração de uma ordem global, desigual e injusta
que está minando as propostas de justiça social, está levando a teoria jurídica
internacionalista mais progressista a uma “releitura constituinte” que baseia o di-
reito internacional, mais que no individualismo e no etnocentrismo, na planetari-
zação das necessidades e exigências de indivíduos e grupos, na busca material de
justiça e de solidariedade e na instauração de uma relação circular entre o Estado
e a comunidade internacional (Juan Carillo Salcedo, 2002, p. 20).
E, em outro nível, a consciência das injustiças e os desequilíbrios aos
quais conduz a globalização estão provocando, em primeiro lugar, o surgimento
de processos de reação social multitudinários de recusa (movimentos antiglobali-
zação) que levam anos colocando em cheque as até então tranquilas e legitimadas
reuniões dos poderosos do planeta; em segundo lugar, o início de buscas de novas
articulações de redes sociais amplas (os três fóruns sociais mundiais celebrados
em Porto Alegre), que estão formando um movimento de movimentos a nível pla-
netário que não se conforma com as tradicionais formas de participação e articula-
ção social, mas estão criando uma nova visão do que significa democracia; e, a ní-
vel internacional, estão dando origem a todo um amálgama de textos, declarações
e propostas que superam com vantagem o caráter individualista e essencialista
da Declaração Universal34. É possível negar que estamos ante um novo processo,

34 Consulte-se a mudança de tom e de fundo que surge, dentre outros textos, na “Convenção
marco sobre mudança climática” (Rio de Janeiro, 1992), a “Convenção da UNESCO sobre a
proteção do patrimônio mundial cultural e natural (de 1972); A “Earth Charter Initiative” na
qual os direitos humanos condicionam-se a uma visão concreta da dignidade humana (Parte
I), à proteção ambiental – com especial atenção às relações sociais de produção, distribuição e
consumo – (Parte II), à justiça social e econômica (Parte III) e à construção de relações políticas
democráticas e não violentas, como precondições para a construção de um “Espaço Público
Compartilhado” (Parte IV); o “Manifesto 2000 para uma cultura de paz e não violência”, no
qual a situação violenta vê-se como consequência da falta de aplicação dos direitos sociais, eco-
nômicos e culturais; a “Declaração do Milênio”, que começa com o objetivo de eliminação da
pobreza e a promoção de desenvolvimento; a importante “Declaração de Responsabilidades e
Deveres Humanos” adotada pela UNESCO e organizada por ADC Millénaire e a Fundação Va-
lencia Terceiro Milênio, na qual desde o princípio aposta-se na imputação de responsabilidade
tanto aos organismos públicos como aos organismos privados pelas consequências que provoca
a ordem política, social e cultural que surge da ampliação da globalização: veja-se o capítulo
3 sobre “seguridade humana e ordem internacional equitativa” (artigos 10-15) e o capítulo 10
sobre “Trabalho, qualidade de vida e nível de vida” (sobretudo o artigo 36, em cujo parágrafo
Joaquín Herrera Flores 67

ante uma nova dinâmica histórica que enfrenta as novas circunstâncias pelas quais
atravessa o mundo no início do novo milênio? Os direitos humanos são algo dado
e construído de uma só vez ou são processos em permanente construção e recons-
trução? Não estaremos assistindo à instauração de um novo processo de direitos
humanos que afronta diretamente a globalização neoliberal?

Conclusões

O ato de vontade que dá origem ao mundo é


um ato de nossa própria vontade
Schopenhauer

Seguindo a revolução ótica de Huygens, segundo a qual era o olho huma-


no que iluminava os objetos e não esses que enviavam sua luz ao olho, Spinoza
pôde conceber a natureza imanente do fundamento do humano no conatus, ou
seja, na potência humana de autopreservação na existência. Esse “dinamismo” do
humano, oposto a qualquer tentativa transcendente de passividade e submissão a
“necessidades” externas, implicou reconceber a liberdade, não como a livre de-
cisão de uma vontade autônoma, mas sim como a expressão de uma necessidade
interna de existir e de atuar. Recusando o individualismo do “contrato social hob-
besiano” – a partir do qual os seres humanos renunciavam à sua potência em favor
do Estado – Spinoza reivindicou o “conatus” como fundamento do “contrato po-
lítico” – cujo pressuposto é a igualdade de condições entre as partes – o qual não
obriga a renunciar a nada, mas sim tende a empoderar os sujeitos que participam
nele. Para Spinoza, só haverá liberdade quando se fortalecer o “conatus coletivo”,
isto é, a trama de relações de empoderamento no qual deve consistir a política
democrática, e o sujeito humano não ficar debilitado por medo, superstição ou por
promessas de recompensas que se apresentam nas diferentes formas e manifesta-
ções teológicas da vida celestial. Sem essa precondição, a ação política e social
não será mais que a manifestação de um simulacro: vive-se em um tipo de regime,

11 consolida-se o direito à seguridade social e às medidas de promoção dos direitos humanos).


Este mesmo tom e estas mesmas questões de fundo indicadoras, como dissemos, do surgimento
de um novo processo de direitos humanos, encontram-se nas declarações de direitos indígenas
redigidas na década dos noventa do século XX: a “Declaração de Kari-Oca e Carta da Terra
dos Povos Indígenas. Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Ambiente e
Desenvolvimento” (1992); a Declaração de Mataatua dos Direitos Intelectuais e Culturais dos
Povos Indígenas” (1993); a “Declaração dos Povos Indígenas do hemisfério ocidental em rela-
ção ao Projeto de Diversidade do Genoma Humano” (1995).
68 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

mas se atua “como se” se estivesse em outro. Através do “conatus”, a ação política
e social tenderá à construção de uma cultura de poder na qual se manifestem clara
e contundentemente as diferenças, a pluralidade e a potencialidade humana de
transformação social.
A “ingenuidade” em política é, nas palavras de Slavoj Zizek, a pressupo-
sição de que a realidade é algo dado de uma vez por todas, algo ontologicamente
auto-suficiente, sendo nossa liberdade o espaço de autonomia que nos permite a
existência no marco do que se considera objetivamente puro e alheio às impurezas
da subjetividade. A “maturidade” em política, então, supõe afirmar a incompletu-
de ontológica da “própria” realidade: “há realidade só na medida em que houver
um hiato ontológico, uma fenda, em seu próprio centro”, sendo a liberdade então,
a assunção de nossa capacidade e nossa potencialidade para aproveitar as brechas
e os interstícios do que se considera objetivo e criar novas formas de organização
e de luta. Antígona não somente nega a lei pública, senão que, como manifesta-
ção de sua potência como ser humano, a transcende e luta por transformá-la em
outra.
A nova fase do processo de construção social, política, econômica e cul-
tural de uma nova forma de estar no mundo a partir da categoria convencional e
imanente dos direitos humanos, implica necessariamente em lançar luz sobre o
conjunto de relações que o neoliberalismo globalizado vem nos impondo como se
se tratasse de uma realidade transcendental e intocável. Mas essa “necessidade de
contexto” não fica por aí. Reconhecer a dependência das categorias sociais como,
por exemplo, os direitos humanos, de suas condições sociais de existência, não é o
único aspecto que nos interessa. Há que se dar um passo a mais e afirmar a presen-
ça da subjetividade revolucionária e antagonista como motor móvel do processo
de luta pela dignidade humana. As fases históricas não estão determinadas “obje-
tivamente”, tal qual o atual determinismo do mercado, ou o velho determinismo
comunista, queriam fazer-nos pensar. A passagem de uma época à outra é produto
de subjetividades que configuram o processo de transição e estabelecem as bases
da nova configuração social. Não é a transição objetiva a que se materializa nas
lutas; mas são as lutas que se materializam sob a forma da transição, da mudança,
da transformação, desde o desdobramento do “conatus” coletivo spinozano.
Pois bem, o que constitui o ponto de vista decisivo em todo esse pro-
cesso, não são mais as determinações objetivas do mesmo, mas a criação de sub-
jetividade antagonista capaz de apresentar alternativas à ordem dominante: em
nossos termos, os direitos humanos como processo de luta. Contra a passividade
dos humanismos que defendem o desdobramento natural e orgânico da natureza
Joaquín Herrera Flores 69

humana abstraída de seus contextos, devemos reivindicar o dinamismo das fun-


damentações imanentes e materialistas que, como defende Negri, não tendem a
novos determinismos, mas sim à constituição material da subjetividade revolucio-
nária e antagonista.
O ato ético e político por excelência, defendem Jacques Rancière, Alain
Badiou e Slavoj Zizek, não é o que vai mais além do princípio de realidade. O
próprio Freud o dizia em O futuro de uma ilusão: a ilusão tem futuro não porque
a dura realidade nunca possa ser aceita e sejam necessários falsos sonhos, mas
porque as “ilusões”, interpreta Zizek, “estão sustentadas pela insistência incondi-
cional de uma pulsão que é mais real que a realidade mesma”. O ato ético e polí-
tico por excelência é aquele que empodera os sujeitos para que possam mudar as
próprias coordenadas do que se percebe como possível. Não supõe situar-se “mais
além do bem e do mal”, mas traduzindo literalmente a famosa obra de Nietzsche,
implica nos posicionar “mais além do bem e do mal”, quer dizer, mais além dos
dualismos que nos impedem de construir outras considerações do “bem” e outras
formas distintas, não só de opor-nos ao mal, mas inclusive de defini-lo.
Para nós, o mal está regrado no que denominamos a “nova constituição
jurídica da globalização”, a qual se materializa nos diferentes “acordos” que sur-
gem da Organização Mundial do Comércio e cujas consequências Susan George
definiu com toda clareza: debilitar ou destruir os serviços públicos; arruinar os
pequenos agricultores; pôr em dúvida as conquistas sociais; burlar o direito in-
ternacional mais consolidado; prejudicar ainda mais os países já desfavorecidos;
homogeneizar a cultura; devastar o meio ambiente; cortar os salários reais e as leis
trabalhistas; reduzir drasticamente a capacidade dos governos de proteger seus
cidadãos e a capacidade dos cidadãos para exigir garantias de seus governos. “A
cultura – afirma George –, a saúde e os serviços sociais, a educação, os serviços
públicos, a propriedade intelectual, a segurança alimentar: tudo isto se encontra
ameaçado, entre tantas outras coisas. Para essa (“constituição jurídica do neolibe-
ralismo globalizado”), o mundo é, efetivamente, uma mercadoria”.
Os direitos humanos devem ser entendidos como processos sociais, eco-
nômicos, políticos e culturais que, por um lado, configuram materialmente – atra-
vés de processos de reconhecimento e de mediação jurídica – esse ato ético e
político maduro e radical de criação de uma nova ordem; e, por outro, a matriz
para a constituição de novas práticas sociais, de novas subjetividades antagonis-
tas, revolucionárias e subversivas dessa ordem global absolutamente oposta ao
conjunto imanente de valores – liberdade, igualdade, solidariedade – que tantas
lutas e sacrifícios exigiram para que se generalizassem. Por essa razão, o último
70 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO

e grande desafio que citamos nessas páginas e que deverá constituir o foco que
ilumine nossas práticas, é afirmar que o que convencionalmente denominamos
direitos humanos não são meramente normas jurídicas nacionais ou internacio-
nais, nem meras declarações idealistas ou abstratas, mas processos de luta que se
dirijam abertamente contra a ordem genocida e antidemocrática do neoliberalis-
mo globalizado. O sujeito antagonista constitui-se nesse processo e reproduz-se
na riqueza de suas práticas sucessivas. Não há nada de mais objetivo que a “força
da multidão que – como defendia Deleuze – converte em comum a luta e dota de
realidade a utopia”.

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Joaquín Herrera Flores é professor de direito da Universidad Pablo Olavide – UPO


de Sevilha, Espanha. Publicou vários livros sobre a problemática da teoria crítica dos direitos
humanos.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 73-86

Análise da Nova Constituição


Política do Estado35

Raúl Prada Alcoreza

Caracterização do Estado
A caracterização do Estado como unitário, social, de direito plurinacional
e comunitário é nova, não se encontra esta descrição ampla e complexa na antiga
constituição. A caracterização do Estado é espinhosa e integra, articula a dimen-
são jurídica com as emergências políticas, o Estado Unitário Social de Direito
com o caráter Plurinacional, Comunitário e Intercultural, ratificando sua condição
de Livre, Independente, Soberano e Democrático. Funda-se na pluralidade e no
pluralismo que se move em distintas dimensões: política, econômica, jurídica,
cultural e lingüística. Baseia-se no reconhecimento da pré-existência dos povos
e nações indígenas originários, o que implica o reconhecimento de seu direito à
livre determinação. A caracterização do Estado faz uma descrição do povo em
sua diversidade e multiplicidade, identificando sua composição mal combinada
enquanto nações, classes e estratos sociais, dispersos nas cidades e no campo. A
caracterização do Estado assume uma forma de governo democrática e partici-
pativa, além de se abrir a múltiplas formas de representação, direta, universal e
comunitária. Por outro lado, combina valores culturais dos povos e nações origi-
nárias com princípios liberais. Esta concepção composta da caracterização do Es-
tado acolhe a evolução constitucional liberal e se enriquece com o aporte indígena
às novas formas constitucionais e políticas.

A constituição de transição
Pode-se dizer que a Nova Constituição Política do Estado é uma consti-
tuição em transição. Trata-se da transição de um Estado unitário e social a um Es-
tado plurinacional. De um Estado que renunciou ao federalismo depois da guerra
de fins do século XIX e princípios do século XX, a chamada Guerra Federal: um
Estado que optou pelo unitarismo. De um Estado que construiu um modelo de
Estado populista, depois da Guerra do Chaco, consolidando-o como um Estado

35 Traduzido do espanhol pelo coletivo de tradução attraverso (Désirée Tibola, Leonardo Re-
tamoso Palma, Lúcia Copetti Dalmaso e Paulo Fernando dos Santos Machado).
74 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO

de bem estar, ao estilo latino americano, colocado em cena durante os doze anos
da Revolução Nacional (1952-1964). O unitário e o social são, então, uma he-
rança do passado. Esta é a forma como a Bolívia se defrontou com modernidade.
O novo na Nova Constituição é o caráter plurinacional e comunitário, o novo é
a descentralização administrativa, política e o sistema de autonomias. O caráter
plurinacional tem a ver com o eixo descolonizador como rota desconstrutora do
Estado republicano, colonial e liberal. O plurinacional tem a ver com o reconheci-
mento, desde a pré-existência colonial, das nações originárias, ou seja, o reconhe-
cimento da matriz populacional do povo boliviano. O povo boliviano é caracteri-
zado descritivamente por sua diversidade etnográfica e sociológica. O pluralismo
estatal que é, além disso, um pluralismo de nações, é um avanço substantivo no
pluralismo democrático, construído a partir do desdobramento das identidades
coletivas e do comunitarismo político. O caráter comunitário da Nova Consti-
tuição baseia-se no reconhecimento das instituições culturais que estruturam os
comportamentos e condutas das comunidades não só rurais, mas também urbanas.
Falamos, além disso, dos ayllus36, das tentas37, das capitanias, das estruturas estru-
turantes que codificam as migrações, os assentamentos migratórios, as festas, as
feiras, as challas38, os ritos e as cerimônias, onde se aninha o simbolismo coletivo.
Uma primeira conclusão poderia ser a seguinte: trata-se de uma transição do cará-
ter unitário e social do Estado para o caráter plurinacional e comunitário.
Trata-se também de uma transição constitucional devida à composição
combinada de desenvolvimentos evolutivos dos direitos, deveres e garantias libe-
rais com demandas indígenas constitucionalizadas e formas jurídico-políticas que
dão um marco constitucional ao processo de nacionalização e recuperação dos
recursos naturais. Em outras palavras, não deixa de ser uma constituição liberal,
mesmo que em uma versão bem mais pluralista, incorporando quatro gerações de
direitos: os direitos individuais, os direitos sociais, os direitos coletivos e os direi-
tos relativos ao meio ambiente. É também uma constituição indígena e popular, já
que incorpora a institucionalidade própria das nações e povos indígenas originá-
rios, suas estruturas e práticas autóctones. Do mesmo modo, é uma constituição
que reconhece o papel primordial do público na forma de Estado interventor, de
bem estar e industrializador. Esta combinação do liberal pluralista, do indígena

36 Originalmente, pequenas extensões de terra administradas por famílias incas. Atualmente,


uma das formas de Organização Territorial de Base, de caráter indígena. (Nota de tradução)
37 Também compreendida como uma das formas de Organização Territorial de Base, de cará-
ter indígena. (Nota de tradução)
38 Cerimônia aymara que mescla festa, ritos da tradição inca e carnaval. (Nota de tradução)
Raúl Prada Alcoreza 75

originário e do Estatal plurinacional fazem a composição da transição jurídico-


política. Uma segunda conclusão pode ser enunciada da seguinte maneira: o novo
mapa institucional é uma combinação de formas liberais, indígenas e populares,
no sentido do Estado de bem estar.

Estrutura constitucional
A estrutura do texto constitucional consta de cinco partes: caracteriza-
ção do Estado, direitos, deveres e garantias; estrutura e organização funcional
do Estado; estrutura e organização territorial do Estado; estrutura e organização
econômica do Estado; e hierarquia normativa e reforma da constituição. Nesta
última encontram-se as disposições transitórias. A primeira parte refere-se ao blo-
co dogmático da constituição e as outras partes, excetuando a última, referem-se
ao bloco orgânico da constituição. A caracterização do Estado estabelece que a
Bolívia é um Estado unitário, social, de direito plurinacional, comunitário, livre,
independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com auto-
nomias. Nos princípios, valores e fins do Estado, diz-se que a soberania reside no
povo boliviano e que se exerce de forma direta. O artigo 8 combina os princípios
e valores andinos, amazônicos e chaquenhos com princípios e valores democráti-
cos, símbolos imanentes culturais com significações transcendentais políticas. O
gênero é um eixo transversal a todo o documento, assim como o plurinacional e
o comunitário. Isto diz respeito aos novos sujeitos e subjetividades constitutivas
da nova forma política. Os sujeitos de gênero, sobretudo o feminino, os diversos
sujeitos e subjetividades da pluralidade e os sujeitos coletivos emergem como
novos imaginários e atores dos novos cenários no novo horizonte político. Isto dá
uma dinâmica molecular à engrenagem institucional e aos dispositivos políticos.
Não que os outros sujeitos, os clássicos da modernidade, tenham desaparecido;
mas aparecem nestes novos cenários animados pelas cores de uma pluralidade de
figuras. Outra é a trama e, portanto, os desenlaces esperados.
A representação abre-se a várias formas, direta e participativa, por voto
universal e comunitária, de acordo com normas e procedimentos próprios. Este
universo representativo condiz com o pluralismo das formas de representação e
com a diversidade de sujeitos: sujeitos individualizados e coletivos, sujeitos fe-
mininos e das comunidades. Fala-se também das distintas formas da democracia,
representativa, direta e comunitária. A democracia retorna a devir da ação política
e à forma primordial de deliberação: a assembléia. Rompe-se então o monopólio
da classe política, politizando o exercício mesmo, em todos os âmbitos da gestão
social. A democracia já não é de poucos, mas de todos. Os muitos exercem sua
76 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO

maioria na dialética com as minorias, dialética na qual se põe em cena a trama dos
interesses e das perspectivas, lugar onde se dá a ocasião da síntese política.
Os direitos se dividem nos fundamentalíssimos, como uma aquisição
na evolução dos direitos, além dos fundamentais e das garantias constitucionais.
Entre os direitos fundamentalíssimos encontram-se o direito à vida, à água e à
alimentação, à educação e à saúde, ao habitat e à moradia e ao acesso aos serviços
básicos de água potável, saneamento básico, eletricidade, gás domiciliar, correios
e telecomunicações. Estes direitos não podem ficar suspensos por nenhum moti-
vo, nem sequer num estado de sítio.

A evolução dos direitos


Os direitos fundamentais são os civis, os políticos, os das nações e dos
povos indígenas originários campesinos, os sociais, os econômicos, nos quais se
encontra o direito ao meio ambiente saudável, protegido e equilibrado, à saúde e
à seguridade social, ao trabalho e ao emprego, à propriedade. Nos direitos funda-
mentais encontram-se os direitos da infância, adolescência e juventude, também
os dos idosos, das pessoas com incapacidades, das pessoas privadas de liberdade,
das usuárias e dos usuários, das consumidoras e dos consumidores. A educação
está concebida como intercultural e estão desenvolvidos os direitos culturais. Há
uma seção (IV) dedicada à ciência, à tecnologia e à pesquisa. Há um capítulo
sobre comunicação social.
Os direitos não permanecem como declaração, mas, para que se cum-
pram indefectivelmente, contam com recursos constitucionais. Entre as garantias
temos as jurisdicionais, as ações de defesa, entre as quais se encontram a ação
de liberdade, a ação de amparo constitucional, a ação de proteção da privaci-
dade, a ação de inconstitucionalidade, a ação de cumprimento e a ação popular.
Estabelecem-se os estados de exceção e se define a cidadania. Como se pode ver,
a parte declarativa da constituição faz parte do constitucionalismo mais evoluído
das grandes tradições liberais, incluindo o avanço do liberalismo comunitário e
das grandes tradições sociais, incluindo todas as conquistas das classes, setores e
estratos sociais. Inclusive se destaca, faz-se visível, a distinção dos direitos fun-
damentalíssimos em relação aos fundamentais, mostrando que os direitos sociais,
coletivos e relativos à vida e ao meio ambiente não estão abaixo na hierarquia em
relação aos direitos individuais, ao contrário, lhes são equivalentes. Trata-se de
destacar o valor destes direitos de segunda, terceira e quarta geração.
Declara-se que a educação constitui uma função suprema e primeira res-
ponsabilidade do Estado; o Estado e a sociedade têm função plena sobre o sistema
Raúl Prada Alcoreza 77

educativo. A educação é unitária, pública, universal, democrática, participativa,


comunitária, descolonizadora e de qualidade. A educação é intra-cultural, inter-
cultural e plurilíngüe. Tudo isto faz parte da transversalidade da caracterização
do Estado como plurinacional. Em outras palavras, trata-se da construção da in-
tegração social a partir do reconhecimento da diversidade; trata-se de fazer atuar
e interconectar as partes; trata-se de articular e diferenciar as partes componentes
das novas subjetividades que dizem respeito à formação social misturada (colo-
rida). Diz-se que a língua foi criada para falar com os outros, distintos, de outras
línguas. A incorporação do plurilingüismo enriquece substantivamente a circula-
ção dos saberes e a formação aberta às cosmovisões. Esta nova experiência em
âmbitos formativos alternativos abre-se a campos de possibilidades constitutivas
da novas subjetividades e a leituras a partir de flexíveis e inovadores paradigmas.
Já não se pode sustentar a educação em um único paradigma, o que foi dominante,
o construtivista, mas se abrem horizontes de dizibilidade a partir de novas má-
quinas de expressão, horizontes de visibilidade a partir de novos agenciamentos
corporais. É indispensável, então, fazer girar os paradigmas inventados em torno
de flexíveis e abertas experiências educativas.

Estrutura plurinacional e organização funcional do Estado


A segunda parte da nova Constituição Política do Estado refere-se à es-
trutura e à organização funcional do Estado, ou seja, corresponde à estrutura dos
órgãos do Estado. Podemos dizer que esta estrutura corresponde à conformação
de quatro órgãos: o órgão legislativo, o órgão executivo, o órgão judicial e o ór-
gão eleitoral. Mas, se prestarmos atenção à estrutura de outros órgãos do Estado,
encontramo-nos com o controle social, que poderíamos dizer que se trate de um
“quinto poder”, além dos quatro “poderes” anteriores. Afirma-se que, quando se
fala de órgãos, refere-se à metáfora do corpo estatal a partir de uma perspectiva
integral, enquanto que, quando se fala de “poderes”, desenvolve-se a perspectiva
do equilíbrio entre eles. Isto vem da teoria dos limites e do controle mútuo dos
poderes, evitando a concentração em um deles. Tanto a perspectiva integral dos
órgãos quanto a perspectiva do equilíbrio dos “poderes” fazem parte do paradig-
ma liberal, no entanto um se assenta em um modelo organicista e o outro em um
modelo equilibrista. Com certo exagero, pode-se dizer que a visão dos “poderes”
do Estado é mais liberal que a visão organicista, no entanto, os dois discursos fa-
lam do mesmo: da organização e da estrutura estatal. A diferença com o esquema
estatal anterior, relativo à antiga Constituição Política do Estado, é que além de
aumentar o número de “poderes” do Estado, em vez de três, agora são quatro ou
78 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO

cinco, tem-se uma composição atravessada pela condição plurinacional e comuni-


tária. Outro passo transcendental é avançar da democracia representativa à demo-
cracia participativa, constituindo um “poder” social com a constitucionalização
da participação e do controle social.
Falamos de uma assembléia plurinacional, bicameral e com representa-
ção indígena, através do voto universal. Este órgão ou “poder” elege representan-
tes uninominais e plurinominais. A Câmara dos Deputados estará conformada por
121 membros eleitos com base em critérios territoriais e populacionais, em cir-
cunscrições uninominais. As cadeiras se estabelecerão através de um sistema de
maioria relativa. A Câmara de Representantes Departamentais estará conformada
por quatro representantes por departamento, eleitos por circunscrição plurinomi-
nal departamental, designados mediante sistema de representação proporcional.
Falamos de um órgão executivo, também plurinacional, sendo o dispositivo polí-
tico que concentra a vontade e a ação política da condição plurinacional e comuni-
tária do país. O órgão judicial constitui-se a partir da complementaridade de duas
formas de justiça, a formal, “ocidental”, ordinária e a justiça comunitária que,
apesar de manifestar um caráter prático, tem outra formalidade, cerimonialidade
e valores. A complementaridade de ambos os sistemas propõe uma articulação
dual, enriquece e expande as formas de administração da justiça, estabelecendo
um ponto de junção na ligação de ambos em termos de tribunais que comparti-
lham uma conformação plurinacional e intercultural. O tribunal constitucional
é plurinacional e intercultural, garante dessa forma a interpretação de ambos os
sistemas, a conjugação e a conjunção dos mesmos. O órgão eleitoral também tem
uma composição plurinacional e é responsável por organizar, administrar e exe-
cutar os processos eleitorais.

Estrutura e organização territorial do Estado


A estrutura e organização territorial do Estado refere-se ao sistema de
autonomias, desenvolve no espaço o processo de descentralização político-ad-
ministrativa, define, portanto, as mudanças na geografia política. São quatro as
formas de autonomia: departamental, regional, municipal e indígena. As novas
formas de autonomia são a departamental, a regional e a indígena; persistindo,
desde a Lei de Participação, a autonomia municipal, é a herança no sistema de
autonomias. Nesta forma de descentralização político-administrativa, as entida-
des territoriais autônomas não estão subordinadas entre elas e terão igual papel
Raúl Prada Alcoreza 79

constitucional. Também há que se levar em conta os departamentos onde ganhou


o não no referendum autonômico; estes departamentos gozam da condição de
descentralizados, sem chegar a ser autônomos, mas podem chegar a esta condição
mediante referendum departamental.
Ultimamente se discute muito a condição da autonomia departamental.
Há quem pretenda que a única forma de autonomia seja a departamental, coisa
que seria muito restrita frente às exigências de um processo de descentraliza-
ção aberto e múltiplo. O sistema autonômico precisa ser complexo e composto,
o que equivale a reconhecer as distintas formas de autonomia possíveis. Entre
estas possibilidades encontra-se a autonomia regional, que implica um processo
de descentralização maior, incorporando formas locais de gestão, que a fazem
mais operativa e democrática. A luta contra o centralismo não equivale somente
a descentralizar-se do Estado central, mas também, descentralizar-se de outros
centros, desta vez departamentais, das captais de departamento, onde assentam-se
poderes econômicos, classes dominantes, monopólios de circuitos financeiros e
se congrega a administração dos latifúndios. A autonomia regional é pensada na
perspectiva de passar a um novo ordenamento territorial. Esta dimensão autonô-
mica é conformada por agrupações de províncias e municípios.
As formas de autonomia implicam suas diferenças, não têm a mesma
história, nem tampouco conformam as mesmas estruturas organizativas, além de
ocuparem diferentes espaços. Estas diferenças tornam-se evidentes na distinção
de suas formas de governo e na distinção de suas competências. O governo de
cada região estará constituído por uma Assembléia Regional com capacidade
deliberativa, normativo-administrativa e fiscalizadora, no âmbito de suas com-
petências e um órgão executivo, enquanto que o governo de cada departamen-
to autônomo está constituído por um Conselho Departamental com capacidade
deliberativa, fiscalizadora e legislativo-normativa departamental, no âmbito de
suas competências exclusivas, atribuída pela Constituição, e um órgão executi-
vo. O governo autônomo municipal está constituído por um Conselho Municipal
com capacidade deliberativa, fiscalizadora, e legislativo-normativa municipal, no
âmbito de suas competências exclusivas, e um órgão executivo, enquanto que a
autonomia indígena originária campesina é a expressão do direito ao auto-go-
verno como exercício da auto-determinação das nações e dos povos indígenas
originários e das comunidades campesinas, cuja população compartilha território,
cultura, história, línguas e organização ou instituições jurídicas, políticas, sociais
e econômicas próprias.
80 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO

Estrutura e organização econômica do Estado


A nova Constituição Política do Estado propõe uma economia plural, em
outras palavras, espaços econômicos diferenciais, entrelaçados e integrados, que
se articulam e complementam, que se distinguem por seus feitos, suas práticas e
suas estruturas diferentes, mas se conectam em múltiplas intersecções comerciais,
financeiras, distributivas, de consumo e produtivas. Seus circuitos se cruzam,
mantendo seus espaços diferenciais. Toda essa gama de estratégias econômicas,
a comunitária, a estatal, a privada e a cooperativa serão unidas e articuladas pelo
Plano de Desenvolvimento Nacional e serão monitoradas pelo Estado, instituição
macro que intervirá em toda a cadeia econômica fortalecendo a economia comu-
nitária, contribuindo na economia cooperativa, promovendo a economia estatal
e dando garantias à economia privada. Por outro lado, os espaços da economia
plural encontram-se integrados por uma espessura ética e cultural, espessura que
atravessa esses espaços incorporando sentidos que vão mais além da economia: A
economia plural articula as diferentes formas de organização econômica sobre os
princípios da complementaridade, reciprocidade, solidariedade, redistribuição,
igualdade, sustentabilidade, equilíbrio, justiça e transparência. A economia so-
cial e comunitária complementará o interesse individual com o bem viver coletivo
(Artigo 307).
Dos quatro eixos da economia plural, o comunitário goza de especial
atenção devido a sua longa história e ao papel que lhe toca jogar no condicio-
namento e direção dos comportamentos e condutas da maioria da população. A
comunidade segue sendo o referente mais forte dos escambos (trueques), das fei-
ras, do trabalho coletivo, do ayni39, da minka, da complementaridade subjacente
entre as distintas camadas ecológicas, da reciprocidade entre as comunidades.
Por isso o Estado reconhecerá, respeitará, protegerá e promoverá a organização
econômica comunitária. Esta forma de organização econômica comunitária com-
preende os sistemas de produção e reprodução da vida social, fundados nos prin-
cípios e na visão próprios das nações e povos indígenas originários e campesinos
(Artigo 308). Outro eixo de especial atenção é o estatal, busca-se o fortalecimento
do Estado em todos os níveis da cadeia econômica, mas o Estado não é mais que
o administrador das propriedades de todos os bolivianos. Por isso o Estado tem
como tarefa administrar em nome do povo boliviano os direitos proprietários

39 Na tradição inca refere-se ao sistema de trabalho de reciprocidade familiar, uma espécie


de mutirão agrícola ou para a construção de casas, o mesmo que minka ou minga em língua
quechua, mais antiga. (Nota de tradução)
Raúl Prada Alcoreza 81

dos recursos naturais e exercer o controle estratégico das cadeias produtivas


e dos processos de industrialização de ditos recursos (Artigo 310). A economia
comunitária e a economia são eixos primordiais da economia plural, eixos que
se promovem sem o deterioramento de outros eixos econômicos como o privado
e o cooperativo. A economia privada faz parte de uma realidade econômica ine-
vitável, promove e gere uma parte significativa dos espaços econômicos. Neste
sentido o Estado reconhece, respeita e protege a iniciativa privada para que con-
tribua para o desenvolvimento econômico, social e que fortaleça a independência
econômica do país (Artigo 309). No que diz respeito ao eixo cooperativo, o Esta-
do reconhece e protege as cooperativas como formas de trabalho solidário e de
cooperação, sem fins lucrativos (Artigo 311).

Sustentabilidade e povos indígenas


Na quarta parte da nova Constituição Política do Estado, na parte que
corresponde à Estrutura e Organização Econômica do Estado, no que se refere
ao título segundo, que corresponde a Meio Ambiente, Recursos Naturais, Terra
e Território, estabelece-se, no que concerne ao Meio Ambiente, que é dever do
Estado e da população conservar, proteger e aproveitar de maneira sustentável
os recursos naturais e a biodiversidade, assim como manter o equilíbrio do meio
ambiente (Artigo 342). Afirma-se também que a população tem direito à parti-
cipação na gestão ambiental, a ser consultada e informada previamente sobre
decisões que possam afetar a qualidade do meio ambiente (Artigo 343). Conclui-
se que o patrimônio natural é de interesse público e de caráter estratégico para
o desenvolvimento sustentável do país. Sua conservação e aproveitamento para
benefício da população será responsabilidade e atribuição exclusiva do Estado e
não comprometerá a soberania sobre os recursos naturais. A lei estabelecerá os
princípios e disposições para sua gestão (Artigo 346). Como pode-se ver a opção
é pelo desenvolvimento sustentável, o equilíbrio do meio ambiente e a participa-
ção da população na gestão ambiental. Isto quer dizer que nos movemos dentro do
paradigma da sustentabilidade que tem implicações numa democracia ecológica,
que significa a participação da população na gestão ambientalista. Isto nos leva a
uma concepção aberta dos Recursos Naturais:

I. São recursos naturais os minerais em todos os seus estados, os hidrocarbo-


netos, a água, o ar, o solo e o subsolo, os bosques, a biodiversidade, o espectro
eletromagnético e todos aqueles elementos e forças físicas suscetíveis de apro-
veitamento.
82 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO

II. Os recursos naturais são de caráter estratégico e de interesse público para o


desenvolvimento do país (Artigo 348).

É inegável que os recursos naturais encontram-se intimamente ligados ao


meio ambiente e que a forma de exploração dos recursos naturais é determinan-
te no modo de desenvolvimento. A sustentabilidade exige que a exploração dos
recursos naturais aconteça mediante uma adequação equilibrada entre desenvol-
vimento e meio ambiente, entre o desenvolvimento das condições de produção e
a biodiversidade. Por isso a exploração dos recursos naturais em determinado
território estará sujeita a um processo de consulta à população afetada, convo-
cada pelo Estado, que será livre, previa e informada. Garante-se a participação
cidadã nos processos de gestão ambiental e se promoverá a conservação dos
ecossistemas de acordo com a Constituição e a lei. Nas nações e povos indígenas
originários campesinos, a consulta terá lugar respeitando suas normas e proce-
dimentos próprios (Artigo 352). Do último se deduz que a adequação equilibrada
tem que acontecer também com a cultura. Desenvolvimento sustentável, meio
ambiente e cultura formam um triângulo. Chamemos este triângulo o da susten-
tabilidade com identidade, o da sustentabilidade com participação dos povos in-
dígenas originários.

Hidrocarbonetos
No que diz respeito aos hidrocarbonetos se estabelece que o Estado de-
finirá a política de hidrocarbonetos, promoverá seu desenvolvimento integral,
sustentável e eqüitativo, e garantirá a soberania energética (Artigo 360).

Água
No capítulo quinto da parte que corresponde a Estrutura e Organização
Econômica do Estado, no que diz respeito aos recursos hídricos, estabelece-se
que:

I. A água constitui um direito fundamentalíssimo para a vida, no marco da so-


berania do povo. O Estado promoverá o uso e o acesso à água sobre a base de
princípios de solidariedade, complementaridade, reciprocidade, eqüidade, di-
versidade e sustentabilidade.

II. Os recursos hídricos em todos os seus estados, superficiais e subterrâneos,


constituem recursos finitos, vulneráveis, estratégicos e cumprem uma função so-
cial, cultural e ambiental. Estes recursos não poderão ser objeto de apropria-
Raúl Prada Alcoreza 83

ções privadas e tanto eles como seus serviços não serão concessionados (Artigo
373).

A água é um recurso estratégico, sobretudo no que diz respeito à sus-


tentabilidade. Não se poderia conceber um desenvolvimento sustentável e inte-
gral sem a compreensão de que a água é um bem comum, que constitui parte
fundamental do equilíbrio ecológico e dos ciclos climáticos, é um bem que deve
satisfazer às gerações contemporâneas e que deve se preservar para as gerações
futuras. Por isso:

I. O Estado protegerá e garantirá o uso prioritário dá água para a vida. É de-


ver do Estado gerir, regular, proteger e planificar o uso adequado e sustentável
dos recursos hídricos, com participação social, garantindo o acesso à água a
todos os seus habitantes. A lei estabelecerá as condições e limitações de todos
os usos.

II. O Estado reconhecerá, respeitará e protegerá os usos e costumes das comu-


nidades, de suas autoridades locais e das organizações indígenas originárias
campesinas sobre o direito, o manejo e a gestão sustentável da água.

III. As águas fósseis, glaciais, de zonas úmidas, subterrâneas, minerais, medici-


nais e outras são prioritárias para o Estado, que deverá garantir sua conserva-
ção, proteção, preservação, restauração, uso sustentável e gestão integral; são
inalienáveis, inembargáveis e imprescritíveis (Artigo 374).

Também:

I. É dever do Estado desenvolver planos de uso, conservação, manejo e aprovei-


tamento sustentável das bacias hidrográficas.

II. O Estado regulará o manejo e gestão sustentável dos recursos hídricos e das
bacias para irrigação, segurança alimentar e serviços básicos, respeitando os
usos e costumes das comunidades.

III. É dever do Estado realizar os estudos para a identificação de águas fósseis e


sua conseguinte proteção, manejo e aproveitamento sustentável (Artigo 375).

Povos indígenas originários


Falamos, além disso, de populações de matrizes histórico-culturais que
implicam possibilidades civilizatórias alternativas às da modernidade capitalista.
84 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO

Falamos de pautas culturais em equilíbrio com o meio ambiente e a biodiversida-


de. Podemos dizer que estas pautas culturais fazem parte da ecologia, da dinâmica
ecológica e dos círculos e circuitos dos ecossistemas. Mas também podemos di-
zer que a ecologia faz parte dos âmbitos culturais, da circulação dos saberes, das
cosmovisões integrais que não separam o saber do oikos, da casa, da morada dos
habitantes, de todos os seres orgânicos. Povos indígenas, então, não apenas como
população e ethnos, mas também como saberes e práticas. São estas técnicas,
estas práticas, estes saberes os que precisam ser recuperados na perspectiva de
mundos construídos desde a proliferação da sustentabilidade. Porque não há ape-
nas um modelo de sustentabilidade, mas muitos, em jogo com os componentes da
biodiversidade. A diferença com um desenvolvimento não sustentável encontra-se
na capacidade destrutiva e desequilibrante do desenvolvimento, do progresso, da
evolução moderna, que separam as condições naturais das condições históricas,
que separam as condições ecológicas das condições econômicas, abstraindo as
riquezas naturais como recursos exploráveis indefinidamente, independente dos
ciclos ecológicos e dos equilíbrios meio-ambientais. Em troca, a sustentabilidade
é pensável desde uma profunda conexão entre condições naturais e condições
históricas, entre condições ecológicas e condições sócio-econômicas, a susten-
tabilidade é pensável desde uma profunda imbricação entre formações sociais e
nichos ecológicos.
Na nova constituição política do Estado considera-se nação e povo indí-
gena originário campesino toda a coletividade humana que compartilhe identi-
dade cultural, idioma, tradição histórica, instituições, territorialidade e cosmo-
visão, cuja existência é anterior à invasão colonial espanhola. Afirma-se que, no
marco da unidade do Estado e de acordo com esta Constituição as nações e povos
indígenas originários campesinos gozam dos seguintes direitos:

1. Existir livremente.

2. Sua identidade cultural, crença religiosa, espiritualidades, práticas e costu-


mes, e à sua própria cosmovisão.

3. Que a identidade cultural de cada um de seus membros, se assim o deseja,


inscreva-se junto à cidadania boliviana em sua cédula de identidade, passaporte
ou outros documentos de identificação com validez legal.

4. Livre determinação e territorialidade.

5. Que suas instituições sejam parte da estrutura geral do Estado.


Raúl Prada Alcoreza 85

6. Titulação coletiva de terras e territórios.

7. Proteção de seus lugares sagrados.

8. Criar e administrar sistemas, meios e redes de comunicação próprio.

9. Que seus saberes e conhecimentos tradicionais, sua medicina tradicional,


seus idiomas, seus rituais, seus símbolos e vestimentas sejam valorizados, res-
peitados e promovidos.

10. Viver num meio ambiente são, com manejo e aproveitamento adequado dos
ecossistemas.

11. Propriedade intelectual coletiva de seus saberes, ciências e conhecimentos,


assim como a sua valorização, uso, promoção e desenvolvimento.

12. Educação intracultural, intercultural e plurilíngüe em todo o sistema edu-


cativo.

13. Sistema de saúde universal e gratuito que respeite sua cosmovisão e práticas
tradicionais.

14. Exercício de seus sistemas políticos, jurídicos e econômicos de acordo com


sua cosmovisão.

15. Ser consultados mediante procedimentos apropriados, e em particular atra-


vés de suas instituições, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou
administrativas suscetíveis a afetar-lhes. Neste marco, respeitar-se-á e garantir-
se-á o direito à consulta prévia obrigatória, realizada pelo Estado, de boa-fé e
concertada, no que diz respeito à exploração dos recursos naturais não renová-
veis no território que habitam.

16. Participação nos benefícios da exploração dos recursos naturais em seus


territórios.

17. Gestão territorial indígena autônoma, e uso e aproveitamento exclusivo dos


recursos naturais renováveis existentes em seu território.

18. Participação nos órgãos e instituições do Estado (Artigo 30).

Como se pode ver a nova constituição política do Estado compreende às


nações e povos indígenas originários não apenas como populações, culturas, sabe-
res plenamente reconhecidos, mas também desde a perspectiva dos direitos. Não
86 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO

se trata somente da declaração de direitos coletivos, mas de um capítulo específi-


co, dedicado aos direitos das Nações e Povos Indígenas Originários Campesinos.
As nações e povos indígenas fazem parte da estrutura dos direitos constitucionais,
são parte estruturante das estruturas da nova constituição.

Raúl Prada Alcoreza é intelectual do Grupo Comuna de La Paz, Bolívia e foi mem-
bro da Assembléia Constituinte boliviana.
Mídia e Cultura
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 89-103

Mídia, Subjetividade e Poder: Construindo os


Cidadãos-Consumidores do Novo Milênio

João Freire Filho

Formuladas por observadores presumidamente sensatos, estáveis e autô-


nomos, conjecturas alarmistas acerca da influência das diversões e do consumo
cultural de moças e rapazes adquiriram, ao longo do tempo, um status axiomático.
Circundam o surgimento de todas as modalidades de entretenimento comercial,
meios de comunicação e inovações tecnológicas prioritariamente endereçadas à
juventude (ou maciçamente consumidas por ela). Entre os alvos da condenação
de guardiões morais, árbitros culturais e reformistas sociais, destacam-se: os fo-
lhetins, os romances de detetive e as encenações teatrais “sensacionalistas”, no
século XIX; as versões hollywoodianas do (sub)mundo dos gangsters, na década
de 1930; o rock’n’roll e as histórias em quadrinhos, nos anos 1950 e 1960; o
heavy metal, o gangsta rap, o funk, os filmes de terror, os shockumentaries, a
Internet e os videogames, desde a década de 1980 (Boëthius, 1995; Cohen, 1997;
Coninck-Smith, 1999; Critcher, 2003; Drotner, 1999; Freire Filho & Herschmann,
2006; Hier, 2002; Jobs, 2003; Osgerby, 2004; Springhall, 1998; Thompson, 2002;
Warne, 2006; Wertham, 1955; Wright, 2000).
Com base em evidências astutamente selecionadas, cada novo meio ou
gênero de expressão cultural tende a ser apontado como mais impactante e cor-
ruptível do que os anteriores, por incrementar o embaralhamento das fronteiras
entre a ficção e a realidade, o bom e o mau gosto, a virtude e a indecência. As
espirais de ansiedade e comoção pública ao redor do lazer juvenil encontram res-
paldo numa já bem sedimentada tradição de trabalhos científicos, concebidos na
esfera da psicologia, da criminologia, da saúde pública, da educação e da comu-
nicação social. Amparadas, não raro, em precárias revisões de dogmas do mais
estreito behaviorismo, as investigações sobre os efeitos a curto e médio prazo do
envolvimento com os passatempos juvenis constroem um modelo comunicativo
em que as novas mídias e tecnologias figuram como o estímulo e a insubordina-
ção, a agressividade, o crime, o suicídio, a sexualização precoce (ou promíscua),
a toxicodependência e os transtornos alimentares despontam como as respostas
previsíveis ou experimentalmente verificadas.
Em que pesem as suas fragilidades teóricas e metodológicas, tais abor-
dagens prevalecem como a corrente majoritária dos estudos sobre mídia e ado-
90 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER

lescência. É fácil entender o apelo deste viés interpretativo: em primeiro lugar, a


comprovação de sua hipótese de trabalho legitima o sentimento de superioridade
e as intervenções de pais, mestres e peritos maduros – haveria, de fato, tonificante
mais vigoroso para a auto-estima e a autoridade do que a convicção de que os
outros são fatalmente mais influenciáveis do que nós? A hipótese da mimetiza-
ção irrefletida de práticas veiculadas ou preconizadas por artefatos e ícones das
indústrias culturais oferece, além disso, uma explicação descomplicada e conve-
niente para a gênese de comportamentos postulados como “problemáticos” pelos
especialistas.
As sucessivas ondas de pânico moral em torno daquilo que é exibido ao
público imaturo concorrem para eclipsar uma questão – literalmente – essencial:
a atuação da mídia na própria constituição das categorias correlatas e historica-
mente instáveis de adolescência e de juventude40, através de processos discursivos
que identificam as questões e os problemas “típicos” desta faixa etária, classifi-
cam experiências e desejos como matéria de preocupação privada e/ou pública
(naturalizando condutas, patologizando desvios) e reembalam, de modo atraente,
determinados valores e modos de vida.
A participação da mídia na construção das formas e das normas da ado-
lescência e da juventude se consubstancia, em regra, através de enunciados que
proclamam – apenas e tão-somente – desvelar a natureza destas etapas qualitativa-
mente distintas do desenvolvimento humano. Encarados, amiúde, como fenôme-
nos biológicos universais, a adolescência e a juventude devem ser compreendidas,
ao contrário, como artefatos de governamentalidade, construídos e operaciona-
lizados na intersecção de discursos políticos, acadêmicos e mercadológicos que
estabelecem ser aceitáveis, desejáveis ou temerárias determinadas características,
configurações, associações e atitudes das populações denominadas jovens (Freire
Filho, 2006). Os paradigmas de normalidade e êxito que visam à regulação e à
capacitação das condutas estão atrelados – de modo menos ou mais ostensivo – a
pressupostos, concepções e preconceitos acerca de questões como sexualidade,
educação, disciplina, cidadania, prazer, risco, consumo, liberdade, segurança pú-
blica, felicidade pessoal, eficácia social e desenvolvimento nacional.

40 Não existe consenso quanto às diferenças e aos nexos entre as noções de adolescência e ju-
ventude. Nas esferas acadêmica e comercial, os dois termos são empregados, amiúde, de forma
intercambiável, sem maiores preocupações com a distinção conceitual; certos textos, entretan-
to, procuram identificar, por razões de ordem metodológica e/ou política, as particularidades
dos dois marcos etários (Freire Filho, 2006, p. 38).
João Freire Filho 91

Combinando retoricamente identificação, incentivo e disciplina, as pre-


tensas decifrações midiáticas dos enigmas da adolescência e da juventude rati-
ficam parâmetros e limites cabíveis de independência, ruptura, experimentação,
irresponsabilidade social, sofrimento interior e encargos impostos a outrem. Seu
raio de ação não se restringe, pois, à audiência teen. Não se trata somente de en-
sinar aos rapazes e às moças como se reconhecer jovem (no seu íntimo, no seu
estilo de vida) e como agir em relação a si mesmos e aos outros das maneiras ge-
nericamente apropriadas (ou “típicas”) para atingir o bem-estar físico e psíquico
e a distinção social, identificando e administrando as “tempestades e tormentas”
inerentes a esta condição etária. Também nós, os “adultos responsáveis”, somos
interpelados pelos divertidos ou impactantes relatos sobre as “atitudes adolescen-
tes” ou as “culturas juvenis”.
Onipresentes, os artefatos midiáticos referendam conhecimentos e ver-
dades categóricas sobre o que constitui a “essência”, as “potencialidades” e os
“dilemas” dos adultos de amanhã, demonstrando ou instruindo como devemos
compreendê-los, capacitá-los, supervisioná-los, protegê-los e corrigi-los hoje, no
interior de configurações historicamente determinadas de saber, poder e subjeti-
vação. As imagens, as descrições, as explanações e os quadros de entendimento
que informam as representações da adolescência e da juventude nos remetem, em
síntese, tanto à nossa biografia quanto à posteridade, ajudando a conformar expe-
riências individuais subjetivas e conhecimentos pretensamente objetivos.
O texto de apresentação de Veja Especial Jovens (agosto de 2003) não
deixa dúvida quanto à ambição ecumênica do seu retrato da nova geração:

Para pautar a presente edição especial, VEJA adotou como critério dividir as
matérias de acordo com os temas de maior interesse dos adolescentes. E, por
certo, também daqueles que mais preocupam seus pais. Esse elenco de assuntos
corresponde ao apurado em perfis de comportamento realizados por instituições
especializadas, na opinião de nossos consultores e nas entrevistas diretas feitas
com jovens de todo o país. O conjunto é um retrato como poucas vezes se traçou
de uma geração. Foi pensado para que o adolescente disponha de informações
que o ajudem a refletir e ir em frente com o processo de amadurecimento. Para
os pais, é uma oportunidade de olhar para dentro do mundo dos filhos (O retrato
de uma geração, p. 14).

Instigado por sua popularidade mercadológica e relevância política, re-


solvi pesquisar, há dois anos, a configuração de quadros midiáticos de referência
com base nos quais as populações designadas jovens podem moldar, regular e ava-
liar suas vidas, ações e aspirações, posicionando-se socialmente e experienciando
92 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER

intimamente sua mocidade. Meu principal objetivo é, em linhas gerais, elucidar


as continuidades e as descontinuidades entre as maneiras de falar (e atuar) sobre o
“problema da adolescência” e a “questão juvenil” dentro da racionalidade gover-
namental neoliberal e aquelas que predominaram no passado.
Embora possa recorrer, eventualmente, a outros materiais empíricos,
concentro-me na análise dos discursos a respeito dos prazeres e dos riscos de ser
um jovem brasileiro no século XXI, veiculados em revistas semanais de informa-
ção. Em contraste com a representação relativamente escassa da adolescência e
da juventude no cinema nacional, a abordagem do tema pela nossa mídia impres-
sa é profusa e instigante, multiplicando-se pelas mais variadas seções (Atitude;
Carreira; Ciência; Comportamento; Consumo; Cotidiano; Cultura; Drogas; Eco-
nomia & Negócios; Educação; Entretenimento; Esporte; Família; Informática;
Moda; Opinião; Polícia; Saúde; Sexualidade; Sociedade; Tecnologia; Tendência;
e, muito raramente, Política).
Um aspecto sobressai, prontamente, em meu corpus analítico. As fon-
tes primárias examinadas até o momento constroem, em regra, perfis específicos
da juventude branca de classe média e alta dos grandes centros urbanos, mesmo
quando suas manchetes prometem – sem maiores ressalvas (ou sem ressalva algu-
ma) – compartilhar “o mais completo levantamento já feito sobre a juventude de
hoje” (Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 4), promover “um mergulho no
universo teen” (Veja Especial Jovens, agosto de 2003, p. 7), dar “notícias do pla-
neta adolescente” (Veja Especial Jovens, junho de 2004, p. 8) ou responder à inda-
gação capital “ser um jovem brasileiro é:” (Veja Especial Jovens, junho de 2004,
capa). A mal dissimulada opção mercadológica se evidencia pelo enfoque exclusi-
vo na inanição voluntária, em vez da compulsória; pelos alertas contra os perigos
do consumo do ecstasy, em detrimento do uso mais amplamente disseminado do
crack e dos solventes; pela abordagem do hip hop como apenas mais uma oferta
do “supermercado de estilos” pós-moderno, desassociando-o dos movimentos por
cidadania e igualdade racial; pelas embevecidas descrições do quarto “cada vez
mais tecnológico” da garotada, sem alusão às condições de habitação da maioria
da “tribo”; pelo esclarecimento das dúvidas na hora de escolher a profissão, um
curso de intercâmbio ou um roteiro de viagem (“Ir para a Disney hoje é trivial.
Os teens já dispõem de facilidades até para conhecer lugares exóticos”, afiança
João Freire Filho 93

Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 80), sem qualquer menção à baixa
qualidade da rede pública de ensino e à falta de opções de lazer e de perspectivas
de realização profissional da “galera” menos “descolada” (dos constrangimentos
estruturais, supõe-se).
Sem desprezar por completo os processos biodesenvolvimentistas e psi-
cossociais tradicionalmente vinculados à adolescência, os assíduos “retratos da
nova geração” buscam outros parâmetros para descrever e explicar as peculiari-
dades da juventude hodierna. Sua intenção é captar características e experiências
distintivas compartilhadas pela maioria das pessoas jovens, dentro de uma com-
binação particular de condições sociais, culturais, econômicas e políticas. Utili-
zam, como mananciais de saber, a ubíqua consultoria dos experts, os discursos
e as pesquisas elaboradas pelo mercado (cujos cálculos estratégicos se baseiam,
crescentemente, em conhecimentos psicológicos a respeito das paixões, das per-
plexidades, dos medos e dos sonhos que informam a vida subjetiva cotidiana de
nichos específicos de consumidores), além da reciclagem de um vasto repertório
de estereótipos sobre este Outro que nos envolve (em todas as acepções do ter-
mo...) – enigmático, exótico, sedutor, temível, invejável...
Já fortemente inserido no patrimônio da sociologia funcionalista estrutu-
ral, o tema da geração tem experimentado um renascimento em diferentes esferas
acadêmicas, desde o começo da década de 1990. Segundo Corsten (1999), a razão
preponderante para o renovado interesse pelo assunto é a “crise das identidades
coletivas” tradicionais. O esvaziamento heurístico de categorias como classe so-
cial no bojo da modernidade reflexiva teria aberto espaço para que idade e gera-
ção se fortalecessem como marcadores de diferenciação e conflito. Não disponho
de espaço, aqui, para aprofundar o que pode haver de pensamento desejoso nesta
narrativa histórica. O fato é que a mídia comercial – movida por sua índole no-
vidadeira – não só abraça, com entusiasmo, o conceito de geração, como ajuda
enormemente a vulgarizá-lo.
Dentre as ofertas de um mercado continuamente abastecido, três emble-
mas geracionais adotados por nossas revistas parecem-me particularmente suges-
tivos: “Geração Vaidade”, “Geração Digital” e “Geração Perigo”. Suas estratégias
discursivas enfatizam a relação dos jovens com, respectivamente, o consumo cos-
94 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER

mético41, as novas tecnologias42 e o risco43. Ao mesmo tempo em que naturalizam,


de certa forma, o consumismo, a tecnofilia e a temeridade juvenil, as matérias não
se esquecem de frisar a inigualável magnitude com que tais predicados afloram

41 “É ponto pacífico que os jovens brasileiros nunca tiveram tanto dinheiro na mão. E eles con-
somem mesmo. Principalmente roupas” (Eeeu teeeeeenhoo as cooooompras!!!, Veja Especial
Jovens, setembro de 2001, p. 15); “São adolescentes, mas pode chamá-los de maquininhas de
consumo” (Eles gastam muito, Veja Especial Jovens, agosto de 2003, p. 81); “Pitadas extras
de narcisismo são parte da natureza do adolescente” (Geração Vaidade, Veja, 11 maio 2005, p.
86).
42 “Garotos e garotas da Geração Z, em sua maioria, nunca conceberam o planeta sem com-
putador, chats, telefone celular. Sua maneira de pensar foi influenciada desde o berço pelo
mundo complexo e veloz que a tecnologia engendrou. Diferentemente de seus pais, sentem-se
à vontade quando ligam ao mesmo tempo televisão, o rádio, o telefone, música e Internet”,
(Geração Z, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 15); “Para esse público, o celular pas-
sou a representar um acessório definidor da personalidade” (Eles não vivem sem celular, Veja
Especial Jovens, junho de 2004, p. 79); “Para seus pais, a tecnologia é apenas um complemento
de sua vida. (...) Para os adolescentes, essa separação entre o real e o virtual é imperceptível.
Eles nasceram e cresceram na rede – e, mais importante, em rede. (...) Para a geração digital,
sem celular, comunidades online ou blogs não há vida” (Geração Digital, Exame, 24 ago. 2006,
p. 22); “Os jovens navegadores somam hoje 30% da população mundial, contra 29% dos boo-
mers. Vêem o computador como extensão natural de suas vidas e são mais bem informados do
que qualquer geração anterior” (Geração Virtual, IstoÉ, 12 abr. 2000, p. 54).
43 “A se fiar nas estáticas, nunca foi tão arriscado ser jovem como agora. Nunca uma geração
foi exposta a tantos fatores hostis, do desemprego ao banditismo” (Geração Perigo, Veja, 09 set.
1998, p. 40); “Soam românticos os tempos em que se imaginava que o primeiro contato com
as drogas poderia ocorrer por intermédio de um lendário traficante disfarçado de pipoqueiro.
Hoje, sabe-se que os entorpecentes são vendidos dentro do próprio colégio, por um aluno que
trafica em troca de dinheiro para financiar seu vício. Pior: ele pode ser um colega de classe”
(Nunca foi tão fácil, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 28); “É saudável preocupar-se
com o físico. Na adolescência, no entanto, essa preocupação costuma ser excessiva. É a chama-
da paranóia do corpo. Nunca houve uma oferta tão grande de produtos de beleza destinados a
adolescentes. Hoje em dia, é possível resolver a maior parte dos problemas de estria, celulite e
espinhas com a ajuda da ciência. Por isso, a tentação de exagerar nos medicamentos é grande”
(A paranóia do corpo, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 70); “Os especialistas julgam
que esse cultivo do corpo é positivo, porque se trata de um contraponto a práticas como a ali-
mentação à base de fast food e o hábito de gastar horas diante do computador. Mas os jovens
devem ficar atentos aos riscos que estão expostos. Como seu corpo e sua identidade estão em
formação, o adolescente é naturalmente inseguro com a aparência. (...) Os garotos querem ficar
tão musculosos quantos os veteranos da academia. As garotas almejam a silhueta esbelta das
mulheres. Quando viram obsessão, esses desejos prejudicam a saúde, causam transtornos psí-
quicos e até levam ao caminho das drogas” (É melhor pegar leve, Veja Especial Jovens, junho
de 2004, p. 37).
João Freire Filho 95

na contemporaneidade (“Nunca houve tantos...”, “Jamais foi tão...”). Convém não


desrespeitar a lei magna do mercado jornalístico: raramente se perde dinheiro,
apostando na novidade e na crise como catalisadores de vendagem...
A juventude emerge dos lucrativos relatos geracionais como um ideal de
mercado já sedimentado e um modelo de subjetividade neoliberal em construção
– os jovens são “os brasileiros mais bem-informados de todos os tempos”; estão
mais amadurecidos do que a mocidade das gerações anteriores, mais conscientes
do valor da educação, mais bem-adaptados às normas sociais44; revelam agilidade
incomparável para processar estímulos e realizar tarefas simultâneas; possuem
maior senso de individualidade e poder de compra, além de elevado espírito em-
preendedor; são menos apegados a fronteiras geográficas, menos sectários (ou
mais indiferentes) em relação a questões ideológicas45 e de políticas de estilo
(sub)cultural46, entre outras “características inéditas e fascinantes” (O retrato de
uma geração, Veja Especial Jovens, agosto de 2003, p. 14).

44 “A juventude de agora já não precisa combater a ditadura nem se sente sufocada pela famí-
lia. Ela está mais à vontade com os códigos sociais e as tradições à sua volta: 99% acreditam
em Deus e 60% não pensam em sair da casa paterna” (Uma geração sonhadora, mas também
realista, Veja Especial Jovens, junho de 2004, p. 13).
45 “O que pode se afirmar com certeza é que se está diante de uma geração que trocou a utopia
pelo pragmatismo. Os jovens não são mais arrebatados por grandes questões de ordem, na linha
capitalismo versus comunismo ou rebeldia versus caretice. De olho no futuro, estão mais inte-
ressados naquilo que pode afetar sua felicidade de forma concreta” (Uma geração sonhadora,
mas também realista, Veja Especial Jovens, junho de 2004, p. 13); “Essa geração de jovens
enterrou qualquer sinal de utopia, palavrinha meio em desuso, que significa, grosso modo,
a busca por um mundo ideal, com base em um projeto coletivo e altruísta. (...) Ser solidário,
sim, mas o negócio é se dar bem e viver com conforto. Sem inimigos visíveis, esta geração
demonstra elevado desencanto com os políticos, mas ainda acredita no voto, não deve produzir
incendiários, e não há cenários para revolucionários de plantão” (Geração Família, Brasileiros,
setembro de 2007, p. 43).
46 “Ser radical é coisa do passado. Hoje, muda-se de tribo o tempo todo. (...) Vive-se hoje a
‘era do camaleão’. (...) Em vez de ideologia há acessórios. (...) Por isso não faz sentido brigar.
Por que combater alguém que apenas se diverte de forma diferente? (...) Entre os mais velhos,
que viveram tempos mais radicais, há quem veja nessa mudança constante um lado negativo,
um reflexo da superficialidade dos dias atuais. Na verdade, o exercício da tolerância é uma con-
quista da geração de hoje” (Eu sou “normal”, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 38-
39); “O teen de hoje gosta num dia do grupo americano Hanson, em outro dos Backstreet Boys,
no terceiro cobre todos eles com um retrato das inglesas Spice Girls. É infiel por natureza. (...)
A diferença é que, no passado, os ídolos serviam para definir turmas e posavam de guardiões de
determinados valores. (...) Hoje, de seus ídolos, os adolescentes querem apenas diversão. Co-
lecionar figurinhas. Guardar pôsteres. Comprar roupas parecidas. Urrar de paixão nos shows.
96 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER

As reportagens festejam o individualismo e o pragmatismo juvenil como


um grande avanço social. Revolução? Sim, mas só no perímetro doméstico.

Os jovens dos anos 60 e 70 saíram de casa para protagonizar uma revolução de


costumes jamais vista até então. (...) Esses revolucionários cresceram, casaram-
se, viraram papais e mamãe e... surpresa! Estão acompanhando atônitos outra
revolução de costumes completamente diferente daquela da qual eles participa-
ram, mas igualmente jamais vista [caso contrário não se poderia qualificá-la
propriamente de uma revolução, não?]. Ela tem como protagonistas seus pró-
prios filhos e ocorre onde? Dentro de suas próprias casas. Os jovens de ontem
se trancavam no quarto para se isolar de todos. Os de hoje se trancam também,
mas para se plugar na Internet, na TV a cabo e no telefone celular. Os de ontem
faziam sexo e depois arranjavam uma desculpa para explicar por que haviam
chegado mais tarde da festa. Os de hoje já fazem sexo no quarto ao lado, sem
dar desculpa alguma (Os novos revolucionários, Veja Especial Jovens, setembro
de 2001, p. 7).

O determinismo biológico ou psicossocial cede espaço para o determinis-


mo tecnológico, na hora de elucidar os motivos das mudanças (ou “revoluções”)
no modo de pensar e proceder dos jovens:

Apenas um em cada cinco adolescentes faz questão de morar sozinho. A grande


maioria – 54% (sic) – não deseja sair da casa dos pais. É a chamada “geração
canguru”. (...) Depois dos anos 60, morar sozinho tornou-se um sonho de con-
sumo do adolescente – era a única maneira de ter liberdade e viver as próprias
aventuras. Essa situação está mudando, e a tecnologia é uma das responsáveis.
Para manter um apartamento equipado, um jovem precisa estar relativamente
bem colocado no mercado de trabalho. Afinal, assinaturas da Internet, TV a
cabo e linha telefônica custam dinheiro. Na casa dos pais, tudo isso é de graça
(Geração Z, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 21).

Seu comportamento tem uma referência clara na Internet: querem respostas


rápidas e muitas opções para exercitar suas escolhas. São excepcionalmente
curiosos, sabem que cabe a eles a criação de seu próprio bem-estar e valorizam
vigorosamente direitos individuais, como o direito à privacidade e o de ser dei-
xado em paz (Geração Virtual, IstoÉ, 12 abr. 2000, p. 54).

O ideal moderno de cidadania está relacionado com a observância de


certas virtudes públicas e precondições jurídicas que permitem a participação ple-

E depois ir para casa dormir, pensando que amanhã será outro dia. Talvez com um ídolo novo”
(Apenas um pôster na parede, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 58-59).
João Freire Filho 97

na do indivíduo na vida política (presumidamente, em benefício da prosperidade


coletiva). O vocabulário e os significados da cidadania variam, porém, de acordo
com a conjuntura social, política e cultural. As imagens de cidadania que a mí-
dia oferece, por exemplo, para a identificação dos jovens brasileiros se ajustam
perfeitamente ao paradigma neoliberal do cidadão-consumidor. A justaposição
dos dois conceitos de índoles aparentemente antagônicas não preconiza o engaja-
mento com o potencial cívico do consumo, visando fomentar alianças e renovar
estratégias de reivindicação, na linha do que propusera Canclini (1995). A figura
do cidadão-consumidor enaltecida pela racionalidade governamental neoliberal
sinaliza, antes, que a essência da cidadania deve se manifestar através do livre
exercício da escolha individual entre uma variedade de opções estruturadas pelo
mercado.
Os cidadãos-consumidores não são apenas “livres para escolher”, mas
obrigados a serem livres, a entender e a levar suas vidas em termos de escolha:

Eles devem interpretar seu passado e sonhar seu futuro como desdobramentos
de escolhas feitas ou ainda por fazer. Tais escolhas, por sua vez, são vistas como
materializações dos atributos da pessoa que escolhe – expressões de personali-
dade – e refletem-se de volta sobre a pessoa que as efetuou (Rose, 2005, p. 87).

Ao abonar tal modelo de inserção e participação no corpo social, a mídia


encoraja o jovem a valorizar, como bens supremos, a autonomia e a autentici-
dade, exortando-o a sentir-se responsável por efetivar o seu próprio potencial e
maximizar a sua satisfação pessoal. Presumo que poucos sejam desfavoráveis, em
princípio, ao investimento (simbólico e material) na ampliação de capacidades
humanas como o senso de iniciativa ou de responsabilidade; o problema reside,
porém, no enquadramento destas disposições dentro de uma ética do sucesso so-
lipsista, autocelebrativa, fundamentalmente desprovida de preocupações solidá-
rias com o desenvolvimento da justiça social e do bem-estar comum. Como se não
bastasse este golpe mortal no sentimento comunitário, o novo regime de liberdade
e responsabilidade incita, ainda, que todas as diferenças (e as desigualdades delas
resultantes) sejam encaradas como uma questão de escolha: “Se alguém termina
pobre, desempregado e insatisfeito, é devido a uma avaliação precária nas toma-
das de decisão de risco” (Ericson et al., 2000, p. 554).
A julgar pelas reportagens supracitadas, nossa juventude – altamente in-
formada, informatizada, prática, determinada – não se encontra distante do ideal
do cidadão-consumidor, apto para definir suas próprias necessidades e procurar
satisfazê-las, de forma racional, no bazar contemporâneo de bens, serviços, expe-
98 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER

riências e estilos. Os retratos midiáticos da nova geração não se limitam, entretan-


to, a exaltar posturas e práticas juvenis que prefiguram ou sintetizam um padrão
exemplar de cidadania, personalidade e subjetividade – ensinam, também, como
evitar os riscos que poderiam impedir os jovens de alcançar as formas de identi-
dade almejadas.
Sob a égide dos conhecimentos peritos, as matérias jornalísticas mobili-
zam os leitores para uma modalidade de pensamento probabilístico que estipula
relações causais entre certas propensões e condutas juvenis e a consumação do
futuro adulto ideal. Quem ousaria refutar a importância deste cálculo profilático?
Afinal, os membros da “Geração Perigo” são os brasileiros mais vulneráveis a
sucumbir às crescentes tentações e armadilhas circundantes. Sua mobilidade (so-
bretudo, noturna) está comprometida pela violência urbana e pelos acidentes de
trânsito. Sua liberação sexual é assombrada pelas doenças sexualmente transmis-
síveis, pela gravidez precoce e pela prática do aborto. Se não for adequadamente
regulado, o tempo gasto diante do computador pode causar diversos danos à saúde
(desvio de coluna; tendinite; vista cansada; miopia; obesidade; ciberdependência).
Eros e Tanatos dominam o mundo virtual, expandindo seu reinado através de sites
com conteúdo pornográfico ou que estimulam o suicídio. A preocupação com a
aparência, quando excessiva, pode degringolar em uma das doenças da beleza ou
patologias da vaidade (anorexia; bulimia; vigorexia), que atingem, atualmente,
ambos os sexos. As drogas ilícitas estão cada vez mais acessíveis; o consumo
abusivo do álcool, outrora associado à “combinação de juventude e testosterona”,
passou a seduzir também as moças – “Até hoje os rapazes viram copos como se
o gesto fosse uma demonstração de virilidade. Mas agora as meninas também en-
xugam”, observa a dupla de repórteres de Época, com uma sobriedade estilística
digna de nota... (Movidos a álcool, 30 dez. 2002, p. 40). A inadimplência é outra
ameaça crescente: “Quando não conseguem controlar seus ímpetos consumistas,
os jovens acabam sendo protagonistas de um fenômeno social perigoso”, alerta a
IstoÉ Dinheiro. “Endividados ou falidos, eles se tornam um peso financeiro para
os pais por um tempo muito maior do que o ideal” (Jovens endividados, 24 jan.
2007, p. 33). A juventude está prestes a se meter em encrenca, mesmo quando
parece trilhar o caminho certo: a geração atual é “provavelmente a mais preocu-
pada com comida saudável de todos os tempos”; a moda do vegetarianismo e dos
produtos diet pode levar, contudo, a uma dieta desbalanceada do ponto de vista
nutricional; por outro lado, o excesso de comida industrializada, rica em fariná-
ceos e gorduras, está relacionado com o aumento das doenças cardiovasculares e
da diabetes tipo 2 (Coma à vontade, você pode. Mas lembrem-se de que os maus
João Freire Filho 99

hábitos alimentares se tornam um problema para o resto da vida, Veja Especial


Jovens, agosto de 2003, p. 45).
Ancorados em declaradas preocupações humanísticas e econômicas, os
discursos sobre a “Geração Perigo” sugerem que todo detalhe de cada tendência
e comportamento juvenil deva ser alvo de uma monitoração sistemática – “Num
ambiente assim, a proteção paterna deixa de ser uma discussão filosófica. Ela é
uma imposição da realidade”, sentencia Veja (Geração Perigo, 09 set. 1998, p.
40), mediadora sensata, imparcial e (nos seus próprios termos) “indispensável” da
realidade concreta, do mundo objetivo situado fora de suas páginas.
Com o intuito de facilitar a tarefa da prevenção dos riscos, as revistas fran-
queiam suas páginas ao discurso competente dos especialistas, esquematizando-o
e adornando-o com gráficos e tabelas. A influência crescente dos experts ajuda a
harmonizar aspirações familiares de autonomia e responsabilidade privada com
imperativos governamentais neoliberais de controle a distância. As representa-
ções ideais da paternidade, da maternidade, da vida familiar e do comportamento
juvenil geradas pelos peritos independentes se afiguram como modelos a partir
dos quais os indivíduos podem, por si mesmos, julgar e normalizar suas ações ou
as dos seus dependentes, sem coerção ou intromissão direta de autoridades políti-
cas. A assimilação das normas sociais no governo das relações íntimas, na socia-
lização dos filhos e na (auto)condução da conduta adolescente se dá mediante a
ativação dos desejos, das expectativas, das ansiedades e das culpas dos próprios
indivíduos (Rose, 1999, p. 131-133; 2005 87-93).47
As descrições e os aconselhamentos fornecidos pelas revistas, com o aval
de seus peritos diletos, visam à construção de uma subjetividade juvenil livre da
escravidão dos desejos, como diziam os gregos, em suas artes da existência, ou
da busca compulsiva da gratificação, como tende a diagnosticar o nosso senso
comum medicalizante. Não se cogita, evidentemente, negar in totum o prazer – re-

47 As ponderações dos experts são arrematadas por imagens e slogans da vida saudável difun-
didos pela publicidade – às vezes, de uma forma bem matreira: logo após o sumário de Veja
Especial Jovens (agosto de 2003), deparamo-nos com a manchete ”Hidrate seu corpo – Bebidas
esportivas são cientificamente desenvolvidas para auxiliar o rendimento físico”. O layout da
página e o texto de caráter jornalístico dão a impressão de que estamos diante de uma reporta-
gem. Ao final da leitura, somos informados – através de uma nota de pé de página de dimensão
liliputiana – de que a base científica da suposta matéria foi fornecida pelo Gatorade Sports
Science Institute (GSSI). A confirmação de que se trata mesmo de um advertorial (expressão
que, dentro dos padrões éticos atuais, parece ter perdido o sabor de oxímoro) vem logo a seguir,
quando viramos a página e topamos com uma garrafa convidativamente gelada de Gatorade
sabor de tangerina.
100 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER

conhecido pela ciência como uma dimensão fundamental da experiência humana


(da juventude, em particular)48 e fetichizado pelo mercado como força motriz da
sociedade de consumo. Em sintonia com ideais morais e princípios políticos con-
temporâneos, a mídia evita se posicionar como uma adversária do desejo juvenil,
a conclamar pelo controle impositivo das escolhas individuais. Sua função auto-
atribuída é, pelo contrário, valorar positivamente os prazeres que emergem como
expressão de uma vontade livremente manifesta, ao invés de irromperem como
o efeito de determinações biossociais, disfunções cerebrais e familiares, pressões
grupais, apelos excessivos da publicidade, das academias de ginástica e das ca-
deias de fast-food. Nestes casos, os discursos da busca autodeterminada e sensata
do prazer dão lugar aos discursos da sedução, da compensação, da obsessão e da
compulsão.
As formas de condutas juvenis valoradas pela mídia como propriamente
prazerosas incluem o perfilhamento sensato com a moda e a salutar e socialmente
recompensadora preocupação com a aparência. Tudo aquilo que parece escapar
radicalmente deste hedonismo calculado, remetendo a uma libido sexual, aquisi-
tiva e tecnológica fora de controle, é associado a um alívio fugaz do desprazer,
da ansiedade, da angústia e/ou de tensões emocionais, levando ao sofrimento e à
dor.
Por meio de relatos comoventes de jovens reabilitados, do mau exemplo
ou da biografia edificante das celebridades e das opiniões e das técnicas ofertadas
por uma extensa rede de pareceristas (psicólogos; psicanalistas; médicos das mais
diversas especialidades; nutricionistas; educadores), os jovens são instruídos e
estimulados pela mídia a afastarem-se tanto da apatia quanto de condutas e mer-
cadorias desqualificadas como insalubres, intoxicantes, caóticas, orgiásticas (o
êxtase perigoso das raves...), incompatíveis com a sobrevivência individual e a
ordem social. Desde cedo, aprende-se que, enquanto o prazer genuíno nos agrega
em uma comunidade de cidadãos-consumidores funcionais, os comportamentos
compulsivos acarretam o isolamento e a inadaptação social.
A maior parte da juventude parece incapaz, ainda, de efetuar solitaria-
mente tais distinções vitais – “É próprio do adolescente buscar o prazer sem se
importar com as conseqüências”, afirma o psiquiatra Sérgio Nicastri, “mestre pela
universidade americana Johns Hopkins e especialista vinculado ao Hospital das

48 Para muitos especialistas, a anedonia (estado patológico em que se manifesta a inabilidade


de experienciar prazer, característico de diversas desordens mentais, como a depressão e a es-
quizofrenia) afeta o cerne da condição humana – criatividade, êxtase, planejamento utópico e
desfrute da vida (Heinz & Heinze, 1999).
João Freire Filho 101

Clínicas de São Paulo”, segundo os créditos fornecidos por Veja. “Dessa forma”,
complementa, por conta própria, a revista, “fica praticamente inevitável concluir
o óbvio” (donde se conclui que ainda há uma mínima margem para concluir o
inesperado...): “o lar onde existe diálogo tende a ser a melhor defesa contra os
conflitos e frustrações que transformam a curiosidade em vício” (Nunca foi tão
fácil, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 29).
De que maneira os responsáveis devem exercer sua autoridade sobre os
filhos (“sem incidir no autoritarismo, nem na permissividade”), a fim de garantir
que eles possam prosperar na sociedade capitalista informatizada e globalizada?
Como fazer valer a ascendência paterna, sem inibir a personalidade ou ferir a
auto-estima dos adolescentes? Como atender aos seus desejos, sem permitir que
eles se transformem em pequenos tiranos? Como ensiná-los a valorizar e admi-
nistrar sua própria liberdade, sem deixar que ela se converta em libertinagem?
De que forma a nova geração deve se portar para usufruir, agora e no futuro, de
um bom conceito, uma boa saúde e uma boa situação financeira? Que condu-
tas permitem aproveitar ao máximo todas as prerrogativas da adolescência, sem
ocasionar danos a si mesmo ou problemas para os outros? Ao articular respostas
especializadas para indagações fundamentais concernentes à formação dos jovens
como consumidores e sucessores, Veja e congêneres buscam sacramentar sua in-
dispensabilidade para os pais, os adolescentes e o mercado.
Diante da ampla difusão dos preceitos pedagógicos da mídia, surpreende
a escassez de estudos acadêmicos que abordem o seu papel proeminente no in-
centivo ao comprometimento subjetivo e prazeroso dos jovens com determinados
valores e modos de vida. A raridade de investigações neste sentido talvez se ex-
plique pelo fato de a produção de subjetividade não ser encarada como um tópico
de comprovação genuinamente científica ou com apelo suficiente para mobilizar
o interesse da opinião e dos cofres públicos. Acredito, porém, que o esforço teó-
rico de desnaturalização e desconstrução das concepções ideais de adolescência
e juventude abonadas pelos “retratos da nova geração” pode ter “virtualidades
críticas”, no sentido proposto por Larrosa (1994, p. 38) de “uma orientação refle-
xiva do pensamento com propósitos práticos e no trabalho da liberdade”. Trata-se,
enfim, de vislumbrar e construir – dentro do reconhecimento crítico dos limites e
dos espaços da nossa liberdade como sujeitos – as possibilidades de falar de outro
modo, de julgar de outro modo e de manter outras relações com o segmento popu-
lacional conceituado e administrado como adolescente ou jovem.
102 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER

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João Freire Filho é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, onde coordena


a Linha de Mídia e Mediações Socioculturais do Programa de Pós-Graduação. Pesquisador do
CNPq. Autor, entre outros trabalhos, do livro Reinvenções da resistência juvenil: os estudos
culturais e as micropolíticas do cotidiano (Rio de Janeiro: Mauad, 2007) e co-editor da coletâ-
nea Novos rumos da cultura da mídia: indústrias, produtos, audiências (Mauad, 2007).
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 105-120

Resistências criativas: os coletivos


artísticos e ativistas no Brasil

Henrique Mazetti

Afirmar que a criatividade, o humor e o afeto não faziam parte do instru-


mental contestatório antes da virada para o século XXI seria, sem dúvida, uma de-
monstração de desconhecimento histórico. A contracultura dos anos 1960 ao redor
do mundo, o dadaísmo alemão na República de Weimar (e os desdobramentos ar-
tísticos e políticos das vanguardas históricas européias) e a interpretação bakhtia-
na das festas carnavalescas da Europa medieval, são apenas alguns exemplos que
demonstram como a luta contra as relações de poder estabelecidas incorporaram
ou se fizeram valer, também, de valores simbólicos, culturais e afetivos ao longo
da história. No entanto, é o estereótipo de um manifestante amargurado, ascético,
estéril e entediante que, por muitas décadas, ocupou o imaginário coletivo.
A eclosão das manifestações conhecidas como Dias de Ação Global –
que tiveram na chamada “Batalha de Seattle”, em 1999, seu momento mais noti-
ciado – pode ser assinalada como um elemento chave para o início do processo de
desconstrução deste imaginário em que a militância política é representada (nem
sempre fielmente) por aspirantes a mártires e figuras empedernidas49. Ao con-
trário, as manifestações que ocuparam, e ainda ocupam, os noticiários de todo o
mundo apresentam, muitas vezes, protestos criativos, coloridos, bem-humorados
e teatrais, sem que seus participantes vejam comprometida sua carga crítica e
oposicionista.
Pode-se argumentar que o caráter lúdico destas demonstrações anticapi-
talistas não passa de um ajuste estratégico que visa adequar o discurso crítico dos
manifestantes às lógicas midiáticas (Assis, 2006). Assim, seria possível chamar
atenção para demandas políticas que de outro modo não encontrariam espaço nos
noticiários (ou, então, receberiam uma cobertura negativa). Todavia, ao examinar

49 Exemplar do anseio dos próprios manifestantes por repensar seu papel social e lutar contra
os estereótipos associados a eles foi o convite feito pelo grupo inglês Reclaim the Streets a to-
dos os envolvidos nos protestos dos Dias de Ação Global para “abandonar o ativismo” (Ludd,
2002). Inspirado nas idéias de Raoul Vaneigem (2002), membro do grupo artístico e político
francês Internacional Situacionista nos anos 1960, o convite era, na verdade, uma tentativa de
criticar a prática de ativismo como uma espécie de sacrifício próprio, em que o ativista se isola
do mundo como expert em transformações sociais.
106 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL

algumas práticas de resistência contemporâneas, é possível sugerir que as táticas


lúdicas utilizadas nos Dias de Ação Global não significam meramente a submis-
são das manifestações políticas aos ditames midiáticos, mas refletem mudanças
mais profundas nas concepções e práticas de resistência.
Ao pensarem as forças que se rebelam contra as formulações da sobera-
nia global na contemporaneidade, Negri e Hardt (2001; 2005) sublinham a neces-
sidade de não se repetir, simplesmente, as ações e as estratégias organizacionais já
sedimentadas de luta contra a exploração capitalista da sociedade. Em um misto
de diagnóstico e prognóstico da conjuntura recente, os autores sugerem que a
militância atual não deve se basear na atividade representativa, mas em práticas
constituintes. As resistências contemporâneas, encarnação do conceito de multi-
dão, assumem, portanto, um caráter inovador, construtivo e positivo. Isto porque,
se a nova ordem do poder global se funda no terreno da biopolítica, que entrelaça
questões políticas, econômicas, culturais e sociais, o mesmo deve ocorrer com as
práticas que pretendem desafiar o “império”.
Neste quadro interpretativo, a comunicação e a criatividade adquirem
importância fundamental para a construção de um posicionamento crítico. Negri
e Lazzarato ponderam que:

Hoje, na época da política comunicacional, ela [a crítica radical] se manifesta


como potência autônoma e constitutiva dos sujeitos. O tornar-se revolucionário
dos sujeitos é o antagonismo constitutivo da comunicação contra a dimensão
controlada da própria comunicação, isto é, que libera as máquinas da subjeti-
vação de que o real é hoje constituído (2001, p. 39).

Ou seja, as modalidades comunicativas, colaborativas e expressivas tor-


nam-se, em si mesmas, práticas de resistência, capazes estabelecer novos arranjos
subjetivos, novos modos de ser e estar no mundo.
Este ponto de vista tem encontrado sua mais proeminente expressão na
identificação dos desafios propostos pelas redes colaborativas na Internet às tra-
dicionais concepções de propriedade intelectual, além de uma miríade de disso-
nâncias possibilitadas pela reprodutibilidade e circulação digital de informação e
cultura. Ao pensar o potencial subversivo das redes peer-to-peer e do movimento
do software livre, Malini (2003) chega a se questionar, inclusive, até que ponto
ainda é válida a luta pelo controle da informação corporificada nos jornais de bair-
ro, rádios comunitárias e outras formas de comunicação alternativa e popular.
A análise do potencial crítico propiciado pelas redes informáticas enfatiza
as formas organizacionais que se insinuam como opções mais democráticas, cele-
Henrique Mazetti 107

bra a dimensão colaborativa da comunicação e o caráter disruptivo da inovação.


Contudo, ela não contempla, de maneira mais palpável, a irrupção da afetividade
e da imaginação nas práticas de resistência contemporâneas. Percorrendo um ca-
minho teórico distinto do de Negri, Boaventura de Sousa Santos aproxima-se do
posicionamento do pensador italiano ao sustentar que “é através da imaginação
que os cidadãos são disciplinados e controlados pelos Estados, mercados, e outros
interesses dominantes, mas é também da imaginação que os cidadãos desenvol-
vem sistemas coletivos de dissidência e novos grafismos da vida coletiva” (2002,
p. 46).
No Brasil, a utilização da criatividade e da imaginação como forma de
resistência tem se exemplificado nos inúmeros coletivos ativistas e artísticos sur-
gidos nas principais capitais do país, desde o início da década de 2000. Observa-
do por jornalistas (Assis, 2005; Matias, 2003; Monachesi, 2003; Silva, 2006) e
pesquisadores (Araújo, 2007; Cabral, 2007; Mazetti, 2006; 2008a, 2008b; Rosas,
2004; 2005; 2006; Szaniecki, 2008), o fenômeno do coletivismo artístico e ativis-
ta no país é, no entanto, de difícil limitação conceitual, dada a heterogeneidade
das atividades que podem ser enquadradas dentro de seu arcabouço.

O coletivismo artístico e ativista no Brasil


Em março de 2003, uma matéria no caderno Ilustrada da Folha de São
Paulo anunciava a “explosão do a(r)tivismo”. De acordo com a jornalista Juliana
Monachesi (2003), crescia o número de coletivos em diversas partes do país que
reuniam influências dos situacionistas franceses e um revival da arte contesta-
dora brasileira das décadas de 1960 e 1970. Com trabalhos de perfis políticos e
anti-institucionais, os novos grupos possuíam o intuito de se posicionar com a
intenção de “atacar a máquina da globalização neoliberal, contra o desmanche
das instituições culturais e contra o canibalismo da produção artística pelo sistema
comercial” (idem).
Contudo, frente à “explosão” do coletivismo artístico de cunho político
no país alardeada pela imprensa, havia aqueles que defendiam a idéia de que os
coletivos de arte brasileiros já existiam há algum tempo, surgindo, desfazendo-se
e replicando-se de forma intermitente desde a década de 1970. Para Rosas (s/d), a
“onda” dos coletivos criada pela mídia refletia, na verdade, indícios de cooptação
destas manifestações pelo mercado. Deste modo, a arte coletiva de teor ativista
estava sendo transformada em uma moda e o “a(r)tivismo” oferecido como um
produto cultural de rebeldia inofensiva para leitores ávidos por “novas tendên-
cias”. Em outro texto, Rosas (2004) sugeria que o coletivismo artístico recente no
108 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL

país é um “fenômeno de proporções bem maiores e razões mais profundas que a


vã filosofia dos cadernos culturais poderia imaginar”.
Para entender este fenômeno, no entanto, é preciso defini-lo ou, pelo
menos, indicar suas peculiaridades. E o primeiro passo para tanto é assumir a
diversidade e a ambigüidade que caracterizam estas manifestações. Os coletivos
de arte e ativismo atuantes no país dedicam-se a uma verdadeira infinidade de
práticas: alguns desenvolvem trabalhos de intervenção urbana, na tentativa de
levar a arte para o dia-a-dia e problematizar a privatização do espaço público;
outros se voltam para sabotagens midiáticas e guerrilha semiótica, em paródias
ou adulterações da publicidade comercial. Determinados coletivos se engajam na
luta pela circulação de informação, distribuindo livros pela Internet e criticando
as leis que regem os direitos autorais, enquanto coletivos distintos trabalham com
performances teatrais nas ruas ou promovem instalações e apresentações multi-
mídia. Há ainda atividades baseadas em filmagens in loco – o videoativismo –, na
organização de festas, encontros e conferências; na manutenção de ocupações se-
melhantes aos squats europeus, em trabalhos conjuntos com movimentos sociais
ou em oficinas de experimentação com tecnologias digitais etc.
Sintetizar o fenômeno dos coletivos como uma prática artística também é
problemático. Alguns grupos mantêm uma relação mal resolvida com a arte insti-
tucional, ora criticando-a e buscando espaços para ultrapassá-la, ora dialogando e
inserindo-se em galerias e exposições mais tradicionais. Já outros coletivos pare-
cem nutrir uma concepção completamente distinta de arte – ligada à experimenta-
ção, à brincadeira e à descoberta, e não aos cânones da história da arte. O “discur-
so oficial” encontrado nos cadernos culturais assegura que os coletivos artísticos e
ativistas contemporâneos buscam re-oxigenar o projeto de ressignificação da arte
iniciado com as vanguardas históricas européias (Monachesi, 2003; Rosas, 2004,
2005). Todavia, a maneira como os coletivos mergulham nesta busca difere de
caso a caso. Enquanto integrantes de determinados coletivos se descrevem como
artistas, outros renegam o título, preferindo reforçar o caráter contestador de suas
manifestações.
Neste sentido, Cabral (2007) acredita que os coletivos são uma das di-
versas modalidades de participação política adotadas pela juventude brasileira
contemporânea. A pesquisadora concorda com o posicionamento de Rosas (2004)
de que o fenômeno da organização em coletivos ultrapassa em complexidade um
simples tipo de associação entre os artistas atuais, para se transformar em um
novo plano de atuação da resistência jovem, urbana e de classe média. No enten-
der da pesquisadora, “os coletivos queriam dizer respeito mais a um determinado
Henrique Mazetti 109

tipo de associação, caracterizada por falta de hierarquias e uma certa efemeridade,


do que a um novo fenômeno artístico pós-moderno. Eram a versão brasileira dos
‘grupos autônomos’ do hemisfério Norte” (Cabral, 2007, p. 99-100).
Ao ponderar o caráter político dos coletivos brasileiros, porém, é preciso
fazer algumas ressalvas. A primeira observação, talvez óbvia, é a de que nem
todos os coletivos de arte possuem, necessariamente, teor ativista. Esta afirmação
é importante, pois o posicionamento crítico dos coletivos muitas vezes é obliquo
ou, até mesmo, ambíguo. Por um lado, existem coletivos cujas práticas concretas
vão ao encontro do seu discurso contestador e o seu comprometimento social é
claro – o que não implica sua eficácia. Entretanto, por outro lado, algumas mani-
festações de determinados coletivos apresentam uma falta de foco nas suas inten-
ções (Rosas, 2005).
Vale lembrar, neste caso, as ponderações de Foster (1996) sobre o perigo
de se enredar em uma certa ingenuidade ao tomar todo discurso artístico com
teor político como realmente crítico às relações de poder. O autor ainda alega a
necessidade de se ter cautela em não superestimar algumas atividades que tendem
a interpretar a arte como resistente em seus próprios termos. Com tom precavido,
o crítico de arte identifica uma espécie de voluntarismo de uma parte do campo
artístico, que, ao se aproximar da política em seus trabalhos, adota críticas semi-
prontas, em “voga”. É difícil não pensar nas observações de Foster ao analisar,
por exemplo, a desenvoltura com a qual o coletivo paulista BijaRi apresenta, em
seu site 50, seus trabalhos de cunho artístico e contestador ao lado de suas ativida-
des comerciais, voltadas, principalmente, para o mercado publicitário.
Deste modo, sob a expressão “coletivos artísticos e ativistas” configura-
se uma semi-caótica e desordenada variedade de grupos com distintos modos de
ação e divergentes perspectivas quanto à arte e à política. Entretanto, as idiossin-
crasias dos coletivos nacionais são fundamentais para o seu próprio entendimento.
Seria possível obter conceituações mais restritas, caso um recorte mais específico
fosse utilizado. Esta operação, porém, dar-se-ia às custas de uma das principais
características deste fenômeno: a sua natureza diversa, o que não impede que os
grupos atuem em conjunto e formem redes colaborativas (Cabral, 2007; Mazetti,
2007; Rosas, 2005).
Portanto, ao invés de direcionar esforços em busca de definições monolí-
ticas acerca do fenômeno do coletivismo artístico e ativista no Brasil, talvez fosse
mais interessante apostar em estudos de caso específicos, capazes de distinguir as
peculiaridades dos mais diferentes coletivos nacionais para compreender a plura-

50 http://www.bijari.com.br/
110 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL

lidade que os caracteriza. Com este intuito, são apresentadas, a seguir, observa-
ções sobre dois coletivos atuantes no país: o Media Sana, sediado em Recife e que
trabalha com apresentações multimídia, e o Poro, grupo de intervenção urbana
com base em Belo Horizonte. Estas breves análises51 têm como principal objetivo
investigar como estas manifestações utilizam o humor, o afeto e a criatividade
como combustível para o questionamento e a crítica social, ou seja, como os co-
letivos atuam como resistências criativas.

Faça-você-mesmo midiático: o coletivo Media Sana


O Media Sana é um coletivo de artistas multimídia que trabalha princi-
palmente com performances audiovisuais de cunho crítico. Formado em 2002, em
Recife, ele é composto por Gabriel Furtado, 40 anos e dono de um estúdio musical
em Recife; Queops Negão, que tem 35 anos e se define como alguém que “já fez
de tudo nessa vida” como trabalhar de ator e organizar produções musicais; Kelly
Lima, 21 anos, designer e produtora cinematográfica; e Leandro Guimarães, um
estudante de 22 anos. Todos os integrantes do coletivo residem na capital pernam-
bucana. Inicialmente voltados apenas para a música, a descoberta de ferramentas
tecnológicas como os softwares de VJ possibilitou a inserção de experimentações
visuais no trabalho do coletivo. Assim se deu o embrião da fórmula – refinada ao
longo dos anos – que rege as performances do grupo.
É difícil transmitir fielmente as apresentações do coletivo ao vivo. Nas
performances que tive a oportunidade de observar, Igor Medeiros e Gabriel Fur-
tado se ocupam de computadores, bateria eletrônica e teclados conectados a um
mixer de áudio e vídeo responsáveis pela música, de estilo eletrônico, seco e repe-
titivo, e as imagens, projetadas em um telão. Longe dos olhos do público, Queops
Negão é filmado sobre um fundo chroma key e tem sua imagem inserida na proje-
ção, em intervenções em que assume a função de um mestre de cerimônia (MC),
interagindo com a platéia e guiando a performance – seja dando informações ou
apresentando e contextualizando o próximo número. Kelly Lima, de filmadora em
punho, capta imagens do público, que em certos momentos são também inseridas
no telão.

51 A metodologia utilizada nos estudos de caso envolveu a observação presencial das ativi-
dades dos coletivos, entrevistas não-dirigidas com seus membros e coleta de informações na
imprensa e na internet. Versões mais extensas dos estudos de caso, assim como informações
mais detalhadas sobre a metodologia utilizada podem ser encontradas na minha dissertação de
mestrado (Mazetti, 2008a).
Henrique Mazetti 111

Com estes elementos típicos, que podem variar de acordo com a estrutura
disponível e os integrantes do coletivo presentes, o Media Sana apresenta aquilo
que chamam de “canções midiáticas”. O termo se refere ao fato de que a imen-
sa maioria do material visual utilizado nas apresentações do grupo é retirado da
programação diária da TV. Trechos de telejornais, novelas, propagandas, debates,
entrevistas, discursos políticos e depoimentos de anônimos que constroem as nar-
rativas predominantes da televisão comercial são recortados e recombinados, ao
vivo, para constituírem, então, uma crítica a estas narrativas52.
Entre os temas abordados pelo grupo estão: a distorcida construção da
realidade social pela mídia comercial, a sufocante ubiqüidade da propaganda no
cotidiano, o poder desmesurado do mercado e das grandes corporações na socie-
dade e a falência da política institucional. Além disso, o Media Sana desenvolve
um discurso em favor daquilo que chamam de “cultura livre”, isto é, a garantia
do acesso à informação e à cultura sem os entraves econômicos e jurídicos prove-
nientes das leis autorais em vigência no país.
Para os integrantes do grupo, a reciclagem de trechos da televisão co-
mercial não é vista como simples ferramenta estilística. Mas, sim, como uma
forma de consumo ativo, uma resposta pessoal à produção televisiva comercial.
Enquanto há uma preocupação do coletivo em conscientizar seu público sobre
os temas abordados através dos excertos da programação diária da TV, o próprio
fazer destes vídeos, o ato de assistir criticamente e recortar os trechos da televi-
são são entendidos também como um desafio à lógica midiática que coloca os
receptores – no caso, os próprios membros do Media Sana – como coadjuvantes
passivos dentro de todo o processo.
As “canções midiáticas” do coletivo são, ao mesmo tempo, disruptivas e
dialógicas. Elas aspiram questionar os meios de comunicação comerciais, o senso
comum de que o que aparece na TV, pelo simples fato de ser midiatizado, é ver-
dade, mas não como um questionamento que tem fim em si mesmo. A intenção é
divulgar para o público as múltiplas possibilidades de interpretação a que o ma-

52 As atividades do coletivo não se resumem às performances ao vivo. Além de ocasionalmen-


te ter seus vídeos apresentados em mostras audiovisuais, o Media Sana constantemente se enga-
ja em oficinas de leitura crítica da mídia e de softwares livres (que conjugam uma introdução à
utilização do sistema operacional aberto Linux e lições de produção de áudio e vídeo com ferra-
mentas livres). Além disso, o grupo ainda trabalha em projetos específicos como o “Intervenção
Midiática”, realizado em 2005, que consistia em levar uma mídia móvel – uma Kombi com
câmeras, computadores, telão e transmissor de TV de baixo alcance – para as ruas de Recife,
para incentivar os transeuntes a produzirem conteúdo e participarem da transmissão.
112 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL

terial veiculado pela mídia está sujeito, assim como a possibilidade de o próprio
público se tornar produtor de informação e cultura.
Ainda que sejam confrontacionais, as performances do Mídia Sana não
apontam para uma obstrução da mídia por completo, uma negação improdutiva e
paralisante dos meios de comunicação comerciais. Ao contrário, tentam fomentar
no público a capacidade de decodificarem ativamente as mensagens veiculadas
pela grande mídia para tornarem seu posicionamento mais participativo.
O Media Sana se insinua como uma provocação, um chamado ou con-
vite à prática midiática como um instrumento para o exercício da cidadania. O
coletivo pode atacar a primazia do mercado na atualidade ou o caráter manipu-
lador da publicidade utilizando-se de dados, números e citações de especialistas.
No entanto, a maneira como isso é feito, através dos fragmentos recombinados e
repetidos nas suas apresentações, tem um caráter eminentemente questionador e
aberto. A maior força discursiva do Media Sana está em transformar aquilo que é
dado como certo em pontos de interrogação.
Os integrantes do coletivo vêem suas performances como uma espécie
de inversão do entretenimento e do espetáculo, que se traduz no uso do humor em
ironias e paródias construídas a partir das recombinações visuais dos trechos tele-
visivos. Para os membros do Media Sana a diversão e a afetividade andam juntas
com a crítica mais incisiva e o apelo à cidadania. Quando perguntado sobre como
é possível conjugar política e diversão, Gabriel Furtado responde que:

Acho que isso tem a ver com a evolução da sociedade mesmo. As passeatas de
protesto não são quase sempre carnavalescas? Não acredito que as críticas te-
nham sempre que ser sisudas. Nos países do primeiro mundos já se manifestam
vários movimentos que conjugam as duas coisas, como o “reclaim the streets”.
No entanto, me parece que a intenção é mais inversa: fazer da diversão um ato
político. Às vezes penso que é uma mudança de paradigma mesmo.

Arrisco-me, todavia, a entender a menção ao carnaval feita pelo inte-


grante do Media Sana de maneira menos relacionada com a festa brasileira, e sim
com a noção bakhtiniana de carnavalesco. Para Bakhtin (1981, 1987) o carnaval,
mais do que um espetáculo de caráter ritual, oferecia uma cosmovisão alternativa
caracterizada pelo questionamento lúdico de todas as normas. A apropriação dos
elementos simbólicos da cultura oficial com o intuito de desmistificá-los, ao trans-
formá-los em objetos de humor por meio de ironias e paródias; a abolição de hie-
rarquias e a aproximação entre atores e espectadores; a luta para se liberar e evitar
a perpetuação de pontos-de-vista dominantes; a oferta de um olhar para o universo
Henrique Mazetti 113

com novos olhos, que questionam a ordem habitual; a criatividade ambivalente de


mudança e renovação, em que o carnaval surge como força regeneradora. Todas
estas características, identificadas por Bakhtin nas festas carnavalescas da Europa
medieval, podem ser transferidas para o Media Sana e sua relação com a mídia.
Contudo, enquanto o carnaval bakhtiniano é uma expressão popular, as
performances do Media Sana, mesmo que se apropriando do conteúdo televisivo
transmitido cotidianamente para os lares brasileiros, estão presas à utilização de
tecnologias e de uma linguagem que não estão tão presentes assim no dia-a-dia da
população, o que pode evitar a interação que o grupo pretende fomentar. Mesmo
que o coletivo venha pensando formas de colocar o público como agente ativo e
interessado nas apresentações, ainda há o risco das performances do Media Sana
serem tomadas como elitistas, voltadas para um público informado. A própria
linguagem escolhida pelo grupo se transforma, às vezes, em um entrave.
Sem ignorar os obstáculos que o coletivo enfrenta, é interessante identi-
ficar algumas senhas para se entender as crenças políticas que atuam como força
motriz para as ações do coletivo. Neste sentido, o primeiro aspecto se revela na
incapacidade do grupo – seja por uma tácita recusa, seja pela falta de articulação
conceitual – de formular ou abraçar um projeto consistente de transformação so-
cial baseada em uma ideologia bem definida. O que se observa nas falas dos inte-
grantes do coletivo é a vontade de experimentar novas modalidades de protesto,
menos abstratas e mais voltadas para o cotidiano. O que traz à tona um segundo
aspecto relevante quanto às inclinações políticas do coletivo. Tanto o discurso
quanto as práticas do Media Sana apontam para uma aposta na transformação pes-
soal como passo fundamental para a transformação social. Há uma expectativa,
por parte do coletivo, de que o fomento da criatividade, do julgamento crítico e da
liberdade de expressão possam reverberar positivamente nas estruturas sociais.

Em busca do deslocamento do olhar: o coletivo Poro


Em 2002, num congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) se-
diado em Recife, cédulas monetárias que circulavam pelo evento apresentavam
um carimbo onde se lia em letras maiúsculas “FMI”; circundando a sigla da ins-
tituição financeira mundial, em letras menores, o epíteto: “Fome e Miséria Inter-
nacional”. No ano seguinte, novas cédulas com o selo foram espalhadas em outro
encontro de política estudantil, desta vez em São Paulo. Notas marcadas circula-
ram, ainda, em festas estudantis em Belo Horizonte; em vários outros momentos
cotidianos, em uma mesa de bar ou em uma roda de amigos, por exemplo, mais
cédulas foram carimbadas e disseminadas. Uma versão em espanhol do carimbo
114 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL

do FMI foi feita na Argentina e chegou a outros países da América Latina. Logo,
o dinheiro se transformou também em um meio de crítica à instituição financeira
mundial e suas intervenções em economias domésticas em outros países.
O carimbo do FMI é uma iniciativa do coletivo Poro, formado na capi-
tal mineira por volta de 2002 pela dupla Marcelo Terça-Nada, fotógrafo e web-
designer, e Brigida Campbel, designer gráfica e ilustradora, que anteriormente
participavam de outro coletivo, o GRUPO, originado na Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais. Desde a sua constituição, o Poro tem pro-
duzido intervenções urbanas das mais variadas espécies, em que o foco principal
no espaço público é trabalhado em atividades de cunho efêmero e lúdico.
As asserções do grupo são marcadas pela sutileza, ao apelarem, na maio-
ria das vezes, para o aspecto afetivo e sensitivo e não para o discurso verbal. A crí-
tica ao sistema (econômico, social, simbólico) vigente está presente nos trabalhos
do Poro, assim, de uma forma oblíqua, por vezes poética ou suavemente irônica,
da mesma maneira em que são experimentais e efêmeras as alternativas propostas
pelo coletivo a estes sistemas. Para o Poro, o campo de atuação é o dia-a-dia da
urbe; a cidade é entendida sempre como um lugar de diálogo, de troca de expe-
riência e de afeto com o outro. Assim, as ferramentas que o coletivo utiliza estão
enraizados no cotidiano: carimbos, panfletos, cartazes, lambe-lambes e outdoors.
Há ainda a transformação de objetos ordinários, cédulas monetárias e camisetas,
por exemplo, em mídias, mas é a própria concepção da cidade como lugar de
experiência comunicacional que as atividades da dupla sugerem, como se o gru-
po incorporasse e pretendesse potencializar a polifonia citadina que Canevacci
(1993) acredita permear o tecido urbano.
O Poro enumera seis objetivos para suas ações: 1) apontar sutilezas; 2)
criar imagens poéticas; 3) trazer à tona aspectos da cidade que se tornam invisí-
veis pela vida acelerada nos grandes centros urbanos; 4) estabelecer discussões
sobre problemas da cidade (falta de cor, crescimento não sustentável, concreto/
vegetação etc.); 5) refletir sobre as possibilidades de relação entre os trabalhos em
espaço público e os espaços expositivos “institucionais” como galerias, museus
etc.; e 6) reivindicar a cidade como espaço para a arte.
Com este espírito, diversos trabalhos foram desenvolvidos. Em uma ação
semelhante à distribuição de cédulas monetárias com o carimbo do FMI, o Poro
colocou em prática o projeto “Propaganda política dá lucro!!!”. Nos períodos elei-
torais de 2002 e 2004, o coletivo confeccionou um santinho tipográfico que anun-
ciava o “Curso Profissionalizante Cara-de-pau”, que prometia formar publicitá-
rios free-lance em apenas uma semana para trabalharem com marketing político
Henrique Mazetti 115

nas eleições. O panfleto anunciava até mesmo a ementa do curso, que incluía entre
seus tópicos: “como vencer uma discussão sem precisar ter razão” e “estratégias
de sonegação fiscal e superfaturamento de orçamentos”. Distribuído em locais
públicos e em situações como palestras, filas e pontos de ônibus, o panfleto foi
ainda afixado em quadros de aviso, paredes de bar, bancas de jornal e galerias
de arte. Foi colocado junto aos demais folders, flyers e cartões de divulgação em
cinemas, centros culturais e outros lugares que dedicam um espaço para a oferta
de anúncios desse tipo. Finalmente, foi digitalizado e distribuído pela Internet por
e-mail, em uma tentativa de se criar uma espécie de corrente.
Já no Fórum Social Mundial de 2004, o grupo produziu camisetas com
uma paródia do slogan da corporação agrícola multinacional Monsanto, uma das
maiores responsáveis pela disseminação de sementes transgênicas no mundo. O
epíteto escolhido pela empresa continha apenas o verbo “Imagine” (provavelmen-
te associando suas práticas de adulteração genética das sementes à construção de
um possível futuro melhor); a camiseta produzida pelo Poro continha os dizeres
“Imagine... um mundo onde as sementes já nascem mortas... Este mundo é pa-
trocinado pela Mon$anto” (agregando ao slogan da empresa o fato de que suas
sementes geneticamente modificadas eram estéreis).
O uso do humor e da paródia nos trabalhos do Poro, mesmo que de modo
singelo, apontam para a mesma lógica bakhtiniana de carnavalização que caracte-
riza a reciclagem midiática posta em prática pelo Media Sana. Opera-se, nos dois
grupos, uma tentativa de recodificar os signos culturais, não para oferecer um
outro sentido dominante, uma verdade “mais justa”, mas para abrir diferentes pos-
sibilidades de interpretação. Assim como o coletivo multimídia de Pernambuco,
a dupla mineira pretende produzir inquietação e transformar aquilo que era dado
como natural em momentos de reflexão. No entanto, este deslocamento não se dá
somente por meio de paródias de slogans de corporações multinacionais ou santi-
nhos. Ao mesmo tempo em que o Poro investe esforços nestes tipos de empreita-
das, também atua em intervenções de maior cunho poético, em que a experiência
urbana se torna objeto de questionamento de modo mais sensível e abstrato.
Assim, em 2004, com o objetivo de “salpicar um pouco de poesia” nos
transeuntes da cidade de Belo Horizonte, o coletivo produziu centenas de rosas
de papel celofane vermelho e plantou-as em um canteiro abandonado em uma das
principais avenidas da cidade. No mesmo ano, o grupo criou uma “enxurrada de
letras” nas ruas do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, ao espalhar letras
feitas com papel cartolina como se elas estivessem escorrendo de canos e escoa-
douros de água por mais de trinta pontos do bairro.
116 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL

O Poro explica que “muito nos incomoda o fato de que tudo hoje em dia
vira ‘mídia’ para a publicidade – há propaganda num número cada vez maior de
lugares: nos postes de iluminação, dentro dos ônibus, na mesa do bar, no guarda-
napo de papel”. Assim, a dupla sustenta a possibilidade de que suas intervenções
trabalhem a favor de uma retomada do espaço público frente à invasão publicitá-
ria no dia-a-dia: “o espaço simbólico das cidades não pode ficar nas mãos da pu-
blicidade, que utiliza o espaço público como se fosse um espaço privado”, explica
o coletivo, ao justificar suas ações.
Ao contrário de outros coletivos artísticos e ativistas, que agregam a arte
como um horizonte de atuação possível, mas não fundamental, as iniciativas do
Poro partem do campo artístico para reverberar suas posições políticas e pôr em
prática a tentativa de ressignificar os meios de comunicação. Entretanto, a con-
cepção de arte que emana dos trabalhos do Poro não se enquadra, pelo menos de
imediato, nas obras de arte que preenchem galerias e museus e convidam o públi-
co à contemplação. Pelo contrário, como garante em seu site, o coletivo acredita
em uma arte que “crie relações entre pessoas” – ou seja, uma arte que seja, funda-
mentalmente comunicativa e participativa.
Terça-Nada observa que a intenção do Poro é levantar questões sobre os
problemas da cidade e realizar “uma ocupação poética dos espaços”. Segundo
o artista: “acreditamos que a cidade deve ser cada vez mais reivindicada como
espaço para a arte. Através de nossas ações, tentamos problematizar a relação das
pessoas com a arte, a relação das pessoas com a cidade e a relação da arte com a
vida.” A noção de uma arte que se volta para a vida, em contraposição com a arte
voltada para si mesma, é um projeto que, de acordo com o teórico alemão Peter
Bürger (1984), teria se iniciado a partir das manifestações das vanguardas histó-
ricas européias, cujo objetivo era reintegrar a arte no contexto cotidiano. Para o
autor, foi neste período em que se tornou possível a identificação e a crítica da arte
como uma instituição, autonomizada da vida.
Burgüer (op. cit.) sugere que os movimentos de vanguarda europeus do
início do século podem ser definidos como um ataque ao estatuto da arte na so-
ciedade burguesa. Não como uma negação de uma forma anterior de arte – ou
seja, um estilo – nem como uma demanda de que as obras de arte devessem ser
socialmente significantes, pois o que as vanguardas históricas colocavam em jogo
não se relacionava com o conteúdo de trabalhos individuais. Para o autor, a crítica
das vanguardas históricas se direcionava à maneira como a arte funcionava na
sociedade, ou seja, seu efeito social.
Henrique Mazetti 117

Em muitos sentidos, os trabalhos do Poro sugerem a recuperação do pro-


jeto das vanguardas históricas, ou um momento nacional da “tradição subversiva”
enxergada por Home (2003), que no Brasil poderia ter em seus antecedentes os
arroubos modernistas e antropofágicos da década de 1920, o concretismo dos
anos 1950, os trabalhos de Hélio Oiticica, Cildo Meireles e outros artistas da
geração Neoconcretistas, a Tropicália, as experiências teatrais de Augusto Boal,
assim como iniciativas artísticas coletivas nos anos 1970 como 3nós3, Viajou
Sem Passaporte, Manga Rosa e Tupi Não Dá (Araujo, 2007; Freitas, 2007; Rosas,
2005). É interessante ressaltar, contudo, que o Poro, ao mesmo tempo em que
faz intervenções urbanas, também participa de exposições, mostras e outros even-
tos de arte de caráter mais institucionalizado
Indagados sobre a tensão entre a arte e o engajamento social presente em
seus trabalhos, o Poro afirma que, “o trabalho do Poro é arte, não temos dúvida em
relação a isso. O engajamento político faz parte de nós enquanto pessoas, e esse
traço da nossa personalidade naturalmente produz ecos na nossa produção”. Aqui,
talvez, encontra-se novamente a indicação de que, impossibilitados de vislumbrar
formas de transgressão mais amplas em que valha a pena investirem esforços, os
coletivos artísticos e ativistas se contentam com atividades que miram reposicio-
namentos subjetivos, micropolíticas do cotidiano que não pretendem uma trans-
formação plena da sociedade, mas atuam em contextos específicos, mirando, por
vezes, até mesmo apenas um “deslocamento do olhar.”
Enquanto algumas manifestações de intervenção urbana apresentam uma
atitude bem mais beligerante em relação às atuais configurações sociais, por meio
de um ataque à publicidade ou às convenções arraigadas no cotidiano (Mazetti,
2006), a sutileza característica das ações do Poro talvez possa ser interpretada
como um acirramento da ênfase na dimensão afetiva, e não ideológica, que muitas
manifestações de resistência contemporâneas se propõem a trabalhar. Neste caso,
mais do que uma ação reativa contra as assimetrias de poder que se desenrolam
na sociedade, as atividades do coletivo emergem como explorações urbanas em
busca da constituição de novas sensorialidades, que se utilizam dos meios de co-
municação mais enraizados no cotidiano como um modo de fomentar sensibilida-
des e gerar inquietações. Os situacionistas acreditavam que uma nova sociedade
necessitava de um novo urbanismo (Jacques, 2003); e é exatamente isso que o
Poro tenta por em prática.
118 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL

Considerações finais
“Poucos conceitos resistem tanto a uma definição categórica quanto o de
resistência”, afirma Freire Filho (2007, p. 13). Isto se deve, em parte, à intensa
polissemia que o termo irradia nos debates atuais. Outrora circunscrita a manifes-
tações coletivas, organizadas, de grande amplitude e que visavam transformações
estruturais e sistemáticas da sociedade, a concepção de resistência abriga agora
também diferentes atividades localizadas, cotidianas, muitas vezes individuais,
que enfatizam a mudança nos fluxos de poder, mesmo que temporariamente, e
atentam aos processos de produção de subjetividade.
É inegável que a abertura semântica do termo propiciou algumas apro-
priações intelectuais, no mínino, dúbias – para críticos mais comedidos – ou sim-
plesmente populistas e acríticas, para aqueles que se vinculam a uma linha de
pensamento maximalista ou mais ortodoxa. Mas, é patente, também, o fato de
que a emergência de novas modalidades e estratégias de resistência e luta não se
devem somente a mudanças de quadros teóricos, às divergências epistemológicas
ou às diferentes posições políticas dos analistas sociais que tomam por objeto as
práticas de contestação e dissenso na contemporaneidade. Mudanças concretas
nas conjunturas políticas e socioeconômicas também podem explicar o surgimen-
to de manifestações que se pretendem resistentes, mas que se recusam a apenas
emular os tradicionais modelos de questionamento, procurando novas maneiras
de formular críticas e propor alternativas às configurações sociais sedimentadas.
É sob o prisma da busca de opções e do gosto pela experimentação que
as manifestações dos coletivos artísticos e ativistas nacionais contemporâneos são
melhor interpretadas, mas não, necessariamente como uma substituição das mais
tradicionais modalidades de crítica. Invalidar determinadas práticas de dissenso
em favor de atividades contemporâneas que ainda não terminaram de germinar e
das quais ainda pouco se sabe é uma atitude, no mínimo, contraproducente. Ao
mesmo tempo, é preciso continuar investigando as maneiras como o poder se legi-
tima e se naturaliza na atualidade, assim como não se pode ignorar as experiências
alternativas e as idéias que buscam desestabilizar o senso comum.

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Henrique Mazetti é Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ e professor


de Comunicação da Facsum/UNIP.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 121-135

Guerra Civil Imaterial: Protótipos de


Conflito dentro do Capitalismo Cognitivo53

Matteo Pasquinelli

We are implicit, here, all of us, in a vast physical construct of


artificially linked nervous systems. Invisible. We cannot touch it.
William Gibson, In the visegrips of Dr. Satan

Conflict is not a commodity. On the contrary,


commodity is above all conflict.
guerrigliamarketing.it

1. Um renascimento da Indústria Criativa


No início de 2006, o termo Indústria Criativa (IC) surge nas caixas
postais e listas de endereços de vários trabalhadores culturais, artistas, ativistas
e pesquisadores de toda a Europa, bem como nas chamadas para seminários e
eventos. Uma velha pergunta vem à tona: curiosamente, pela primeira vez, um
termo é apanhado do jargão institucional e trazido sem alterações para dentro
da cultura alternativa, começando a ser usado desde então para debater outros
conceitos-chave (que podem merecer uma sigla também!) e outras pós-estruturas
como cultura de rede (NC – network culture), economia do conhecimento (KE –
knowledge economy), trabalho imaterial (IL – immaterial labour), intelecto geral
(GI – general intelect) e, é claro, Software Livre (FS – Free Software), Creative
Commons (CC), etc. A definição original de 1998 adotada pela Creative Indus-
tries Task Force criada por Tony Blair declarava: “[são] aquelas indústrias que
têm sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que têm um
potencial para riqueza e criação de empregos por meio da geração e exploração
da propriedade intelectual”.54 Como se pode ver, a criatividade social permanece

53 Tradução de: Alexandre Mendes e Gilvan Vilarim.


54 Fonte: www.wikipedia.org/wiki/Creative_Industries. A lista de categorias da DCMS con-
siste da produção nos seguintes setores: Propaganda, Arquitetura, Arte e Mercado de Antiguida-
des, Ofícios, Design, Design de Moda, Filmes e Vídeo, Software de Entretenimento Interativo,
Música, Artes Cênicas, Editoração, Serviços de Informática e de Software, Televisão e Rádio.
122 GUERRA CIVIL IMATERIAL

em grande medida fora dessa definição: depois de muitos anos, Tony Blair ainda
está roubando nossas idéias. Tentemos um outro retrospecto.
Em primeiro lugar, existe uma genealogia européia. Adorno e Horkhei-
mer moldaram, em 1944, o conceito de “indústria cultural” como uma forma de
“decepção em massa” no seu Dialética do Esclarecimento. No início dos anos 90,
o pós-operaísmo italiano (no exílio ou não) introduziu os conceitos de trabalho
imaterial, intelecto geral, capitalismo cognitivo, cognitariado, como as formas
emergentes do poder autônomo das multidões (autores como Negri, Lazzarato,
Virno, Marazzi, Berardi). Neste mesmo período, Pierre Lévy falava de inteligên-
cia coletiva. Posteriormente, a partir de 2001, a mobilização transnacional do
Euro May Day interligou trabalhadores precários e trabalhadores cognitivos sob a
sagrada proteção de São Precário.
Em segundo lugar, há uma genealogia anglo-americana. Durante a era
de ouro da cultura de rede, o debate em torno das ICT55 e da nova economia vi-
nha freqüentemente ligado à economia do conhecimento (conceitualizada por Peter
Drucker nos anos 60). Em 2001, o debate do copyleft ultrapassou as fronteiras do
Software Livre e estabeleceu as licenças Creative Commons. Em 2002, o best-seller
The Rise of the Creative Class de Richard Florida (baseado em evidências estatísti-
cas controversas) disseminou conceitos da moda como o de economia criativa.
Depois de anos fetichizando o trabalho precário e uma economia da dá-
diva abstrata, acontece (espera-se) agora uma virada copernicana: a atenção se
desloca para o trabalho autônomo e para a produção autônoma. Uma nova cons-
ciência surge em torno da criação de sentido, isto é, criação de valor e – conse-
qüentemente – criação de conflito. Trata-se do re-engajamento político de uma
geração de trabalhadores criativos (ao invés de ficarem misturados com os traba-
lhadores de chão-de-fábrica56) e, ao mesmo tempo, o engajamento “econômico”
de uma geração de ativistas (tal como o movimento de Seattle, mais preocupado
com questões globais do que a sua própria renda). Minha criatividade = meu va-
lor = meu conflito. E vice-versa.

2. A maior parte do valor (e do conflito)


Neste ensaio tento delinear uma parte que falta no debate sobre trabalho
“criativo”. Em primeiro lugar, observo a dimensão coletiva da criação de valor:

55 Nota de Tradução: Information and Communication Technologies – Tecnologias de Infor-


mação e de Comunicação.
56 N.T.: Chain workers, no original.
Matteo Pasquinelli 123

uma investigação dos processos sociais que se desenvolvem por trás da criativi-
dade, o poder criativo do desejo coletivo e a natureza política de qualquer produto
cognitivo (idéia, marca, mídia, artefato, evento). Pergunta: o quê, ou quem produz
o valor? Resposta: a “fábrica social” produz a maior parte do valor (e do confli-
to). Depois disto, focalizo o espaço político da competição cognitiva. Não me
concentro nas condições de trabalho ou políticas neoliberais dentro da Indústria
Criativa, e sim na vida pública dos objetos imateriais. Coloco os produtos cogniti-
vos em um espaço de forças, delineando tais objetos a partir do exterior, ao invés
do interior. Esta é uma tentativa de responder a uma outra pergunta: se a produção
se torna criativa e cognitiva, coletiva e social, quais são os espaços e as formas de
conflito? Como conclusão, apresento o cenário de uma “guerra civil imaterial”,
um espaço semiótico do qual a Indústria Criativa é apenas uma pequena parte.
Até aqui parece um cenário linear, mas há também uma zona cinzenta
a se levar em consideração: a massificação da atitude “criativa”. “Todo mundo é
criativo” é um slogan comum hoje. Muitos anos depois da obra-de-arte de Benja-
min, o artista de massa entra na era da sua reprodutibilidade social, e a “criativi-
dade” é vendida como um símbolo de status. A base social da Indústria Criativa
está se tornando maior (pelo menos no mundo ocidental) e revela novos cenários.
Num primeiro momento, a Indústria Criativa torna-se hegemônica (como um fato
e como um conceito). No segundo, ela enfrenta uma entropia de significado e de
produtores. Graças à internet e à revolução digital, testemunhamos todos os dias
os conflitos desse último estágio.
Todas as diferentes escolas anteriormente apresentadas focalizam, cada
uma, uma perspectiva diferente. Para clarificar o assunto, temos que dividir a
questão em seus componentes. A “coisa criativa” poderia ser decomposta em:
trabalho criativo (como trabalho autônomo ou dependente); criatividade, como
faculdade e produção; o produto criativo (com todas as suas camadas: hardware,
software, knoware, marca, etc,); a livre reprodutibilidade do objeto cognitivo; a
propriedade intelectual sobre o produto em si; a criatividade social por trás dele; o
processo de valorização coletiva em torno dele. Além disso, o grupo social de tra-
balhadores criativos (a “classe criativa” ou “cognitariado”), a “economia criativa”
e a “cidade criativa” representam contextos maiores e mais amplos.
A definição original de Indústria Criativa concentra-se na exploração da
propriedade intelectual. Os conceitos de Richard Florida de classe criativa e eco-
nomia criativa são baseados somente em estatísticas (controversas) e sobre a idéia
de uma agenda política para a IC alimentada por governos locais. Num outro ní-
vel, o Creative Commons trata de licenças abertas, uma solução formal para lidar
124 GUERRA CIVIL IMATERIAL

com a reprodução e o livre compartilhamento, acionados pela revolução digital


em uma escala de massa (“construindo uma camada de copyright razoável”57,
como eles colocam). Oriundos de um cenário (latino) diferente, o pós-operaísmo
e o movimento dos trabalhadores precários ressaltam a forma social e distribuída
de produção (a “fábrica social” de Tronti, 1971), e reivindicam uma renda mínima
garantida. Geograficamente próximo a esses últimos, Enzo Rullani (criador do
termo ‘capitalismo cognitivo’) sugere focalizar o poder autônomo dos produtores
ao invés da dimensão do trabalho dependente, já que o bem-estar público58 é uma
solução que transfere conhecimento, risco e capital de inovação para as insti-
tuições. Faz-se necessário superar a ambiguidade das visões políticas em torno
da IC para esclarecer o que o presente ensaio não está abrangendo. Não vou me
concentrar nas condições de trabalho dos trabalhadores cognitivos (precários),
na exploração da propriedade intelectual e na proteção legal do domínio público,
mas sim na produção coletiva de valor e a forte competição cognitiva que os pro-
dutores enfrentam no domínio “imaterial”.

3. A leitura de Lazzarato sobre Tarde: a dimensão pública do valor


A crítica contemporânea não possui uma perspectiva clara da vida públi-
ca dos produtos cognitivos: ela é amplamente dominada pelas metáforas roubadas
do Creative Commons e do Software Livre, que suportam uma visão bastante
estreita sem nenhuma noção de valor e valorização. Por esta razão, gostaria de
introduzir um cenário mais dinâmico, seguindo Maurizio Lazzarato e Gabriel Tar-
de, que explicam como o valor é produzido pela acumulação de desejo social e
pela imitação coletiva. Lazzarato reintroduziu o pensamento do sociólogo Tarde
no livro Puissances de l’invention (2002) e no artigo “A psicologia econômica
contra a economia política” (2001).
Resumindo em poucas linhas, a filosofia de Tarde desafia a economia
política contemporânea porque: 1) dissolve a oposição entre trabalho material
e imaterial e considera a “cooperação entre cérebros” uma força principal nas
sociedades pré-capitalistas tradicionais, não apenas no pós-fordismo; 2) coloca a
inovação como força motriz, ao invés de somente a acumulação monetária (Smi-
th, Marx e Schumpeter não compreenderam realmente a inovação como uma for-
ça interna ao capitalismo, uma visão mais preocupada com re-produção do que
produção); 3) desenvolve uma nova teoria do valor, não mais baseada apenas no

57 Fonte: www.creativecommons.org/about/history
58 N.T.: public welfare, no original.
Matteo Pasquinelli 125

valor de uso, mas também em outros tipos de valor, como valor-verdade e valor-
beleza (Lazzarato: “A psicologia econômica é uma teoria da criação e constitui-
ção de valores, enquanto a economia política e o Marxismo são teorias para medir
valores”) (idem, a tradução é minha).
A percepção crucial de Tarde refere-se à relação entre ciência e opinião
pública. De acordo com Lazzarato: “Para Tarde, uma invenção (científica ou não)
que não seja imitada, não é socialmente existente: para ser imitada uma invenção
precisa chamar a atenção, produzir uma força de ‘atração mental’ sobre outros cé-
rebros, mobilizar seus desejos e crenças por meio de um processo de comunicação
social. [...] Tarde descobre uma questão transversal a todo o seu trabalho: o poder
constituinte do público” (idem). Poderíamos dizer: qualquer idéia criativa que não
seja imitada não é socialmente existente e não tem valor. Em Tarde, o Público é o
“grupo social do futuro”, integrando pela primeira vez a mídia de massa como um
aparelho de valorização num tipo de antecipação do pós-fordismo. Além disso,
Tarde considera a classe trabalhadora em si como um tipo de “opinião pública”
unificada na base de crenças e afetos comuns, ao invés de interesses comuns.
A conexão Tarde-Lazzarato oferece um modelo mais competitivo ou di-
nâmico, onde objetos imateriais têm que enfrentar as leis da noosfera – inovação
e imitação – em um ambiente bastante darwinista. Tarde é também famoso por
introduzir a curva em forma de S para descrever o processo de disseminação da
inovação, outra boa sugestão para todos os planejadores digitais que acreditam em
um espaço livre e plano.

Contudo, o processo de disseminação nunca é linear e pacífico como um


gráfico matemático poderia sugerir. Numa escala coletiva, um produto cognitivo
sempre “luta” contra outros produtos para atingir uma liderança natural. O destino
de uma idéia é sempre hegemônico, até mesmo na “cooperação entre cérebros” e
no domínio digital da multiplicação livre. O ambiente natural de idéias é similar
126 GUERRA CIVIL IMATERIAL

ao estado de natureza em Hobbes. O lema Homo homini lupus [o homem é o


lobo do homem] poderia ser aplicado à mídia, marcas, sinais, a qualquer tipo de
“máquinas semióticas” da economia do conhecimento. É uma “guerra de todas as
idéias contra todas as idéias”, uma guerra imaterial mas nem sempre silenciosa.
Se Lazzarato e Tarde percorrem de volta o caminho da criação coletiva de valor,
tal natureza competitiva fica mais transparente quando lemos Enzo Rullani.

4. Enzo Rullani e a “lei da difusão”


Rullani estava entre os primeiros a introduzir o termo capitalismo cog-
nitivo (1998, 2000). Ao contrário da maioria, ele não ressalta o processo de com-
partilhamento de conhecimento, mas, acima de tudo, o processo de valorização
cognitiva. Rullani é bastante enfático sobre o fato de que a competição subsiste
(talvez até mais forte) no domínio da economia “imaterial”. Ele é uma das pou-
cas pessoas que tentam medir o quanto de valor o conhecimento produz e, como
um cientista experiente, ele também fornece fórmulas matemáticas – como em
seu livro Economia della conoscenza (Economia do Conhecimento, 2004). Nas
palavras do autor, o valor do conhecimento é multiplicado pela sua difusão, e
precisamos aprender como gerenciar esse tipo de circulação. Conforme lemos na
entrevista com Antonella Corsani publicada na revista Multitudes em 2000:

Uma economia baseada em conhecimento é estruturalmente ancorada no com-


partilhamento: conhecimento produz valor se é adotado, e a adoção (dependen-
do do formato e dos padrões conseqüentes) cria interdependência (Corsani e
Rullani, 2000) .

O valor dos objetos imateriais é produzido pela disseminação e interde-


pendência: é o mesmo que ocorre com a popularidade de um pop star ou o sucesso
de um software. A revolução digital tornou a reprodução de objetos imateriais
mais fácil, mais rápida, ubíqua e quase de graça. Porém, como Rullani observa,
“a lógica proprietária não desaparece, mas tem que se subordinar à lei de difusão”
(idem): a lógica proprietária não é mais baseada no espaço e nos objetos, mas no
tempo e na velocidade.

Há três maneiras de um produtor de conhecimento poder distribuir seus usos,


ainda mantendo uma parte da vantagem, sob a forma de: 1) um diferencial de
velocidade na produção do novo conhecimento ou na exploração dos seus usos;
2) um controle do contexto mais forte que dos outros; 3) uma rede de alianças
e de cooperação capaz de contratar e controlar modalidades de utilização do
conhecimento dentro de um circuito completo de compartilhamento.
Matteo Pasquinelli 127

Um diferencial de velocidade significa: “tenho essa idéia e posso lidar


com ela melhor que os outros: enquanto eles ainda estão se familiarizando com
ela, já estou além”. Uma melhor compreensão do contexto não é algo fácil de
duplicar: trata-se da genealogia da idéia, da história social e cultural de um lugar,
da informação confidencial acumulada pelos anos. A rede de alianças, às vezes
chamada de “capital social”, é implementada como “redes sociais” na web: trata-
se de contatos, relações públicas, credibilidade na rua59 e na web.
Neste momento fica claro que uma dada idéia produz valor num ambien-
te dinâmico desafiada por outras forças e por outros produtos. Uma idéia vive
como em uma selva – em constante combate de guerrilha – e os trabalhadores
cognitivos seguem freqüentemente o destino de sua criatividade60. No capitalismo
das redes digitais, o tempo é uma dimensão cada vez mais crucial: uma vantagem
de tempo é medida em segundos. Além disso, na sociedade do white noise61 a
mercadoria mais rara é a atenção. Uma economia da escassez existe até mesmo no
capitalismo cognitivo, como uma escassez de atenção e uma economia da atenção
relacionada. Quando tudo pode ser duplicado em qualquer lugar, o tempo se torna
mais importante que o espaço.
Um exemplo de vantagem competitiva no domínio digital é o CD da
revista Wired incluído na edição de novembro de 2004 sob as licenças Creative
Commons. As faixas de música foram doadas por Beastie Boys, David Byrne,
Gilberto Gil etc., para livre cópia, compartilhamento e sampleamento (c.f. www.
creativecommons.org/wired). Na verdade, há muito mais exemplos de músicos e
trabalhadores intelectuais62 que associam sua atividade com o copyleft, Creative
Commons ou o compartilhamento de arquivos em redes P2P. Mas nós só ouvimos
falar dos que vêm na frente na corrida, embora não seja mais uma novidade para
aqueles que vêm na segunda fila. De qualquer forma, nunca há adesão total ao
Creative Commons; é sempre uma estratégia híbrida: eu libero parte do meu tra-
balho de forma aberta e livre para obter visibilidade e credibilidade, mas não o tra-
balho todo. Uma outra estratégia é poder copiar e distribuir todo o conteúdo, mas
não agora, somente daqui a quatro meses. Existem também pessoas reclamando

59 N.T.: street credibility, no original: expressão que indica credibilidade e aceitabilidade entre
pessoas, em especial entre os jovens e os simpatizantes da cultura do hip-hop.
60 N.T.: brainchildren, no original.
61 N.T.: referência ao ruído branco, barulho produzido pela combinação de diversos sons em
uma única onda, alusivo à mistura de diversas cores que produz o branco. O autor faz uma
metáfora da confluência de assuntos na sociedade atual.
62 N.T.: brain workers, no original.
128 GUERRA CIVIL IMATERIAL

sobre o fato do Creative Commons e do Software Livre estarem sendo capturados


pelas grandes corporações – a questão é que o mundo lá fora está cheio de música
ruim livre para ser copiada e distribuída. Sem difamar, nós sempre suspeitamos
que se tratava de uma corrida.
Rullani mostra como a competição ainda está presente na economia do
conhecimento, mesmo no enclave paralelo das mercadorias digitais. Competição
é um campo onde o pensamento radical nunca tentou entrar: porque não é politi-
camente correto admitir tal competição, e porque qualquer solução política é con-
troversa. É impossível reconstruir qualquer sujeito político unificado (como nos
tempos do proletariado) partindo de um cenário balcanizado de “fábricas sociais”
e produção biopolítica molecular. Contudo, se a mais-valia individual é difícil de
medir e reivindicar, a acumulação coletiva é ainda algo visível e tangível.

5. David Harvey e o capital simbólico coletivo


Se Tarde, Lazzarato e Rullani são úteis para delinear o habitat competiti-
vo de idéias (disseminação, imitação, competição, hegemonia), o ensaio de David
Harvey “A Arte da Renda” (2001, 2002) oferece uma descrição mais precisa do
que seja a dimensão política da produção simbólica. Harvey consegue conectar
produção intangível e dinheiro real, não por meio da propriedade intelectual, mas
trilhando a exploração parasita do domínio imaterial pelo material.
O exemplo-chave é Barcelona, onde existe a conexão mais clara entre
economia imobiliária e a produção de cultura como capital social. O sucesso de
Barcelona como marca internacional foi criado por suas raízes culturais e sociais,
e é continuamente alimentado atualmente por uma cultura cosmopolita e alterna-
tiva: na verdade, esse produto coletivo é explorado antes de mais nada por especu-
ladores imobiliários. Os tipos de processos de gentrificação são bem conhecidos.
Do fundo para o topo: forasteiros atraem artistas que atraem a classe alta. Ou, ao
contrário, do topo para o fundo: instituições artísticas futurísticas e de mente aber-
ta construídas num gueto (como o MACBA no Raval em Barcelona) aumentam
os aluguéis e forçam as pessoas a se mudar. Contudo, Harvey quer destacar um
processo mais geral.
Ele aplica o conceito de renda de monopólio à cultura: “Toda renda
é baseada no poder do monopólio de proprietários privados de certas partes do
globo.” Existem dois tipos de renda: você pode explorar a qualidade única de um
vinho ou você pode ver o vinhedo produzir aquele vinho extraordinário. Você
pode construir um hotel numa cidade muito charmosa, ou vender a terra onde
colocar os hotéis. O capitalismo está sempre procurando por marcas de distinção.
Matteo Pasquinelli 129

De acordo com Harvey, a cultura produz hoje marcas de distinção que podem
ser exploradas pelo capitalismo através da venda dos bens materiais. Na escala de
uma cidade, as transações imobiliárias são o maior negócio acionado pela eco-
nomia do conhecimento. Qualquer espaço imaterial tem seus parasitas materiais.
Pensem no compartilhamento de arquivos e nos iPods.
Se o grau de disseminação cria o valor de um produto cognitivo, como
aponta Rullani, Harvey impõe um limite a essa valorização. Uma disseminação
que vai longe demais pode dissolver as marcas de distinção, culminando em um
produto de massa. Há uma finalização entrópica em qualquer idéia depois do seu
período hegemônico. Harvey destaca aí uma primeira contradição: a entropia das
marcas de distinção.

A contradição aqui é que quanto mais facilmente marqueteáveis tais itens se


tornam, menos únicos e especiais eles parecerão. Em algumas instâncias o mar-
keting em si tende a destruir as qualidades únicas (particularmente se essas de-
pendem de qualidades tais como o inexplorado, o isolamento, a pureza de algu-
ma experiência estética, e coisas do gênero). De modo mais geral, quanto maior
o grau com que tais itens ou eventos são facilmente marqueteáveis (e sujeitos
a replicação por falsificações, fraudes, imitações ou simulacros), menos eles
fornecem uma base para a renda de monopólio. [...] portanto, alguma maneira
tem que ser encontrada para manter algumas mercadorias ou lugares, únicos e
particulares o suficiente (e irei depois refletir sobre o que isso pode significar)
para manter uma margem monopolista numa outra economia mercantilizada e,
com freqüência, ferozmente competitiva.

Uma segunda contradição, conectada à primeira, é a tendência da dire-


ção a um monopólio: se o valor inflaciona, o único modo de preservar a renda
é criar monopólios e evitar a competição. Por exemplo, a revolução digital e das
redes atacou as rendas de monopólios tradicionais (acostumados com ‘territórios’
bastante estáveis) e forçou-os a reinventar suas estratégias. A reação comum foi
reclamar por um regime mais forte de propriedade intelectual. Em outro nível,
capitais foram forçados a encontrar novos territórios materiais e imateriais para
explorar. Harvey nota que o capitalismo redescobre as culturas locais para preser-
var os monopólios: a esfera de cultura coletiva e imaterial é uma dimensão crucial
para manter as marcas de distinção em uma economia pós-fordista.

Elas têm particular relevância para compreender como os avanços culturais


locais e as tradições acabam sendo absorvidos dentro dos cálculos da econo-
mia política através de tentativas de acumular rendas de monopólio. Isso tam-
bém traz a questão de quanto do interesse atual em inovação cultural local, e
130 GUERRA CIVIL IMATERIAL

a ressurreição e invenção de tradições locais, se juntam ao desejo de extrair e


apropriar-se de tais rendas.

A camada cultural de Barcelona e seus personagens locais únicos consti-


tuem um componente-chave no marketing de qualquer produto baseado em Bar-
celona, sobretudo o negócio imobiliário. Mas a terceira e mais importante contra-
dição descoberta por Harvey é que o capital global alimenta a resistência local
para promover a marca de distinção.

Uma vez que capitalistas de todos os tipos (incluindo os mais exuberantes dos
financistas internacionais) são facilmente seduzidos pelos prospectos lucrativos
de potências monopolistas, nós imediatamente percebemos uma terceira con-
tradição: que os globalizadores mais ávidos darão apoio a avanços locais que
tenham o potencial de gerar renda de monopólio, ainda que o efeito de tal apoio
seja produzir um clima político local antagônico à globalização!

Novamente, é o caso de Barcelona, um modelo de negócio bastante so-


cial-democrático que não é tão fácil de aplicar a outros contextos. Neste ponto
Harvey introduz o conceito de capital simbólico coletivo (tomado de Bourdieu)
para explicar como a cultura é explorada pelo capitalismo. A camada de produção
cultural, agregada a um território específico, produz um habitat fértil para rendas
de monopólios.

Se as reivindicações de unicidade, autenticidade, particularidade e especiali-


dade são a base da habilidade para capturar rendas de monopólio, então, em
qual melhor terreno é possível criar tais reivindicações que não seja no campo
de artefatos e práticas culturais historicamente constituídos, e de características
ambientais especiais (incluindo, é claro, os ambientes culturais e sociais cons-
truídos)? [...] O exemplo mais óbvio é o turismo contemporâneo, mas eu penso
que seria um erro deixar o assunto ficar por aqui. Pois o que está em jogo aqui
é o poder do capital simbólico coletivo, das marcas de distinção especiais que se
agregam a algum lugar, que dão um significativo poder de fogo sobre os fluxos
do capital de modo mais geral.

O capital simbólico coletivo de Barcelona é agora moldado mais clara-


mente. A marca de Barcelona é uma “alucinação consensual” produzida por mui-
tos, mas explorada por poucos. A condição dos trabalhadores criativos (e de toda
a sociedade) é um círculo vicioso: eles produzem valor simbólico para a mesma
economia imobiliária que os pressiona (já que sofrem o preço da habitação de
Barcelona). Ademais, Harvey ajuda a compreender melhor Florida: a então cha-
Matteo Pasquinelli 131

mada “classe criativa” não é nada mais do que um simulacro do capital simbólico
coletivo para aumentar as marcas de distinção de uma dada cidade. A “classe cria-
tiva” é o capital simbólico coletivo transformado em marca antropomórfica e uma
renda de monopólio aplicada a partes distintas da sociedade (“classe criativa”), do
território (“cidade criativa”), da cidade em si (“distrito criativo”). A “classe cria-
tiva” é um simulacro parasita da criatividade social, que é separada do precariado
e anexada à classe superior.

A ascensão de Barcelona à proeminência dentro do sistema europeu de cidades


tem sido em parte baseada na sua acumulação constante de capital simbólico e
suas cumulativas marcas de distinção. Na escavação de uma história e tradição
distingüivelmente catalãs, o marketing de suas fortes realizações artísticas e da
herança arquitetônica (Gaudí, é claro) e suas marcas distintivas de estilo de vida
e tradições literárias, têm se agigantado, reforçados por um dilúvio de livros,
exibições, e eventos culturais que celebram a distintividade. [...] esta contra-
dição é marcada por questionamentos e resistência. Qual memória coletiva é
para ser celebrada aqui (os anarquistas, como os Icarianos que desempenharam
papel tão importante na história de Barcelona, os republicanos, que lutaram tão
ferozmente contra Franco, os nacionalistas catalães, imigrantes de Andaluzia,
ou um aliado de Franco de longa data como Saramaranch)?

Harvey tenta esboçar uma resposta política, questionando que partes da


sociedade estão explorando o capital simbólico coletivo, e quais tipos de memória
e imaginário coletivos estão em jogo. O capital simbólico não é unitário, mas um
espaço múltiplo de forças, e pode ser continuamente negociado pela multidão que
o produz.

É uma questão de determinar quais segmentos da população irão se beneficiar


mais do capital simbólico coletivo que todos possuem, dos seus modos distintos
próprios, que contribuíram tanto agora como no passado. Por que deixar a ren-
da de monopólio, atrelada a esse capital simbólico, ser capturada apenas pelas
multinacionais ou por um segmento poderoso pequeno da burguesia local? [...]
A luta para acumular marcas de distinção e capital simbólico coletivo num mun-
do altamente competitivo começou. Mas isto traz em seu rastro todas as questões
localizadas sobre de qual memória coletiva se trata, de qual estética, e quem se
beneficia. [...] A questão então surge em relação a como estas intervenções cultu-
rais podem elas mesmas se tornar uma potente arma da luta de classes.

A questão crucial é: como desenvolver um capital simbólico de resis-


tência que não possa ser explorado como uma outra marca de distinção? Como
132 GUERRA CIVIL IMATERIAL

Harvey aponta, este tipo de círculo vicioso funciona ainda melhor no caso da
resistência local. Os capitais globais precisam de resistência anti-global para me-
lhorar a renda de monopólio. Especialmente no caso dos trabalhadores criativos,
a resistência é sempre bem-educada e bem-concebida: e no caso de Barcelona
ela produz um ambiente excitante e nunca perigoso para a classe média global.
Inspirados pela história de Barcelona, introduzimos uma guerra civil imaterial no
espaço do capital simbólico.

6. Guerra civil imaterial


Sugerimos o termo ‘guerra civil’ para nomear os conflitos no interior do
capitalismo cognitivo que não possuem composição clara de classe e que com-
partilham o mesmo espaço de mídia. Além disso, se é verdade que “não há mais
o fora” (como Negri e Hardt declaram em Império, 2001) e que “não há mais
classes sociais, mas apenas uma única burguesia mesquinha planetária, na qual
todas as classes sociais antigas estão dissolvidas”, como diz Agamben em The
Coming Community (1991, versão em português A comunidade que vem, 1993),
os conflitos só podem assumir a forma de uma luta interna. A multidão tem sido
sempre turbulenta e fragmentada. Se Florida sonha com uma “luta de classes cria-
tiva” (onde supõe-se que as vítimas da moda sejam as primeiras baixas), para nós
urge uma guerra civil dentro daquela “classe” confortável (e dentro de uma noção
confortável de multidão). Além disso, a ‘guerra civil’ se une à gloriosa resistência
de Barcelona (um pano de fundo político que alimenta seu capital social atual) e
é também um lembrete das lutas internas de qualquer grupo de vanguarda (anar-
quistas e comunistas começaram então a atirar uns contra os outros).
Por outro lado, “imaterial” é a luta constante no palco da sociedade do
espetáculo: uma cruel selva de marcas, pop stars, gadgets, dispositivos, dados,
protocolos, simulacros. A exploração imaterial é a vida quotidiana dos trabalha-
dores precários, em particular das gerações mais jovens, bastante conscientes do
capital simbólico produzido por suas vidas “postas para trabalhar” (novas tendên-
cias e estilos de vida gerados pelo que o pós-operaísmo chama de produção bio-
política). A guerra civil imaterial é a explosão de relações sociais encerradas nas
mercadorias. No seu livro As revoluções do capitalismo (2004, 2006), Lazzarato
diz que “o capitalismo não é um modo de produção, mas uma produção de modos
e mundos” (montada pelas corporações e vendida para as pessoas) e que a “guerra
econômica planetária” é uma “guerra estética” entre diferentes mundos.
A guerra civil imaterial também são os conflitos usuais entre os tra-
balhadores intelectuais, apesar de toda a retórica do compartilhamento de co-
Matteo Pasquinelli 133

nhecimento e das mercadorias digitais. É a bem conhecida rivalidade dentro da


academia e no mundo das artes, a economia das referências, a corrida por prazos,
a competição por festivais, a inveja e a suspeita entre ativistas. A cooperação é
estruturalmente difícil entre os trabalhadores criativos, onde uma economia do
prestígio opera da mesma forma que em qualquer sistema de figurões (para não
falar dos filósofos políticos!), e onde novas idéias têm que se confrontar umas
com as outras, freqüentemente envolvendo seus criadores em uma disputa. Como
observa Rullani, há quase mais competição na área da economia do conhecimen-
to, onde a reprodutibilidade é livre e o que importa é velocidade.

7. Enfrentando o parasita
Parasita é a exploração paralela da criatividade social. Na verdade, há
modos de exploração do trabalho criativo que não são baseados na propriedade
intelectual e que produzem mais valor e conflito. Como vimos, Harvey introduz
a estrutura do “capital simbólico coletivo” e sugere que “intervenções culturais
possam elas mesmas se tornar uma arma potente da luta de classes”. Ativismo
político no setor cultural, indústria criativa e a nova economia têm sempre per-
manecido dentro desses recintos ficcionais, fazendo protestos locais e deman-
dando mais bem-estar cultural ou contratos estáveis. Contemporaneamente, uma
demanda mais radical para contrapor a exploração da criatividade social envolve
uma renda básica para todos (ver www.euromayday.org). Inversamente, Rullani
observa que um sistema de bem-estar transfere tanto a inovação quanto o risco
para o aparelho do Estado, reforçando-o. Contudo, o que Harvey sugere é tomar
medidas não apenas no nível de capital simbólico coletivo, mas também no nível
do parasita que explora o domínio cultural. Um ponto difícil para o pensamento
radical entender, é que toda a economia imaterial (e da dádiva) tem uma contra-
partida material, paralela e suja, onde o grande dinheiro é trocado. Veja o MP3 e
o iPod, P2P e ADSL, música livre e concertos ao vivo, estilo de vida de Barcelo-
na e especulação imobiliária, mundo das artes e gentrificação, marcas globais e
sweatshops63.
Uma forma de resistência sugerida por Harvey no caso de Barcelona, é o
assalto ao mito da “cidade criativa”, no lugar de reações do tipo “quero-ser-radi-
cal” que possam contribuir para torná-la ainda mais exclusiva. Se as pessoas dese-
jam reivindicar aquela mais-valia simbólica vandalizada por uns poucos especu-

63 N.T.: sweatshops: locais de trabalho com condições bastante difíceis e perigosas para as
pessoas.
134 GUERRA CIVIL IMATERIAL

ladores, tudo o que podemos imaginar é uma re-negociação do capital simbólico


coletivo. Aqui vem a opção de uma campanha por um movimento de renovação
(grassroots rebranding campaign) para enfraquecer a acumulação do capital
simbólico e alterar os fluxos de dinheiro, de turistas e de novos residentes atraí-
dos por marcas de distinção específicas (Barcelona como uma cidade tolerante,
alternativa, de mente aberta, etc). Além disso, um outro campo de ação sugerido
são as áreas específicas onde a “arte da renda” atua (distritos particulares como
Raval ou Poblenou), onde a acumulação simbólica poderia ser redefinida por uma
sabotagem menos simbólica. No caso de Barcelona, o “parasita” a destacar é a
especulação imobiliária, mas nós poderíamos aplicar essa percepção a uma escala
mais abrangente.
Formas recentes de resistência têm sido quase sempre bastante represen-
tativas e orientadas à mídia, sonhando com a ascensão de um novo cognitariado
ou de uma repolitização do imaginário coletivo e seus produtores, como nos dou-
rados anos 60. Muitos ativistas e artistas – como Harvey – são conscientes do ris-
co de sobrecodificar suas mensagens e práticas. No fim, muitas ações de protesto
tiveram sucesso meramente em focalizar a economia da atenção em torno do seu
alvo. Boicotes tradicionais de grandes marcas às vezes se transformam em pro-
paganda gratuita a favor delas. O que o ativismo recente e o pensamento crítico
nunca tinham tentado explorar é a dimensão material (e econômica) conectada ao
simbólico. Trabalhadores criativos devem começar a reconhecer a mais-valia do
imaginário que produzem além dos seus objetos imateriais, e todos os efeitos po-
líticos remotos de qualquer sinal. Deixando o simbólico, entrando na economia do
simbólico. Estamos aguardando uma geração de trabalhadores cognitivos capazes
de mobilizar além do imaginário.
Barcelona, setembro de 2006

Referências

AGAMBEN, G. The Coming Community (trad. Michael Hardt). Minneapolis: Uni-


versity of Minnesota Press, 1991, p. 65. Versão em português A Comunidade que Vem,
Lisboa: Editorial Presença, 1993.
CORSANI, A.; RULLANI, E. “Production de connaissance et valeur dans le post-
fordisme”. In: Multitudes, n.2, May 2000. Paris. Versão original italiana em Y. Mou-
lier Boutang (ed.), L’età del capitalismo cognitivo, op. cit. Web: multitudes.samizdat.
net/Production-de-connaissance-et.html. Versão em espanhol disponível em: www.
sindominio.net/arkitzean/xmultitudes/multitudes2
Matteo Pasquinelli 135

HARVEY, D. “The art of rent: globalization and the commodification of culture”. In:
Spaces of Capital. New York: Routledge, 2001.
______. “The Art of Rent: Globalization, Monopoly, and the Commodification of
Culture”. In: A World of Contradictions: Socialist Register 2002, London: Merlin
Press, November 2001. Disponível em: www.16beavergroup.org/mtarchive/archi-
ves/001966.php
LAZZARATO, M. Les révolutions du capitalisme. Paris: Empêcheurs de Penser en
rond, 2004. As revoluções do capitalismo. Coleção A política no Império. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2006.
______. Puissances de l’invention: La Psychologie économique de Gabriel Tarde con-
tre l’économie politique. Paris: Les empêcheurs de penser en rond, 2002.
______. “La psychologie économique contre l’Economie politique”. In: Multitudes n.
7, 2001, Paris. Versão italiana estendida “Invenzione e lavoro nella cooperazione tra
cervelli” in Y. Moulier Boutang (ed.), L’età del capitalismo cognitivo, Verona: Ombre
Corte, 2002, disponível em: multitudes.samizdat.net/La-Psychologie-economique-
contre-l.html
RULLANI, E. Economia della conoscenza: Creatività e valore nel capitalismo delle
reti, Milano: Carocci, 2004.
______. “Le capitalisme cognitif: du déjà vu?”. In: Multitudes n. 2, 2000, Paris.
______. “La conoscenza come forza produttiva: autonomia del postfordismo”. In:
Capitalismo e conoscenza, Cillario L., Finelli R. (eds), Roma, Manifesto libri, 1998.
RULLANI, E.; ROMANO, L. Il postfordismo. Idee per il capitalismo prossimo ven-
turo. Milano: Etaslibri, 1998.
TRONTI, M. Operai e capitale, Torino: Einaudi, 1971

Matteo Pasquinelli é escritor e pesquisador da Universidade Queen Mary de Lon-


dres. Foi o editor do livro Media Activism. Strategies and Practices of Independent Commu-
nication de 2002 e co-editor de C’Lick Me: A Netporn Studies Reader (Amsterdam, 2007).
Atua como editor, desde 2000, da lista de discussões Rekombinant (www.rekombinant.org).
Seu último trabalho A Bestiary of the Commons será lançado em breve pela Nai Publisher de
Roterdam.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 137- 141

Midialivristas, uni-vos!

Adriano Belisário
Gustavo Barreto
Leandro Uchoas
Oona Castro
Ivana Bentes

A comunicação é um campo de batalhas. Nela, o status quo se faz con-


senso. Nela, os grupos minoritários disputam espaço, chamando atenção para os
silêncios da fala hegemônica. Na história do Brasil, não faltam exemplos deste
combate. Do monopólio da imprensa nos tempos coloniais às enxurradas de con-
cessões dadas a políticos durante o governo Sarney, pouca coisa mudou. Ainda
assim, por pior que fosse a censura, movimentos sociais de resistência sempre
conseguiriam criar rotas de fuga, propagar seus ideais e difundir suas lutas. Com
o advento da internet, surgiram também atores sociais que, por vezes de maneira
despretenciosa, aumentam a pluralidade de culturas, visões e desejos no universo
midiático. Todo cidadão torna-se um potencial produtor de conteúdo, e a associa-
ção em coletivos de interesses comuns intensifica-se. A mídia livre é um conceito
antigo e consolidado, ainda que assuma diversas roupagens. A cultura digital ape-
nas a colocou em evidência.
Deste caldo, surgiu o Fórum de Mídia Livre. São jornalistas, artistas,
professores, sindicalistas, historiadores, blogueiros e cidadãos das mais diversas
tendências ideológicas unidos pela necessidade de radicalizar o direito à comuni-
cação. São “fazedores de mídia” que se multiplicam, buscando não a hegemonia,
mas a contribuição para a diversidade de vozes e opiniões. Não se trata de uma
tarefa fácil. O setor de comunicação é um dos mais atrasados dentre todos os
segmentos do Brasil. Até a estrutura agrária conta ao menos com um movimento
organizado e forte, enquanto as lutas pela democratização da mídia apenas come-
çam a ganhar corpo. Há um verdadeiro latifúndio estabelecido neste setor, sem
que qualquer regra ou fundamento legal seja aplicado, por pressão de grandes
grupos que hoje dominam o mercado e ocupam o imaginário da população bra-
sileira.
138 MIDIALIVRISTAS, UNI-VOS!

É preciso investir em condições equânimes para o exercício do direito


à comunicação, seja através de uma melhor distribuição das verbas publicitárias
públicas ou da revisão das outorgas de concessões governamentais. Também é
necessário pensar a criação de um mercado específico para ações independentes,
tendo em vista não uma busca desenfreada pelo lucro, mas a garantia de susten-
tabilidade de tais iniciativas. Igualmente importante é agir para instauração de
políticas de comunicação com incidência ampla, indo além dos meios de comu-
nicação. Em primeiro lugar, porque a comunicação é um instrumento da própria
gestão pública, essencial para a consecução dos objetivos das diversas políticas
sociais. Em segundo, porque a informação é um instrumento fundamental para
qualificar a participação do cidadão no processo democrático. O acesso pleno à
informação é condição necessária do exercício da cidadania.
O Fórum de Mídia Livre conseguiu convergir porque reconheceu que os
problemas do século passado ainda são atuais e, hoje, ainda temos uma série de
novos desafios a enfrentar. No encontro, as atividades foram realizadas sob a for-
ma de desconferências. É o contrário das grandes palestras, onde alguém suposta-
mente iluminado dará respostas à platéia passiva. Desconstruindo este modelo, foi
praticado o exercício de uma ação coletiva e horizontal, que resultou em debates
plurais, organizados em cinco eixos.
O primeiro eixo foi em torno da “Democratização da Publicidade Pública
e dos Espaços na Mídia Pública”. Historicamente, os recursos governamentais
destinados à publicidade são empregados de acordo com as regras do mercado,
sendo, portanto aplicados em veículos de grande porte. Tal fenômeno gera um
ciclo vicioso, de fortalecimento do campo hegemônico da comunicação, concen-
trando ainda mais o mercado. O Fórum de Mídia Livre entende que a distribuição
das verbas públicas para publicidade deve levar em conta os pequenos empreen-
dimentos, os veículos alternativos e a mídia independente, que carecem de re-
cursos para viabilizar suas iniciativas. O poder público estaria assim garantindo
condições menos desiguais para os veículos da mídia livre nas TVs e nas rádios
públicas, assegurando assim maior diversidade informativa e amplo direito à co-
municação.
O segundo eixo tratou especificamente das Políticas Públicas de Comuni-
cação e Fortalecimento da Mídia Livre, abordando questões como Regulamenta-
ções, Lei Geral da Comunicação, Direito à Comunicação, TV Pública, Telefonia e
Internet Pública, Convergência das Mídias ou os Pontões de Cultura Digital.
Belisário, Barreto, Uchoas, Castro, Bentes 139

O tema da terceira desconferência foram os “Fazedores de Mídia”. Pro-


pôs-se o mapeamento e a discussão da rede de produtores de mídia livre, co-
letivos, sites, jornais, canais, empresas, agências, movimentos sociais e outras
propostas que tenham o “comum” como referência.
O quarto eixo estava ligado à questão da “Formação para Mídia Livre”.
Pensou-se e debateu-se como as experiências de educação não-formal, escolas
livres, ONGs, coletivos, etc., desenvolveram processos, metodologias, novas prá-
ticas de formação que possam dinamizar um modelo disciplinar e hierarquiza-
do de educação que vem privilegiando a formação para as mídias tradicionais.
Os relatos trouxeram questões como: a importância de um domínio de todas as
linguagens, não simplesmente a letrada, mas a incoporação do audiovisual, da
cultura oral, dos games, aproximação com ambientes cognitivos novos, como as
Lan Houses, a televisão, como outros espaços possíveis de formação. Enfatizou-
se a mudança no perfil do midialivrista, que deixou de ser apenas o “jornalista” e
se ampliou: “a mídia somos nós”. Nessa perspectiva, foi proposta uma mudança,
no interior das universidades, do entendimento da formação para a mídia, incor-
porando os principios da autonomia e da liberdade midialivristas, para além das
especialidades. Propôs-se, além disto, um agregador de conteúdos, uma platafor-
ma wiki para midialivristas, bem como o reconhecimento e apoio aos “pontos de
mídia”, ou seja, de todos os atores que produzem mídia livre e uma parceria dos
midialivristas com as universidades, de forma a trazer a midia livre para a centra-
lidade do debate, para além dos “especialistas” e corporações.
O quinto e último eixo foi sobre as mídias colaborativas e as novas mí-
dias. Embora não seja possível dissociá-lo do debate dos “fazedores de mídia”,
dessa desconferência fizeram parte debates relacionados a movimentos, projetos,
ferramentas e tecnologias de criação livre (Software Livre, Creative Commons,
Wiki, P2P, sites e portais colaborativos, etc.) e políticas de acessos e capacitação
para o uso dessas ferramentas, implantação de ferramentas livres e não-proprietá-
rias nos serviços públicos e mídias livres. Foram apresentados casos bem sucedi-
dos de ferramentas colaborativas e sugestões de parcerias.
Entendemos que a multiplicidade de meios de comunicação não garante
a diversidade informativa ou a pluralidade de opiniões. Os indivíduos em rede não
se configuram da mesma forma que os indivíduos isolados. Quando um grande
grupo de comunicação, monopolista por natureza e de caráter fortemente concen-
trador, divulga uma mensagem falsa ou incompleta, conta com o isolamento dos
140 MIDIALIVRISTAS, UNI-VOS!

cidadãos que, nesta condição, pouco podem fazer a não ser discordar com vee-
mência. É a conhecida figura do cara que fica sentado ao sofá, assistindo televisão
e reclamando do conteúdo nela exibido, sem qualquer repercussão a não ser na
própria família, que provavelmente já conhece suas opiniões.
Por outro lado, quando este mesmo grupo de cidadãos está em rede, esta
discordância vira uma reivindicação concreta: será agora um grupo de muitos, e
não “cada um na sua”, que reivindicará um posicionamento mais honesto para
determinada veiculação. Esta dinâmica de sociabilidade permite criar um novo
hábito cidadão, humano, que precisa, no entanto, de um respaldo desta rede. É
preciso pensar que estamos em rede por meio de nossas próprias pernas e que, se
desejamos mais democracia nos meios de comunicação, desejamos, com ainda
mais ênfase, uma revisão do próprio modelo de sociabilidade humana, pois o
atual, de “massa”, parece-nos ultrapassado.
Para a consolidação das mudanças desejadas, todos os cinco grupos reu-
niram em um manifesto uma síntese das reivindicações, que podem ser conferidas
na íntegra no site do Fórum. Um dos principais eixos do documento final trata da
implantação de “pontos de mídia” como política pública, integrados e articulados
aos pontos de cultura, veículos comunitários, escolas e ao desenvolvimento local,
viabilizando, por meio de infra-estrutura tecnológica e pública, a produção, dis-
tribuição e difusão de mídia livre. Trata-se de uma proposta central, pois busca
intrinsecamente a maior participação cidadã na vida política e social do país. Esta
rede ponto a ponto – tal como o modelo P2P, largamente utilizado hoje na Internet
– permitirá, por exemplo, que idéias como a realização de consultas públicas com
maior eficiência avancem, tornando-se instrumentos de radicalização da demo-
cracia participativa.
Outra proposta é o estímulo à criação e ao fortalecimento de modelos
de gestão colaborativa das iniciativas e mídias, como os sistemas de trocas de
serviços. Temos exemplos, entre os integrantes do Fórum de Mídia Livre, deste
tipo de intercâmbio, diretamente vinculado ao conceito de economia solidária,
gerador de renda e trabalho. São alternativas flexíveis e mais sintonizadas com
uma economia em que os bens intelectuais não são escassos e onde se atua em
rede, permitindo aos produtores de conteúdo abrir mão do modelo concentrador
de distribuição de obras artísticas.
Belisário, Barreto, Uchoas, Castro, Bentes 141

Este é só o começo. O Fórum de Mídia Livre, articulação de muitos mo-


vimentos e ativistas, continua aberto à participação de todos aqueles identificados
com nosso manifesto. Temos agora uma ampla e unificada pauta para lutar pelo
direito à comunicação plural e democrática. Para ler o manifesto da Mídia Livre,
consultar as conclusões do primeiro encontro e contribuir com as discussões aces-
se o site: fml.wikispaces.com
Reinventemos nossas mídias!

Adriano Belisário, jornalista, atualmente é editor do site da Revista de História da


Biblioteca Nacional. Possui ainda trabalhos em literatura e vídeo.
Gustavo Barreto é radialista, integrante do Pontão de Cultura da Escola de Comuni-
caçnao da UFRJ e editor de meios independentes como Consciente.net e Fazendo Média.
Leandro Uchoas é jornalista formado pela UFSC, membro do Fórum de Mídia Livre
do Rio de Janeiro, integrante do Pontão de Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ e editor
da Fazendo Média.
Oona Castro é integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e
coordenadora-executiva do Instituto Overmundo.
Ivana Bentes é doutora em Comunicação pela UFRJ, pesquisadora do CNPQ e pro-
fessora da Escola de Comunicação da UFRJ, onde está na direção desde 2006. Atua no campo
das Tecnologias e Estéticas de Comunicação, Audiovisual e Políticas Públicas de Comunica-
ção. Participa da Rede Universidade Nômade.
Cidade e Metrópole
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 145-156

Cidade e Metrópole: a lição da barragem

Gerardo Silva

Podemos afirmar, sem receio de nos equivocarmos, que a questão da ci-


dade e da metrópole é consubstancial à modernidade. A modernidade é urbana por
natureza. As forças que impulsionaram sua dinâmica constitutiva alimentaram-se,
na sua origem, da experiência libertadora da cidade e da sua capacidade de tornar
sustentável essa experiência, mesmo a reboque do novo regime de sujeição social
que acompanharia o projeto da modernidade e que acabaria, malgrado as vozes
que denunciaram essa condição, impondo a lógica de ferro de uma axiomática
centrada no trabalho industrial. Não que a modernidade possa ser assimilada com-
pletamente ao desenvolvimento do capitalismo industrial, mas ela é incompreen-
sível sem essa marca. Nesse sentido, é correta a identificação que David Harvey
(1992) faz entre a crise do mundo do trabalho centrado na fábrica e a emergência
da condição pós-moderna. O questionamento aos processos de especialização fle-
xível e de afirmação do trabalho autônomo, com efeito, compartilhado em grande
medida por autores como Frederic Jameson (1991) e Richard Sennett (1999), re-
velam claramente o grau e a complexidade dessa relação em que modernidade e
capitalismo industrial se interpenetram.
Em certo modo, e esta será a linha principal de argumentação a seguir
aqui, o capitalismo industrial apoderou-se da cidade e a transformou em uma
metrópole. Grande parte dos debates a respeito da cidade e da vida urbana no
século XX, que vão desde a perda dos valores comunitários até os problemas
de congestionamento e poluição ambiental, é atravessada, acredito, mesmo sem
ser explícita, por essa passagem da cidade para a metrópole. Ela já está presen-
te, por exemplo, na famosa conferência de Georg Simmel proferida em 1903, A
Metrópole e a Vida Mental, e também na obra amplamente conhecida A Cidade
na História de Lewis Mumford, que apareceu nos Estados Unidos em 1961. De
fato, a parte final desta obra monumental é um poderoso apelo aos planejadores
e a sociedade em geral para derrotar “as negações que têm perseguido a cidade
através da sua história” que, no século XX, seriam a dispersão e o crescimento dos
subúrbios de massa, verdadeira excrescência do automóvel e da sua deriva anti-
cidade. Uma perspectiva similar anima o livro de Jane Jacobs, Morte e Vida das
Grandes Cidades, também editado pela primeira vez em 1961.
146 CIDADE E METRÓPOLE: A LIÇÃO DA BARRAGEM

Tanto Mumford quanto Jacobs identificam nos postulados do urbanismo


moderno, e na obra de Le Corbusier em particular, grande parte dos males das
grandes cidades (ou, pelo menos, da incapacidade de corrigi-los). Ainda que o
arquiteto francês nascido na Suíça nunca tinha sido partidário da expansão dos su-
búrbios, ou seja, da expansão horizontal das cidades, ele foi, com efeito, o primei-
ro a vincular os destinos do urbanismo à difusão dos “meios mecânicos”, como
chamava os automóveis, e às possibilidades construtivas do concreto armado (be-
ton armée). Até esse momento, início do século XX, o pensamento da cidade
oscilava entre a perda dos valores que caracterizaram a cidade burguesa do século
XIX e o industrialismo cada vez mais presente nos principais centros urbanos da
época. De maneira difusa, porém insistente, uma nova realidade produtiva tomava
conta da cidade e tornava cada vez mais difícil enquadrá-la nos esquemas e nos
códigos vigentes até então.
A partir da publicação de Por uma Arquitetura (1923) e Urbanismo
(1925), Le Corbusier assume plenamente a nova condição da cidade: “A grande
cidade rege tudo, a paz, a guerra, o trabalho. As grandes cidades são as oficinas
espirituais onde se produz a obra do mundo”. Para ele, de nada serve continuar a
insistir no embelezamento da cidade quando o que se exige é um trabalho sobre as
funções, sobre os novos processos que definem sua condição produtiva. A cidade
contemporânea, afirma Le Corbusier, é a cidade da máquina, dos meios maquíni-
cos que tomam conta da produção industrial em grande escala. A grande cidade,
com efeito, não é apenas uma mudança quantitativa, mas, sobretudo, uma trans-
formação qualitativa, que demanda, portanto, novos conceitos e novas práticas de
planejamento, que podem ser chamadas de urbanismo.
A seguir exploro mais em detalhe esse movimento através do qual a cida-
de do século XIX é colocada em xeque pela grande cidade do século XX, através
da obra de Le Corbusier, para poder avançar depois algumas hipóteses de trabalho
sobre a metrópole, isto é, sobre a configuração das cidades e da vida urbana no
século XXI. Como explicitado acima, acredito que há uma forte tensão nessa pas-
sagem da cidade para a metrópole que ainda precisa ser problematizada. Sabemos
que os postulados da arquitetura moderna entraram em crise junto com o mundo
industrial que ajudaram a construir. O que não sabemos, entretanto, é o que fazer
com seu legado: a metrópole. Isso é particularmente evidente nas definições insti-
tucionais que associam a metrópole aos efeitos de aglomeração de municípios, da
expansão das periferias e dos problemas de circulação, incluindo ocasionalmente
os problemas sociais característicos dos grandes conjuntos habitacionais; porém,
mesmo em perspectivas mais acadêmicas e/ou científicas, ela encontra dificulda-
Gerardo Silva 147

des de definição quando vinculada a critérios tais como tamanho, atividades eco-
nômicas principais ou especialização funcional (cf. Lacour et Puissant, 1999).

A Cidade Contemporânea de Le Corbusier


Uma parte importante da obra de Le Corbusier é dedicada à cidade. Des-
de o início, na década de 1920, ele compreendeu que a perspectiva da arquitetura
moderna estava necessariamente vinculada a uma transformação da cidade; que a
cidade existente não apenas conspirava contra os novos meios e as novas formas
construtivas, mas também contra a própria sociedade urbana no que ela tinha
de mais avançado. Nesse sentido, a primeira constatação de Le Corbusier era a
de que grande cidade era um fenômeno recente, “dos últimos cinqüenta anos” e
que, portanto, feitas as ressalvas dos primeiros arquitetos que foram capazes de
vislumbrar alguns aspectos importantes dessa nova condição – Auguste Perret e
Tony Garnier – já não era mais possível referenciá-la no passado. “O crescimento
das aglomerações ultrapassou todas as previsões”, diz Le Corbusier, e agrega:
“De 1800 a 1910, em cem anos, Paris passou de 600.000 para 3.000.000 de ha-
bitantes; Londres de 800.000 para 7.000.000; Berlim de 180.000 para 3.500.000;
Nova York de 60.000 para 4.500.000” (Urbanismo, [1925] 2000, p. 90).
Ora, o impulso desse crescimento vem de uma nova civilização: a era da
máquina. Trata-se de uma potência industrial nunca vista, vinculada a meios tec-
nológicos capazes de assumir proporções gigantescas e de arrastar consigo todo
o conjunto social; trata-se de uma verdadeira mutação, e a cidade está no centro
dela. Mas está no centro dela de uma maneira equivocada, posto que o discurso
que a sustenta, e as ações que se seguem, ainda permanecem atreladas a concep-
ções pré-maquinistas. A evidência mais contundente, segundo Le Corbusier, é a
relação entre o traçado das cidades e as características das ruas e a massificação
dos automóveis. Em Paris, com efeito, os automóveis são obrigados a circular se-
guindo os “caminhos das mulas” que lhe deram origem, enquanto o novo trânsito
precisa de linhas retas. O mesmo acontece com as moradias, que pela sua locali-
zação e atributos funcionais, se encontram longe de poder satisfazer as exigências
do novo regime de trabalho centrado na grande fábrica e na produção em série.
Para Le Corbusier é preciso reconhecer, antes de mais nada, que a cidade
é um instrumento de trabalho, como a fábrica ou o escritório. A organização das
suas funções, portanto, deve seguir critérios análogos. É essencial separar o que
se desenvolveu junto de maneira caótica, tal como a indústria e a habitação; e
é também fundamental preparar a cidade para os deslocamentos de massa, seja
através do transporte público ou privado. Nesse sentido, o subúrbio é o novo
148 CIDADE E METRÓPOLE: A LIÇÃO DA BARRAGEM

elemento que não encontra lugar nas concepções antigas da cidade. Tampouco
os elementos de centralidade podem ser mais os mesmos. Mas é a velocidade das
comunicações (e das transformações) e os desequilíbrios monstruosos que ela
provoca que espantam Le Corbusier. A velocidade dos automóveis, a velocidade
do crescimento urbano, a velocidade da produção, a velocidade dos negócios. O
resultado é o caos e o congestionamento. Para ele, a conseqüência é muito clara:
ou a cidade se aparelha ou ela perece.
O embasamento dessas premissas possui, em Le Corbusier, um aliado
fundamental: a estatística. Os fatos que demonstram a emergência da grande ci-
dade com seus problemas específicos, não são constatações arbitrárias, mas evi-
dências comprováveis através de dados, gráficos, curvas e tendências. Com ajuda
dessas ferramentas, com efeito, é possível construir uma cartografia estatística da
cidade, da sua população, das densidades, da distribuição das atividades, da ocu-
pação do solo, da circulação. “Por virtude da estatística”, diz Le Corbusier, “po-
demos em um instante, mesmo sendo alheios às complexidades de uma questão,
tomar conhecimento dela e, com um espírito criador, discernir direções seguras”
(Urbanismo, [1925] 2000, p. 100). Contudo, será preciso ainda multiplicar as es-
tatísticas, ampliar sua capacidade de revelar aspectos pouco visíveis porém vitais
para o desenvolvimento da grande cidade.
Um segundo elemento de constatação dessas premissas é a opinião públi-
ca expressa através dos jornais. Por um lado, ela se encarrega de expor cotidiana-
mente os problemas ocasionados pela inadequação da cidade às novas exigências
do maquinismo. Os relativos à circulação são os mais graves, mas também apare-
cem, nos recortes de jornais que Le Corbusier seleciona, problemas vinculados à
moradia, à deposição do lixo, à saúde pública. Por outro lado, os mesmos jornais
são responsáveis pela difusão de um termo que, até esse momento, permanecia
sem contornos definidos: urbanismo. O urbanismo, com efeito, é a ciência da
grande cidade, isto é, a ciência que nasce junto com ela como arte de governá-la
através do controle e do planejamento. Anos depois, com a publicação da Carta
de Atenas (1943), Le Corbusier outorgará a esse termo uma extensa definição
conceitual.
Por último, antes de apresentar a idéia da cidade contemporânea, Le Cor-
busier volta a insistir, como o tinha feito anos um ano antes em Por uma arqui-
tetura (1923), no fato de que os meios estão prontos para a solução. Trata-se de
problemas de grande escala que exigem tratamento em grande escala. Entre me-
dicina e cirurgia, ele diz, é preciso cirurgia. Para exemplificar semelhante poder
de intervenção segue-se a “lição da barragem”:
Gerardo Silva 149

É uma imensa barragem em construção nos Alpes. Problema técnico simples:


paciência e exatidão para determinar os níveis do vale e suas encostas. Uma
multiplicação para cubicar a água do lago artificial que será criado. Um pou-
co de régua de cálculo para resolver algumas fórmulas relativamente simples.
Conclui-se: é preciso erguer uma barragem de tantos metros de comprimento,
tantos metros de altura; terá essa espessura na base, aquela no topo, sendo de
tanto a pressão sobre a barragem. Um espírito médio pode solucionar esses cál-
culos: etapa insignificante. Mas como os totais são esmagadores, a quantidade
de concreto que é preciso verter lá é colossal. A barragem se encontra a 2.500
metros de altitude, no limite da neves eternas. Esse vale fica no fim do mundo,
longe de todas as estações e de qualquer caminho; ao redor, precipícios e mura-
lhas de rochedos obstruem a estrada. A neve faz todo o inverno um colchão de 20
metros de espessura no local apertado onde se erguerá a barragem e expulsará
os operários ao cabo de cinqüenta meses; as tempestades são as dessas altitu-
des... São essas as condições nas quais vai operar-se o milagre... A máquina nos
dá um poder ilimitado. Podemos, por nossa vez, fazer milagres naturais. Temos
nas mãos o instrumental que é a soma dos cabedais humanos. E com esse ins-
trumental, o qual é algo subitamente surgido, subitamente gigantesco, podemos
fazer coisas grandes. É esta a lição da barragem (Urbanismo, [1925] 2000, p.
137, destaques do autor).

A grande obra que nos apresenta Le Corbusier logo a seguir da “lição da


barragem” é um protótipo da cidade contemporânea, dimensionada para 3.000.000
de habitantes. Trata-se de um projeto apresentado no Salão de Outono de Paris
em 1922. O terreno, a população, as densidades, a rua, o trânsito e a estação são
os elementos de destaque. Sobre esta última, Le Corbusier diz: “Há apenas uma
estação (...) no centro da cidade. É seu único lugar (...) a estação é o centro da
roda” (ibidem, p. 160). No que diz respeito à população e às densidades, a cidade
contemporânea é divida em três: a) o centro de negócios; b) a cidade industrial; e
c) as cidades-jardins. A cada setor corresponde um tipo específico de população:
1) os urbanos, que vivem e trabalham no centro; 2) os suburbanos, que vivem e
trabalham nas cidades industriais; e 3) os mistos, que trabalham no centro porém
moram nas cidades-jardins. Assim, o centro corresponderia a “um órgão denso,
rápido, ágil, concentrado”, a as cidades-jardins a um “órgão maleável, extenso,
elástico”. Entre ambos, uma zona não-edificável de reserva de ar.
A classificação das ruas e a organização do trânsito é uma das dimen-
sões críticas da Cidade Contemporânea. A multiplicação dos veículos mecânicos,
como vimos, congestionam os “caminhos das mulas” que deram origem à cidade
de Paris. É preciso, antes que mais nada, classificar o trânsito: a) veículos de car-
ga; b) veículos de passeio; c) veículos rápidos. Classificar também as ruas, além
150 CIDADE E METRÓPOLE: A LIÇÃO DA BARRAGEM

de diminuir seu número e seus cruzamentos (“O cruzamento das ruas é o inimigo
do trânsito”). A rua moderna, para Le Corbusier, deve ser uma obra-prima de
engenharia civil e, sobretudo, uma rua sem pedestres. No projeto da Cidade Con-
temporânea isso é possível criando circulações exclusivas para os automóveis e
circulações internas para pedestres, entre os prédios e os quarteirões.
No que diz respeito à composição arquitetônica, que é o que interessa
principalmente a Le Corbusier, o Plano da Cidade apresenta uma combinação
de “arranha-céus” e “habitações de cidade”, distinguindo, entre as últimas, aque-
las construídas em loteamentos com reentrâncias (ou de residência luxuosa) e as
construídas em loteamentos fechados. Os “arranha-céus”, construídos no centro
da cidade, também chamados de prédios cartesianos, possuem sessenta andares;
as habitações em loteamentos com reentrâncias, seis; e as de loteamentos fecha-
dos, cinco; e todos eles distribuídos em grandes quarteirões de 400 metros, o
tamanho ideal a percorrer até as estações do metrô. Para Le Corbusier: “Cumpre
industrializar a construção (...). Urge reformar o espírito do pedreiro fazendo-o
entrar na engrenagem severa e exata do canteiro de obras industrializado” (Urba-
nismo, [1925] 2000, p. 165).

Uma cidade contemporânea (Le Corbusier)


Gerardo Silva 151

O projeto da Cidade Contemporânea se completa com o famoso Plano


Voisin, no qual dezoito arranha-céus, capazes de abrigar entre 500.000 e 700.000
pessoas, ocupam o centro de Paris. Ele é composto de dois elementos essenciais:
uma cidade de negócios e uma cidade de residência. A primeira, sem dúvida,
mais importante que a segunda. Centro de negócios significa, para Le Corbusier,
centro de comando. É preciso reconstituir um centro de comando eficiente: “Por
um encaminhamento lógico das conseqüências, Paris, capital da França, deve,
neste século XX, construir seu posto de comando” (ibidem, p. 268). Para isso,
seria preciso desapropriar e derrubar a maior parte de centro existente, refazer os
traçados das ruas e avenidas, construir os novos prédios e planejar o deslocamento
das massas. Uma estação central, com efeito, permitiria regular o fluxo de pessoas
que circulam no centro, e alterar uma tradição milenar em que as portas da cidade
estavam sempre localizadas nos seus confins. O Plano Voisin de Paris, segundo Le
Corbusier, “retoma posse do eterno centro da cidade”.
Caberia ainda explorar outras dimensões da Cidade Contemporânea de Le
Corbusier e da sua obra Urbanismo. Também poderia ser vinculada a outras obras
do arquiteto que tratam sobre essa questão (por exemplo, Cidade Radiosa, Carta
de Atenas, Maneira de Pensar o Urbanismo), escritas ou apresentadas em épocas
posteriores e que, em conjunto, constituem o aporte mais vasto e influente sobre
o urbanismo do século XX. Como afirma Lewis Mumford, um dos seus críticos
mais ferrenhos, ele compreendeu tão bem a mudança que suas idéias tornaram-se
uma referência universal. A singularidade da Cidade Contemporânea, entretanto,
é sua condição de discurso inaugural. Trata-se, com efeito, da primeira proposta
formalizada do chamado Urbanismo Moderno, muito de antes de se conhecerem
suas conseqüências urbanas – que seriam posteriormente tanto exaltadas quanto
criticadas.

***

Em 1922, na época em que a Cidade Contemporânea foi apresentada, a


imprensa foi categórica: a proposta visava à destruição da cidade. Embora fosse
possível reconhecer nas suas premissas alguns problemas reais da cidade de Paris,
as soluções imaginadas foram consideradas mirabolantes. Por um lado, porque
era impossível reconhecer nela as marcas do tempo que tinham feito da cidade luz
a capital do século XIX. Pelo outro lado, porque os custos de uma operação urba-
na dessa envergadura, nunca antes cogitada, seriam imensos, quase que incalculá-
152 CIDADE E METRÓPOLE: A LIÇÃO DA BARRAGEM

veis. Contra essa última acusação, Le Corbusier se defende dizendo que no fundo
o Plano Voisin é uma operação financeira em que os ganhos de incorporação são
entre 4 a 5 vezes maiores que o valor incorporado atual. Afinal, trata-se do centro
de Paris, uma das capitais da Europa.
Por sua vez, as críticas da esquerda e do campo progressista visam dois
elementos defendidos por Le Corbusier. Em primeiro lugar, a sua aberta defesa
das reformas do Barão Haussmann. Para o arquiteto, com efeito, essas reformas,
mesmo que limitadas, foram providenciais para o funcionamento da cidade na
segunda metade do século XIX. Sem elas, Paris teria perecido por congestiona-
mento. Já para os críticos da esquerda, essas reformas apenas visavam o controle
das manifestações populares, abrindo a cidade para uma entrada mais contunden-
te das forças repressivas. Em segundo lugar, Le Corbusier nunca escondeu seu
posicionamento perante a revolução de 1917. Em Por uma Arquitetura, livro-
manifesto da arquitetura moderna, escreve: “Um grande desacordo reina entre um
estado de espírito moderno que é uma injunção e um estoque asfixiante de detritos
seculares (...). Tudo está aí, tudo depende do esforço que se fará e da atenção que
se concederá a esses sintomas alarmantes. Arquitetura ou revolução. Podemos
evitar a revolução” ([1923] 2002, p. 205, destaque nosso).
Por último, também incomodam a Le Corbusier as críticas em termos de
“futurismo” e “utopia”. Quanto ao primeiro, por mais simpático que seja o rótulo,
pelo fato de vincular sua proposta com o movimento artístico que na Itália assu-
mia a era da máquina como paradigma estético para construir uma visão de futuro,
ele entendia que sua proposta não era para elaborar uma visão do futuro, mas do
presente. Além do mais, ele diz, não se trata de uma fascinação pela beleza (efê-
mera) da máquina, mas de uma engenharia estrutural e duradoura. Com relação à
utopia, nada mais distante da sua perspectiva. O seu esforço por colocar em relevo
os meios e as possibilidades técnicas e concretas do urbanismo é justamente para
tornar o urbanismo uma eventualidade real: “Não parto para construir minha cida-
de na Utopia. Afirmo: é aqui [e agora], e nada mudará isso” (Urbanismo, [1925]
2000, p. 281, destaques do autor).

Destruição conservadora e esconjuro da metrópole


Feita a apresentação da Cidade Contemporânea de Le Corbusier e das
reações que a acompanharam em seu momento, podemos retornar às questões
levantadas no início. Nesse sentido, a primeira das críticas é a que nos interessa
particularmente: isto é, a de que proposta visava à destruição da cidade. A crítica,
em certo modo, era correta, mas não no sentido em que era utilizada. Se os ve-
Gerardo Silva 153

lhos contornos de Paris não podiam ser reconhecidos na Cidade Contemporânea,


isso era proposital. Mesmo defendendo os monumentos mais representativos da
capital francesa (em particular os da França napoleônica e as antigas igrejas), que,
segundo Le Corbusier, seriam valorizados pelo novo contexto, a proposta não era
condescendente com os símbolos do passado de uma maneira geral. O que estava
em jogo era uma nova época e uma nova sociedade, e, portanto, uma nova manei-
ra de viver e trabalhar.
Não é tampouco por acaso que, nesse primeiro momento da sua démar-
che, ele concentre sua atenção no centro histórico de Paris. Por um lado, é o
lugar que concentra toda a carga simbólica de uma sociedade burguesa que ainda
carrega um ranço aristocrático, com seus boulevards e grand hotels, enquanto um
exército de trabalhadores urbanos e industriais entra em cena com uma violência
inusitada. Pelo outro lado, em um país como a França, o centro de Paris é o centro
da República, o cérebro e o coração da vida nacional. Transformar o centro de Pa-
ris significa, portanto, transformar a sociedade francesa como um todo. O que Le
Corbusier propõe para o centro de Paris, como vimos acima, é uma transformação
brutal, uma completa descaracterização do seu ser:

Gostaria que o leitor pudesse, com um esforço de imaginação, conceber o que é


esse novo tipo de cidade vertical; que concebesse que todo esse bulício grudado
até agora no solo como uma crosta árida, é raspado, tirado e substituído por
cristais puros de vidro, subindo a 200 metros de altura e muito distantes uns
de outros, tendo a base rodeada pelas frondes das árvores. Essa cidade que,
rastejante até aqui, se ergue de repente na ordem mais natural, supera momen-
taneamente a nossa imaginação limitada por costumes seculares (Urbanismo,
[1925] 2000, p. 265).

As soluções propostas para o restante da Cidade Contemporânea não são


menos radicais, porém elas dialogam como possibilidade, de maneira menos re-
ativa. Afinal, um novo ordenamento das atividades era uma questão que devia
ser pensada. A convivência dos locais de trabalho com os locais de moradia da
primeira revolução industrial era insustentável, e a expansão desordenada dos su-
búrbios criava novos e graves problemas sociais e ambientais. A industrialização
da construção abria uma alternativa real de produção em série de moradias e/
ou habitações populares em grande escala. Para isso, uma parte da cidade teria
de ser derrubada, e outra poderia ser construída em glebas disponíveis nas áreas
periféricas. Nada poderia ser feito, porém, sem ordenar o traçado e as formas de
ocupação e uso do solo.
154 CIDADE E METRÓPOLE: A LIÇÃO DA BARRAGEM

Ora, quem é que poderia levar adiante um plano dessa envergadura, que
é literalmente um plano de reconstrução? Qual o ator com poder suficiente para
mudar as regras do jogo da cidade e para mobilizar energias e recursos nessa
direção? Esse agente chama-se Estado. Não necessariamente o governo de um
Estado-nação, mas o governo de uma cidade com os poderes do Estado. Poderes
para expropriar, para derrubar, para reorganizar, para construir, para fiscalizar. O
poder que se requer para essa tarefa é, portanto, um poder novo. Um poder que as
prefeituras não conhecem, ou que conhecem excepcionalmente. Assim, boa parte
da obra de Le Corbusier será a de insistir na constituição de uma vontade coletiva
(não necessariamente democrática) capaz de enxergar o problema da grande cida-
de e de colocar as prefeituras e os poderes locais “à altura dos tempos”.
Mas, por que a cidade? Eis provavelmente o fio da meada da nossa inda-
gação. Talvez no início tenha sido apenas um “vício” profissional, posto que Le
Corbusier era arquiteto e os arquitetos estão sempre de olho na cidade. Depois
soubemos, entretanto, que além do vício profissional sua própria concepção do
trabalho arquitetônico levou-o para a cidade de um modo mais específico (“O ur-
banismo é o suporte da arquitetura”). Porém, nessa passagem, e essa é a principal
hipótese que defendemos aqui, o que descobriu foi o caráter produtivo da cidade,
ou melhor, o vínculo estreito e indissolúvel entre o vertiginoso crescimento das
cidades e o novo regime de produção industrial. De maneira intempestiva, com
efeito, Le Corbusier intersectou a modernidade na sua crise e reformulação, isto
é, no momento em que o capitalismo industrial apoderou-se definitivamente da
cidade para transformá-la à sua imagem e semelhança64. Nesse sentido, parece-
nos que o radicalismo, mas, sobretudo, o estupor causado pela Cidade Contem-
porânea e o Plano Voisin, devem-se mais ao acontecimento que exprimem do que
propriamente às imagens que projetam.
Contudo, as imagens contêm uma carga simbólica explosiva: a força que
pode tanto destruir quanto construir a cidade é a mesma. E aqui, diferentemente
dos críticos contemporâneos de Le Corbusier, acreditamos que sua intenção não
era a de acabar com a cidade, mas a de restaurá-la sobre bases diferentes. Afinal,
mesmo projetada sobre uma imagem “maquínica”, a cidade contemporânea re-
produz as hierarquias e as formas de segregação urbana herdadas do século XIX.
Por um lado, o desenvolvimento de uma centralidade dura que, ainda que sob
numa fisionomia inteiramente diferente, não deixa de operar no plano simbólico-
institucional; pelo outro, um conjunto de medidas de correção da expansão de-

64 Quando Le Corbusier publica a Carta de Atenas, em 1943, quase 20 anos depois da publi-
cação de Urbanismo, essa passagem já está completada.
Gerardo Silva 155

sordenada dos subúrbios, porém mantendo sua população próxima das indústrias
e separada do centro e das áreas residenciais de luxo por um extenso cinturão
verde não-edificável cuja função, segundo Le Corbusier, é a de “permitir à cidade
respirar”. E devemos assinalar que, a julgar pela enorme influência exercida por
seu pensamento ao longo do século XX, ele foi bem sucedido nessa empreitada.
Como afirma novamente Lewis Mumford ([1962] 1969):

Durante os últimos trinta anos, a maioria dos arquitetos e praticamente todas


as escolas de planejamento foram dominadas pela poderosa propaganda e os
logros experimentais do pensamento singular de Le Corbusier. Se alguém ante-
cipou o que parecia ser uma concepção original e decisiva da ‘cidade do ama-
nhã’, foi esse talentoso arquiteto. Embora tal concepção tenha sofrido uma série
de mudanças, correspondentes aos ocorridas de forma análoga na sua arqui-
tetura, certos rasgos principais ainda se encontram vigentes, e provavelmente
continuarão influenciando, mesmo a pesar do mestre (...) o pensamento de Le
Corbusier tem se impregnado tanto no ser da nossa época que seus fragmentos
estão repartidos por toda parte (p. 174).

Podemos finalizar retomando o ponto central da nossa questão. Em A


Sociedade contra o Estado (2003), Pierre Clastres afirma que as sociedades pri-
mitivas por ele estudadas (Guayaki, Yanomami) são essencialmente sociedades
contra o Estado, pelo simples motivo de que uma organização estatal significa a
dissolução dessas comunidades independentes e autônomas. Contudo, o Estado
está presente através do que eles pré-sentem e esconjuram. O que pré-sente e es-
conjura Le Corbusier com sua Cidade Contemporânea? Pois bem, no nosso juízo
a emergência da metrópole como um poder que não se deixa capturar, como uma
força que não se deixa conter. A metrópole, com efeito, não restaura a cidade,
ela a supera. A metrópole é a desmedida da cidade. Nas palavras do próprio Le
Corbusier: “Sua força é como uma torrente engrossada pelas tempestades: uma
fúria destrutiva. A cidade se esmigalha, a cidade já não pode subsistir, a cidade já
não convém. A cidade está velha demais. A torrente não tem leito” (Urbanismo,
[1925] 2000, p. IX, destaque nosso); então, vamos construir um, e depois uma
barragem. Eis a lição da barragem de Le Corbusier: conter o transbordamento da
cidade pela força transformadora da metrópole.
156 CIDADE E METRÓPOLE: A LIÇÃO DA BARRAGEM

Referências

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novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SIMMEL, Georg. “A Metrópole e a Vida Mental [1903]” in Otávio Velho, O Fenôme-
no Urbano. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

Gerardo Silva é geógrafo e pesquisador associado do LABTeC/UFRJ.


LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 157-169

Potências do samba, clichês do samba65


– linhas de fuga e capturas na
cidade do Rio de Janeiro –

Rodrigo Guéron

O texto que apresentaremos traz o que talvez seja ao mesmo tempo a


mais potente das expressões artísticas e um dos maiores clichês do Rio de Janei-
ro: o samba. Na verdade, a maneira mesmo como o samba se tornou um clichê
será um dos nossos temas, sendo também o que ameaça, ronda este texto, e pode
capturá-lo desde a saída; não só o samba como clichê do Rio de Janeiro, mas o
clichê de um intelectual brasileiro escrevendo para uma revista francesa e euro-
péia sobre o samba. Ao longo de sua história o samba torna-se clichê – na verdade,
diversos clichês, diversas vezes, – por exemplo, como quando é visto tanto como
a “identidade nacional”, imagem-clichê do povo e do Estado-nação, quanto como
a essência do “nacional-popular”.
Mas, antes de ser capturado e despotencializado num clichê, o samba é
uma linha de fuga; na verdade diversas linhas de fuga, como diversas vezes ele se
reinventou ao longo do século XX: talvez por isso seja até mesmo impreciso usar
a expressão “o samba”, dada a multiplicidade de sentidos que a constitui.
Assim, veremos o samba e os poderes constituídos às vezes num “jogo de
gato e rato” (ou de “rato e gato”), às vezes num jogo de estratégicas, perigosas e
sedutoras aproximações, negociações, trocas desiguais, capturas e linhas de fuga.
E, nessa história toda, veremos também o riscar-se do mapa, das divisões e das
ocupações territoriais, da própria cidade do Rio de Janeiro: o samba tanto demar-
cando territórios quanto sendo demarcado territorialmente, o samba reinventando,
revitalizando – ou, praticamente, ressuscitando – corpos, desde suas performan-
ces. Performances contra a assepsia, contra a disciplina física e a separação se-
gundo as características físicas que se quer administrar a estes corpos; enfim, um
jogo permanente de resistência biopolítica e de ação do biopoder (Foucault, 2004;
Revel, 2005).

65 Texto inédito em português, publicado no número 33 da revista Multitudes, Paris, com o


título: “Puissances de la samba, clichês de la samba: lignes de fuite e captures dans la ville de
Rio”.
158 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA

Jogo que é também, respectivamente, a resistência e a fuga ao clichê, uma


vez que o clichê é um “esquema sensório motor” (Deleuze, 1985, p. 31-32) que
se instala nos corpos de maneira semelhante à moral. O clichê é, então, como uma
“imagem-moral”66: a imagem que é índice determinador, redutor e padronizador
de valor, como faz por exemplo Estado-nação em suas construções identitárias.

Pequena África, favelas, cordões e samba: a revanche do “Bota


Abaixo”
Pouco antes do que normalmente se designa positivamente como o início
do samba (um início na verdade impossível de determinar, mas que não pára de
ser evocado pelos sambas, exatamente na constância em que estes não param de
usar a palavra “saudade”) é importante lembrar que ele aparece na cidade onde
houvera, não muito tempo antes, a revolta da vacina: a revolta biopolítica por
excelência. Talvez nem Foucault imaginasse uma resistência tão exemplar ao que
ele chamou de biopoder – uma resistência biopolítica – como a dos milhares de
pobres cariocas que tentaram se recusar a tomar a vacina. Mesmo que embalada
eventualmente por algum discurso moralista de certa imprensa (“A imoralidade
de homens do Estado que obrigam as senhoras a mostrar suas coxas para, de se-
ringa em punho, lhes aplicar a agulha”), a resistência à vacina era, sobretudo, a
resistência aos agentes do Estado, que no higienismo do qual a vacina era símbo-
lo, eram os agentes do “bota-abaixo”.
E, de fato, era uma multidão de negros e mestiços o “alvo” deste “bota-
abaixo”, eram eles que deveriam ser expulsos do centro do Rio, e os cortiços onde
viviam devidamente derrubados para que pudessem ser abertas as avenidas que
dariam um ar parisiense e “civilizado” à capital da recém proclamada república
brasileira. Piedosamente, nossas professoras ensinavam nas escolas que essa mul-
tidão era composta de “pobres ignorantes” que se recusavam a tomar a vacina
porque não sabiam o quanto era “para o bem deles”. Da mesma maneira que
aprendemos que “depois da abolição da escravidão, os negros ficaram desampa-
rados e não tiveram para onde ir”.
Mas, já antes do fim da escravidão, cortiços, casas de cômodos, e uma
multidão vivendo precariamente (mas, decerto, bem melhor que sob a violência

66 Na nossa tese de doutorado Cinema e Clichê, o Niilismo na Imagem, nós aproximamos a


definição dada por Deleuze do clichê, «um esquema sensório motor» , com o processo que,
segundo Nietzsche, a moral se instala no corpo. Definimos então o clichê como uma «imagem-
moral», uma imagem que se tornou impotente e que serve como índice determinador e padro-
nizador de valor.
Rodrigo Guéron 159

do latifúndio escravocrata) ia chegando, formando, constituindo a cidade; de tal


modo que, muitas vezes, a cidade foi, em primeiro lugar, eles. E esta luta e cons-
tituição de novos territórios não poderia deixar de ser um luta de corpos e, até
mesmo, da constituição de novas performances dos corpos. Por isso, poderíamos
dizer que o samba já estava lá, nas ora potentes, ora violentas, ora meio poten-
tes, meio violentas, performances que atravessavam a cidade, aquelas mesmo das
quais, no higienismo do prefeito Pereira Passos – o tal do bota-abaixo – a cidade
deveria se ver “limpa”.
Assim, enquanto os capoeiras faziam arrastões que apavoravam as mo-
çoilas da aristocracia que iam à rua do Ouvidor comprar os últimos tecidos e
perfumes chegados de Paris, o clima de pavor que os brancos tinham da “onda
negra” (Azevedo, 1987), e o crescente discurso da criminalização destes, ganha
a imprensa carioca nas últimas décadas do século XIX (e, mais particularmente,
depois que chegam aqui as notícias da revolta do Haiti). Os capoeiras e a capoei-
ra, ainda que o Imperador tivesse estrategicamente uma famosa guarda negra de
capoeiristas, foi violentamente reprimida no Rio de Janeiro até a sua extinção, só
retornando bem mais tarde, já em meados do séc. XX, vindo da Bahia onde ela
tinha resistido.
Tudo isso de alguma maneira parece constituir tanto os primórdios do
samba quanto os primórdios da favela. E o samba, bem como a favela, uma es-
pécie de revanche, de retorno, mas, sobretudo, uma resistência criativa e uma
reinvenção (re-existência como diz Tatiana Roque), diante da intenção de sujeição
e até mesmo de extermínio do higienismo do bota-abaixo.
O samba já nasce portanto como uma linha de fuga. Ou, talvez, mais que
isso: o samba já nasce como uma convergência, um encontro de linhas de fuga,
sobretudo das imigrações para a cidade, e que formavam a cidade. O samba é
negro, mas não exatamente identitário, posto que se constitui das misturas e do
encontro dos diferentes fluxos de povos (e mesmo os negros eram muitos povos).
Assim, para a cidade vinham tanto os expulsos da terra, os que escapavam do
latifúndio, os índios, descendentes de índio, e mesmo comunidades que já eram
misturas de negros, índios, brancos cujas referências identitárias já iam mais ou
menos longe. E também os pobres portugueses estavam ali, e nas fotos das alas de
compositores das escolas de samba vai haver quase sempre um ou dois portugue-
ses, às vezes identificado exatamente como “o português” .
Talvez se possa atribuir aos negros uma espécie de liderança, quer dizer,
de alguma forma seus rituais, suas danças, seus encontros religiosos, as conspira-
ções, as fugas e os quilombos, constituíram uma técnica/linguagem do encontro
160 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA

e da resistência que os fizeram agregadores. E, de novo, estamos diante de uma


luta de territórios que não se dá sem ser também uma performance de corpos. Os
capoeiras e seus temíveis arrastões eram isso. Mas eram também aquela dança/
jogo/luta onde se fazia com os corpos o que ninguém sabia fazer. Já na capoeira,
a singularidade do passo, do golpe, da batida e do canto forte era a própria potên-
cia. Realmente, a palavra potência parece aqui redundante, posto que a capoeira
é também uma luta: esgueira-se do golpe, foge, ginga enquanto prepara o contra-
golpe; mas a própria malandragem de dizer mais tarde que a luta não era luta, mas
o jogo, é também parte desta potência: de uma vez só, encontro, resistência, luta
e diversão.
Entretanto, os primeiros anos do século XX parecem ter sido um tanto
promissores para o projeto higienista no Rio de Janeiro: a multidão de pobres
foram expulsos do centro, sobrados e velhos prédios onde moravam derrubados.
Em torno deste mesmo centro, no entanto, bairros sobreviveram ao bota-abaixo,
enquanto os que eram expulsos começaram a subir os morros mais próximos. É
verdade que a primeira favela, “Morro da Favela”, hoje Morro da Providência,
que deu nome a todas as outras, foi fundada pouco antes por “ex-soldados”, na
verdade centenas de pobres convocados para esmagar a impressionante Revolta
de Canudos (Canudos também uma cidade formada por pobres de todo o sertão
do Nordeste, que para lá migraram e ali fizeram a sua própria cidade-favela).
“Favela”, como Euclides da Cunha chamou Canudos; “favela”, como foi chama-
da a primeira ocupação de morros da Zona Portuária. Mesmo que os primeiros
núcleos de algumas destas favelas tivessem sido os antigos quilombos, elas foram
quase como uma revanche ao bota-abaixo, assim como os cordões que desciam
os morros, e às vezes se encontravam em violenta batalha no carnaval, mostravam
que a força para eliminar os capoeiras e higienizar a cidade tinha sido, de certa
maneira, em vão.
Foi então em torno do centro que sobreviveu ao bota-abaixo e, mais par-
ticularmente, num bairro onde se reuniam sambistas vindo de suas favelas dos
bairros da periferia, ou morando ali mesmo naquela região, que aconteceu o já
quase mítico – porém real – lugar de encontro dos sambistas que fundaram as
primeiras escolas de samba: a casa de Tia Ciata.
Ali, no bairro de Estácio, na hoje desaparecida Praça Onze, existia o
“outro centro” do Rio: o centro negro do Rio, região conhecida como “Pequena
África”. Mesmo que não tenha sido ali onde se começou a fazer samba, era para lá
que o samba convergia. Tia Ciata era uma mãe de santo, uma sacerdotisa do can-
domblé, baiana, que administrava as várias bancas de quitutes das diversas baia-
Rodrigo Guéron 161

nas espalhadas pela cidade. Muito se fala sobre o papel agregador e politicamente
estratégico do candomblé – às vezes funcionando quase como uma maçonaria
negra – para estas comunidades desde a Bahia. É neste raciocínio que se atribui à
Tia Ciata, mãe de santo (além de ser, na prática, uma empresária negra, talvez a
única), uma atuação política chave na fundação das Escolas de Samba.
Foi, de fato, uma decisão de certa maneira política que os sambistas de
diversas comunidades tomaram nos encontros em sua casa. A despeito da compe-
tição existente entre as várias escolas para ver qual seria a primeira, não há dúvida
de que figuras como Ismael Silva, da Deixa Falar, Argemiro e Cartola, da Man-
gueira, Paulo da Portela e outros, decidiram juntos fundar em suas comunidades
uma agremiação. Por que então esta estratégia?
É como se parecesse aos sambistas, e à própria Ciata, que a força do
samba como expressão artística, dança, música, performance, combateria o estig-
ma social, apaziguaria a repressão do Estado; enfim, as comunidades poderiam
produzir sua alegria, sua festa, e atrairiam mais gente para elas, numa produção
socialmente respeitada e influente. O próprio ato de registrar em cartório faria par-
te desta estratégia. O samba, agora “legal”, exerceria uma espécie de resistência
afetiva à segregação, à repressão e ao preconceito, usando a própria sedução da
música e da dança como uma espécie de desarme do biopoder. De alguma forma
era preciso fazer os brancos dançarem, como numa doce armadilha espinosista:
afetos alegres, corpos contagiados... Quem poderia resistir?
O novo mapa da cidade era então o novo mapa do carnaval do Rio. De
um lado, no centro da cidade “higienizado” pelo bota-abaixo, nas grandes ave-
nidas abertas no centro entre os prédios de arquitetura neoclássica fake, eclética,
Europa fake em geral, o carnaval dos brancos, que contava com o entusiasmo e a
promoção dos colunistas de jornais e da imprensa em geral. De outro, ainda antes
das escolas de samba, o carnaval da Pequena África, onde o centro era a Praça
Onze, o carnaval dos negros, mestiços, e de quem mais quisesse ir àquele “territó-
rio”. Uma tropa da cavalaria cuidava de guardar a fronteira entre a Pequena África
e o “novo centro”, onde o carnaval era formado por glamurosos bailes como os do
Teatro Municipal (uma cópia arquitetônica reduzida do Opera de Paris), o desfile
das grandes sociedades com seus luxuosos carros alegóricos, e os corsos, onde a
aristocracia exibia seus magníficos automóveis recém chegados da Europa e dos
Estados Unidos.
Porém os cordões, antecessores das escolas de samba, não desfilavam só
na Pequena África; eles desciam dos morros e podiam aparecer em muitos bair-
ros, onde eram implacavelmente perseguidos pela imprensa que pedia uma ação
162 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA

enérgica da polícia; esta, por sua vez, agia. Os encontros de cordões eram às vezes
de uma grande violência. Conta-se inclusive que as alas de baianas eram formadas
por homens com facas escondidas sob as saias rodadas, e o mestre-sala, que veio
a ser uma espécie de primeiro bailarino das escolas de samba, era o mais forte e
hábil brigador de todos: o que deveria proteger o estandarte da escola.
Aí está o exemplo da transformação dos cordões para a escola de samba.
Uma bela moça passou a levar o estandarte, “protegida” por aquele que pouco
a pouco não precisava mais ser o mais forte, porém o mais exímio dançarino. A
dança dos dois, a propósito, tornou-se uma dança própria, uma técnica peculiar,
bem distinta da dos outros passistas. Da mesma maneira, na frente das escolas de
samba recém fundadas iam os mais velhos da comunidades, o mais elegantemente
vestidos possível, com ares de respeitáveis senhores, saudando o público e pedin-
do passagem, com a função de mostrar que ali não vinha um cordão “ violento”,
mas uma escola de samba com toda a sua arte e alegria.

Duas negociações com o poder


Teremos então duas negociações do samba e da favela com o poder, ini-
ciadas mais menos na mesma época; uma delas inclusive travada pelas próprias
escolas de samba. A primeira talvez seja o primeiro sinal de que o poder – que
não vai parar de criminalizar a favela e os negros ao longo de todo século XX –
não poderá viver sem a força e a singularidade produtiva da favela e do samba.
Estamos falando do papel absolutamente decisivo do samba para a constituição
da indústria fonográfica, radiofônica e de espetáculos no Brasil. Tratava-se de
uma negociação tão desigual, que talvez “expropriação” e “captura” sejam termos
mais corretos para se referir a ela. O que acontecia freqüentemente é que algum
agente de um compositor ou de uma gravadora, ou às vezes o compositor “do as-
falto” em pessoa, subiam o morro para comprar a preços muito baratos os sambas
dos compositores do morro; às vezes chegando a “comprar” o direito de assinar
este samba, omitindo o nome de seu autor.
Está claro o papel que o racismo e todo tipo de preconceito social vai
exercer nesta desvalorização daquilo que tinha na verdade grande valor: a ori-
ginalidade, o ritmo absolutamente singular, os diferentes estilos, e a força das
letras. Estas eram às vezes extraordinárias crônicas sociais, ou então trágicas e/ou
tragicamente bem humoradas histórias de amor, no que foi mais tarde preconcei-
tuosamente chamada de a parte “branca” do samba.
O que acontecia era uma captura econômica, mas às vezes também estéti-
ca. Algumas vezes o samba passava, ao ser gravado por um dos astros ou estrelas
Rodrigo Guéron 163

do rádio, por um curioso processo de “embolerização”. Isso acontecia quando as


canções ganhavam um arranjo musical tipo bolero, num esforço para lhes em-
prestar um ar “civilizado”, acentuando a dimensão de lamento e esvaziando um
sentido de alegria trágica – de lamento cantado com força e alegria – que é típico
do samba. De fato, mesmo quando se trata de uma história triste sendo contada na
letra, há um sorriso, um bem estar, uma leveza melódica, ou mesmo uma potência
de canto, ritmo e dança que faz todo o lamento se dissolver, ou se transformar em
vida que segue, agora como samba. Na verdade, eis aí uma das características
mais importantes do samba, a saber, o samba é antes de tudo uma filosofia: uma
filosofia de vida. Ele entende, explica, narra, processa plástica e afetivamente, as
dores da vida. Sua dimensão política está antes no ato mesmo do encontrar-se
para cantar samba: cantar alto, cantar forte, dançar a dança que só alguns sabem
dançar, usar o corpo como só alguns sabem usar, e fazer ressoar os tambores pela
noite da cidade. Muito se chamou à polícia, muito se exigiu providências das au-
toridades nos jornais, mas mesmo a cidade dos brancos foi pouco a pouco sendo
seduzida – e se apropriando – deste processo.
Talvez por isso nas primeiras décadas fosse necessário, do ponto de vista
do poder, esta espécie de domesticação estética pelo qual ele passava. Não se
tratava necessariamente de um processo conspiratório tão consciente assim. Era
quase como que uma resistência afetiva do poder, materializada, sobretudo, na
maneira como se tirava o batuque, a percussão e a cadência de certos sambas gra-
vados. Tratava-se na verdade de um processo de “desafricanização” na medida do
possível (e como se possível fosse...). Era preciso esconder que aquilo era coisa
de preto, de favelado, de ex-escravos, descendentes de africanos. Embora as letras
também fossem “coisa de preto”, ao contrário do que foi cantado mais tarde, que
o samba era “branco na poesia, preto no coração”.
É claro que o samba é também expressão da mestiçagem, liderada pelos
negros, como dissemos no início; mas aqui está talvez a primeira captura intelec-
tual, a do “negro primitivo”, o “gênio intuitivo”, uma espécie de adaptação do
mito do bom selvagem para o imaginário urbano, e uma afirmação de que não ha-
via racionalidade e trabalho intelectual ali. Aí entramos pela primeira vez “nós”,
os “intelectuais”, os “acadêmicos”, nesta história. Para a intelligentsia, depois do
desprezo e da pura e simples discriminação dos primeiros anos do século, quando
o positivismo era quase hegemônico, o samba foi vítima de um processo de fol-
clorização. Mesmo que sua potência fosse compreendida por músicos como Villa
Lobos, freqüentador do morro da Mangueira, e, em certa medida, por Mario de
Andrade e pelo modernismo.
164 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA

E aqui encontramos a relação entre a primeira grande negociação do


samba com o poder (através da “indústria musical”) e a outra, a do samba com o
Estado. A idéia de capturar a música e as manifestações populares, reduzindo-as
a uma lógica de “identidade nacional”, típica em alguns Estados europeus, está
diretamente ligada, agora não simplesmente mais à legalização das escolas de
samba, posto que elas já nascem com vistas a este movimento, mas, sobretudo,
com a sua oficialização.
De fato, o Estado Nacional organizado sob os quinze anos de governo
Vargas, estava à procura de um povo: de uma “identidade nacional”. A tardia,
porém impressionantemente veloz industrialização que o país passava, especial-
mente na região sudeste e sul, produzia uma proximidade entre sambista e ope-
rário, entre povo e classe trabalhadora. O samba, no entanto, que não parava de
cantar e exaltar a malandragem, que não esquecia de lembrar o sentimento de
solidariedade da favela contra o poder, “a polícia procura o matador, mas em
Mangueira não existe delator”67, sempre foi um local da resistência às formas ins-
titucionais e constituídas de trabalho; resistência especialmente notável no Brasil,
onde a industrialização não significou o fim de regimes de trabalho próximas da
escravidão, e onde o que deveria, de acordo com os manuais de história, ser uma
“burguesia nacional” é muito mais uma oligarquia patriarcal cheia de herança
escravocrata. Assim, não havia muita diferença entre a resistência ao trabalho
nas fábricas, ou mesmo “nas casas de família” como “criados”, e a resistência a
própria escravidão.
O curioso é que, por outro lado, mesmo que exaltando a malandragem,
na década de 30, o samba já era uma magnífica produção, algo que do ponto de
vista do Capital poderia ser enquadrado como um grande “mercado”, e mesmo
um estilo definido que descera os morros, com os compositores do “asfalto” se
esforçando, com sucesso, para compor sambas (quando não os compravam nos
morros, é claro). Neste sentido, os sambistas folclorizados, tomados como “gê-
nios primitivos e intuitivos” pela intelectualidade, era uma despotencialização,
uma redução da importância e da força do que já estava acontecendo.
Mas, insistimos que este processo não se deu como uma captura pura e
simples, como se o samba, e neste caso as escolas de samba, fossem simplesmente
vítimas. O acordo que significou a oficialização do samba não é simplesmente
uma condição aceita de maneira contrariada, e sob pressão do poder, pelas escolas
de samba. Na verdade, tínhamos na época duas associações de escolas de samba,
uma simpática a Getúlio e a outra acusada de ter “tendência comunista”, talvez

67 Letra e música de Benjamin Batista e Marina Batista.


Rodrigo Guéron 165

pelo simples fato de não ser getulista. Consta até mesmo que seria a associação
simpática ao ditador que teria feito a proposta ao governo, qual seja, as escolas
de samba seriam oficializadas e tornadas símbolos da cultura do Rio e do Brasil,
se cantassem sempre nos carnavais sambas que falassem da história, da “cultura”
(em particular do folclore) e das “belezas naturais” do Brasil.
Mesmo com este “acordo nacionalista”, num dado momento o Estado
nacional getulista dá o que parecia ser um golpe de morte nas Escolas de Samba,
que foi de fato um golpe na “Pequena África”, nome que rapidamente seria esque-
cido. Expressão do desenvolvimentismo, faz passar uma gigantesca avenida – a
Av. Presidente Vargas – por cima da Praça Onze, que sofre assim, décadas depois
da operação higienista do Prefeito Pereira Passos, o seu próprio “bota-abaixo”.
É quando Grande Otelo, que parece ter vivido e ajudado a inventar quase todas
as imagens – e clichês – do samba em sua carreira, compõe: “Vão acabar com a
Praça Onze, não vai haver mais Escolas de Samba...”.
Mas elas não acabaram. Os Estado Novo deu aos negros um lugar no car-
tão postal da paisagem desenvolvimentista urbana do Rio. De uma maneira ou de
outra, o poder percebeu que não adiantava mandá-los cada vez mais para longe. A
palavra cartão postal parece neste caso realmente adequada, uma vez que a opera-
ção de captura era sem dúvida uma tentativa de regulamentação e disciplinamento
da impressionante força dos deslocamentos, das performances e das imagens do
samba. No cartão postal, o samba, homens e mulheres negras, são devidamente
disciplinados num clichê. Assim, por exemplo, a beleza da dança das cabrochas
– a dança das mulheres negras – transformara-se em “mulata exportação” do de-
senvolvimentismo do Rio cidade turística, férias de estrelas de Hollywood.
O samba serviria, uma vez disciplinado, sobretudo ao que o Estado Novo
buscava: como vimos, um Estado a procura de um “povo” e de uma “identidade
nacional”. Assim, sorridente, dançando, simpático “cordial”, parecia ser adequa-
do que o negro entrasse no molho da mestiçagem. Depois de tanto bota-abaixo,
de tanto higienismo parcialmente mal sucedido por estas resistências biopolíticas
que não paravam de acontecer, os poderes constituídos já não podiam mais fazer
o discurso positivista e explicitamente racista. Mesmo o “mercado”, a “indústria
cultural”, não poderiam abrir mão da impressionante capacidade produtiva que
vem de toda esta multiplicidade. É neste momento inclusive que alguns sambas
que exaltam a malandragem são censurados e os sambistas aceitam mudar a letra
para a exaltação do trabalho. O samba é então parcialmente – e apenas parcial-
mente – capturado nesta engenhosa operação que transforma as mil e uma mo-
dulações que constituem a mestiçagem do povo brasileiro na imagem do “povo
166 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA

mestiço” como a “grande unidade”, a “identidade única” e “nacional” do povo


brasileiro.
É como se a doce armadilha por ele preparada – a alegria, o ritmo se-
dutor, a performance sensual da dança e a sofisticação das canções – que foram
desarme e linha de fuga à violência do poder, caísse agora também numa arma-
dilha. O clichê é assim a expressão da própria captura, ele é ao mesmo tempo um
“esquema sensório motor” e uma imagem moral: uma imagem índice determina-
dor, redutor e mesmo despotencializador de valor. No caso do lugar-clichê que
os negros passam a ocupar através do samba e, sobretudo, do carnaval, é como
se o poder dissesse finalmente: “assim pode”. Quer dizer, a participação negra,
diluída na mestiçagem como a “ unidade” do povo, seria a da música (em seguida
também a do futebol), a do sorriso e a da alegria. Estaria assim supostamente
atestada a “democracia racial”, assim como forjada e comprovada a essência do
“povo cordial”.

O “nacional-popular”: clichê à esquerda. Os espetáculos de massa


O carnaval parecia servir como uma espécie de lugar onde a convivência
entre as classes, na radical desigualdade, é celebrada, sendo ao mesmo tempo o
lugar onde esta desigualdade se naturaliza, agora não mais num discurso positivis-
ta pseudo-biológico, como acontecia até meados dos anos 30, e sim numa espécie
de naturalização, ou essencialização, culturalista. E a própria tentativa de reduzir
o samba a um fenômeno de carnaval é uma despotencialização deste.
Mas se dissermos que o carnaval e, sobretudo, o samba, são só isso, esta
nossa análise será ela mesma do ponto de vista do poder, ou seja, será ela mesma
uma captura feita por um algum intelectual num lugar de saber/poder. Quer dizer,
entender e mostrar os pobres sempre como oprimidos, ou como aqueles que tive-
ram uma suposta “autenticidade” ou “identidade” que teria sido vítima de alguma
trama do poder, é esvaziar toda a resistência e, sobretudo, não ver que resistência
não tem a ver com nenhuma identidade fechada, nenhuma “autenticidade”, mas
com capacidade de deslocamento, de reinvenção e criatividade. Neste sentido a
invenção do samba é, ela mesma, um deslocamento.
Mas o samba será também o lugar de uma “autenticidade”, num clichê
que vem de uma operação de intelectuais de esquerda, que vão exaltá-lo como a
“cultura nacional-popular”, na medida mesmo que vão começar a fazer um dis-
curso – feito também por boa parte dos sambistas – sobre uma suposta identidade
perdida nas modificações que o samba passou através de sua história. O resgate
desta suposta autenticidade, mantendo-a a todo preço contra a “influência estran-
Rodrigo Guéron 167

geira” e “comercial”, seria considerada parte mesmo da resistência à expansão


internacional do capitalismo: o imperialismo. A princípio, esse discurso consistia
(e para alguns ainda consiste), de uma mistura de frankfurtianismo adorniano e
pensamento gramsciano imposto da academia ao samba. O que fez com que a
militância de esquerda trouxesse o samba como parte fundamental de um teatro
político-pedagógico feito no início dos anos 60: os espetáculos do CPC. Fato que
não deixou de ajudar a dar projeção a alguns dos grandes sambistas.
Mais uma vez, porém, os sambistas não foram simplesmente vítimas de
uma captura, mas encontraram neste enunciado uma trincheira comum e uma fala
potente: “o verdadeiro Brasil, a essência do povo, somos nós”, afirmavam com
orgulho. Mas, justiça seja feita, quando os intelectuais foram os cineastas, e trans-
formaram este projeto em cinema, como no cinema novo, a câmera aberta para
filmar simplesmente a favela e a periferia, nos revelou imagens potentes. Com
umas três décadas de atraso, vimos pela primeira vez no cinema, o sambista como
o homem negro comum, batucando seu samba na porta de um vagão de trem
enquanto a cidade passava, favela a favela, rumo a periferia. Estamos falando da
célebre cena de Grande Otelo em Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos,
filme só feito no final dos anos 50, mas que conta uma história que existe desde os
anos 20: o sambista que quer gravar o seu samba, é obrigado a vendê-lo a preço
de banana, perdendo até a autoria.
Estilizado, parcialmente transformado em clichê, mas com função se-
melhante que teve nos primórdios da indústria musical, o samba tinha sido antes
do cinema-novo fundamental para os primeiros grandes sucessos populares do
cinema brasileiro: as chanchadas da Atlântida. As chanchadas eram comédias
musicais, às vezes paródias de Hollywood e/ou com leves críticas sociais, que
tiveram como um de seus principais protagonistas o próprio Otelo. O pequeno
grande ator negro encarnava nos filmes da Atlântida uma espécie de genial clown
sambista, cuja performance era, sem dúvida, vinda dos territórios do samba: as
escolas, as rodas de terreiro, a antiga praça Onze e a Lapa. Otelo, no entanto, disse
em mais de uma entrevista ter gostado bastante de ter feito o cinema-novo, posto
que este lhe deu a chance de fazer papeis dramáticos. Evidentemente, ele jamais
diminuiria sua magnífica performance de comediante dançarino nas chanchadas,
mas sabia que era preciso, como ator negro, escapar ao clichê e ir mais longe, ou
seja, sabia o significado político de um ator negro protagonizar um papel dramá-
tico, até então exclusividade dos brancos.
A partir dos anos 50 as escolas de samba vão ganhando dimensão de
espetáculo de massa. Na gigantesca av. Presidente Vargas vão armar arquibanca-
168 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA

das, camarotes, tribunas oficiais, em estruturas de ferro, para alguns milhares de


pessoas. Os imensos prédios erguidos em cada um dos lados da avenida formarão
uma improvisada acústica onde ressoará o magnífico coro dos milhares de com-
ponentes de cada escola; os luxuosos carros alegóricos das grandes sociedades do
carnaval da “elite branca” farão também parte deste desfile, e a bateria, já com
mais de uma centena de percurssionistas, garantirá a impressionante potência do
espetáculo, para além de qualquer clichê. Trata-se, no entanto, de um desfile fe-
chado, com entradas vigiadas pela polícia. Aqui, se as comunidades das escolas
– favelas e bairros periféricos – ainda são maioria nos desfiles, as arquibancadas
pagas são para turistas e para os que podem pagar. Começa então um jogo onde
aqueles que antes assistiam o desfile na antiga praça Onze vão tentar diversos
expedientes para escapar à vigilância e ao controle, e assistir o desfile.
Entretanto, se as escolas de samba folclorizam a si mesmas na maneira
como cantam sempre como folclore a presença das raças não brancas na pseudo
democracia racial brasileira, a força do desfile, ele mesmo, é muito mais do que
folclore. A própria maneira como a cidade se transforma no carnaval expressa
uma força que escapa a qualquer tentativa de discipliná-lo. É o que veremos con-
tinuar na segunda metade do século XX adentro, numa história que daria mais um
artigo como este. É o que vimos quando, por exemplo, a partir dos enredos his-
tóricos nacionalistas e folclorizantes “oficiais”, as escolas inventaram os enredos
sobre grandes personalidades e momentos da história de resistência do negro à
escravidão. Assim, do carnaval de fantasias européias, dos negros fantasiados de
Rei e de Rainha, veremos uma estética africana estilizada dominar certos desfiles.
Estética que, em poucos casos, vai além da folclorização para chegar finalmente,
já nos anos 80, a denunciar o racismo e explicitar uma linguagem de luta, e não de
celebração, no aniversário de 100 anos da abolição da escravatura.
Da mesma maneira, o samba não pára de se reinventar em estilos, em
variações de linguagem, em curiosos movimentos de “resgate”, que balançam
entre a potência e o clichê, entre a linha de fuga e a captura. Vai assim do padrão
comercial imposto pelas grandes gravadoras, ao improviso da roda de músicos do
bar da esquina, da ortodoxia do samba de raiz (muitas vezes em casas da elite),
à proximidade com o pop; ou ainda, a reinvenção das velhas disputas de versos
improvisados de partido alto nas batalhas dos rappers. E vai também ajudar a
reinventar, nos anos 90, o carnaval de rua do Rio de Janeiro, que se encontrava
preso ao espetáculo para TV e ao desfile oficial no final dos 80. Veremos então
gigantescos ensaios onde as escolas reocupam as ruas, novos blocos que se impro-
visam pelos bairros, e a interessante ocupação espontânea que a população fez da
Rodrigo Guéron 169

passarela oficial do desfile pago, nas semanas que antecedem o carnaval, fazendo
assim o seu próprio desfile. Tudo isso, evidentemente, ganhando rapidamente as
páginas dos jornais, os folhetos turístico, o novo clichê cartão-postal do ano que
virá.

Referências:

AZEVEDO, Celia M. Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
elites do século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
COUTINHO, Eduardo Granja. Os Cronistas de Momo. Rio de Janeiro, editora UFRJ,
2006.
DELEUZE, Gilles. L`Image-Temps. Paris, Lês Edition de Minuit, 1983.
FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique – Cours au Collège de France.
1978-1979, Paris, Gallimard/Seuil, 2004.
GUÉRON, Rodrigo. Cinema e Clichê, o Niilismo na Imagem. Tese de doutorado apre-
sentada no departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Rio de Janeiro, 2004.
REVEL, Judith. Michel Foucault – Expériences de la pensée. Paris, éd. Bordas,
2005.

Rodrigo Guéron é Professor Adjunto do Instituto de Arte da UERJ. Doutor em Filo-


sofia (Estética e Filosofia da Arte) com a tese “Cinema e Clichê o Niilismo na Imagem”. Mestre
e bacharel em Filosofia pela UFRJ, Cineasta e roteirista de cinema e vídeo. E-mail rgueron@
uol.com.br
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 171-190

Trabalho – operação artística: expulsões68

Cristina Ribas

Partindo do campo das artes visuais e de uma condição investigativa em


relação a esta prática, compartilho com este artigo a elaboração teórico-crítica
de uma pesquisa-militante deslanchada como operação artística (e vice-versa).
Animada pela aproximação com uma literatura estrangeira à área das artes (aná-
lises críticas do trabalho pós-fordista), a “empreitada” busca problematizar uma
tentativa de aproximação via artes visuais entre a prática da arte e uma noção
de “trabalho”69, suposição que tem lugar primeiro em minha produção artística.
O trabalho ao qual me refiro, oscila entre a busca por um trabalho autônomo e o
receio de enquadrar a prática da arte em uma força-trabalho.
No processo de criação autoral, fazer da prática da arte algo como um
trabalho tinha, num primeiro momento, a intenção de garantir à primeira uma
“inserção” no mundo, ou uma participação econômica, visto que geralmente são
as obras de arte que têm valor econômico, e não a ação artística. Tinha, portanto,
o desejo de enquadrar a prática da arte como uma força produtiva garantindo-lhe
retribuições econômicas “justas”. Dois aspectos alteram o estatuto da pesquisa
artística nesta intermediação teórica. As análises críticas do trabalho na era pós-
fordista apresentam então, de forma assustadora duas semelhanças: (1) o modo
como o modelo de trabalho imaterial e a prática da arte têm características pa-
recidas (importância da criação, descontinuidade, renda, capacidade ou desejo
conectivo de grupos e iniciativas sociais); e (2) o modelo estético, “produtivo” da
obra de arte do capitalismo atual.
Assumindo o estado de fragilidade e indeterminação de parte da arte na
atualidade, e não sendo, portanto, uma “arte em geral” o foco deste artigo, parece
que se torna praticamente impossível assimilar a prática da arte como trabalho
constituído. A arte que me interessa fomentar difere de alguns aspectos tradicio-

68 Este texto foi apresentado em formato de palestra na série de colóquios: Cultura, Trabalho,
Natureza na Globalização, organizado pela Universidade Nômade e a Casa de Rui Barbosa no
Rio de Janeiro, em abril de 2008. Retornei ao texto inicial incorporando reflexões teóricas e
experiências desenvolvidas desde então e transformando-o no presente artigo.
69 Para diferenciar o termo “trabalho” relacionado à noção de serviço ou a investigação a partir
das teorias do trabalho do conceito de “obra de arte” usarei neste artigo o termo em itálico quan-
do se referir à criação artística (visto que muitas vezes diz-se “trabalho de arte”) .
172 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

nais ou valores universais, os mesmos que fundam, no passado, o campo de ação


das artes a partir de valores burgueses ou ainda a partir da visualidade. Somado
a isto, a precariedade-profissional da ação artística, quando fora da subsunção
mercantil, contribui ainda mais para a indeterminação da (minha) arte no mundo.
Trata-se hoje de informar, sobre o artista, de um estado de desequilíbrio entre em-
prego e desemprego, e de uma possível expulsão do valor artístico em detrimento
a outras sobrevalorações, ou a um posicionamento.
No pós-fordismo, assim como no modelo anterior, o lucro se dá na ex-
ploração do trabalho, ou seja, das condições de trabalho no corpo do trabalhador.
Contudo, o valor maior que ele captura é a exploração das relações sociais, que
se torna sobremaneira o instrumento de produção de mais valia. No modelo atual,
características de modelos anteriores não desapareceram por completo, mas cons-
tituem a trama complexa do capitalismo. “O modo de produção capitalista é o
conjunto de diversos modos de produção comandados pelo mais dinâmico e pelo
mais desterritorializado.” (Lazzarato e Negri, 2001, p. 59)
No trabalho fordista, a mais valia era obtida na valoração da produtivi-
dade a partir da relação capital x trabalho ou capital x trabalhador. É necessário
salientar que a abertura para as novas condições do trabalho é travada no cerne da
própria luta política (a luta “contra o trabalho”), quando a negação de uma com-
posição técnica força o surgimento de uma condição “livre”, em que os limites do
tempo de produção e o tempo livre passarão a se confundir. (ibidem, p. 26) Neste
sentido, cabe aqui debater a aproximação entre operação artística e o trabalho
autônomo, não nos termos de um controle (disciplinar), organizando uma classe
onde não existia, mas assumir que as condições de produção se assemelham muito
às formas produtivas em curso no campo das artes, com o que pretendo extrair
algumas conclusões potencializantes.
A costura da análise de meus trabalhos de arte via análises do trabalho
imaterial é o ensejo arriscado de pulverizar a discussão no interlúdio de uma apro-
ximação entre um saber artístico e um saber sociológico como possibilidade de
encontrar-me em um território múltiplo, em que as vozes, os discursos e as práti-
cas se atravessam assumindo os campos heterogêneos de onde surgem: território
produtivo de novas condições para as artes e para o sensível (ou a sua “fábrica”).
Focalizada no campo da arte, aponto duas questões “de base” que se en-
trecruzam e que se somam à afirmação da fragilidade da prática artística: dificul-
dade de mensurar um valor econômico para a produção artística (considerando o
artista como um trabalhador), ou dificuldade de medida de um tempo produtivo no
Cristina Ribas 173

contexto do trabalho imaterial; e o problema do valor e da captura sobre o valor


artístico frente aos demais objetos cambiáveis do mundo.
As desmesuras surgem no intercurso da prática da arte e mobilizam a
elaboração crítica. De maneira propositiva, elaboro a equação irresolvível: essas
desmesuras buscam dar à arte o lugar que hoje tudo ocupa, ou seja, dar à arte o
lugar do trabalho. Desavisada, faço então de minha arte uma redenção a proble-
mas “mundanos”, como se estivesse atônita pelo próprio fato do trabalho tomar
conta da vida, da permanência subreptícia de uma produtividade escalonada já do
mesmo tamanho da vida. (Como existir fora desta mensuração?) Para produzir
capital, a produtividade toma conta do corpo (do trabalhador e do artista) em toda
sua dimensão, mesmo que, no contexto da arte, o erro e o acerto, a desistência e a
persistência, sejam a forma de lutar contra o estado de precariedade. O encontro
(entre produção artística e trabalho) e expulsão apresentam-se rápidos demais e,
aparentemente, não tenho tempo de construir uma luta política sem antes expor a
dúvida que deve lhe dar corpo: a precariedade será a liberdade da arte?
O trabalho expulsa o valor artístico? Porque a provocação desta elipse
pode extrair o que há de artístico em uma ação para o sensível. O que isto signi-
fica nos termos de um debate da arte na atualidade? De uma forma, o desejo de
transpassar a arte por trabalho, apreende como trabalho autônomo a sua força,
que deve refletir verdadeiramente uma inquietação sobre a participação social da
arte, e ou, a participação da sociedade nos trabalhos de arte (retirando qualquer
separação entre tais). Assumir esta aproximação é trabalhar diretamente na produ-
ção do valor, na sua dimensão ética, e pode se constituir como uma investigação
sobre as condições de produção em arte.

A pesquisa
Em meu atelier dispus em um papel diversos termos que tentam perfazer
uma relação entre “arte” e “trabalho”: “negar” um em relação ao outro, “camu-
flar” um no outro, “duvidar”, “convergir”, “assumir”. Neste artigo, faço um relato
não linear de alguns trabalhos de arte realizados por mim entre 2004 e 2008, que
são lançados, sobretudo, com base na proposição de um “serviço” e algumas ve-
zes não estão dedicados à produção de objetos materialmente estáveis (esculturas,
instalações, etc. dados à experiência estética visual ou sensorial).70

70 Na década de 90 os artistas Andréa Fraser e Helmut Draxler (artistas americanos) propuse-


ram a arte como serviço como tentativa de “desmaterializar” o objeto de arte e poder incorporar
outras formas de ação. O problema da valoração, para Stewart Home, se transfere da mesma
forma para o serviço em si.
174 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

Com o Grupo Laranjas, em fins de 2001, elaboramos a primeira camufla-


gem da ação artística como serviço. Vestíamos macacões iguais aos de operários
da prefeitura da cidade (a cor laranja geralmente é aquela dos departamentos de
limpeza) para realizar a simples tarefa já premeditada: “desenhar na cidade” co-
lando imensas tiras de papel cor-de-laranja. A ação resumia-se à execução práti-
ca, não representativa (não se tratava de teatro) nem performática (para ser vista
como espetáculo), mas funcional: cumprir a tarefa. A camuflagem da roupa nos
retirava da “especialização” artística, e nos misturava ao repertório de trabalhado-
res urbanos nas madrugadas de uma cidade adormecida.
Em meu processo artístico, ocorre uma alteração profunda na linguagem
e nos meios da arte a partir das disciplinas ou estilos artísticos modernos71, mo-
bilizando a percepção de um circuito das artes e de motivações exteriores a ele.
A formação de um campo da arte, me parece, acontece na medida das próprias
ações artísticas, que, ao mesmo tempo, constantemente a atacam e formalizam.
As formas de integração que passam a constituir o campo das artes em linhas de
pertencimento, consangüinidade, negação, entre outros, vão ocorrer em termos
de crítica e de história, ou seja, nos modos de registro, estudo e sistematização da
produção. Interessa-me observar como as formas preexistentes afetam a prática
atual da arte e agem na diferenciação processual radical das práticas, fluentemen-
te. Percebo, neste sentido, uma esfera comum de agenciamentos, com a qual não
existe exatamente nem um “fora” nem um “dentro” da arte, liberdade que me
cede lugar para assumir que há posicionamentos e sistematizações parciais em um
campo heterogêneo, mesmo campo no qual me localizo propositivamente.
Se, por um lado, muito da arte contemporânea se desdobra na imateriali-
dade do virtual e dos agenciamentos imagéticos (instalações, vídeos, comunica-
ções em tempo real, web arte, etc), o que eu procuro é, na dissimulação da ação
artística como trabalho formal (evidentemente reproduzindo vários estereótipos)
aproximar-me dos agenciamentos corporais que consideram fluxos e realidades
pré-existentes, ou seja, que elaboram obras a partir de singularidades ou de pro-
cessos de individuação colocados em termos coletivos e não individuais. Obser-
var a cidade urbanizada e capitalizada e agir nos seus fluxos torna-se essencial.
Nas propostas de intervenção urbana e nas proposições relacionais pela
criação de situações interpessoais, as “experiências sensíveis” chamadas “opera-
ções artísticas” são uma ação desmesurada no mundo (tudo é ficção). A ação artís-
tica é formada por linhas de força intrínsecas: invenções, descobertas e partilhas.

71 Jacques Rancière denomina “regime estético das artes” referindo-se aos valores e caracte-
rísticas estilísticas típicas da arte pré-moderna e moderna.
Cristina Ribas 175

Por isto a realização destas “operações” é indubitavelmente uma investigação


epistemológica do artístico na atualidade.
A noção de operação se aproxima da própria ação. (Do dicionário: “ope-
rar: 6. entrar em função ou atividade, (...) 9. realizar-se.) Paolo Virno aponta uma
fusão entre Ação e Trabalho (a partir de suas bases terminológicas, a Política
como característica da primeira), que apresenta outra possibilidade conectiva ca-
paz de elaborar novas linhas de relação também em relação à arte.

O produzir tomou para si muitas prerrogativas da Ação (política). Na época


pós-fordista é o Trabalho que adquire feições da Ação: imprevisibilidade, ca-
pacidade de começar tudo de novo, performances linguísticas, habilidade de
industriar-se entre possibilidades alternativas (Virno, 2007, p. 96).

As modificações processuais nos métodos artísticos, desmaterializando a


obra e apostando em processos e experiências sensórias, passam a atuar em agen-
ciamento de redes intersubjetivas, formando novas relações sociais e culturais. No
campo crítico das artes os teóricos Hal Foster e Claire Bishop problematizam a
atuação dos artistas nos moldes de um antropólogo-não-especializado. Foster, em
“O artista como etnógrafo”, afirma que a antropologia seria tomada como a ciên-
cia da alteridade, porém usada de forma equivocada muitas vezes. Bishop, por sua
vez, observa a proposição da dinâmica do conflito entre porções sociais distintas
como intrínseca a alguns projetos artísticos que tem interface social e debatem a
homogeneidade das proposições participativas em arte contemporânea.
Definir um “trabalho de arte” ou uma “obra de arte” é uma empreitada
sempre exaustiva. Para encontrar o lugar da equação operação artística e trabalho,
talvez não seja necessário definir o que é a arte, mas mergulhar no estado investi-
gativo aportando em elipses anteriores (a supressão, a negação do trabalho, a gre-
ve); observar de que forma uma colabora com a outra e de que forma os elementos
agenciam territórios significantes um para o outro.
A obra de arte é colocada por Rancière em uma relação dinâmica de
resistência: para a obra existir ela deve resistir à determinação de um conceito e
resistir à atração dos bens consumíveis, habitando uma certa indiscernibilidade
significada pela singularidade. A experiência sensível da arte precisa se consti-
tuir como experiência sensível específica desconectada ou subtraída das formas
“habituais” de experiência sensível (Rancière, 2006, p. 5). Neste sentido, alguma
supressão da própria idéia de arte deve existir: ou realiza-se uma experiência
total como experiência sensível, ou não se realiza a arte (realiza-se outra coisa,
a percepção da arte, operação cognitiva). A experiência sensível, aquela que se
176 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

constitui enquanto arte parece ser então o afeto puro, um “bloco de sensação” que
não consegue ser atravessado por outra experiência.

Divisão do trabalho
“Procuro Ofereço” é um “trabalho de arte” que começou a ser realizado
em 2003 a partir de um cartaz encontrado em postes nas ruas de Belo Horizonte.
Chamou-me a atenção que um mesmo profissional acumulasse tantos serviços,
condição explícita pelo enunciado “BOMBEIRO GAZISTA ELETRICISTA”.
Diferente de uma divisão do trabalho, o cartaz apresentava uma sobreposição de
capacidades (e porque não de saberes), um sintoma que expunha a relação de ser-
viços de outra forma. Na divisão do trabalho uma alienação conserva cada um em
seu lugar, os trabalhadores implicados em um mesmo processo produtivo, que são
relacionados por um poder de associação que os aparta e não permite constituir
uma cooperação. Existe na divisão uma subjugação a uma estrutura majoritária
que valora e controla as partes (a montagem na fábrica, por exemplo).
Então, no espaço público da cidade, sobre o poste, expõe-se uma saída
econômica desesperada, calcada na acumulação de serviços delatando a condi-
ção múltipla e criativa de um mesmo homem que poderia estar lá, num processo
produtivo controlado. Aquele que se faz desdobrado em tantos outros torna-se,
contudo, uma nova forma produtiva. Não se pode dizer se está por fora das tro-
cas econômicas, mas de fato atinge o manancial economicamente mais denso em
pontos de intersecção frágeis, e não estáveis. Impossível garantir sua atuação em
relação a uma carreira, a uma promoção profissional, por exemplo.
A semelhança entre este homem múltiplo e a figura do artista muito me
tocou. Os artistas, à sua forma, elaboram uma capacidade similar de conciliar em
um mesmo corpo uma grande quantidade de capacidades produtivas. No primei-
ro ensejo da fusão operação artística-trabalho me interessava investigar também
qual a medida do esforço e qual a medida do cansaço cuja fadiga corporal sinali-
zaria uma “jornada”. Uma vez que o tempo criativo é muito difícil de mensurar,
pode-se acabar trabalhando o “tempo todo”?
Na tentativa de mapear e entrevistar artistas e seus pares a partir de seus
desejos, condições de produção, formação e acúmulo de capacidades, propus
cadastrar profissionais formando uma espécie de “banca de serviços” que fosse
duplamente um banco de currículos (recursos humanos) e uma agência de em-
pregos. Ali surge a primeira aproximação entre aqueles serviços enquadrados em
produções culturais e os serviços oferecidos nas ruas. “ARTISTA, PROFESSOR,
FIGURANTE”; “FILÓSOFO, BOMBEIRO, ELETRICISTA”. No cartaz eu co-
Cristina Ribas 177

locara o endereço de minha casa, e pouco a pouco um ou outro “bombeiro” se


aproximava (com estranheza) para preencher a “ficha de cadastro”. Eu tentava
explicar a eles a proposição, cuja aproximação parecia absurda já que o artista,
para aqueles, parecia impossível de ser pensado à maneira do trabalhador formal
(talvez o serviço que mais se aproximasse fosse aquele de “CARTAZISTA”). No
entanto, abandonei o projeto por um tempo ao perceber a incapacidade de lidar com
o fato de que os profissionais-múltiplos que passaram a me procurar para oferecer
seus serviços traziam consigo uma realidade cheia de expectativas e necessidades,
solicitando de mim uma co-responsabilidade que não consegui abraçar: ao lidar
com a expectativa e a realidade alheia, a agência deveria realmente funcionar.72

Procuro Ofereço Cartaz da banca de serviços Rio de Janeiro/Belo Horizonte, 2003/2007

Três anos depois retomo e desloco a banca de serviços para o lugar das
exposições de arte, dos festivais e das mostras coletivas. Retomo aquela primeira
elipse em que a arte desaparecia ocultada como serviço propondo a discussão
das questões ao redor da banca. O intuito era fomentar uma troca intensa entre
os participantes organizando encontros e chamando a todos. Depois incorporo a

72 Sem “tempo” aqui, apenas aponto mais algumas dúvidas: como isto funcionaria na dinâ-
mica autoral, em que o artista assume a concepção de um projeto? Como este processo seria
encadeado no corpo de produção artístico?
178 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

dificuldade de lidar com processos alheios de vida em temporalidades distintas


deixando ao ritmo do tempo comum a criação de ações coletivas a partir daquele
cadastro (que atualmente conta com 100 pessoas). Além das opções da ficha de
cadastro, três perguntas mais subjetivas foram inseridas investigando a natureza
do trabalho e a relação com o tempo: (1) como é o tempo no seu trabalho?; (2)
quanto tempo você precisa para trabalhar? (3) o que você faz quando trabalha?
Isto também me interessava.
Queria provocar a mesma estranheza do “bombeiro”, ao ser colocado
lado a lado com o artista, também nos outros “servidores” em potencial, possivel-
mente ainda presos à figura do artista, filósofo, cineasta, ou bailarino (...), visando
o questionamento da natureza da ação artística, tornando-a antes ordinária tal
como demais processos produtivos. O que poderia emergir daí é que os serviços,
assim como a prática da arte, não têm um valor pré-formado e sua valoração de-
corre de relações sociais presentes.73 A valoração é problematizada por Mikhail
Bakhtin, que analisa a valoração social e a situa no centro da teoria da enunciação,
expondo uma dinâmica ativo-passiva: a valoração e os valores remetem a formas
de vida específicas. Expor, como que desnudando a valoração artística retirando-a
do senso comum, impulsiona a interferência de uma força-signo, ou seja, se há um
signo gramaticalizado, quando ele é desestabilizado, apresenta-se a potencialida-
de das forças: “a relação signo-significado (...) cria para destruir-se e para criar-se
de novo na forma nova, nas condições que representam um novo ato de palavra”
(Bakhtin, apud Lazzarato, 1997, p. 3).

Desaparecimento do artista
Uma elipse se apresenta hoje: Negri e Lazzarato apontam para a hiper-
valorização do intelecto criador, manifesta como “hegemonia do trabalho intelec-
tual” (Lazzarato e Negri, 2001); e Virno analisa a dimensão criativa do “general
intellect” nos termos de uma virtuose. O que acontece com a arte em uma socie-

73 Considero importante relacionar esta afirmação à proposição de Felix Guattari em “O novo


paradigma estético”, que detecta três agenciamentos simultâneos, dos quais o terceiro “Agen-
ciamento processual das subjetividades” refere-se resumidamente a heterogênese dos territórios
existenciais; multiplicação e particularização dos focos de consistência auto-poiética; e confere
uma posição chave de transversalidade ao “paradigma estético” em que a criatividade social é
chamada a expropriar os antigos enquadramentos ideológicos rígidos. Segundo ele a potência
estética do sentir (e a potência de pensar filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir
politicamente) talvez esteja em vias de ocupar uma posição privilegiada no seio dos “Agencia-
mentos coletivos de enunciação” (Guattari, 1992, p. 130).
Cristina Ribas 179

dade onde todos se tornam criadores? A idéia de profanar a arte no mundo, pela
proposição do artista como um trabalhador, pode ser vista, contudo, de forma
negativa. Poderia forçar uma desaparição, na sociedade, das experiências sen-
síveis, tal como numa dominação totalitária de governo que sobre-significaria
uniformemente a religiosidade, a economia, a cultura. Mas, na ficção da produção
artística, a elipse da arte como trabalho no âmbito de um discurso e, portanto, o
desfecho do medo de seu desaparecimento pode ser travado da mesma forma que,
se tudo é trabalho, também nada o é.
O desejo de ver o artista como um profissional (trabalho autônomo) rela-
cionado aos demais em uma cadeia de colaboração refere-se seguramente à pro-
cura de um valor social para as artes, de um valor de uso por fora da valoração
econômica, que pode, contudo, passar pelo exercício desta valoração para tentar
encontrar este valor (e/ou expulsar-se dele).
Na desconfiança da identificação do artista com uma “profissão”, pode-
mos propor novas configurações subjetivas (e coletivas) para suas atribuições.
Aquela indagação: “o que você (artista) faz quando trabalha?” é o centro da dú-
vida da natureza constituinte da arte. É também investigação da natureza do tra-
balho. Investigar requer destituir e instituir. Requer considerar a singularidade
das formas de ação sem determinar o que cabe ao artista como ator social, ao
passo que a desidentificação da experiência artística em relação aos demais agen-
ciamentos mundanos é urgente – a captura como um exemplo indelével – outro
“equilíbrio precário”.74
No campo da arte, idealiza-se que o que faz um artista é a criação de um
objeto inédito dado à experiência sensível e, portanto, dos sentidos; um objeto
criado para fora de si. A ação artística pode ocorrer por meio de três elementos da
ação virtuosa apontados por Virno: a atividade sem obra (a execução virtuosística
não resulta em nada material); o exercício de uma faculdade singular; a relação
com uma audiência. Porém, a leitura que Virno faz da imagem do artista, do pia-
nista, do bailarino, não “resolve” o problema da arte no campo da arte (e de um
trabalho).
A semelhança entre a produtividade do trabalho imaterial e a virtuose
colocada por Virno é o que ele chama de “eclipse”: “o virtuoso trabalha (ou me-
lhor, é trabalhador par excellence), não contra a sua vontade, mas exatamente
porque a sua atividade se aproxima das práxis política.” (Virno, 2007, p. 103)

74 “Equilíbrio precário” é uma expressão usada por Virno em referência ao bailarino e ao pia-
nista: podem tornar-se exemplos de trabalho assalariado que não é, ao mesmo tempo, trabalho
produtivo, e aludem à ação política (Virno, 2007, p. 99).
180 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

Outro conceito associado é a “intelectualidade de massa”, ou “general intellect”


(conceito marxiano), que não posso deixar de associar às características criativas,
comunicativas de uma sociedade em que cada vez mais todos são “criadores”. A
“aparência do intelecto” (Virno), que se torna o pré-requisito técnico do trabalho,
gera algo desmesurado, um excedente impossível de ser controlado, impossível
de ser “comandado” (Negri, 2003, p. 98). Ele (o desmesurado) não pode ser asso-
ciado diretamente à “arte’, deve antes ser mantido em estado “precário”, visto que
ser artista não pode ser naturalizado pela afirmação ser político.

Profissionalização
Entre 2003 e 2006 participei de dois programas de bolsa para artista.
Um do Museu de Arte da Pampulha, com a qual tinha que morar e produzir em
Belo Horizonte (Minas Gerais) e outra fornecida por uma instituição do estado de
Pernambuco (Fundarpe). Pelo fato de receber mensalmente durante um ano e ser
acompanhada por críticos e historiadores de arte, tendo “colegas de trabalho” (de
bolsa), a experiência se caracterizou para mim como “profissionalização” ou “em-
prego”. Nestas situações a execução artística (ou constituição subjetiva no mun-
do) como trabalho torna-se “realização de si” (Lazzarato e Negri, 2001, p. 73).
Em Recife, a segunda experiência, o possível enquadramento “servidora
pública” me motivou a mapear situações específicas e ordinárias nas cidades de
Recife e Olinda e me afetar por acontecimentos, fatos e ou materialidades, incor-
porando a experiência a meu projeto de exposição. Desejava que meu “serviço”
fosse tomado como público, mesmo considerando os relatos pessoais de vidas
alheias a mim e experiências de trabalho e de fuga dele. Ao final de doze meses de
trabalho (bolsa), eu estava novamente “desempregada”.
Experiências em que instituições fomentem o processo criativo e não
exatamente a produção de obras de arte determinadas são bastante raras. O au-
mento das bolsas de estímulo à produção acontece recentemente em detrimento
das Leis de Incentivo gerenciados pelo Estado. Neste sentido, cabe fazer um breve
mapeamento dos possíveis profissionais para o artista hoje: a Universidade ou o
ensino, o Mercado, os projetos via Lei de incentivo, e os demais fomentos públi-
cos ou privados - que devem sempre ser conciliados com a árdua e instável prática
da arte. Seguramente, o artista se torna neste contexto tanto mais um “produtor”,
porque constrói juntamente com os sistemas econômicos aliados as suas formas
de participação e integração a isto; ou, melhor dizendo – como trabalhador autô-
nomo, deve dar conta das possibilidades associativas de seus saberes em redes de
colaboração (ou “empresas”).
Cristina Ribas 181

Há uma relativa liberdade dada aos artistas ao serem fomentados via bol-
sa, diferente dos demais programas de fomento para produção cultural em geral.
Por outro lado, editais públicos de fomento à cultura em geral são organizados por
gestores públicos, e requisitam aplicabilidade para um contexto dado, justificati-
vas, objetivos, contrapartida social, etc., projetos com os quais se deve vislumbrar
“resultados” para comunidades, públicos específicos ou mesmo para a instituição
de fomento.

Tempo de trabalho
O tempo de trabalho não é mais, segundo Lazzarato e Negri, a grande
fonte de riqueza, quando antes era a mais valia obtida em trabalho de forma ime-
diata. Trabalha-se menos (Lazzarato e Negri, 2001, p. 28). O artista, por sua vez,
trabalha tão livre que parece livre do tempo; mas, em contraste, esse “tão livre”
é a impregnação de todas as suas ações possivelmente produtivas, impregnação
naturalizada naquela “hegemonia do trabalho” contemporânea.
As perguntas presentes no questionário de “Procuro Ofereço”: “quanto
tempo você precisa para trabalhar?”, “como é o tempo no seu trabalho?” surgi-
ram neste sentido, buscando ampliar a noção de um tempo produtivo medido na
capacidade de um corpo (a medida do cansaço: o trabalhador da construção civil
como exemplo, cuja produtividade fica exposta na equação capacidade do corpo
x construção de paredes, vigas, estruturas habitáveis...), e tentando entender as
infinitas formas subjetivas de agir com o tempo.
Na prática da arte, o incremento da Ação como tendo efetuação Política
pode produzir uma ética pautada não apenas pelas preocupações sobre a sustenta-
bilidade pessoal de uma prática no estriado do mundo capitalista, mas uma ética
que possa conectar outras formas de vida, outros tempos de trabalho. Se a revolu-
ção produz o tempo,75 como escreve Giuseppe Cocco, ele é sobretudo um tempo
que não se fecha. O tempo de produção da arte mantém o estado de revolução,
para poder forjar um tempo próprio capaz de conter aquela desmesura de tempo:
desejo coletivo do “tempo do trabalho que se liberta, indeterminado e aberto (...)
tempo revolucionário que constitui o futuro porque produz nova riqueza e nova
humanidade” (Cocco, 2001, p. 15). A pergunta individual deve então tomar pro-
porções coletivas: quanto tempo precisamos para trabalhar?

75 O autor refere-se à Revolução Francesa e às massas, responsáveis por produzir o “intem-


pestivo”.
182 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

Subjetividade criadora
A produtividade relacionada à subjetividade é uma característica do tra-
balho imaterial. Artistas fazem de suas formas de vida formas artísticas. E o modo
de produção e recepção da mercadoria torna-se um “modelo estético”. A subjetivi-
dade e a audiência significam este modelo. Reside aí algum tipo de instituição da
criação. Será que podemos pensar a criação como afecção pura e o artista, quando
cria, como alguém submerso em uma experiência sensível? Abro um parênteses
para inserir um questionamento para mim inédito: parece que, no momento da ex-
posição, da ação virtuosa – aquela ação que Virno qualifica como sem “obra” – o
artista, de certa forma, captura em si mesmo aquilo que se torna a obra.

Greve anunciada pelos bancários Centro do Rio de Janeiro, 2008

Na atualidade, o processo pelo qual o social se torna econômico ainda


não foi estudado suficientemente, e ele é eminentemente ético (Lazzarato e Negri,
op. cit., p. 47). O que interessa a diversos autores é poder detectar quando algo
socialmente criado se converte em mercadoria, e passa a circular por meio deste
valor. Em tempos de trabalho pós-fordista, os autores não se cansam de afirmar: é
a subjetividade que é trazida ao modelo da produtividade. Assim, a potencialidade
de comercialização de um produto se torna a possibilidade de mudança do mesmo
Cristina Ribas 183

em função da diversidade de “perfis” ou personalizações, uma vez que a produção


de subjetividade gera demanda, lá, no sujeito, daquela forma de vida. A produção
do novo e o desejo de consumo deste mesmo novo são, praticamente, simultâneas.
Segundo Christian Marazzi, “a subsunção da comunidade na lógica capitalista é,
portanto, antes de tudo, a subsunção dos elementos lingüísticos, políticos, rela-
cionais e sexuais que a definem”. Neste sentido, aponta para a linguagem e para a
comunicação, contaminando, pode-se dizer as esferas criativas que constituem os
interstícios da cultura (Marazzi, apud Lazzarato e Negri, op. cit., p. 97)
Não existe, no entanto, um controle da produção criativa. Na lógica ca-
pitalista, quanto mais ela se desenvolver, mais se diversificam os mercados e au-
mentam-se as ramas de consumo. Assim sendo, nega-se que a economia controle
os sentidos e afirma-se que, na realidade, a economia pode se apropriar das formas
e dos produtos da cooperação, normatizando-os e padronizando-os.
Tais afirmações reconstituem a forma de ver um mercado da arte, por
exemplo. Se anteriormente a história e a teoria da arte eram normatizadoras, des-
crevendo e avaliando valores pré-formados que validavam algo enquanto arte e
não-arte, hoje a diversidade de formas de fazer arte e a diversidade dos espaços
em que ela acontece potencializam a formação de mercados. Concomitante a isto,
a produção textual, seja ela crítica, narrativa, descritiva ou ainda com ensejo his-
tórico, torna-se ela mesma mais um elemento de promoção da circulação daquele
bem.76
O tempo livre de criação/trabalho é rapidamente integrado ao novo sis-
tema de produção, e torna-se o diferencial no que caracteriza o capitalismo. É a
capacidade criativa do trabalhador que emerge, uma “intelectualidade” e uma ca-
pacidade comunicativa que o qualificam. Essas capacidades são, todavia, ineren-
tes e constituem as relações intersubjetivas, cuja formalização autônoma intensifi-
cada força a capacidade integrativa dos modos do capitalismo de absorver para si,
como força produtiva, este “trabalho vivo”. Os teóricos do trabalho argumentam
que o trabalho é agora uma “atividade abstrata ligada à subjetividade” (Lazzarato
e Negri, op. cit., p. 26); ele mesmo organiza seu trabalho e suas relações com a
empresa.
Em relação a isto, Lazzarato e Negri afirmam que, no processo de socia-
lização/subsunção no econômico da atividade intelectual, o produto “ideológico”
tende a assumir uma forma de mercadoria. Sublinham que “a subsunção deste

76 A imprensa e demais mecanismos agem da mesma forma: reificam o objeto artístico, feti-
chizando-o, agregando um valor cultural capaz de fomentar a circulação então econômica deste
produto.
184 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

processo sob a lógica capitalista e a transformação de seus produtos em merca-


dorias não extinguem a especificidade da produção estética” (op. cit., p. 49); ou
seja, aquilo que poderia ser uma sobreposição de valores (do econômico sobre o
artístico) não parece existir nestes termos para os autores. Mantém-se, de qual-
quer forma, uma “relação de criação” entre o autor e o público, mantém-se um
caminho livre de experiência e fruição tal que o produto econômico não consiga
significar. Contudo, a experiência estética, aquela experiência sensível, parece ser
mais da ordem de um atravessamento (à forma dos agenciamentos de Guattari).
Não me parece tratar-se de “subjetividade nua”, mas da dupla dimensão de uma
realização/supressão interpelada pelo significante econômico, que modifica a for-
ma da emergência do estético na sociedade, ou a sua “necessidade”.

Greve na arte
A aproximação entre arte e trabalho não é inédita no circuito de produção
artístico. A luta travada pelo proletariado tem sido há muito o (re)começo do de-
bate sobre a condição do artista. Cronologicamente, aponto o posicionamento de
Guy Debord, Raoul Vaneigem e dos Situacionistas contra o trabalho e a afirmação
de uma supressão para que a arte se realizasse.77 Nos anos 70 e 80, os grupos Art
& Language (de 1968), Art Workers’Coalition (atuante entre 69 e meados dos 70)
e, posteriormente, os Neoístas (formado em fins de 79, atuando até a década de
90), problematizaram a relação entre arte e trabalho em termos de uma greve (ma-
nifestos organizados por Stewart Home). Mais recentemente, a greve é declarada
também por Fulvia Carnevale e Alejandra Riera em 2004-2005 em Barcelona e
Madrid (“Travail en greve”)78.
No início dos anos 90 declarou-se uma greve de artistas. No entanto, a
impossibilidade da arte ser uma greve, já que não é trabalho assalariado, é respon-

77 Os autores se aproximaram do grupo Socialismo ou Barbárie, promotores de uma revisão


do marxismo, na França dos anos 50.
78 “Trabalho em greve” foi um trabalho de arte realizado por Alejandra Riera e Fulvia Car-
nevale, e apresentado na Fundação Tapièz de Barcelona, em 2004. Elas não deixam de afirmar
o artista como um trabalhador ao declararem a “greve”. Propõem a dessubjetivação do artista
e a anunciação de um “estado de greve” como possibilidades últimas de diálogo com o me-
canismo de circulação de obras de arte. A greve, contudo, ocupa o lugar da exposição – lugar
que reserva-lhe o espetáculo, pode-se dizer. Criando uma estrutura “não sedutora”, as artistas
fazem uma instalação em estado de montagem constante (o artista é ao mesmo tempo “operário
e patrão”) para expor vídeos com entrevistas realizadas por cerca de dez anos com o público,
artistas e demais profissionais do campo sobre o “problema da irrealizibilidade da obra de arte
contemporânea”.
Cristina Ribas 185

dida pelos próprios manifestantes: a arte é em si um estado de greve. O debate co-


meçara com a discussão do papel social e político da arte e a relação da greve com
a questão das classes. Chamavam-se Comitê de Ação da Greve da Arte (Art Strike
Action Comitee)79. Tratava-se de interromper a realização, distribuição, venda,
exibição ou discussão de trabalhos culturais pelo período de três anos, iniciado
em 1o de janeiro de 1990. A força da ação, mesmo que não tenha atingido grande
número de artistas, conseguiu, segundo Home, demonstrar a possibilidade de de-
safiar a hierarquia socialmente imposta das artes que, a meu ver, refere-se direta-
mente a um valor social para o que se conhece e se vivencia à forma de “arte”.
“A greve da arte não diz respeito à espiritualidade inerente ao processo
de criar arte” (Home, 2004, p. 59); a greve da arte é antes um posicionamento,
uma barricada frente à captura do vivo e, sem dúvida, uma “forma de estimular o
debate crítico em torno do conceito de arte” (ibidem, p. 16). Interessa, sobretudo,
manter um estado aberto de questionamento e destruir o mercado. O grupo Art &
Language escreve, em 1976:

desde há muito tempo os artistas são por definição membros de uma classe não
trabalhadora.80. Desde que existe o proletariado, os artistas não fazem parte dis-
to. À medida que a identidade histórica do proletariado se desenvolveu, ao con-
trário, a orientação a uma classe artística se atenuou (Art & Language, 2000,
p. 352).

Não obstante, os artistas do grupo não querem reforçar a idéia de que


os artistas são “sem-classe”, “não-aliados” ou “seres não-ideológicos”, que se-
ria uma postura de derrotismo. Qual seria então a proposta ao aliar os artistas à
classe trabalhadora? Requisitar a potência de apropriação da produção e de seus
sentidos?
A greve, dado que é temporária, sempre deveria permitir o retorno – o fim
da greve. Um dia talvez as condições melhorem... Mas, e o tempo, aquele tempo
da revolução sempre a ser refundado? Disseram-me há pouco que greve eram as
pedras na frente das fábricas. Procurei nos dicionários e encontrei: “greve: praia
ou substância arenosa”, e no Larousse: “jambière d´armure”. Enfim, ir à praia
poderia ser um tipo de greve de artistas. Mas, como saber, se não há enunciado

79 Faziam parte Stewart Home, Mark Pawson, James Mannox e outros, que formariam o braço
inglês do movimento. Segundo Mannox apenas Home seguido de Tony Lowes e John Berndt
realmente entraram em greve.
80 Grifo meu.
186 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

qualquer que posiciona aquela ação entre as demais do mundo? Um enunciado


revolucionário deve estar sempre legível num corpo?

Posicionamento
“Intermittents du spetacle” é uma organização política de trabalhadores
franceses do espetáculo organizada na forma de “coordenação” (Lazzarato, 2006,
p. 222), uma organização descentralizada e disforme. A organização surge para
defender os produtores do espetáculo nas relações trabalhistas com o estado e com
o mercado. Seu estado de greve anuncia: “não atuamos mais”. Segundo Lazzarato,
a anunciação faz ventilar a relação que eles mantêm com as práticas da “sociedade
de controle” (Foucault), ato que não se define em submissão ou revolta apenas. Os
intermitentes “vivem e trabalham no quadro da cooperação entre cérebros e suas
modalidades de controle”, e o poder da indústria que os emprega é um “poder de
captura da cooperação entre cérebros”.
O posicionamento é interessante na medida em que trabalhadores-do-
campo-da-arte (artistas e seus pares), geralmente lamentam a incapacidade dos ar-
tistas de constituírem uma classe outra. O que se apreende na atualidade, também
com a contribuição das teorias filosóficas pós-estruturalistas, são novas formas de
cooperação que não precisam ser colocadas na forma massiva da classe, mas sim
na forma da multiplicidade. Ou seja, nas formas coletivas destes agenciamentos.

Se a desestruturação do intolerável deve inventar suas próprias modalidades


de ação, a transformação das maneiras de sentir que o acontecimento implica
nada mais é do que a condição de abertura a um outro processo ‘problemático’
de criação e de atualização que diz respeito à multiplicidade (Lazzarato, 2006,
p. 222).

Expulsar-se
Repentinamente observei-me como uma voluntária no campo da arte:
ali eu não estava recebendo o que poderia ser de direito. Se a instituição que é
designada a fomentar e difundir a produção artística não o faz, porque seria eu,
trabalhadora-autônoma a responsável por suprir as faltas da primeira, para a qual
fui convidada a participar, como artista? Outra elipse se formara: “voluntariar-se é
ser (a)político?”. O voluntariado, enquanto conceito de um trabalho não-remune-
rado, seria alguma desafirmação da arte como trabalho? Ou seria seu abandono?
O abandono da luta da arte? (É possível operar este abandono?).
Cristina Ribas 187

Se a condição intermitente do trabalhador em arte é a que emerge como


imutável, parece-me que a afirmação da liberdade do artista coloca-se entre o
desemprego e o emprego, (des)equilíbrio controlado por nada além dele mesmo,
ao vincular-se ou desvincular-se de iniciativas mais ou menos institucionais, pro-
fissionais, mercadológicas. Trata-se de assumir as contrariedades de um processo
sempre aberto, aberto como luta política que pode vir-a-ser, que nunca é total, tem
alianças de intensidades de distintas.
Passei, em outro momento, a incorporar a criação artística no “tem-
po livre”; melhor, no tempo de sobra da realização de um serviço remunerado:
desempregada da arte, durante um ano, recolho no pequeno trecho da Avenida
Presidente Vargas às terças e quintas feiras pela manhã, no percurso para o meu
trabalho (outro), folhetinhos de empréstimo de dinheiro. Desta forma, me conec-
tava ao tempo dos trabalhadores informais (seus gestos, sua pressa, sua mudez), e
“libertava” as mulheres (e não os homens) pelo fato de que recolhia apenas delas
os folhetos.

Oriovaivirarmar, Ação na cidades do Rio de Janeiro e Niterói 2007/2008


(Fotografia: Cristina Ribas)

Quase dois anos depois, realizo uma experiência de desmesura, “Dois


mares”, a partir de duas premissas: (1) objetificar condições de um trabalho deter-
minado, dando características, as mais materiais possíveis, para um procedimento
que pode ser quantificado; (2) objetificar condições de um trabalho determinado,
compreendendo as características imateriais que o constituem e, com a efetuação
da materialidade transmissível (obra de arte), produzir o excedente (incomensu-
rável).
Desta vez, faço das condições (não justas) de produção algo que pode ser
medido pelo mesmo valor ordinário daquela ação que gera a minha: a quantida-
de de vezes que volto ao centro do Rio de Janeiro para coletar folhetos (depois
levando-os a Niterói e lá distribuindo-os e trocando-os com os mesmos trabalha-
dores informais) é medida pela hora trabalho que será paga a mim, como artista,
188 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

pela instituição que me convidou. Então, R$ 290,00 traduzem-se em cerca de dez


percursos entre as cidades, com duração de aproximadamente três horas.
Procuro não gerar uma mais valia sobre o valor de trabalho outro (meus
colegas de trabalho tornam-se os trabalhadores informais) e o valor artístico da
ação é entregue à desmesura, à potência plasticamente invisível, mas forçada,
na medida do corpo, do contato e da troca com aquelas pessoas. Incerta sobre
tratar-se de gerar ou fomentar (não saberia dizer se é um recuperar) um potencial
político do trabalho autônomo, percebo uma tensão irresolvível. Há valor no tra-
balho que não se mede por sua eficácia enquanto força de trabalho, mas porque se
cria na medida enquanto abertura de campo de forças no mundo. Importa menos
a contagem numérica e mais a ação neste ambiente. Importa mais o poder de in-
venção, cuja tensão entre excesso e ilimitado é o lugar no qual as “monstruosas
características da carne” e o “antipoder” assumem uma relevância imensa (Negri,
2003, p. 136). Contra esse sistema, o poder da invenção (ou melhor, o antipoder)
cria, a partir da carne, “corpos comuns”. Poder não apenas dos filósofos ou dos
artistas, mas poder de invenção como condição geral e comum. Ao fazer de meu
trabalho de arte a reflexão potente que me dá lugar no mundo (produção de si, au-
topoiese ou realização de si), resta-me elaborar a integração daquele que me cede
o folheto na rua movimentada do centro da cidade e a pergunta “de que forma a
ação modifica a sua percepção, de que forma interfere nas formas cooperativas
com as quais ele se integra”?
A suposição teórica que emerge – o artístico ser expulso ao ser denomi-
nado trabalho – pode ser pensada em termos de supressão da arte, como escrevem
Debord e Vaneigem. O desaparecimento da arte, a realização plena da arte na
sociedade, só poderia acontecer na medida de uma supressão, antípoda do vir a
ser espetáculo, que seria um condicionamento e uma impotência. Assim, de nada
adianta dizer aos trabalhadores informais que eles estão sendo integrados a um
trabalho de arte, posição que poderia dar um centro à minha ação. Preciso, antes,
viver na medida do meu corpo a condição de trabalho deles e, de alguma maneira,
informá-los de sua condição de trabalho. Observar-nos em um espaço comum,
aquele que apaga os muros onde antes dizia-se “nunca trabalhe”.
Paolo Virno, ao propor uma República, dispensa o poder governamen-
tal: se o intelecto em geral é uma capacidade que é elevada ao nível de recurso
no capitalismo contemporâneo, ele inverte a subsunção e propõe que o intelecto
seja a matriz de uma República não-estatal. De que se trata esta afirmação? Vir-
no precisa encontrar, assim como nós precisamos, uma outra forma estável que
não seja apenas um “interlúdio tumultuoso”, mas que seja capaz de dar lugar à
Cristina Ribas 189

singularidade em um mundo de valores próprios e não sobre-determinados (nem


controlados). O intelecto puro, tornado comum e público, é pobre, segundo Virno,
se for desconectado de uma experiência comum (2007, p. 76). Isto mostra que o
pensamento, ou a atividade da mente, não é como se pensou por centenas de anos,
solitário e desconectado da vida pública. Ele é a própria esfera pública, potência
que elabora a cooperação, uma substância que não se pode extrapolar nem modifi-
car, nem delegar nem representar (ibidem, p. 113). Existir – que pode ser formula-
do como “existo porque luto” – e existir enquanto artista, parece ser a proposição
e a experiência desta esfera pública na desmesura entre os corpos, na força que
se aplica entre uns e outros para que se encontrem, no acoplamento e ruptura das
gramaticalizações. Então, expulsar a arte de toda relação econômica não seria
uma solução, mas sim romper de dentro o trabalho, e, diluindo-o, desnomeá-lo.
Desapego e protesto.

Referências

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‘general intellect’ ”. Em: Brumaria 7. Máquinas, trabajo imaterial (Revista). http://
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190 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES

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LAZZARATO, Maurizio & NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e
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NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
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VIRNO, Paolo. Cuando el verbo se hace carne: lenguaje y naturaleza humana. Bue-
nos Aires: Cactus: Tinta Limón, 2004.
______. Virtuosismo e revolução. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008.
(prova de impressão)

Cristina Ribas é Mestre em Artes Visuais no PPGArtes, IA, UERJ, Rio de Janeiro.
Desenvolve junto com A Arquivista a pesquisa militante Arquivo de emergência: documenta-
ção de eventos de ruptura. Faz parte do Grupo Laranjas (desde 2001, coletivo In situ).
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 191-200

Cidades, cegueira e hospitalidade

Márcia de N.S. Ferran

A visão é pouco discutida enquanto meio de controle, gestão da socie-


dade e freio às pulsões mais anímicas do ser humano. O ápice deste fenômeno
é imaginado no romance Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago. No livro
transformado em filme, o escritor, através de uma parábola, leva suas personagens
a uma situação limite (borderline), onde ter visão significa guiar, decidir, julgar,
mas também ter o triste privilégio de assistir ao colapso da civilidade. O colapso
ético e a calamidade urbana vêm em par.
Aubervilliers é uma cidade-subúrbio no norte de Paris, repleta de con-
juntos habitacionais e vestígios de chaminés que, em 2005, atraiu um pouco mais
de estigma nas manchetes mundiais sobre os episódios de incêndios e revoltas,
como culminância de alarmantes taxas de desemprego jovem entre filhos de imi-
grantes.
Quais são as possíveis relações entre a cidade em colapso imaginada em
Ensaio sobre a Cegueira e Aubervilliers? Tomando a cidade francesa como pano-
de-fundo, iremos aproximar a ordem do fantástico, a cegueira branca de Sarama-
go, à problemática ética da hospitalidade levantada por Emmanuel Lévinas, para
quem o sentido da visão é antes de tudo a possibilidade de encontro com o rosto
do outro, e é neste encontro que reside o limiar entre paz e Guerra.

Lévinas – o respeito ao rosto do outro


De Emmanuel Lévinas, partimos de um conjunto de noções que condu-
zem a valorizar e a conferir toda uma significação especial à idéia de hospitalidade
ao precisá-la enquanto acolhimento de um outro completamente diferente, deno-
minado “Outrem”. É no livro Totalidade e Infinito que se desenvolve a trama entre
os temas do acolhimento, do estrangeiro, do rosto e, enfim, da hospitalidade.
No seu prefácio a Totalidade e Infinito, Lévinas diz que o livro se apre-
senta como uma “defesa da subjetividade... fundada na idéia de infinito”. Pros-
seguindo, o autor acrescenta que ao longo desta obra, será questão de distinguir
“entre a idéia de totalidade e a idéia de infinito”. E, ao afirmar o primazia filo-
sófica da idéia de infinito, ele vai relatar de que modo “o infinito se produz na
relação do Mesmo com o Outro e como, intransponível, o particular e o pessoal
192 CIDADES, CEGUEIRA E HOSPITALIDADE

magnetizam de algum modo o próprio campo onde esta produção do infinito se


efetua” (Lévinas, 2003, p.11).
Vejamos então um parágrafo muito significativo onde são introduzidas
algumas palavras-chave:

Colocar o transcendente como estrangeiro e pobre é proibir a relação metafísica


com Deus de realizar-se na ignorância dos homens e das coisas. A dimensão do
divino abre-se a partir do rosto humano. Uma relação com o Transcendente –
contudo livre de qualquer influência do Transcendente – é uma relação social
(Lévinas, 2003, p.76).

Podemos transpor a incitação acima para o contexto de afirmação da di-


versidade cultural dos nossos dias, que não depende só de organismos e institui-
ções nacionais e internacionais. É necessária uma abertura pessoal profunda em
direção a um outro, diverso, representante de uma alteridade absoluta. Abertura
que inclui a proximidade física e corporal e que tem no rosto a instância “funda-
dora”, como um expediente insubstituível para “transcender”. Em outras palavras,
ele nos indica a importância de ir ao empírico para aceder à filosofia; e ele reinau-
gura, sem deixar de invertê-lo, o lugar daqueles que não tinham direito à cidade
na tradição platônica. Atualmente, o desafio é entender mais abrangentemente o
clássico “estrangeiro”, atualizando-o no migrante, no imigrante, pobre e em todos
cuja subjetividade diverge da nossa, do “padrão”, do “mesmo”, e que pode assim
ser representado também por alguém cego, que tem uma relação diferenciada com
o espaço da cidade.
Recorremos a Jacques Derrida nas suas análises dos textos lévinassia-
nos – complexos, não raro herméticos – para insistir sobre a coerência e a força
próprias do pensamento do autor naquilo que concerne a uma construção passo a
passo da importância da hospitalidade, palavra escolhida por Derrida para titular
sua própria homenagem a Lévinas.
O ponto de vista que associa prematuramente a vontade de hospitalidade
à posse concreta de uma moradia é equivocada, e não corresponde ao pensamento
de Lévinas. Com efeito, segundo ele, a hospitalidade precede qualquer proprie-
dade.
René Schérer (2005), outro filósofo, investiga a essência filosófica da
hospitalidade, em uma passagem sintomaticamente nomeada “entre a residência
e a tenda”. A hospitalidade não estaria necessariamente numa nem noutra, estaria
em todos os lugares potencialmente. Schérer recorre primeiro a Heidegger que, a
partir de um poema de Hölderlin, liga a hospitalidade à possessão se não de uma
Márcia de N.S. Ferran 193

residência, pelo menos de uma terra. Schérer observa que esta ligação entre o cul-
tivo da terra e certo sentido de possibilidade sine qua non da fixação do homem
sobre a terra e, daí mesmo, um sentido de hospitalidade, é característico de poetas
da época de Virgílio e de Hesíodo. No entanto, o autor não se satisfaz com esta
limitação e explora outro caminho que, ao contrário, vai vincular a hospitalidade
a um desenraizamento, aos povos nômades que acolhem os viajantes na sua ten-
da, sem grandes infra-estruturas, mas sempre com algum alimento a oferecer, na
atitude deliberada correspondente de “abrir a porta”; mesmo que sua condição ali
seja quase tão sem raízes quanto o do viajante. Na verdade, o nômade pratica uma
generosidade que é a condição mesma de sua existência singular. Em seus hábi-
tos mais arraigados, há uma percepção intrínseca de sua interdependência com o
outro, e da alegria que o encontro com o outro possibilita, da mesma ordem da
“transcendência” no parágrafo citado pouco acima.

Nomadismo e lugar público


Embora bem longe do contorno do poema de Hölderlin, realidades de
fluxos de pessoas no território do mercado globalizado contemporâneo, nomadis-
mos de diferentes ordens e processos interferem diretamente nas relações pessoais
e coletivas. Eles flagram os limites da tentativa de “decalcar” para os dias de hoje
o antigo modelo de cidadania, baseado na fixidez das pessoas como regra, e na
mobilidade como exceção. A ágora contemporânea não é mais uma centralidade
e está pulverizada em várias partes; o lugar público pode ser considerado o lugar
do comum? Passemos rapidamente por umas pistas...
Com uma visão crítica, Otília Arantes (1995), no livro O Lugar da Arqui-
tetura depois dos Modernos, delineia, embora com certo pessimismo, o que seria
uma atual ideologia do “lugar público”. Nela, agentes privados e públicos unem
suas forças pelo embelezamento e transformação da cidade através de um dis-
curso que defende a capacidade de criação de memória dos espaços públicos, não
raro através de formas monumentais. Esta ideologia teria sido bem empregada e
servido de paradigma na intervenção urbana de Barcelona por ocasião dos Jogos
Olímpicos em 1992.

No intuito de devolver a cidade moderna à coletividade expropriada ao longo do


processo de constituição das grandes aglomerações urbanas contemporâneas,
arquitetos e urbanistas entregaram-se, particularmente a partir de meados dos
anos 60, a uma verdadeira obsessão pelo lugar público, em princípio o antídoto
mais indicado para a patologia da cidade funcional (Arantes, 1995, p.97).
194 CIDADES, CEGUEIRA E HOSPITALIDADE

Já em Condição pós-moderna, David Harvey (1992) argumenta que se


a rua foi utilizada pelo movimento moderno para espetáculos políticos, nos últi-
mos anos também voltou-se a apostar, agora por novos meios, no poder social do
espetáculo. Harvey introduz assim o tema do espaço público situando o início do
espetáculo urbano nas cidades americanas no final da década de 60, quando diver-
sas manifestações ocorriam pelos direitos civis, contra a guerra e também contra
os projetos modernistas de habitação e de renovação urbana.
Ora, Aubervilliers, nossa cidade-de-fundo, é exatamente um retrato do
palimpsesto de tipologias de habitação social construídas à sombra das utopias
modernas na França. Desde que foram construídas, estas cidades exacerbam a
tensão entre espaço privado e espaço público. O espaço da rua, o “lugar do co-
mum” hoje em Aubervilliers, é intrinsecamente perpassado pela complexidade da
convivência de grupos sociais de origens culturais diversificadas.

Cegueira à hospitalidade
Schérer pergunta se a hospitalidade, finalmente, não seria “uma sensibi-
lidade específica ao outro”. Esboçada nestes termos, é um atributo de gratuidade
que aí se depreende, o indivíduo despossuído, pobre, é teoricamente tão emissor
de hospitalidade quanto um rico proprietário. Um largo arco de posturas indivi-
duais abre-se então para mostrar justamente que é antes daquele despossuído de
riqueza material que pode emergir esta hospitalidade especial.
Aqui, pensamos que uma pausa sobre a “previsibilidade” ou sobre a “pro-
gramabilidade” de um sentido da hospitalidade faz-se necessária. Ao focalizar a
imagem da “porta” no encadeamento de noções em Lévinas, que conduzem à
idéia de acolhimento e, em seguida, àquela de hospitalidade, Derrida alerta sobre
a importância, para um verdadeiro acolhimento, de condicionar uma porta aberta
a uma tomada de decisão espontânea, que seria “tudo menos uma simples passivi-
dade, o contrário de uma abdicação da razão” (Derrida, 1997, p.57).
Fica claro o problema que esta compreensão coloca para a filosofia ética,
já que não se pode depreender “soluções”, regras ou planejamento, no que seria
uma deontologia da hospitalidade!
O “bastão” está claramente na mão de cada pessoa e não nas mãos de
gestores de qualquer política, onde a racionalidade técnica é o princípio básico,
ainda que tão falido, como vários cientistas políticas atestam !!!
É sobre uma alteridade originária que repousam os verdadeiros fatores
em jogo na hospitalidade. Derrida sublinha que Lévinas fala de uma alteridade
radical que supõe uma separação inicial e que ele renomeia “a metafísica”, como
Márcia de N.S. Ferran 195

ética ou filosofia primeira que acolhe a idéia de infinito (transcendente) no seio do


finito (palpável, humano). Este acolhimento que, rompendo com o entendimento
tradicional da filosofia, acolhe a “finitude” já em si uma hospitalidade filosófica
(DERRIDA, 1997, p.88). Este deslocamento, dentre outras escolhas de noções,
faz justamente que Lévinas seja um autor considerado complexo e de difícil “apli-
cabilidade”.
A dificuldade imposta pelo pensamento de Lévinas, repara ainda Derrida,
é o limite sutil e mesmo ambivalente entre uma atitude de acolhimento totalmente
espontânea e somente assim verdadeiramente oriunda de uma ética pessoal digna
do nome hospitalidade e, de outro lado, um acolhimento resultante de um quadro
jurídico impositivo, que foi justamente o que guiou a construção tanto de con-
juntos habitacionais em Aubervilliers em tantas outras cidades européias, assim
como os hospícios e hospitais públicos na cidade em colapso de Saramago !!!

Ao fundo, conjunto habitacional Albenet, em Aubervilliers.


196 CIDADES, CEGUEIRA E HOSPITALIDADE

Aubervilliers: Palimpsesto habitacional

Aubervilliers: atividade artística em antigo galpão


Márcia de N.S. Ferran 197

O medo do rosto do outro


Um segundo tema que Lévinas relaciona à possibilidade da hospitalida-
de é a aproximação do rosto do outro; o rosto como sede do mistério do outro e
como primeira instância da relação com o desconhecido. Então, primeira barreira
e primeiro desvendamento, tratar-se-á agora de um momento quase sagrado de
aceitação do outro. Mais fundamentalmente – e aqui trata-se de um eixo do caráter
essencialmente ético do pensamento de Lévinas, do qual não podemos nos afastar
demais – o rosto engendra a tendência ou não ao assassinato, ele suscita a opção
ética entre fazer a guerra ou fazer a paz. Lévinas está se referindo a uma opção
diária, uma conduta cotidiana individual, como o começo ou a raiz, daí sua essên-
cia radical. Não é apenas uma paz suficiente e conveniente ao comércio interna-
cional, como era a paz preconizada por Kant, e por isto ainda assunto de Estado.
Assim, mesmo que esta paz não seja nem puramente institucional nem puramente
jurídico-política, para Lévinas o começo de tudo repousa no acolhimento do rosto
do outro (pobre, estrangeiro ou os dois, simultaneamente) na hospitalidade.
Acreditamos que ele quer indicar que, na ética da hospitalidade, o as-
pecto do rosto do outro não influirá no seu acolhimento, ou seja, saímos de um
postulado fenomenológico onde a visão tem alguma primazia; ao invés disto, é
a relação pela palavra que deve ser eticamente acolhedora, prescindindo de refe-
rências às histórias pessoais passadas, ao “contexto”. Ora, ao prescindirmos da
visão como “plataforma” estamos também potencialmente nos referindo à uma
certa cegueira !
A hospitalidade é, portanto, um registro que atravessa criticamente a
dimensão urbana tanto quanto a dimensão cultural e vem abalar as lógicas da
gestão provinda da indiferenciação e padronização inerentes à cidade-espetáculo.
Ela abala a cidade-espetáculo que se transforma em caos logo que a cegueira se
instaura, anulando o “poder de polícia” imediato operado pelo olhar coletivo. A
cidade-espetáculo é aniquilada quando a sociedade não tem mais uma tela de TV
para atribuir-se a sua própria medida. Processo que Guy Debord prognosticou
como irreversível, à medida do espraiamento universal da sociedade do espetácu-
lo, das massas tornadas espectadores.
É aqui que podemos nos aproximar ao máximo da cidade de José Sara-
mago e o papel desempenhado pela mulher do médico, a única pessoa que não é
acometida pela misteriosa cegueira branca mundial. É sobre esta personagem que
se concentram os dilemas de lidar com o rosto do outro, vendo-o em sua fragilida-
de máxima, enquanto “tornado cego”. E esta postura de acolher o rosto do outro,
tem como “palco” o espaço de um antigo hospital, espaço similar ao hospício,
198 CIDADES, CEGUEIRA E HOSPITALIDADE

espaço disciplinador, foucaultiano, um lugar ostensivamente inóspito, diametral-


mente oposto a uma tenda, ou a uma casa. Interessante também é reparar que esta
função acolhedora na escolha de Saramago é desempenhada por uma mulher, e
que o “feminino” é o ápice da hospitalidade para Lévinas !!!
Paradoxo, idéia radical e necessária nos dias atuais: a verdadeira hospita-
lidade seria, portanto, não-programável!
No livro de Saramago, a hospitalidade desta personagem, ao mesmo tem-
po guia e “gestora” da crise ética que se desenrola, acontece imprevisivelmente nas
dependências em vias de degradação de um espaço-fantasma, um espaço que vai
paulatinamente se tornando um espaço de exilados, subjetiva e objetivamente.
Esta condição de confusão e deterioração entre exílio e refúgio é uma
condição bastante atual e significativa para as dinâmicas urbanas complexas. As-
sim, foi no livro Além do versículo – leituras e discursos talmúdicos, no qual
Lévinas elabora uma análise sobre as “cidades-refúgios” que nos inspiramos para
esta livre abordagem...
As cidades-refúgio, instituição bíblica, seriam cidades que acolhem todos
aqueles que teriam cometido homicídio involuntário e que, apesar da ausência de
intenção criminosa de seus atos, seriam perseguidos pelos conhecidos das vítimas,
os chamados “vingadores do sangue”, a quem, por outro lado, seria acordado um
direito parcial. Este direito parcial se origina, por seu turno, do entendimento que
vê no homicídio involuntário, igualmente uma falta de atenção, de prudência, em
suma: um erro. É devido à prevalência do direito pleno sobre este direito parcial,
que uma Lei designa as cidades-refúgio onde o matador se esconde e onde o “vin-
gador do sangue” terá mais dificuldade de o encontrar. Uma vez que este direito
parcial acordado ao “vingador de sangue” permanece até o fim do pontificado do
avô contemporâneo ao matador, o lugar de refúgio torna-se também um exílio, no
sentido de uma sanção. Lévinas destaca o duplo efeito da cidade-refúgio:

Há então, na cidade-refúgio, proteção da inocência que é também punição do


objetivamente culpado. Os dois ao mesmo tempo [...] A imprudência, a falta de
atenção, limitam a nossa responsabilidade? (LEVINAS, 1982, p.56)

Na verdade, se esta imagem da “cidade-refúgio”, oriunda do Talmude81,


resta um caso-limite e hipotético, onde justamente uma certa homogeneidade re-

81 O Talmud é a versão escrita das lições e das discussões dos doutores rabinos que ensinavam
na Palestina e na Babilônia nos séculos que precederam e seguiram o início da nossa era, dou-
tores que continuavam provavelmente antigas tradições. A Thora, uma parte do Talmud onde se
insere a passagem sobre as cidade-refúgio, é considerada como exprimindo o cerne mesmo da
Márcia de N.S. Ferran 199

ligiosa reinaria, o próprio Lévinas lança sua correlação aos dias atuais numa mul-
tiplicação de diásporas:

Estas mortes, cometidas sem que os matadores as tenham querido, não se pro-
duzem por outro meio que não a lâmina que se solta do machado e vem derrubar
o passante?

Na nossa sociedade ocidental, livre e civilizada, mas sem igualdade social, sem
justiça social rigorosa, será absurdo se perguntar se as vantagens da quais dis-
põem os ricos frente aos pobres – e todo o mundo é rico frente à alguém no
Ocidente –, se estas vantagens, paulatinamente, não são elas próprias a causa
de alguma agonia, de certa parte?

Não existem, em alguma parte do mundo, guerras e matanças que são a conse-
qüência disto? Sem que nós daqui, habitantes de nossas cidades-capitais sem
igualdade, é certo, mas protegidas e abundantes-, sem que nós daqui, tenhamos
querido mal à quem quer que seja?

O vingador ou o redentor de sangue “de coração aquecido” não ronda ao nosso


redor, sob forma de cólera popular, de espírito de revolta ou mesmo de delinqü-
ência em nossos subúrbios, resultado do desequilíbrio social no qual nós esta-
mos instalados?

As cidades onde nós moramos e a proteção que, legitimamente, em razão de


nossa inocência subjetiva, nós encontramos na nossa sociedade liberal (mesmo
se nos a encontramos um pouco menos do que outrora) contra tantas ameaças
de vinganças sem fé nem lei, contra tantos corações inflamados, não serão elas,
de fato, a proteção de uma semi-inocência ou de uma semi-culpabilidade, – tudo
isto não faz das nossas cidades, cidades-refúgio ou cidades de exilados? (LEVI-
NAS, 1982, p.57)

Ao deixar esta pergunta aos nossos ouvidos, Lévinas estabelece equiva-


lência em um só ato, inequívoca, entre as cidades-capitais “abastadas” de todo o
mundo e, por conseguinte, entre migrantes, imigrantes e exilados pobres de todo
o mundo. Ele caracteriza uma relação de forças onde a “inocência subjetiva” não
pode mais se eximir dos danos objetivos que, numa engrenagem já previsível,
fazem das cidades contemporâneas apenas um outro cenário de sangrentos con-

vontade de Deus à qual devem obedecer os judeus ditos ortodoxos. “O Talmud (...) consignado
por escrito entre o séc. II e o fim de século V da nossa era – é nos seus sessenta e oito tratados,
um texto imenso, de mais de três mil páginas in-folio coberto de comentários e comentários dos
comentários”
200 CIDADES, CEGUEIRA E HOSPITALIDADE

frontos. Nem se eximir de estar sempre fechando os olhos, que são usados não
no seu potencial de tecer encontros como proposto por Lévinas, mas apenas para
espetacularizar o medo do encontro, tornando o espaço do coletivo um espaço da
fuga do rosto do outro... olhares de través, olhares baixos...
É urgente repensarmos nossas cidades atuais como potencialmente ci-
dades-refúgio e cidades-exílio, onde lidar com cultura é cada vez mais lidar com
multilingüismo, intraduzibilidade e onde a cegueira mais perversa é a cegueira a
este estado de coisas. O direito de ir e vir, a dinâmica dos fluxos humanos está no-
vamente posta à prova em 2008, no que tange à compreensão dos países europeus
que vêm deliberando e se cegando em matéria de humanismo.
Ora, o que são os episódios de eclosão de revoltas e depredação urbana
senão protestos reativos a uma cegueira crescente, completamente impermeável
à hospitalidade ???

Referências

ARANTES, Otília. O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos. São Paulo:EDUSP,


1995.
DERRIDA, J. Adieu à Emmanuel Lévinas. Paris: Galilée. 1997.
______ Cosmopolites de tous les pays, encore un effort. Paris: Galilée, 1997.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola,1992.
LEVINAS, E. Totalité et Infini – essai sur l’extériorité. Paris: Le Livre de Poche,
2003.
LEVINAS, E. L’au-delà du verset. Lectures et discours Talmudiques. Paris: Les édi-
tions de minuit, 1982.
SCHERER, René. Zeus Hospitalier. Éloge de l’hospitalité. Éditions de la Table Ron-
de, 2005.

Márcia de N.S. Ferran é arquiteta, mestre em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ,


doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA e em Filosofia pela Université de Paris1 –
SORBONNE. Implantou e coordenou eventos científicos e culturais na França como o I Ren-
contre Culture em 2004 na Embaixada do Brasil e o Ciclo de Palestras científicas APEB-FR
– Associação de pesquisadores e estudantes brasileiros na França. Foi convidada do programa
Courants du Monde promovido pela Maison des Cultures du Monde, Paris em dez/ 2001. Desde
1999 tem pesquisado projetos culturais e artísticos em subúrbios na França e no Brasil. É Con-
sultora da Secretaria de Cultura do Maranhão para o Ano da França no Brasil 2009.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 201-208

Dispositivo metrópole.
A multidão e a metrópole 82

Antonio Negri

1. “Generalizar” a greve. Foi interessante notar, por ocasião do calendá-


rio de lutas da primavera e do verão de 2002 na Itália, como o projeto de “genera-
lizar” a greve por parte do movimento dos precários, dos operários sociais, fossem
eles homens ou mulheres, pareceu ter passado de maneira quase que inócua e
inútil através da “greve geral” dos operários. Depois desta experiência, muitos
companheiros que participaram da luta começaram a perceber que, enquanto a
greve operária “fazia mal” ao patrão, a greve social passava, por assim dizer, pelas
dobras da jornada de trabalho global, não fazia mal aos patrões nem fazia bem
aos trabalhadores móveis flexíveis. Esta constatação levanta um problema: com-
preender como luta o operário social, como ele pode concretamente derrubar, no
espaço metropolitano, a subordinação produtiva e a violência da exploração. Isto
é, trata-se de nos perguntarmos como a metrópole se apresenta diante da multidão
e se é correto dizer que a metrópole está para a multidão assim como a fábrica
estava para a classe operária. De fato, esta hipótese se nos apresenta como um
problema. Problema que não foi simplesmente levantado pelas evidentes diferen-
ças de eficácia imediata entre as lutas sociais e as lutas operárias, mas também por
uma questão muito mais pertinente e geral: se a metrópole é investida pela relação
capitalística de valorização e de exploração, como se pode colher no seu interior
o antagonismo da multidão metropolitana? Nos anos sessenta e setenta deram-se
várias respostas, frequentemente muito eficazes, a estes problemas, na medida
em que eles surgiam em relação às lutas de classe operária e as mutações dos
estilos de vida metropolitanos. Daqui a pouco as retomaremos. Aqui vale a pena
assinalar somente como aquelas respostas diziam respeito a uma relação externa
entre classe operária e outros estratos metropolitanos do trabalho assalariado e/ou
intelectual. Hoje, o problema apresenta-se de maneira diferente porque as várias
seções da força trabalho apresentam-se no híbrido metropolitano como relação in-
terna, quer dizer, imediatamente como multidão: um conjunto de singularidades,

82 Este artigo foi traduzido pelo coletivo de tradução attraverso (Désirée Tibola, Leonardo
Retamoso Palma, Lúcia Copetti Dalmaso e Paulo Fernando dos Santos Machado).
202 DISPOSITIVO METRÓPOLE. A MULTIDÃO E A METRÓPOLE

uma multiplicidade de grupos e de subjetividades, que dão forma (antagônica) ao


espaço metropolitano.
2. Antecipações teóricas. Entre os estudiosos da metrópole (arquitetos e
urbanistas), foi Koolhaas a nos fornecer, de maneira delirante, por volta do final
dos anos setenta, uma primeira nova imagem da metrópole. Aludimos, evidente-
mente, a Delirious New York. Em que consistia a tese central deste livro? Con-
sistia em dar uma imagem da metrópole que, além e através das planificações
(sempre, de maneira mais ou menos coerente, desenvolvidas sobre ela mesma),
vivia, porém, de dinâmicas, conflitos e sobreposições potentes de estratos cul-
turais, de formas e de estilos de vida, de uma multiplicidade de hipóteses e de
projetos sobre o futuro. Era necessário olhar esta complexidade, esta microfísica
de potências, desde dentro para compreender a cidade. Nova York, em especial,
era o exemplo de um extraordinário acumular-se histórico e político, tecnológico
e artístico, de várias formas de programação urbana. Mas não bastava. Era ne-
cessário acrescentar que a metrópole era mais forte que o urbano. Os interesses
especulativos e as resistências dos cidadãos derrotavam e subvertiam ao mesmo
tempo as prescrições do poder e as utopias dos opositores. O fato é que a metrópo-
le confundia e misturava os termos do discurso urbanístico: a partir de uma certa
intensidade urbana, a metrópole constituía novas categorias, era uma nova máqui-
na proliferante. A medida se des-media. Tratava-se, portanto, ao mesmo tempo, de
fazer uma análise microfísica da metrópole, de Nova York no caso, que fosse ao
encontro seja das milhares de singularidades agentes, seja das formas de repressão
e bloqueio que a potência da multidão encontrava. É assim que a arquitetura de
Koolhaas se ergue através de grandes medidas de convivência urbana, que são de-
pois subvertidas, mudadas e misturadas com outras formas arquiteturais... É uma
grande narração aquela expressa na arquitetura de Koolhaas, a grande narração
da destruição da cidade ocidental para dar lugar a uma metrópole mestiça. Não é
relevante (mesmo que seja útil para a compreensão) que em Koolhaas o desen-
volvimento arquitetural seja classificado de maneira funcional às várias técnicas
da organização do trabalho edilício. O que interessa é exatamente o contrário:
mesmo através de uma corporativização industrial dos agentes da produção, aqui
se percebe quanto a metrópole já se organize em níveis contínuos, mas tortos,
fiéis ao Welfare, mas híbridos. A metrópole é mundo comum. Ela é o produto
de todos – não vontade geral, mas aleatoriedade comum. Assim a metrópole se
quer imperial. Os pós-modernos fracos são vencidos por Koolhaas. Buscando na
genealogia da metrópole, Koolhaas de fato antecipa uma operação que, no pós-
moderno maduro, torna-se fundamental: o reconhecimento da dimensão global
Antonio Negri 203

como mais produtiva e mais generosa do ponto de vista das figuras econômicas
e dos estilos de vida. Este esforço crítico não é solitário nem neutralizante. Pelo
contrário, produz ulteriores críticas, confia-as ao movimento real. Por exemplo,
quando introduzimos elementos diferenciais e antagonísticos no saber da cidade
e fazemos destes o motor da construção metropolitana, nós compomos também
novos quadros do viver e do lutar – comuns. Ainda um exemplo entre os outros:
a propósito de metrópole e coletivização. Esta velha palavra socialista certamente
já está obsoleta e totalmente superada na consciência das novas gerações. Mas
não é este o problema. O projeto não é coletivizar, mas sim reconhecer e organi-
zar o comum. Um comum feito de um patrimônio riquíssimo de estilos de vida,
de meios coletivos de comunicação e reprodução da vida e, principalmente, do
excedente da expressão comum da vida nos espaços metropolitanos. Gozamos de
uma segunda geração de vida metropolitana, criativa de cooperação e excedente
nos valores imateriais, relacionais e lingüísticos que produz. Eis a metrópole da
multidão singular e coletiva. Há muitos pós-modernos que recusam a possibi-
lidade de considerar a metrópole da multidão como espaço coletivo e singular,
maciçamente comum e subjetivamente maleável e sempre novamente inventado.
Estas recusas substituem o analista pelo bufão ou pelo sicofanta do poder. De fato,
nós recuperamos a idéia das economias externas, das dinâmicas imateriais, dos
ciclos de luta e tudo aquilo que compõe a multidão. Nova York é pós-moderna,
na medida em que participou em todos os graus do moderno e, por assim dizer,
consumiu-os na crítica e na prefiguração de outra coisa. O resultado é um híbrido,
o híbrido metropolitano como figura espacial e temporal das lutas, plano da mi-
crofísica dos poderes.
3. Metrópole e espaço global. Foi Saskia Sassen, antes e mais do que
qualquer outra pessoa, que nos ensinou a ver a metrópole, todas as metrópoles,
não somente, como Koolhaas, como um agregado híbrido e interiormente antago-
nista, mas como uma figura homóloga da estrutura geral que o capitalismo assu-
miu na fase imperial. As metrópoles exprimem e individualizam o consolidar-se
da hierarquia global, em seus pontos mais articulados, em um complexo de for-
mas e de exercício do comando. As diferenças de classe e a programação genérica
na divisão do trabalho na metrópole já não se fazem mais entre nações, mas entre
centro e periferia. Sassen vai olhar para os arranha-céus para deles extrair lições
implacáveis. Em cima está quem comanda e embaixo quem obedece. No isola-
mento daqueles que estão mais no alto está a ligação com o mundo, enquanto que
na comunicação daqueles que estão mais embaixo estão os pontos móveis, os es-
tilos de vida e renovadas funções da recomposição metropolitana. Por isso, temos
204 DISPOSITIVO METRÓPOLE. A MULTIDÃO E A METRÓPOLE

que atravessar os espaços possíveis da metrópole, se quisermos reatar as fileiras


da luta, para descobrir os canais e as formas de ligação, os modos nos quais os
sujeitos ficam juntos. Sassen nos propõe olhar os arranha-céus como estruturas da
unificação imperial. Mas, ao mesmo tempo, insinua a sutil e provocatória propos-
ta de imaginar os arranha-céus não como um todo, mas como um em cima e um
embaixo. Entre o em cima e o embaixo corre a relação de comando, de exploração
e, portanto, a possibilidade de revolta. Os temas de Sassen repercutiram forte-
mente na Europa nos anos noventa, quando, com certa dificuldade, mesmo assim
eficazmente, algumas forças antagonistas começaram a ver refletidas na estrutura
da metrópole as contradições da globalização. De fato, com arranha-céus ou não,
de qualquer forma a ordem global restabelecia um alto e um baixo na metrópole,
que era aquele de uma relação de exploração que se estendia no horizonte interno
da sociedade urbana. Sassen nos mostrava os lugares e as relações da exploração
e dissolvia a multidão levando-a ao exercício disperso de atividades materiais. Por
outro lado há o comando. Blade Runner tornou-se uma ficção científica.
4. Antecipações históricas. Outros vêem as metrópoles dos arranha-céus
e do Império mais como lugares de luta que podem revelar aspectos comuns e
principalmente podem encarnar processos e organizações de resistência e de sub-
versão. O exemplo que imediatamente vem em mente em relação a isto é o das
lutas parisienses do inverno 1995-96. Estas lutas são lembradas porque naquela
ocasião os projetos de privatização dos transportes públicos de Paris foram re-
chaçados, não apenas pelos sindicatos, mas pelas lutas conjuntas de grande par-
te da população metropolitana. Todavia, estas lutas não teriam nunca alcançado
a intensidade e a importância que tiveram se não tivessem sido atravessadas e
antes, de alguma forma, prefiguradas pelas lutas dos sans-papiers, sans-logent,
sans-travail etc. Quer dizer que o máximo da complexidade metropolitana abre
linhas de fuga para toda a pobreza urbana: é aqui que a metrópole, mesmo aquela
imperial desperta ao antagonismo. Estes desenvolvimentos e estes antagonismos
foram antecipados nos anos setenta: na Alemanha, nos Estados Unidos, na Itália.
A grande passagem da frente de luta da fábrica àquela da metrópole, da classe à
multidão, foi vivida e organizada teoricamente e praticamente por muitíssimas
vanguardas. “Prendiamoci la città” era uma palavra de ordem italiana, insistente,
importante, empolgante. Palavras semelhantes atravessaram as Bürger-initiativen
alemãs, mas também as experiências dos squatters em quase todas as metrópoles
européias. Os operários de fábrica se reconheceram neste desenvolvimento, en-
quanto a ordem sindical e a dos partidos do movimento operário ignoraram-no.
A greve das passagens dos transportes, as ocupações maciças das casas, a tomada
Antonio Negri 205

dos bairros para organizar tempo livre e segurança dos trabalhadores contra a
polícia e os fiscais etc. Enfim, a tomada de zonas da cidade, foi um projeto perse-
guido com muita atenção. Estas áreas chamavam-se na época “bases vermelhas”,
mas frequentemente não eram lugares, mas espaços urbanos, lugares de opinião
pública. Algumas vezes também acontecia que fossem decididamente não-luga-
res: eram manifestações de massa que em movimento percorriam e ocupavam
praças e territórios. Assim a metrópole começou a ser reconstruída por uma alian-
ça estranha: operários de fábrica e proletários metropolitanos. Aqui começamos
a ver como foi potente esta aliança. Na base destas experiências políticas estava
também uma outra e mais ampla experiência teórica. De fato, desde o início dos
anos setenta, começava-se a notar como a metrópole não fora tão somente inva-
dida pela mundialização a partir do cume dos arranha-céus, mas também como
ela fora assim constituída pelas transformações do trabalho que se estavam rea-
lizando. Alberto Magnaghi e seus colegas publicaram nos anos setenta uma for-
midável revista (Quaderni del territorio) que mostrava, a cada número de forma
mais convincente, como o capital investia a cidade, transformando cada rua em
um fluxo produtivo de mercadorias. A fábrica tinha então se estendido na e sobre
a sociedade: isto era evidente. Mas igualmente evidente era que este investimento
produtivo da cidade modificava radicalmente o embate de classe.
5. Polícia e guerra. A grande transformação das relações produtivas que
investem as metrópoles chega ao limite quantitativo nos anos noventa, configu-
rando uma nova fase. A recomposição capitalística da cidade, ou melhor, da me-
trópole, ocorre em toda a complexidade da nova configuração das relações de for-
ça no Império. Foi Mike Davis o primeiro a nos dar uma representação apropriada
dos fenômenos característicos da metrópole pós-moderna. A edificação de muros
para limitar zonas intransitáveis aos pobres, a definição de espaços mal-afamados
ou guetos onde os desesperados da terra pudessem se acumular, o disciplinamento
das linhas de escoamento e de controle que mantivessem a ordem, uma análise
preventiva e prática de contenção e de perseguição das eventuais interrupções do
ciclo. Hoje, na literatura imperial, quando se fala da continuidade entre guerra
e polícia globais, o que se esquece de dizer é que as técnicas contínuas e homo-
gêneas de guerra e de polícia foram inventadas na metrópole. “Tolerância zero”
tornou-se uma palavra de ordem, ou melhor, o dispositivo de prevenção que in-
veste estratos sociais inteiros, mesmo lançando-se individualmente sobre cada
refratário ou excluído. A cor da raça ou a roupa religiosa, os hábitos de vida ou a
diversidade de classe são, vez após vez, assumidos como elementos que definem a
zoning repressiva no interior da metrópole. A metrópole está construída sobre es-
206 DISPOSITIVO METRÓPOLE. A MULTIDÃO E A METRÓPOLE

tes dispositivos. Como dizíamos, a propósito do trabalho de Sassen, as dimensões


espaciais, largura e altura, dos edifícios e dos espaços públicos, estão completa-
mente subordinados à lógica do controle. Isto onde for possível. Onde, ao contrá-
rio, o capital imobiliário determina rendas muito altas para poderem ser dobradas
a instrumentos de controle direto, através da aplicação de processos urbanísticos
pesados, a paisagem metropolitana é coberta por redes de controle eletrônico e
percorrida e escavada por representações de perigo que televisões e helicópteros
desenham. Daqui a pouco, sobre cada cidade, aumentarão aqueles instrumentos
automáticos de controle, aviões sem piloto, clones policiais que os exércitos estão
normalmente utilizando nas guerras. Logo as barreiras e as zonas vermelhas serão
estabelecidas sobre a lógica dos vôos de controle: o urbanismo deverá interiorizar
as formas de controle a partir de uma globalidade aérea, pressuposta à liberdade
de desenvolver espaços e sociedades. É evidente que, ao contar isso, nós exaspe-
ramos algumas linhas de tendência que são limitadas e representam somente uma
parte do desenvolvimento metropolitano. De fato, aqui também (como na teoria
da guerra) a enorme capacidade de desenvolver violência por parte do poder, a
assim chamada assimetria total, gera respostas adequadas: o fantasma de Davi
contra a realidade de Golias. Do mesmo modo, a planificação do controle sobre
a cidade, a “tolerância zero”, produzem novas formas de resistência. A rede me-
tropolitana é continuamente interrompida, às vezes invertida, por redes de resis-
tência. A recomposição capitalística da metrópole deixa pistas de recomposição
para a multidão. O fato é que, para que aconteça, o controle deve ele próprio
reconhecer, ou mesmo reconstruir, esquemas transindividuais de cidadania. Toda
a sociologia urbana, desde a Escola de Chicago aos nossos dias, sabe que mesmo
dentro de um quadro de individualismo extremo, os conceitos e os esquemas de
interpretação precisam assumir dimensões transindividuais, quase comunitárias.
A análise deve aplicar-se ao desenvolvimento destas formas de vida. Serão des-
cobertos assim, na metrópole, espaços definidos, localizações determinadas dos
movimentos da multidão. Determinações espaciais e temporais do habitat e do
salário (consumo), encontram-se desenhando os contornos dos bairros e caracte-
rizando os componentes das populações. A guerra como legitimação da ordem, a
polícia como instrumento da ordem – estas potências que assumiram uma função
constituinte na metrópole, substituindo-se aos cidadãos e aos movimentos – bem,
estas não conseguem passar. Novamente a análise da metrópole reenvia aqui à
percepção da excedência de valor que é produzida pela cooperação do trabalho
imaterial. A crise da metrópole é, desta forma, deslocada muito para a frente.
Antonio Negri 207

6. Construir a greve metropolitana. Contam-me que em Sevilha, quando


a “greve generalizada” foi lançada – era uma greve de 24 horas – durante a noite,
em todos os bairros, formaram-se rondas que, a partir da meia noite, bloquearam
os transportes, fecharam as boites de nuit, comunicaram à cidade a urgência da
luta. E isto durou toda a jornada, com uma mobilização geral no território metro-
politano que convergiu nas grandes manifestações de massa durante a tarde. Eis
um bom exemplo de gestão da greve generalizada. É uma greve metropolitana na
qual se encontram, durante as 24 horas do dia de trabalho, os vários pedaços do
trabalho social. E mesmo assim, tudo isso, esse formidável movimento político,
não parece suficiente para caracterizar a “greve generalizada”. Precisamos de um
aprofundamento mais amplo, de uma análise específica de cada passagem e/ou
movimento de recomposição, de cada movimento de luta que possa confluir na
construção da greve social. Por que dizemos isto? Porque consideramos a greve
metropolitana como uma forma específica de recomposição da multidão na me-
trópole. A greve metropolitana não é a socialização da greve operária: é uma nova
forma de contrapoder. Como ele age no tempo e no espaço ainda não sabemos.
O que sabemos é que não vai ser uma sociologia funcionalista, uma daquelas
que junta os vários pedaços da recomposição social do trabalho sob o controle
capitalístico, que poderá desenhar para nós a greve metropolitana. O encontro, o
embate, o encaixar-se e o mover-se para a frente dos vários estratos da multidão
metropolitana não podem ser indicados a não ser como construções (nas lutas)
de movimentos de potência. Mas, sobre o que o movimento torna-se capacidade
de potência alargada? Para nós a resposta não alude, é claro, à tomada do Palácio
de Inverno. As revoltas metropolitanas não se colocam o problema de substituir
o prefeito: elas exprimem novas formas de democracia, esquemas invertidos em
relação aos esquemas do controle da metrópole. A revolta metropolitana é sempre
uma refundação de cidade.
7. Reconstruir a metrópole. A “greve generalizada” deve então conter
em si mesma o “delirante” projeto de reconstruir a metrópole. O que quer dizer
reconstruir a metrópole? Significa reencontrar o comum, construir proximidades
metropolitanas. Temos duas figuras que são absolutamente indicativas deste pro-
jeto, elas se colocam nos termos extremos de uma escala de comunhão: o bombei-
ro e o imigrante. O bombeiro representa o comum como segurança, como recurso
de todos em caso de perigo, como construtor da imaginação comum das crianças;
o imigrante é o homem necessário para dar cor à metrópole, além de ser necessá-
rio para dar sentido à solidariedade. O bombeiro é o perigo e o imigrante é a espe-
rança. O bombeiro é a insegurança e o imigrante é o devir. Quando nós pensamos
208 DISPOSITIVO METRÓPOLE. A MULTIDÃO E A METRÓPOLE

na metrópole, pensamo-la como uma comunhão física que é riqueza e produção


de comunhão cultural. Nada como a metrópole indica mais e melhor o desenho de
um desenvolvimento sustentável, síntese de ecologia e de produção, enfim, qua-
dro biopolítico. Hoje, exatamente neste período, estamos suportando o peso de
uma série de velhos esquemas, tanto ignóbeis quanto impotentes, da social demo-
cracia, que nos dizem que a metrópole pode reproduzir-se somente se nela forem
introduzidos amortecedores sociais que sirvam para contabilizar (e eventualmente
consertar) as dramáticas recaídas do desenvolvimento capitalístico. Políticos e
sindicatos corruptos estão negociando sobre os amortecedores... Nós pensamos
que a metrópole é um recurso, um recurso excepcional e excessivo, mesmo quan-
do a cidade está constituída por favelas, barracos, caos. À metrópole não podem
ser impostos nem esquemas de ordem, prefigurados por um controle onipotente
(pela terra e pelo céu através de guerra e polícia), nem estruturas de neutralização
(repressão, amortecimento, etc.) que se querem internas ao tecido social. A metró-
pole é livre. A liberdade da metrópole nasce da construção e reconstrução que a
cada dia ela opera sobre si mesma e de si mesma. A greve generalizada se insere
neste quadro. Ela é o prolongamento, ou melhor, a manifestação, a revelação,
de tudo o que vive no profundo da cidade. Provavelmente em Sevilha a “greve
generalizada” foi também isso, a descoberta daquela outra sociedade que vive na
metrópole durante todo o tempo da jornada de trabalho. Não sabemos se as coisas
realmente aconteceram deste modo: o que, todavia, nos interessa destacar é que a
“greve generalizada” é uma espécie de escavação radical da vida da metrópole, da
sua estrutura produtiva, do seu comum.

Antonio Negri, cientista social e filósofo, é autor, entre outras obras, de Império;
Multidão (ambos em parceria com Michael Hardt); Anomalia Selvagem – poder e potência em
Spinoza; O poder constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade; Kairòs, Alma
Venus, Multitudo.
A Cultura Monstruosa
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 211-221

A potência da hibridação –
Édouard Glissant e a creolização83

Leonora Corsini

Precisamos também buscar a perspectiva daqueles pontos de vista,


que nunca podem ser conhecidos de antemão, que prometem alguma
coisa extraordinária, isto é, conhecimento potente para a construção
de mundos menos organizados por eixos de dominação.
Donna Haraway

Antonio Negri e Michael Hardt escrevem em um dos excertos de Multi-


dão (2004) que os efeitos da verdadeira “invasão de monstros” que teve lugar nos
alvores da modernidade foram mais contundentes na política do que na metafísi-
ca: “o monstro não é um acidente, é a sempre presente possibilidade de destruir
a ordem natural da autoridade em todos os seus domínios, da família ao império”
(Negri e Hardt, 2004, p. 195). Desta forma, para os autores, o monstro é a figura
emblemática da nossa potência de transformação, sendo ao mesmo tempo o agen-
te e o motor desta transformação.
Ainda na perspectiva desta simbiótica relação entre a monstruosidade e
a política, num artigo que tem como alvo o conceito de vida nua – que se teria
transformado em uma verdadeira ideologia que esvazia e despotencializa a pró-
pria vida – Negri diz que uma outra maneira de apreender o monstro, resgatando a
sua potente monstruosidade, é associá-lo ao General Intellect, restituindo-o à sua
função originária e fazendo desvelar o verdadeiro espectro que assombra desde
a antiguidade clássica a ontologia, a antropologia e a ciência política. O monstro
neste caso é, segundo Negri, o escravo, o trabalhador [o migrante não-desejado],
é todo aquele que foi excluído pelo poder (Negri, 2008, p. 41).
Minha proposta é fazer uma reflexão em torno da idéia da potência das
culturas híbridas e da creolização, procurando valorizar as suas dimensões de im-
previsibilidade e desmedida, conceitos importantes tanto nas teorizações de Negri
e Hardt, quanto nas de Édouard Glissant, poeta, etnólogo, linguista, romancista

83 Este texto é uma adaptação da apresentação feita em agosto de 2008 no Colóquio Cultura,
Trabalho e Natureza na Globalização, organizado pela Rede Universidade Nômade e Fundação
Casa de Rui Barbosa.
212 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO

e filósofo caribenho, que constrói um pensamento bastante original em torno da


creolização – uma mestiçagem sempre imprevisível e que eu chamarei de mons-
truosa.
A creolização se expressa na linguagem, mas este não é seu único canal
de expressão: a creolização é a possibilidade de criar monstros, monstros que são,
como diz Negri, “corpos que nascem por fora da autonomia do sujeito genético,
e que podem ser modificados ou corrigidos de acordo com as suas necessidades”
(Negri, 2008, p. 42). Ou seja, a creolização é uma potência disruptiva que resiste,
desorganiza e faz romper os códigos e hierarquias do poder, daí sua dimensão
politicamente monstruosa.

Uma perspectiva pós-negritude


No cenário da pós-colonialidade84, o trabalho de Glissant insere-se em
um campo teórico que pode também ser denominado como “estudos caribenhos”,
ou “estudos pós-negritude”. Isto porque o conceito de creolização é mobilizado
não para universalizar ou identitarizar; os princípios da creolidade vão justamente
colocar em xeque idéias como “negritude”, “francesidade”, “brasilidade”, “lati-
nidade”, enfim, todos os processos generalizantes e homogenizantes. Desde seus
tempos de estudante no Liceu Schoelcher de Fort-de-France, quando entrou em
contato com o filósofo Aimé Césaire e com as idéias que fermentariam o conceito
de negritude – uma tomada de consciência e uma recusa à dimensão colonial da
visão de mundo predominante nas Antilhas – Glissant tem sido ativista da desco-
lonização e crítico da perspectiva homogênea e unitária da identidade, ou de uma
idéia de identidade-raiz, que passa a ser por ele problematizada.
Para Glissant, a verdadeira descolonização passa pelo rompimento ou ul-
trapassagem dos limites da dialética, pela recusa dos universais, do monolinguis-
mo, das identidades fixas e unitárias. Desta forma, a idéia tão forte e predominante
no mundo ocidental pós-colonial de defesa e afirmação de uma identidade-raiz é
desconstruída e, em seu lugar, somos convidados a pensar a identidade na relação.
Trata-se de uma concepção em que a “identidade” assume múltiplas formas ou
facetas que se delineiam em meio aos conflitos, tensões e, também, conforto, e

84 De acordo com o teórico dos estudos pós-coloniais François Cusset (2008), o pós-colonia-
lismo é, antes de tudo, um conceito literário, na medida em que a relação entre minoridade e
linguagem, poder e língua, está na essência de sua genealogia. Ainda segundo Cusset, Deleuze
já havia observado, por exemplo, que o americano contemporâneo é “trabalhado” por um black
english, e também um yellow, um red english, um broken english, “uma linguagem atirada com
uma pistola de cores” (op. cit., p. 137).
Leonora Corsini 213

que são produzidas no exílio ou na errância. Esta nova dimensão da identidade se


evidencia com nitidez no modo como a interdependência que marca as relações
entre as diferentes e diversas comunidades e culturas do mundo contemporâneo
vem substituindo as antigas ideologias identitárias e de independência nacional
que caracterizaram as lutas pela descolonização no mundo ocidental.
Assim, uma vez que a identidade já não se vincula mais tão fortemente
ao “sagrado mito da raiz” e que a aceleração das relações e das mudanças trazi-
das pela globalização – que se apresentam de maneira mais concentrada e inten-
sa nas grandes cidades – repercute na maneira como o conceito de identidade é
apreendido, começam a se multiplicar modos diferentes pelos quais a sociedade
contemporânea participa da relação global, bem como novas maneiras de registrar
e controlar (ou não) a confluência destas relações. Identidade não é mais perma-
nência; é, antes de tudo, a capacidade de variação. E a variabilidade da relação é
evidência de que um princípio ontológico “fixo”, estático, não funciona mais. A
idéia aqui é de que o encontro com o outro produz novas identidades, a partir da
relação e de linguagens comuns. Ao invés de pensar em termos de sínteses entre
a língua do colonizador e a do colonizado, a proposta de Glissant é de que se
conceba a identidade como um sistema relacional, como uma aptidão para “dar-
com” (donner-avec, neologismo que alude a uma força transruptiva que desafia o
universal generalizante e demanda, paradoxalmente, que se esmiúcem, cada vez
mais, as especificidades culturais e as singularidades).
Eduardo Viveiros de Castro, um dos formuladores do perspectivismo e
da multiplicidade em redes como conceitos que visam à descolonização da antro-
pologia, observa em uma de suas entrevistas que identidade na relação não quer
dizer relação entre identidades, ou relação para produzir identidades, como se o
fim primordial da relação fosse a produção de identidade. Não se trata de afirmar
uma dimensão identitária na relação, trata-se de dizer, de acordo com Viveiros de
Castro, que identidade tem uma dimensão relacional, identidades estão perma-
nentemente em construção, estão se constituindo e sendo engendradas o tempo
todo, e o terreno, a condição de possibilidade deste engendramento, é a Relação
(2007, p. 216 e seguintes). Acredito ser também este o sentido em que Glissant
propõe a idéia de identidade na relação como alternativa à identidade raiz: identi-
dade na relação põe o foco na alteridade e na diferença. Essa maneira de abordar a
identidade permite pensar que não nos movemos apenas pela definição ou afirma-
ção de nossas identidades, mas pelas relações que estas identidades estabelecem
com tudo o que é possível – as transformações e afetações recíprocas geradas por
este interjogo de relações.
214 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO

Para apreendermos de maneira precisa a idéia da Relação nada melhor,


segundo Glissant, do que a experiência que teve lugar no Caribe, um dos lugares
do mundo onde a Relação – assim mesmo, com “r” maiúsculo – se apresenta de
maneira mais visível, um lugar de encontro e, ao mesmo tempo, um “lugar de
passagem” no continente americano. O Caribe, com seus arquipélagos, é um mar
que faz explodir as terras em arco, é um mar que difrata, que explode em formas
fractais. A paisagem caribenha, ou as paisagens da Martinica, são paisagens aber-
tas, “irrué” – outro de seus neologismos, que contém a idéia de irrupção e erup-
ção, ímpeto entre realidade e irrealidade. Irrué procura dar conta do sentimento
de uma certa unidade-diversidade que permeia a paisagem caribenha e que irrom-
pe no conjunto dos países do continente americano. O Caribe funcionaria assim
como uma espécie de “prefácio” ao continente americano e à própria creolização
do mundo.
Uma outra maneira de apreendermos a creolização – agora em termos
da relação monolinguismo/plurilinguismo – é pensá-la como um processo que
jamais culmina em um absoluto qualitativo: trata-se de uma incessante força po-
ética e prática que busca o tempo todo ser aperfeiçoada, ser falada, ser completa.
Glissant defende a idéia de que quando falamos ou escrevemos, falamos e escre-
vemos na presença de todas as línguas do mundo, somos impregnados, poetica-
mente impregnados por todas as línguas, mesmo as que não conhecemos. Isto
significa que, no contexto da totalidade-mundo ou do todo-o-mundo (tout-monde)
e das relações com o “caos-mundo” – vou falar mais adiante sobre este conceito
–, não podemos pensar ou escrever de maneira monolinguística. Em sua poética,
Glissant deporta, desarruma, desconstrói suas próprias línguas – o creole e o fran-
cês – não elaborando sínteses, mas criando aberturas linguísticas que permitem
imaginar e conceber as relações das línguas entre si, nos nossos dias, na superfície
da terra. O processo de creolização é uma construção linguística (e poética) que se
mantém conjetural e abre mão de qualquer estabilidade ideológica, que se coloca
contra as cômodas certezas oriundas da suposta superioridade ou excelência de
uma determinada língua.
Trata-se então de um processo que se produz na incerteza e na imprevisi-
bilidade, que é constitutivamente latente, aberto, intencionalmente multilinguísti-
co, entrando permanentemente em contato com todo o possível, num movimento
que segue o princípio de comunidade na diversidade, que tem um sentido de co-
munhão na multiplicidade. É um movimento que lança os seres na Relação, não
apenas com outras pessoas, mas também com os animais, com as plantas, com
a terra: “We are all related”, lemos em Faulkner, Mississipi (2000). Neste livro
Leonora Corsini 215

Glissant, depois de uma viagem a Rowan Oak – a residência de William Faulkner


no Mississipi – propõe-se a uma revisita, a uma “outra” leitura deste autor cuja
obra seria, nos seus termos, emblemática daquilo que ele denomina Relação.
De acordo com a leitura de Glissant, embora não fosse ativista engajado
na luta pelos direitos civis, ou militante das mudanças sociais, Faulkner segue
uma direção bastante singular em relação a uma literatura sobre o Sul dos Es-
tados Unidos e a questão racial, apostando mais nas possibilidades abertas pela
recusa de uma visão estereotipada e identitária dos negros (é o devir-negro que
importa!)85. No imaginário condado de Yoknapatawpha, Faulkner exalta a multifa-
cetada dimensão cultural, emocional e linguística de personagens negros, brancos
(e alguns poucos índios sobreviventes), inseridos no ambiente rural das grandes
fazendas, nas suas relações cotidianas, de trabalho, de alianças, de estratégias de
sobrevivência. Não existe heroísmo, glorificação ou mesmo imagens estereotipa-
das dos negros do Mississipi em sua obra. O que é exaltado é a comunhão desses
personagens com a natureza, o que favorece o estabelecimento de uma espécie de
link entre a terra e os animais que a habitam. E, no confronto com os brancos, os
negros são apresentados em uma real situação de sofrimento e luta, para a qual a
possibilidade de mudança, a linha de fuga, é a subversão das hierarquias identi-
tárias através da miscigenação (ver em Faulkner, Mississipi, p. 57-60, e também
Poetics of Relation, p. 57). Portanto, para Glissant, o mundo de Faulkner é tam-
bém o mundo da Relação e da creolização.

Para além da mestiçagem, o mundo se creoliza


Na América Latina, a interpenetração e a coexistência de culturas diver-
sas e estrangeiras acabou dando origem a processos de inversão e alteração das
ordens simbólicas a partir da sedimentação de tradições culturais e linguísticas
dos grupos autóctones e seu entrecruzamento e justaposição com as tradições dos
setores políticos, educacionais e religiosos de origem ibérica, gerando as assim
chamadas “culturas híbridas”. Néstor Garcia Canclini (1990) sugere que a moder-
nidade, ou um projeto de modernidade, apresenta, no caso específico das culturas
latino-americanas, um elemento de fluidez constitutiva, não sendo algo enraizado
no qual as manifestações culturais irão se ancorar. Por isto ele fala de entradas e
saídas, movimentos multidirecionados que acabam fazendo com que as fronteiras

85 Deleuze e Guattari também observam em Mil Platôs (1997) como Faulkner aponta a neces-
sidade de os brancos do Sul, após a guerra da Secessão, “devirem” negros, para não acabarem
fascistas, da mesma maneira que os alemães, após 1933, tiveram que devir judeus para não se
tornarem nazistas (op. cit., p. 89).
216 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO

entre popular/erudito, tradicional/moderno, subalterno/hegemônico se diluam e


coloquem em xeque o paradigma binário. O híbrido, para Canclini, é algo que
vai além da fusão, do sincretismo, ou da mestiçagem, em uma acepção mais con-
vencional. Canclini diz que todas as culturas híbridas latino-americanas são de
fronteira e que as práticas transculturais, que sempre supõem desterritorialização
e multidirecionalidade de novas articulações, acabaram ocupando um lugar proe-
minente no processo de desenvolvimento político – ou, como ele diz, nas vias de
passagem transversais, oblíquas, para a modernidade – no continente.
Neste sentido, segundo Canclini, é no terreno das artes e da literatura
que podemos melhor compreender o fenômeno da hibridação cultural na América
Latina, a partir de manifestações como o movimento antropófago; de artistas e es-
critores de cidades de fronteira como Tijuana e El Paso; de Piazzola, que mescla o
tango com jazz e música clássica; de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buar-
que que se apropriaram das experimentações dos poetas concretos, das tradições
afro e outras experimentações musicais, e assim por diante. Canclini prefere, para
expressar este contexto de interculturalidade, o termo hibridação, no lugar de sin-
cretismo ou mestiçagem, “porque [hibridismo] abrange diversas mesclas intercul-
turais – não apenas raciais, às quais costuma se limitar o termo ‘mestiçagem’ – e
porque permite incluir melhor as formas modernas de hibridação em comparação
com ‘sincretismo’, fórmula que quase sempre se refere a fusões religiosas ou de
movimentos simbólicos tradicionais” (Canclini, op. cit., p. 19).
Se para Canclini o hibridismo é desencadeador de combinatórias e sínte-
ses imprevistas, para Glissant a creolização é a mestiçagem imprevista, não cal-
culada, que sempre se dá na diferença, entre multiplicidades. Entendendo por
mestiçagem o encontro e a síntese de duas diferenças, a creolização assume o sen-
tido de uma mestiçagem infinita e ilimitada, em que os elementos são difratados e
cujos efeitos são imprevisíveis. “Conhecer o imprevisível é sincronizar-se com o
presente, com o presente que vivemos, mas de uma outra maneira, não mais em-
pírica nem sistemática, mas sim poética”, diz Glissant (2005, p. 107). Trata-se de
um transbordamento da própria idéia de mestiçagem86 (idéia que não deixa de ter,

86 A creolização traz o elemento constitutivo da imprevisibilidade e da desmedida, ao passo


que se pode calcular os efeitos de uma mestiçagem. Pode-se calcular, por exemplo, os efeitos da
enxertia de plantas diferentes e do cruzamento nos animais de espécies diferentes, ou ainda an-
tecipar que ervilhas vermelhas e ervilhas brancas misturadas darão determinados resultados em
uma geração, e resultados diferentes em outra geração; ao contrário, a creolização cria micro-
climas culturais e linguísticos absolutamente inesperados, “lugares nos quais as repercussões
das línguas umas sobre as outras, ou das culturas umas sobre as outras, são abruptas” (Glissant,
Leonora Corsini 217

segundo o autor, uma certa dimensão de determinismo); por sua vez, a creolização
é a impossibilidade de previsão, ela é produtora de imprevisibilidade, ao mesmo
tempo em que ela se produz na imprevisibilidade e na errância.
A interpretação de Glissant para o creole87 – contrariando as regras, como
ele mesmo diz – é de uma linguagem cujo léxico e cuja sintaxe pertencem a duas
massas linguísticas heterogêneas, que se coloca entre duas multiplicidades. O
creole é, de acordo com esta definição, uma língua compósita, nascida do contato
imprevisível entre elementos linguísticos heterogêneos, uma “heteroglossia” que
resiste. Uma língua creole não é nem o resultado da extraordinária operação que
os poetas jamaicanos praticam espontaneamente na língua inglesa – a dub poetry,
o reggae falado jamaicano, um tipo de poesia que surgiu na Jamaica e na Ingla-
terra no início dos anos 70 – nem um pidgin, linguajar rudimentar e instrumental,
nem um dialeto. É algo novo, mas, ao mesmo tempo, não podemos dizer que se
trata de uma operação original, já que, quando estudamos as origens de qualquer
língua, percebemos que quase toda língua nas suas origens é uma língua creole.
Por outro lado, Glissant afirma que a creolização só pode ser exemplifica-
da pelos processos, e certamente não pelos “conteúdos” nos quais estes processos
operam. A creolização exige que os elementos heterogêneos que são colocados
em relação “se intervalorizem”, ou seja, que não haja degradação ou diminuição
do ser nesse contato e nessa mistura. E o mundo se creoliza a partir do momento
em que as culturas do todo-o-mundo se colocam em contato umas com as outras
de maneira imprevisível, transformando-se, permutando entre si,

através de choques irremissíveis, de guerras impiedosas, mas também através de


avanços de consciência e de esperança que nos permitem dizer que as humani-
dades de hoje estão abandonando algo em que se obstinavam há muito tempo – a
crença de que a identidade de um ser só é válida e reconhecível se for exclusiva,
diferente das identidades de todos os outros seres possíveis (2005, p. 18).

2005, p. 22). Temos, para ilustrar, os Black Indians da Louisiana [EUA], tribos que nasceram
da mistura entre os índios e os escravos negros foragidos (ibidem, p. 23).
87 Creole – que etimologicamente tem a ver com criar, produzir, a partir do encontro – é
um termo cunhado no século XVI com a grande expansão do poder comercial e marítimo da
Europa em direção às colônias nas Américas, na África, na Índia e na Ásia. Originalmente, o
termo se aplica às pessoas nascidas nas colônias, distinguindo-as das elites coloniais. Assim,
a língua creole é a linguagem falada pelos creoles. Muitas destas falas ou línguas creole estão
localizadas em áreas de passagem para os oceanos, incluindo as regiões do Caribe, as costas da
América do Sul, da África ocidental, e do Oceano Índico.
218 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO

Retomando de autores como Patrick Chamoiseau e Raphael Confiant a


perspectiva da plantation colonial como o “território da creolidade”, um territó-
rio onde se constituiu um modo característico de produção econômica a despeito
das divergentes dinâmicas políticas e dos diversos domínios linguísticos envolvi-
dos, Glissant diz que é preciso olhar a plantation como um laboratório, ou seja,
entendê-la como o lugar onde são expostas de maneira muito evidente as forças
antagônicas do oral e do escrito, por si, um dos tópicos de discussão mais presen-
tes no cenário contemporâneo. Foi na plantation que o multilinguismo, esta di-
mensão ameaçada de nosso universo subjetivo, pode ser observado pela primeira
vez, em formação e em processo de desintegração. E é também ali o lugar onde
o encontro das culturas é mais claramente e mais diretamente observável, onde
podemos encontrar algumas das leis constituintes da hibridação cultural que diz
respeito a todos nós: “a plantation é um dos ventres do mundo, não o único, é
um dentre muitos, aquele que oferece a vantagem de permitir ser estudado com
a maior precisão” (Glissant, 2003, p. 75). Aquilo que era uma prisão, um lugar
de dominação, uma fraqueza estrutural, transforma-se em vantagem. Porque, no
final, acontece uma reversão e a prisão é derrubada; o espaço era fechado, mas o
mundo que derivou dele, permanece aberto.
Assim a creolização se torna presente no mundo contemporâneo, fazendo
emergir novas estéticas, personagens, linguagens, comportamentos, redes relacio-
nais, subjetividades88. Ecos, ou efeitos desta mistura no mundo contemporâneo
– efeitos estes que não podem e não devem ser reduzidos à noção de melting-pot,
ou de caldeirão cultural – são, de acordo com Glissant, os escritos de William
Faulkner, a música de Bob Marley, as teorias de Benoit Mandelbrot sobre geome-
tria fractal, a arquitetura de Chicago, as favelas do Rio de Janeiro e de Caracas,
os Cantos de Ezra Pound, os protestos dos estudantes em Soweto, ou a instalação,
feita num terreno vazio, por um migrante deportado, em pleno deserto de Mali,
de uma cerca de arame destinada a ensinar às crianças da sua comunidade o que
é uma tentativa de passagem através de barreiras de fronteira. Esta imagem foi

88 Como diz Ivana Bentes (2007), hoje os movimentos locais, os novos produtores de cultura
das periferias que fazem parte do chamado “precariado” global (produtores sem salário nem
emprego, trabalhadores do imaterial, artistas, pesquisadores, trabalhadores informais) apon-
tam novas saídas, rompendo com o velho “nacional-popular” populista e paternalista e com as
idéias engessadas de “identidade nacional”, possibilitando formas de expressão de um “gueto
global”, ou do que ela denomina “guetos-mundo”.
Leonora Corsini 219

transmitida por uma rede de televisão européia no início de 2006 (Glissant refere-
se a este acontecimento como rastro magnético89).

A estética do caos-mundo e a desmedida do mundo


Já vimos como a idéia de imprevisibilidade é central na definição que
Glissant faz da creolização. Mas existe uma outra dimensão, também associada
a este processo, a qual vale a pena destacar: a desmedida. A desmedida é aquilo
que escapa à metrificação, aos ordenamentos sistêmicos, às determinações aprio-
rísticas, e à filosofia da transcendência. Ao dizer que “o todo-o-mundo é também
uma desmedida” (2005, p. 105), Glissant esclarece que é desmedida não porque
seja uma força anárquica, mas porque não existe mais a pretensão à profundida-
de, a pretensão ao universal, apenas pretensão à diversidade. Aqui, neste ponto,
podemos entrever uma sintonia entre seu pensamento e o de Negri, que também
argumenta que desmedida não é nem o indefinido, nem a indeterminação. A des-
medida do mundo é o nome da “produção de um real sempre novo, uma espécie
de inquietude que ressoa na potência da temporalidade” (Negri, 2003, p. 55); e
também a abertura para novas formas de relação com o outro na rede da produ-
ção, da reprodução social e da participação no “intelecto geral” (ibid., p. 22). Para
Negri, desmedida é aquilo que qualifica o campo materialista, é o horizonte de
possibilidade do comunismo e do comum.
Glissant, retomando algumas das premissas da ciência do caos que afir-
mam a existência de sistemas dinâmicos determinados que se tornam erráticos,
pensa a desmedida do mundo em termos de uma estética do caos – o caos-mundo
– que se configura a partir da tendência à dissipação e da “flutuação” errática
dos sistemas caóticos90. A estética do caos-mundo – uma estética depurada de
qualquer valor a priori – abrange todos os elementos e formas de expressão des-
ta totalidade que vive dentro de nós. É a ação desta totalidade (imanência) em

89 Cf. o texto “Não há fronteira que não se possa atravessar”, Édouard Glissant, 2006.
90 O pensamento de sistema ou pensamento sistêmico traz embutida a idéia de sistemas que
visam à própria manutenção e conservação através do equilíbrio homeostático, e este tipo de
pensamento está evidentemente sendo criticado por Glissant. Mas ele aqui faz referência aos
sistemas caóticos estudados pela Física, sistemas complexos e instáveis caracterizados por es-
truturas dissipativas de energia e pela auto-organização. Neste caso, trata-se de sistemas pro-
fundamente sensíveis e dependentes de trocas com o meio para sua sobrevivência e evolução,
que funcionam segundo os princípios da instabilidade e do caos, combinando ordem e desor-
dem, determinismo e probabilidade, acaso e repetição como partes essenciais de sua história
(para mais detalhes sobre sistemas caóticos, sugiro o texto de Ilya Prigogine “Dos relógios às
nuvens”, 1996).
220 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO

sua fluidez, é a totalidade refletindo em movimentos, agenciamentos, através da


poética da Relação (que é parte constituinte da estética do caos-mundo), que nos
permite pressentir, assumir, abrir, juntar, conectar, espalhar, continuar, resistir, en-
xamear e transformar o mundo.
Termino citando um belo trecho de Poética da Relação (2003) que ilus-
tra perfeitamente a potência da creolização, nos termos de Glissant, um “não-
sistema” linguístico e relacional que não é nem dominador, nem sistemático, nem
imponente; que é, ao contrário, um “não-sistema” intuitivo, frágil e ambíguo de
pensamento, ação e expressão, mais adequado à extraordinária complexidade e à
extraordinária dimensão de multiplicidade do mundo no qual vivemos:

Estas expressões musicais nasceram do silêncio: spirituals e blues, que se dis-


seminaram nos vilarejos e nas cidades em expansão; jazz, biguines e calipsos,
que explodiram nos bairros e favelas; salsas e reggae, que sintetizaram numa
palavra diversificada o que era rudemente direto, dolorosamente aviltado, pa-
cientemente adiado. Este foi o grito da Plantation, transfigurado em palavra do
mundo.

Referências

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mar/abr/mai 2007.
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Leonora Corsini 221

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VIVEIROS DE CASTRO, E. Renato Sztutman (org.) Coleção Encontros. Rio de Ja-
neiro: Azougue Editorial, 2007.

Leonora Corsini é psicóloga, pesquisadora do LABTeC/UFRJ, além de fazer parte


da Rede Universidade Nômade. Seus temas de estudos e publicações são as migrações contem-
porâneas, as novas formas do êxodo, a produção de subjetividade e identidades.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 223-236

Expressões do monstruoso precariado


urbano: forma M, multiformances, informe

Barbara Szaniecki

1. Forma M
Monstros existem desde o Paleolítico, se desenvolveram da Antiguidade
à Idade Média, mas foi na Modernidade que surgiu uma primeira tentativa de do-
mesticá-los através da Razão. No campo da biologia, o monstro é o anti-natural,
no campo da psicologia, o monstro é o perverso. Já no campo religioso, tal como
apreendido pelas Artes, o monstro apresenta uma ambigüidade: demônios e anjos
são tidos como monstros pois ambos apresentam um desvio com relação à Natu-
reza. Seguindo os passos do “monstrólogo” Gilbert Lascault, chamei de “forma
M”, toda forma composta que não deriva da Natureza, nem apresenta abstração.
No século XVII, a “forma M” inquieta Descartes. Em sua Primeira Meditação,
ele se interessa pela imaginação criadora de monstros e considera que, mesmo
quando pintores se aplicam a representar seres monstruosos como sereias e sá-
tiros entre outros, as formas bizarras e extraordinárias que a eles atribui não são
jamais inteiramente novas ou originais, mas misturas e composições de formas já
existentes em seu repertório.
Nas condições de fabricação, no ‘fazer’ artístico, Descartes encontra uma
racionalidade. Para ele, a imaginação cria monstros graças a uma mera atividade
combinatória, um bricolage do qual emerge um monstro perfeitamente transpa-
rente para a Razão91. A partir da concepção de Descartes, torna-se possível realizar
uma classificação das formas M92: por um lado, seres monstruosos por natureza,

91 Séculos mais tarde, essa concepção constitui a base do surrealismo, cuja “receita de cozi-
nha” desmistifica completamente a atividade do artista.
92 “Por definição, a forma monstruosa foge efetivamente de outros modos de determinação
racional, usadas habitualmente. Desvio da natureza recusa de ser a imitação de uma realidade
natural anterior, ela não pode ser comparada a esta realidade nem ser classificada em função de
uma ordem das imagens paralela a ordem das realidades imitadas (retratos, naturezas mortas,
paisagens). Distinta do ser verbal, da contradição aberta definida por Spinoza, ela não pode ser
objeto de um estudo puramente lógico que denunciaria seus aspectos contraditórios. Oposta ao
monstro natural, ela foge aos critérios de uma classificação teratológica tal como foi elaborada
por exemplo por Isidore Geoffroy Saint-Hilaire. Distinta do monstro moral, do Mal encarnado,
224 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO

isto é, monstros por confusão de reino ou gênero, monstros por transformação


de tamanho (anões ou gigantes), monstros por adição ou subtração de órgãos
ou membros (sem braços ou com muitas pernas), monstros por indeterminação
(hermafroditas, entre outros); e por outro, monstros dinâmicos no sentido que
transgridem às leis biológicas, físicas e ontológicas. Segundo Lascault, uma vez
estabelecida a taxonomia cartesiana das formas M – o “como” se faz monstros –,
procurou-se atribuir a cada uma dessas formas monstruosas um conteúdo, ou seja,
explicar o “porquê” dos monstros. Encontramos então, desde o século XVII93,
dois tipos de classificações: classificação das formas e classificação dos conteúdos
atribuídos a essas formas. Essas classificações da História da Arte acompanha-
ram as classificações de outros campos do conhecimento da época, tais como
a Biologia: as classificações de Formas M baseadas no modelos da Iconologia
desenvolveram-se junto com as classificações de monstros naturais realizadas
pela Teratologia.
Ora, este procedimento que reduz o monstro à aparência de um conteúdo
e, em seguida, pretende a uma unicidade e clareza do significado de suas formas,
apaga toda e qualquer possibilidade de apreender a monstruosidade que temos
chamado, por provocação, de “monstruação”. Encontramos representações de
monstros nas artes de todos os tempos, antiga, medieval, moderna e também na
arte contemporânea. Entre elas, destacamos alegorias monstruosas de formas de
sociedade como o Leviatã – muitos corpos sob uma só cabeça, a do soberano – e
a Hidra – muitas cabeças para um só corpo. São representações de concepções
sociais e políticas e não expressões de processos monstruosos. Há algo como

ela é valorizada distintamente e não saberia, em si mesma, receber uma significação não ambí-
gua graças ao julgamento ético de um sujeito livre. Nascida da imaginação individual, a forma
monstruosa deveria então, de acordo com uma opinião tradicional, fugir de toda classificação;
não haveria lógica do imaginário; não haveria conhecimento classificatório das formas estéti-
cas. Mas, nas condições de fabricação, no ‘fazer’ artístico, no ‘como’ do monstro – e Descartes
o revela – aparece uma racionalidade. No artifício, a racionalidade encontra seu lugar. E assim
a classificação torna-se possível. Como é o caso para toda técnica, esta racionalidade dos mé-
todos nem sempre é consciente para o criador, nem evidente para o espectador. Mas ela existe,
se ao nível da questão que ele coloca, Descartes tem razão. O estudo das figurações mons-
truosas deve permitir de determinar constantes no nível dos processos de fabricação; a partir
destas constantes, uma classificação formal dos monstros deve tornar-se possível. Ela se efetua
colocando-se em relação os monstros, as realidades produzidas e as práticas dos criadores, ou
seja, os processos de transformação de um dado anterior, tais como estes criadores a realizam.
Ela ata o monstro às condições de produção.” (LASCAULT)
93 Lascault cita Cesare Ripa. Nova Iconologia. Pádua, P.P. Tozzi, 1618.
Barbara Szaniecki 225

uma transcendência que nos afasta da apreensão da “monstruação” em curso. O


caso da Hidra é interessante por ser emblemático da ambigüidade do monstro.
Existiram hidras reacionárias e aristocráticas como as da Revolução Francesa, e
hidras revolucionárias como as de maio de 1968, quando estudantes, operários e
camponeses compuseram um só corpo movido a desejos libertários.
Com efeito, o único elemento comum entre as formas M que acabo de
apresentar, e os monstruosos processos que passarei a apresentar agora, é que am-
bos são portadores de uma ambivalência, quase um enigma. E é com um enigma
que abro passagem para o nosso momento contemporâneo. Em 14 de fevereiro
deste ano de 2008, o jornal carioca O GLOBO noticia:

Camelôs ‘embrulham’ passarela de pedestres:


um exemplo de desordem urbana cresceu rapidamente às vistas de quem trafega
pela Avenida Brasil ou costuma freqüentar um dos pontos de ônibus instalados
no trecho da via expressa, junto à Fiocruz, em Manguinhos. Não chega a ser
novidade o fato da passarela de pedestres que cruza as pistas ser usada por ven-
dedores ambulantes para montar suas barracas, com toda sorte de mercadorias
– de comida a quinquilharias. Mas agora, além de ocupar o espaço dos pedes-
tres, os camelôs conseguiram cobrir praticamente metade da estrutura metálica
com plásticos azuis, transformando a passarela num túnel.

Num monstro! Uma entrevistada diz: “fico com medo de passar por esse
túnel e ser assaltada”. Medo. Curiosamente, a passarela “embrulhada” em plástico
azul me fez lembrar de uma obra do artista Cristo94: o “embrulhamento” da Pont
Neuf, a mais antiga ponte de Paris. A passarela “embrulhada” no Rio de Janeiro
e a ponte “embrulhada” em Paris, compartilham uma mesma forma. Contudo,
enquanto a obra dos artistas gera o maravilhamento dos críticos de arte, a obra
dos camelôs gera a perseguição dos órgãos públicos. Como uma mesma forma
pode comportar conteúdos tão diferentes? Se a forma visual é a mesma, porque
suscitam reações tão opostas?95
Encontramo-nos frente a um enigma mais complexo do que aquele que
a esfinge apresentou a Édipo na mitologia! Trata-se de uma provocação, mas esta
questão coloca em xeque toda a Iconologia, certa filosofia da linguagem e parte

94 Junto com sua mulher Jeanne Claude em 1985.


95 Cerca de um mês após a notícia, a passarela é “desembrulhada”. Os ambulantes foram ca-
dastrados para regularização. O ‘desembrulhamento’ contou com “60 policiais do Batalhão de
Policiamento de Vias Especiais (BPVE) e do 22 BPM (Maré), além de eletricistas da Rio Luz
para a retirada de ‘gatos’ de energia.”
226 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO

considerável do pensamento ocidental. Mais do que a representação do monstro


– forma que supostamente abriga um conteúdo –, o que me interessa é a produ-
ção de um monstruoso precariado urbano contemporâneo – forma e conteúdo
num mesmo plano de consistência. Sem-Terra, Sem-Teto e Sem-Direitos em ge-
ral, empregados, subempregados e desempregados, professores, pesquisadores e
estudantes, bolsistas ou não, cotistas e afins, artesãos, designers e artistas da vida:
este monstro urbano produz algo como uma “fala” que é irredutível a qualquer
forma-totalização. Uma fala irrepresentável estética e politicamente. Qualquer
representação desta “monstruação” consiste em erro sobre sua verdadeira “na-
tureza” – erro ontológico – a menos que se considere que levar ao equívoco é o
próprio do monstro.

2. Multiformances: uma “fala-monstro”


Tenho procurado “identificar” agenciamentos corpóreos e expressivos
deste precariado. Os termos de “manifestações”, ou de “performances” não me
satisfazem, na medida em que o primeiro se encontra demasiadamente atrelado
à política tradicional, e o segundo relacionado à práticas exclusivamente artísti-
cas. Esses agenciamentos podem ser definidos como carnavalizações (paradas,
procissões e escrachos carnavalescos), performances e ocupações. São agencia-
mentos que, ao adquirir certa consistência, são nomeados e datados. A Parada Eu-
roMayDay, por exemplo, acontece todo 1o de maio desde 2001 em várias cidades
européias e, em sua luta contra a precariedade que atinge os trabalhadores, carna-
valiza criativamente – entre seus organizadores encontram-se trabalhadores das
ditas “indústrias criativas” – os tradicionais festejos característicos do 1o de maio.
Para Negri, “May Day é bem mais do que uma série simultânea de ‘paradas’, é um
processo recompositivo e constituinte do novo proletariado pós-fordista” (Negri,
2006, p. 174).
A EuroMayDay europeu produziu ecos no Brasil. Em setembro 2004, foi
realizado pelo coletivo Las Non Gratas Copirat, na Escola de Artes Visuais do
Parque Lage do Rio de Janeiro, o desfile Fashion Real – últimas tendências da
precariedade. O coletivo afirma que procurou deslocar o conceito de “tendência
da moda prêt-à-porter” aplicando-o às “tendências do mundo prêt-à-travailler”,
com suas múltiplas formas de precariedade. A precariedade também foi tema
da performance Nolex – Sample Way of Life96, de Romano, um dos vencedores

96 Texto de apresentação da performance: “O que (ainda) é original? Do que se apropriar ou


o que não é sample no mundo das imagens? Em uma sociedade que oscila entre o bizarro da
violência e os paparicos do luxo, se adotam novas formas de produção e circulação simbólica.
Barbara Szaniecki 227

do Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea, realizada por modelos, camelôs e


rappers. A primeira performance aconteceu na Funarte, Palácio Gustavo Capane-
ma, no Rio de Janeiro, em março de 2008: um desfile de roupas de camelódromo
acompanhado por várias bandas de rap e com a participação de Maria dos Ca-
melôs. A segunda apresentação se deu no mesmo mês por ocasião do lançamento
do número 10 da revista Global/Brasil na Livraria Odeon na Cinelândia. Se a
“elite” sampleia a “perifa”, porque a “perifa” não pode samplear a “elite” com
seus Rolex? Para além das carnavalizações como a EuroMayDay [01/05/2001]
e das performances como Fashion Real [11/08/2004] e Nolex [27/03/2008] que
apontam e problematizam as metamorfoses do mundo do trabalho, é importante
assinalar Ocupações como a Prestes Maia [03/11/2002] nas nossas imensas me-
trópoles sem solução para moradia popular. Em novembro de 2002, na calada da
noite, cerca de 2000 pessoas, 468 famílias, ocuparam um edifício abandonado por
mais de 10 anos e com dívida de IPTU de mais de cinco milhões de reais, e nele
existiram e resistiram em seus múltiplos agenciamentos, internos e externos, por
mais de cinco anos.
A consistência rizomática desses eventos não constitui uma forma, mas
uma multiplicidade com certa capacidade de se “manter junto”,97 e uma visibili-
dade que venho chamando de Multiformance para fugir de toda análise dentro
de um campo exclusivo: campo da política ou campo das artes com suas seg-
mentações – arte contemporânea, arte popular, design, comunicação etc. Desses
eventos, não há representação ou totalização em uma figura. Pois, se enquanto há
vida humana, é impossível desenhar algum limite rígido de um corpo individual,
enquanto há movimento social, é improvável traçar algum contorno nítido de um
corpo coletivo. Deleuze e Guattari já diziam que a figura, enquanto delimitadora
de um corpo no tempo e no espaço, se assemelha à morte. A figura seria como o
limite incorpóreo que acaba o corpo humano (1980, p. 136).

Samples não são “coisas” de DJs, também são estratégias de sobrevivência na neblina dos
conceitos, ou melhor, quando os conceitos se tornam propaganda. Sobrevida, com uma apro-
priação, não de matéria prima, mas do valor agregado (charme, liderança, fitness); nunca o belo
foi tão público. Consumir parafraseando a elite que nos sampleia, é simplesmente ser como o
outro, diluir as identidades de um no outro, mesmo que não dure mais do que os cinco minutos
de fama ou do produto). Genérico e não falso, nunca foi tão fácil ser outra pessoa, na rede ou
na moda, circulação de posturas, nossos relógios (ambos Rolex) marcam a mesma hora. Nosso
tempo é o mesmo. http://oinusitado.com/”
97 Ver em Maurizio Lazzarato As Revoluções do Capitalismo (2006) Os todos distributivos
e os todos coletivos: o processo constituinte enquanto agenciamento dos fluxos e networks, de
invenção e repetição, de singularidade e de multiplicidade, p. 48.
228 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO

Desses eventos, há apenas apresentação dos agenciamentos corpóreos e


expressivos de um monstruoso precariado urbano entendido como sujeito social e
político inacabado diria Bakhtin, em devir diriam Deleuze e Guattari, em consti-
tuição através de suas lutas diria Negri. E aqui, no inacabamento das formas deste
precariado – da sua forma moradia, da sua forma trabalho, da sua forma jurídica,
da sua forma estética, entre outras – é que encontramos uma brecha para a am-
bigüidade de que falei antes e de que vou falar novamente para entender por que
o fenômeno e o conceito de precariado, erroneamente percebido e interpretado
como um sub-proletariado, gera tantos problemas para a esquerda tradicional. Se
o assalariado é constituído pelo trabalhador com estatuto garantido, o precariado
é constituído pelo produtor sem estatuto definido e que, por este motivo, para a
esquerda tradicional, deve ser combatido. Ora, diferentemente da Religião ou da
Moral, vimos que as Artes não distinguem anjos de demônios. Ambos são mons-
tros. Talvez a Política seja como as Artes: não se trata de distinguir anjos de demô-
nios, de distinguir uma boa multidão de uma má, mas de constituir efetivamente
a multidão que desejamos entendida como articulação de nossas singularidades
em uma esfera pública do comum. Se no primeiro caso, monstro é aquele que se
desvia da Natureza – que é, na realidade uma abstração, uma construção –, no
segundo caso, monstruosidade é aquela que se afasta da transcendência. Quem há
de julgar se ela é boa ou má?
Existem, por exemplo, diferentes níveis de precariedade: desde os des-
tituídos de qualquer direito, como os “sem papéis” das cidades européias ou os
“homos sacers” das periferias brasileiras, até aqueles que chamamos de intelec-
tuais precários, burgueses boêmios, criativos sem patrocínio. Há, simultaneamen-
te, uma multiplicidade de percepções possíveis: desde aqueles que se sentem
“precarizados”, isto é, vítimas de um processo de precarização de toda a sua
vida – percepção de sujeição que é real – até aqueles que afirmam seu desejo
de precariedade entendido como desejo de flexibilidade temporal e mobilidade
espacial – afirmação de subjetividade que é constituinte. Ou seja, há uma infinita
variação entre a determinação externa da precariedade e a auto-determinação de
precariedade entendida como desejo de determinar suas condições de trabalho,
no tempo e no espaço, em função daquilo que considera vital. Há, sobretudo,
uma imensa dificuldade, por parte da própria esquerda, em pensar essa heteroge-
neidade que se constitui como classe a partir das suas lutas. Ora, se consideramos
que este processo de “precarização” foi deflagrado em 68, com a fuga das fábri-
cas, quando as novas formas de lutas reconfiguraram as formas de poder, nossa
Barbara Szaniecki 229

questão é superar a ambigüidade desse monstro, confirmando e realizando a sua


auto-determinação.
Com efeito, Negri diz que se o monstro é ambivalência, a multidão é
potência. Para não reduzir o enunciado a uma fórmula, é preciso refletir sobre
seu sentido, para em seguida constituir concretamente essa potência. Creio que
as multiformances que apresentei podem ser entendidas como expressão da arti-
culação de singularidades em uma esfera pública do comum. Expressão de uma
heterogeneidade com certa capacidade de se manter unida em sua caminhada. O
precariado surge como uma multiplicidade consistente em movimento que di-
fere da homogeneidade estável do proletariado. Esta efemeridade é interessante,
mas... permanece uma sensação de grande vulnerabilidade. Como manter algum
nível de consistência, mobilização e, mesmo, de proteção, para além do evento?
Atingimos um platô x, e depois? Para avançar nesta questão, me perguntei se o
precariado urbano contemporâneo tem “visibilidades” para além das multifor-
mances. “Visibilidades” que nos ajudem literalmente a “visualizar” o problema
político e avançar no movimento. O meu movimento particular, enquanto pesqui-
sadora-militante, tem sido o de refletir sobre questões sociais e políticas, através
de questões estéticas. E vice-versa.

3. Informe: agenciamento maquínico, multidão constituinte.


Vimos que multidão é uma monstruosidade em constituição e não um
monstro representável. Talvez a questão da multidão seja a própria impossibili-
dade de uma “forma”. Talvez a constituição da multidão se assemelhe a um “tra-
balho das formas” segundo a definição de “informe” apresentada recentemente
por Georges Didi-Huberman (2003) a partir da obra de Georges Bataille. Tenho
algumas pistas, tudo ainda em certo estado de confusão, mas em plena conformi-
dade com meu objeto de estudo. A percepção da improbabilidade de uma “forma”
estética-política da Multidão surgiu numa vinda do Negri em Outubro de 2005,
quando assistimos a uma performance “Multidão” no Teatro Oficina. Na ocasião,
o próprio José Celso Martinez manifestou sua profunda insatisfação com o re-
sultado. Recentemente, em julho deste ano de 2008, o coletivo BijaRi renovou
a experiência no evento Verbo da Galeria Vermelho, em São Paulo. Infelizmente
não vi a performance. Diz o BijaRi:

Multidão Zero: quarenta anos nos separam do mítico ano de 68 e das transfor-
mações culturais e políticas então deflagradas. Grande parte do seu potencial
inventivo e de união foi esvaziado e canalizado em direção oposta, ao indivi-
dualismo alienante e à desmobilização social. Multidão Zero busca repensar a
230 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO

potencialidade das mobilizações/multidões atuais em relação à este paradigma


histórico: o sentido político foi esvaziado? A revolução virou fetiche?...ou bus-
camos novamente articular um corpo comum? “Mobilização”, “Suspensão” e
“Esvaziamento” são os movimentos que estruturam a performance.

Ainda no campo das Artes, em “Eu e Você”, Ricardo Basbaum convida


pessoas a vestirem camisetas “eu” e você” com o propósito de produzir um “nós”,
registra os jogos em vídeo e deles traça instigantes diagramas, sem deixar de pro-
blematizar a sua própria posição:

Quando proponho uma performação de tal conjunto de jogos e exercícios, sem-


pre insisto em fazer parte do grupo, vestindo uma camisa ‘eu’ ou ‘você: não vejo
sentido algum em ficar de fora, atuando como uma espécie de ‘diretor’ ou coor-
denador de atividades, separado do grupo. (…) No entanto, difiro do grupo pelo
fato de operar como aquele que traz a proposição para os outros. Todas as vezes
que os jogos e exercícios eu-você re-acontecem (…), tenho que desempenhar o
papel de facilitador, ajudando a criar as ligações necessárias a partir das quais
o grupo – e não apenas um monte de pessoas – irá emergir como entidade.98

A fórmula que representaria a transformação de eu e você em nós, seria


n (eu + você) = nós que pode ser lida como afirmação da existência de n possibi-
lidades de se constituir o nós com eu e você. A esta fórmula, contudo, devemos
acrescentar a de Deleuze e Guattari segundo a qual toda sociedade maquínica
rejeita qualquer elemento centralizador ou unificador: a multiplicidade é sempre
igual a “n – 1” (Deleuze e Guattari, 1980, p. 27). A proposta de produzir um
“nós” maquínico é tão necessária quanto arriscada: além da dificuldade de fugir
do papel daquele que, a partir de um fora, instiga o processo – neste caso, a pró-
pria apresentação do problema já consiste em tática para enfrentá-lo –, o artista
corre o risco de não obter um agenciamento corpóreo e expressivo heterogêneo
caso o jogo seja realizado entre “pares” somente. No campo social e político, este
risco me faz indagar sobre a chance que teria um partido ou sindicato, com seus
mecanismos de representação, de “fazer” multidão”, sabendo que Negri define
o “fazer multidão” como efetivação da passagem da resistência a uma dimensão
política imanente e constituinte. Em todos esses casos, maquinar um nós ou fazer
multidão, é risco a ser enfrentado.

98 http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ricardo.htm
Barbara Szaniecki 231

Uma outra interessante proposta de Ricardo Basbaum, “Você gostaria


de participar de uma experiência artística”99, consiste em oferecer um objeto
específico do qual as pessoas possam se apropriar livremente. Sem limites de
espaço, pois é mundial, e sem limite de tempo, pois não há previsão para finaliza-
ção, esta “obra” sem acabamento me permite introduzir a rede100 como informe,
um contínuo “trabalho das formas” segundo a expressão de Didi-Huberman que
impede seu fechamento-figura-morte. Atenção: não desejo abordar ações de co-
letivos de arte – o coletivo dificilmente se livra da obra e da autoria –, mas redes
de produções de caráter artístico, sobretudo quando o projeto em questão não é
exclusivamente realizado por artistas. Tampouco se trata da colocação em rede
de obras já existentes, pois aqui também obra e autoria permanecem. O que me
interessa é “algo” que não apenas rompe com os paradigmas modernos, mas que
só existe enquanto articulação visível das singularidades e do comum por elas
produzidos. Esse “algo” só existe como multifacetação aglutinada e não como
totalidade organizada – obra artística ou projeto político. Tomo como exemplo
a proposta Desligare101.

99 Você gostaria de participar de uma experiência artística? por Ricardo Basbaum: “O


projeto se inicia com o oferecimento de um objeto de aço pintado (125 x 80 x 18 cm) para ser
levado para casa pelo participante (indivíduo, grupo ou coletivo), que terá um certo período de
tempo (em torno de um mês) para realizar com ele uma experiência artística (…). ‘Você gos-
taria de participar de uma experiência artística?” é claramente um projeto dinâmico e encontra
seu modo de desdobramento no processo mesmo de seu desenvolvimento. Virtualmente, o pro-
jeto não apresenta qualquer fim imediato a curto prazo, uma vez que sua continuidade deriva
diretamente da intensidade e do prosseguimento das experiências – o objeto é concebido como
um múltiplo, e novos objetos podem ser produzidos sempre que se fizer necessário” http://
forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.rede/nbp.
100 Em Multidão, Hardt e Negri fazem histórico (“Do exército popular à guerra de guerrilha”
p. 104) e análise das lutas em rede (“Inventando lutas em rede”), p. 116. Na p.126: “concluímos
assim nossa genealogia das formas modernas de resistência e guerra civil, que evoluiu inicial-
mente de revoltas e rebeliões disparatadas de guerrilha para um modelo unificado de exército
popular; posteriormente, de uma estrutura militar centralizada para um exército policêntrico
de guerrilha; e finalmente do modelo policêntrico para a estrutura em rede disseminada”.
Contudo, a rede não escapa à ambivalência: cf debilidade da democracia nos modelos chinês
e cubano p. 112.
101 Apresentação do projeto pó Newton Goto: Desligare é um vídeo (e/ou vídeo-instalação)
constituído de 115 situações de desligamento de TV, gravadas com mais de 100 participantes
principalmente nas cidades de Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Londrina. A rede de cola-
boradores foi constituída a partir de uma proposta que Newton Goto lançou ao público tendo
como princípio a chamada “qual programa de TV você gostaria de desligar?”. Participaram
232 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO

Desligare é constituída de 115 situações de desligamento de TV, gra-


vadas com mais de 100 participantes, artistas e não artistas, principalmente nas
cidades de Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo e Londrina. A rede de colaborado-
res foi criada a partir de proposta lançada por Newton Goto “qual programa de
TV você gostaria de desligar?” seguida de algumas estratégias. O participante é
convidado, por exemplo, a performar e gravar em vídeo a cena de desligamento
do programa televisivo, ou registrar seu próprio reflexo e seu entorno na tela sem
imagem assim transformada em espelho produtor de um curioso portrait, ou ainda
registrar a imagem da TV com os frames enigmáticos que se formam no momento
de seu desligamento. Enfim, foram indicadas várias possibilidades às quais os
envolvidos acrescentaram outras tantas, sempre relacionadas ao ato de demitir
o aparelho mídiatico de sua função de emissão de signos padronizados. Esses
fragmentos foram juntados em um vídeo e uma vídeo-instalação. Encontramo-
nos diante de uma obra que articulou visivelmente singularidades em um desejo
comum de desligamento de um dispositivo de controle. Contudo, ao optar por
uma finalização, neste caso um formato vídeo e vídeo-instalação, a rede Desligare
encerrou de certo modo sua expansão e experimentação no tempo e no espaço,
embora ainda pulse sua profunda inquietação. Seja no caso de uma obra de arte,
seja no caso de um projeto social e político, encontramo-nos frequentemente em
uma tensão, temporal e espacial, entre a organização de uma totalidade e a agluti-
nação de uma multiplicidade.

artistas e público em geral, sendo que o público não artista foi basicamente todo agendado na
rua, especialmente na Boca Maldita, em Curitiba. Misto de documentário e ficção, o projeto
evidencia o espaço público televisivo como resultante da somatória de espaços privados, os la-
res dos participantes. Simultaneamente, situa o indivíduo numa outra dimensão política, o pró-
prio vídeo, oportunizando uma situação de resposta crítica e criativa do sujeito receptor frente
a empresa emissora de TV. A liberdade e singularidade das situações de desligamento marcam
o trabalho também como espaço performático, agregando carga existencial, acaso e improviso
à proposta estruturalista, desconstrutiva e recodificante. De início, antecipou-se aos partici-
pantes as estratégias de captação de imagem: 1. TELA/ESPELHO: filmagem enquadrada no
monitor de TV na hora do desligamento, iniciando no aperto do botão, passando pelos frames
de sumiço da imagem (trecho c/ velocidade reduzida a 5%), até o momento onde manifesta-se
a TV transformada em espelho, refletindo o indivíduo e o ambiente privado, como num retrato.
2.PERCURSO/CENA: filmagem desde a porta de entrada da casa onde vive o participante até
o local onde ele assiste TV, seguida da gravação da cena de desligamento em si. A porta aqui
é concebida como uma membrana entre o público e o privado. Aos participantes foi dada a
orientação: “desliga a TV como quiser; e depois de desligar, faz o que quiser”. Desligare foi
realizado durante o ano de 2006 através do financiamento do projeto Bolsa Produção em Artes
Visuais do Fundo Municipal de Cultura da Fundação Cultural de Curitiba.
Barbara Szaniecki 233

Desde sempre, estuda-se a relação entre modos de produção e formas da


arte, a história social da arte ofereceu grande contribuição neste sentido. Hoje,
produz-se em rede, na vida e na arte. Contudo, lembremos que Marx dizia que
não basta colocar muitas batatas dentro de um saco de batatas para fazer uma
organização política. Hoje, ele diria que não basta colocar muitas batatas em rede
para “fazer multidão” tal como definimos anteriormente. O que as redes abrem
como possibilidades de resistência entendida como luta contra os padrões vigen-
tes impostos por sistemas exclusivos de comunicação? O que as redes de experi-
mentações artísticas, por exemplo, abrem como possibilidades de resistência ao
monopólio midiático e criação de outra comunicação – no sentido de colocar em
comum – possível?
Surgiram, nos últimos tempos, várias teorias para abordar experimenta-
ções estéticas do campo social e político que, diferentemente da obra de arte mo-
derna, não totalizam em uma figura. Reinaldo Laddaga nos fala de uma Estética
da Emergência. Segundo o autor, na teoria do Caos, a emergência é um fenômeno
que teria uma consistência em si mesmo: uma infinidade de partículas produ-
zem uma série de conexões consistentes – uma forma? – da qual, contudo, não
podemos ter uma visibilidade total, mas apenas cortes parciais de uma situação.
Estética da Emergência é uma análise de projetos empreendidos por artistas do
mundo inteiro no último decênio e que consistem na elaboração de “plataformas”
através das quais são realizados textos, imagens e arquiteturas graças à colabora-
ção de um extenso número de pessoas por um tempo prolongado. Laddaga deno-
mina “comunidades experimentais” essas experimentações artísticas de sociedade
ou experimentação social da arte e afirma acreditar que uma grande maioria de
artistas, hoje, esteja mais interessada nesse tipo de projeto do que na produção
individual de obras de arte.
Nicolas Bourriaud indica uma Estética Relacional. Jacques Rancière
analisa uma Partilha do Sensível onde afirma seu desejo de trabalhar o próprio
sentido que é atribuído ao termo estética. Não se trata de uma teoria da Arte e da
sensibilidade, mas de um pensamento das Artes: “um modo de articulação entre
maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de
pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada idéia da efetividade
do pensamento” (Rancière, 2005, p. 13). É a partir desta definição de estética que
procura analisar os possíveis e as transformações das idéias do pensamento, das
figuras de comunidade e das formas de vida. E acrescenta: “Existe, portanto, na
base da política, uma ‘estética’ que não tem nada a ver com a ‘estetização da polí-
tica’ própria à era das massas’, de que fala Benjamin” (ibidem, p. 16).
234 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO

Esta estética na base da política contemporânea que denominei Estética


da Multidão não é “uma captura perversa da política por uma vontade de arte”
mas “o que está em jogo na política como forma de experiência” (idem). Estética
da emergência, estética relacional, estética da multidão: são variadas as denomi-
nações, e sensivelmente diferentes essas abordagem que enriquecem a pesquisa
contemporânea. Minha questão específica é a luta contra a expropriação do co-
mum entendida como expropriação daquilo que é produzido com base na nossa
cooperação social: das fontes de conhecimento aos fluxos de imagens. Expropria-
ção do comum que leva à precarização das nossas vidas.
Negri diz que, na metrópole, a Multidão é submetida à dispersão tempo-
ral e espacial. Em que medida essas práticas estéticas “em rede” podem constituir
a flexibilidade temporal e a mobilidade espacial enquanto frutos dos desejos e das
lutas dos anos 60 e 70, e não aquelas que hoje nos são impostas? Sabemos que a
mídia moderna – jornal, rádio e televisão – desenvolveu um sentimento de perten-
cimento a uma totalidade através da homogeneização da língua, da pasteurização
dos sons, da padronização dos tons, da uniformização dos códigos visuais, etc.
Hoje, a mídia “pós-modernista” realiza a passagem da massificação à fragmenta-
ção do público: há uma diversidade sem comum. Como “fazer multidão” no cam-
po da comunicação? Como efetuar uma constituição potente do público contra os
dispositivos de dispersão? Penso que alguns desses projetos em rede acenam para
a Era Pós-mídia da qual falava Guattari, onde mídia massiva padronizadora de
subjetividades seria reapropriada por usos interativos, individuais e coletivos, das
“máquinas de informação, de comunicação, de inteligência, de arte e de cultura”
(Guattari, s/d).
Todavia me pergunto: será que essas plataformas102 de experimentação
têm a força necessária para abrir uma era pós-mídia? Alguns desses projetos
apontam um êxodo para fora dos mecanismos modernos de controle. Contudo,
seja por dependerem em muitos casos de apoio institucional de seu setor (con-
cursos, bolsas, etc.), seja por estarem em seu isolamento sujeitos às capturas do
mercado, grande parte dessas “comunidades experimentais” possuem baixo nível
de antagonismo frente aos poderes constituídos. Um nível de antagonismo quase
inexistente frente a mídia monopolista. Muito além de um êxodo de influência ro-
mântica, Negri nos sugere um êxodo radical103, ou seja um movimento de recusa
radical da exploração da vida pelo capital que age para “fora” na medida em que a

102 Ver também a definição e exemplo de “plataforma” em LAZZARATO, Maurizio, B-Zone


– becoming Europe and beyond. Editado por Anselm Franke. (“To see and to be seen”. p. 296)
103 NEGRI, Antonio. http://seminaire.samizdat.net/La-multitude-et-la-metropole,126.html
Barbara Szaniecki 235

mobiliza a imaginação para criar uma sociedade melhor, e “contra” no sentido em


que reúne forças para construir um mundo novo. Não se trata de ou mas de e: con-
tra e fora, fora e contra: lutas simultâneas e complementares. Experimentações de
comunidade com força criativa e desejo político contra a expropriação do comum.
O êxodo radical permite sair da ambivalência do monstro e constituir a multidão
urbana em toda sua potência. Hoje, o êxodo radical implica na ocupação dos
espaços públicos que nos restam tais como as ruas e praças da cidade (como nas
Multiformances que apresentei), no desligamento dos espaços de comunicação
massiva ocupados pelo capital (como em Desligare entre outros projetos), mas
sobretudo na constituição efetiva de uma era Pós-mídia com Pontos de Cultura e
Pontos de Mídia e TV pública.

Referências

BASBAUM, Ricardo. Além da pureza visual. Porto Alegre: Zouk, 2007.


BOURRIAUD, Nicolas. Esthétique Relationnelle. Les Presses du Réel, 2001.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Capitalisme et Schizophrénie. Mille Pla-
teaux. Paris: Les éditions de minuit, 1980.
DIDI-HUBERMAN, Georges. La Ressemblance Informe ou le gai savoir visuel selon
Georges Bataille. Paris: Macula, 2003.
LADDAGA, Reinaldo. Estetica de la Emergência (http://www.esnips.com/doc/
a0df0361-d159-4fde-a3cb-4815f5c0f02a/Laddaga,-Reinaldo---Est%C3%A9tica-de-
la-emergencia)
LASCAULT, Gilbert. Le Monstre dans l’Art Occidental. Un problème esthétique. Pa-
ris: Klincksieck,1973-2004.
LAZZARATO, Maurizio. B-Zone – becoming Europe and beyond. Ed. por Anselm
Franke.
LAZZARATO, Maurizio. As Revoluções do Capitalismo. Rio de Janeiro: Record,
2006.
NEGRI, Antonio. Goodbye Mr Socialism. Raf Valvola Scelsi (org.) Milão: Feltrinelli,
2006.
NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Multidão – Guerra e democracia na era do
Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
REVEL, Judith. Fare Moltitudine. Roma : Rubettino, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. São Paulo: Editora
34, 2005.
236 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO

Sites

BASBAUM, Ricardo: http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ricardo.htm


BASBAUM, Ricardo: http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.rede/
nbp
GUATTARI, Félix. “Vers une ère post-média” www.revue-chimeres.fr/guattari/guat-
tari.html
NEGRI, Antonio. http://seminaire.samizdat.net/La-multitude-et-la-metropole,126.
html

Barbara Szaniecki é formada pela École Nationale des Arts Décoratifs de Paris e
atua como designer no campo social e cultural. Mestre, Doutoranda e pesquisadora do LARS
(Laboratório de Representação Sensível) do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio. É
co-editora das revistas GLOBAL/Brasil e LUGAR COMUM, ambas da Universidade Nômade,
e autora de Estética da Multidão.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 237-243

Artaud, momo ou monstro?

Ana Kiffer

Do Momo ao Monstro
Queria apresentar a hipótese que tomará Antonin Artaud como semblante,
na história contemporânea da humanidade eurocêntrica, de uma monstruosidade
que se estabelece no conflito e combate com a sociedade e com a vida. Na linha-
gem do que ele mesmo esboçou a respeito de Van Gogh, o suicidado da sociedade
(ARTAUD, 1996). Reparem bem: suicidado não é suicida, mas também não é
assassinado. A monstruosidade de Van Gogh – Artaud se distanciará, portanto,
de uma historiografia dos monstros na cultura ocidental, onde esses aparecem
sempre atrelados a um mal de nascença, a uma deformação física congênita, a um
corpo monstruoso, e por isso mesmo desalmado, que vem indiciar o prenúncio e
o presságio de algum mal maior. No caso de Artaud – Van Gogh, a monstruosi-
dade não se fará enquanto deformidade congênita, senão que se realizará na vida
do próprio infortúnio. Infortúnio esse que se apresentará numa conjunção entre
aquilo que Artaud tomou para si enquanto tarefa de prenunciar o mal, e o mal que
se abateu sobre a sociedade européia na primeira metade do século XX.
É claro que falar dessa conjunção significa re-visitar a temática das rela-
ções entre a arte e a vida, tão cara aos artistas vanguardistas, mas que permane-
cerá, em todo século XX, como “a pedra no meio do caminho”, sendo retomada
pelos neo-realistas ou pelo realismo socialista em literatura e, mesmo depois da
Segunda Guerra, por toda a edificação de uma arte engajada, como postulou o
filósofo Jean Paul Sartre no ensaio Que é Literatura?. Nos anos noventa, Gilles
Deleuze recolocará a questão sob outras bases, no ensaio intitulado Literatura
e Vida (DELEUZE, 1993). Essa amostragem só evidencia como ainda é fértil
recolocar essa mesma questão, de modo a resistir às evidências de um mercado
que quer o tempo todo nos convencer de modelos biográficos, autobiográficos ou
auto-ficcionais muito bem arrumados e estabelecidos.
É nesse sentido que proporei pensar a construção de uma monstruosidade
em Artaud, a partir do que chamarei aqui de monstro-grafia, num desejo expres-
so de que essa noção tensione a bio-grafia desse artista. Entendam, não se trata
de uma fobia formalista ou estruturalista que condena a biografia, trata-se de se
238 ARTAUD, MOMO OU MONSTRO?

apropriar dela, problematizando-a. Afinal de contas, quem saberia hoje dizer o


que define a vida, e mais além, uma história da vida?
Em 1924, Artaud envia seus poemas na tentativa de se fazer publicar na
Nouvelle Revue Française, a mais importante revista de literatura e arte da van-
guarda francesa. O editor da Revista, Jacques Rivière, recusa em carta ao poeta a
sua publicação, explicando-lhe que seus poemas não eram suficientemente firmes
e bem acabados. Artaud responde à carta e nela escreve:

(...) meu espírito me abandona em todos os graus (...) há alguma coisa que des-
trói meu pensamento, alguma coisa que mesmo não me impedindo de ser isso
que eu poderia ser, me deixa, se posso dizer, em suspenso. (...) Gostaria que
compreendesse bem: já que não se trata desse mais ou menos de existência que
extravasa através do que a convenção chama inspiração, mas sim de uma au-
sência total, de um verdadeiro desperdício (ARTAUD 1976, I*, p. 24-28)104
[grifo nosso].

Rivière descobre, na leitura dessas cartas, uma originalidade ligada a uma


veracidade que o faz decidir publicá-las. A obra de Artaud nasce desse paradoxo:
“sou” publicado, autorizado à escrita, quando escrevo a impossibilidade de escre-
ver. Essa impossibilidade será apresentada já aqui como um mal nevrálgico que,
mesmo não o impedindo de ser, o deixa em suspenso. Esse mal, foi lido na época,
e muito tempo depois, como sendo a doença de Artaud. Seria sífilis hereditária,
perguntaram-se médicos e críticos literários. Ou em 1937, atendido pelo jovem
psiquiatra Jacques Lacan, Artaud receberá o diagnóstico de psicose paranóica e o
prognóstico de que a psicose paralisará a sua capacidade criativa.
Também se sabe que suas fortes dores de cabeça levaram-no ao trata-
mento médico com láudano. Mais tarde, o remédio, a droga e o veneno se mistu-
raram, como sabemos desde o pharmakon relido por Derrida (DERRIDA, 1991),
fazendo, por exemplo com que sua Correspondência amorosa com Gênica Atha-
nasiou, publicada como Lettres à Génica Athanasiou (ARTAUD, 1969) seja um
interessantíssimo deslocamento do lugar literário das cartas de amor e do lugar
cultural do próprio amor, já que ali o amor se confunde com a mesma seqüência
da droga, do remédio, do veneno, do dinheiro, etc. Tensão necessária para que nos

104 “Je voudrais que vous compreniez bien qu’il ne s’agit pas de ce plus ou moins d’existence
qui ressorti à ce que l’on est convenu d’appeler l’inspiration, mais d’une absence totale, d’une
véritable déperdition. (...) Il y a donc un quelque chose qui détruit ma pensée; un quelque
chose qui ne m’empêche pas d’être ce que je pourrais être, mais qui me laisse, si je puis dire,
en suspens”.
Ana Kiffer 239

apropriemos desses lugares míticos da vida de Artaud. Mas, lá em 1924, o mal


que determinou a trajetória dessa obra em nascimento foi postulado pela própria
obra. Ou seja, de modo insuspeito, a Correspondência com Jacques Rivière viria
a traçar os rumos posteriores da escrita desse autor sob o signo do que sugeri aqui
pensar como monstro-grafia. Em 1937, de volta a Paris depois de sua viagem ao
México e à Serra dos Taraumaras, Artaud escreve livro enigmático que retoma
sob outro plano as questões que o fizeram debutar na escrita da Correspondência.
São As Novas Revelações do Ser, livro cujo autor assina “O Revelado”. Em início
de junho 1937, durante o processo para publicação desse livro, em carta à Jean
Paulhan105, Artaud escrevia:

Cher ami,/ Il ne faut même pas des initiales. Rappelez-vous. La correspondance


avec Rivière avait paru avec trois étoiles et de tout ce que j’ai écrit c’est peut-
être tout ce qui restera. Après 13 ans écoulés on dirait que j’en reviens au même
point mais le tour que j’ai fait était en spirale: il m’a mené plus haut (ARTAUD,
1982, VII, p. 180).

A espiral de Artaud é o gesto, por excelência, dessa escrita monstruosa.


Um segundo indício de uma monstro-grafia, ou de uma grafia monstruosa em
Artaud é a formulação do teatro da crueldade. O que significava essa proposta no
seio de sua obra e naquele momento histórico preciso, início dos anos trinta?
O Teatro da Crueldade se formulou para Artaud a partir, sobretudo, de seu
encontro com o teatro balinês. E, sobre este último, ele disse: “O primeiro Teatro
Balinês se sustenta na dança, no canto, na pantomima, na música, – é excessiva-
mente pouco teatral, no sentido psicológico do teatro, tal qual o entendemos aqui
na Europa – remetendo o teatro, por conseguinte, ao seu plano de criação autôno-
ma e pura, sob o ângulo da alucinação e do medo” (ARTAUD, 1994, IV). Ora, o
teatro da crueldade não se confundia com massacre, horror e sangue, mas sim com
esse mundo espectral, infantil, povoado de monstros. Ele permite, desse modo, ser
pensado muito mais pela linhagem medieval e oriental dos monstros, que, como
lembrou José Gil, foi elaborada numa relação de contraste e oposição (GIL, 2006,
p. 52), mais do que pelo mundo psicológico do indivíduo, seus medos e fobias.
Ao contrário, toda idéia do duplo, no teatro de Artaud, pressupõe a necessidade
de que o ator saia de si mesmo, para advir seu próprio duplo ou, como ele disse:
“o artista não é artista senão sob a condição de ser duplo e de não ignorar nenhum
dos fenômenos de sua natureza dupla”. Esse, aliás, era o vértice preponderante de

105 Jean Paulhan, que era em 1924 o secretário de Jacques Rivière, seria agora o diretor da
Nouvelle Revue Française.
240 ARTAUD, MOMO OU MONSTRO?

seu combate nos anos trinta em Paris, contra um teatro psicológico, reino de uma
comédia de costumes, feito para alimentar a gorda saúde dominante, como bem
sabemos ainda hoje!
A passagem do Teatro Alfred Jarry para o Teatro da Crueldade em Ar-
taud, já é ícone de um adensamento dessa grafia monstruosa. Passagem ou tensão
criativa entre as figurações do momo e do monstro que acompanharam toda sua
trajetória. Isso porque, no Teatro Alfred Jarry, via-se já a ênfase recair sobre a
noção de um humor destruidor, que, como lembrou o crítico Carlo Pasi, se fazia
como provocação e revolta. Cito Pasi: “A vontade de escandalizar e sacudir as
certezas defensivas do público através de uma visão cáustica e inquietante do ser
encontra em Artaud um eco explosivo, e isso desde os primeiros manifestos do
“Teatro Alfred Jarry”” (PASI, 2002, p. 181). “Artaud considerava o humor uma
espécie de força de decomposição das faculdades racionais” (ibidem, p. 185).
Ora, esse humor destruidor de Jarry é que prepara o terreno para o teatro cruel.
Essa passagem significando apenas a radicalização de um projeto de obra e vida.
Um direcionamento cada vez mais drástico para essa zona difícil, ou esse limbo,
como diria o próprio Artaud.
Quando o poeta retoma a cena artística, em 1945, 1946, após sair de
nove anos interno em asilos psiquiátricos franceses durante a Segunda Guerra
Mundial, ele decide “encenar” um monólogo no Teatro do Vieux Colombier em
Paris, intitulado Tête à Tête avec Artaud le Momo, vale a pena transcrever aqui o
depoimento de Paule Thévenin, amiga e futura editora de Artaud:

Sabe-se quão fora do comum foi essa sessão e quantos desses que a assisti-
ram foram por ela marcados. Eles se viram diante de um homem que se expôs
totalmente e muitos acharam isso insuportável. Antonin Artaud veio ao teatro
com três cadernos que continham um texto cuidadosamente preparado, assim
como cópias datilografadas de poemas que ele desejaria declamar. Teria sido o
confronto com o público muito forte? Ele, que diante dos amigos era um extra-
ordinário leitor estava ali imerso na mais extrema dificuldade, sem conseguir ler
seus poemas, as folhas se lhe escapavam, se misturavam, caiam sobre a mesa.
Tinha-se a impressão de que ele se sentia impedido de dizer o que queria (AR-
TAUD, 1994, XXVI, p. 198).

Em carta posterior a André Breton, Artaud afirmará: “chegando diante do


público me pareceu que não haveria lugar para aquilo, que seria inoperante dizer
certas coisas diante de um público que não as queria ouvir, nem morder aquilo até
o fim” (ARTAUD, 1994, XXVI, p. 198).
Ana Kiffer 241

Nessa conferência, espetáculo sem cena ou cena sem espetáculo, vemos


efetivamente se romper a possibilidade de enunciação: sequer o momo enquanto
figura satírica ou carnavalizada da loucura e do excesso poderia dizer o que havia
a ser dito. Esse rompimento se deve ao dilaceramento das fronteiras que separa-
vam o teatro da vida. Em 1937, pouco antes de ser preso e deportado da Irlanda
para uma França já implicada no nazi-fascismo, Artaud escreveu nas Novas Re-
velações do Ser, inspirado pelos estudos que empreendeu da cabala, do tarô e de
outras doutrinas místicas, o anúncio de uma catástrofe, através da imagem de uma
grande bola de fogo. Ali, ainda havia, para Artaud, a possibilidade de sair de si,
e em percorrendo outros duplos, investir num teatro curativo. Um teatro, decerto
ritualístico, que sacudisse as bases adoecidas da sociedade. Em 1947, no Vieux
Colombier, o Momo já não anunciaria a catástrofe, nem encarnaria o excesso e a
desmedida. Ele agora era o fruto mesmo dessa catástrofe, filho e testemunha ao
mesmo tempo. Monstro do que outrora foi Momo. Carlo Pasi observa:

Encontramo-nos aqui diante de sua última virada – Artaud o Momo, imagem


simbólica da opressão e da revolta. Nesse tête a tête a atmosfera é aquela de
que se sabe que viveu e que se traz na carne a certeza de que a subversão carna-
valesca dos valores aconteceu de fato, mas não no sentido liberador, senão que
no maior massacre e fascismo que a humanidade já viveu. Quem, como Artaud,
profetizou o mal sugerindo ao mesmo tempo o seu remédio foi rejeitado (PASI,
2002, p. 193).

Artaud, o momo, é aí a encarnação do trágico e do patético, sua grafia se


libera da ortografia em direção a uma monstro-grafia, ele é a própria aberração.
Seus poemas não se escrevem mais sem que neles compareça essa letra que aban-
dona a palavra, a sintaxe, o sentido para se unir física, sonora e brutalmente aos
corpos dos leitores, as glossolalias de Artaud são mais uma ênfase dessa grafia
monstruosa.
Vale lembrar José Gil quando diz que: “A inventividade, o extraordinário
movimento das figuras fantásticas opõem-se à imobilidade rígida das letras que
compõem a orto-grafia” (GIL, 2006, p. 58).
E desse modo, o Momo começa a ceder espaço para a múmia, figura
inquietante da morte que aparecerá como base para construção de seu primeiro
auto-retrato em Rodez em 1946. Momo, múmia ou monstro, o que importa aqui
sublinhar é a força e a evidência com que Artaud, em primeiro lugar, sofreu o fas-
cismo da forma; segundo, colocou em cena o combate entre esse mesmo fascismo
242 ARTAUD, MOMO OU MONSTRO?

da forma e as potências invisíveis do informe; e, terceiro, alertou para os limites


mesmo da carnavalização como saída para os conflitos em sociedade.

Fascismo da forma X potência do informe


É mais uma vez José Gil quem nos lembra a tese Aristotélica que define
o monstro enquanto excesso de matéria não moldada, aquele que não foi exposto
à ação da forma (GIL, 2006, p. 76). David Lapoujade, em artigo sobre Samuel
Beckett, também alertará para a predominância, na cultura ocidental, do modelo
platônico-aristotélico onde somente através da ação se poderá inferir qualquer
potência. Cultura da produtividade e da virilidade, onde a potência da inação é
por completo rejeitada. Não por acaso personagens como Molloy, Malone (BE-
CKETT) e Bartleby (MELVILLE) encontram seu destino trágico. Mais recen-
temente, Evelyne Grossman (GROSSMAN, 2003) vem alertando para o pacto
fascista da gestaltung, imagem gregária do pertencimento, produção de seme-
lhanças.
O que entrevemos nessa trajetória de Artaud nos alerta para a necessida-
de presente de ainda questionarmos a fundo noções como forma e identidade, mas
também os seus contrários. Isso porque observamos de modo muito evidente a
presença contrastante de dois grandes discursos que invadem a cena cultural con-
temporânea. Um deles é aquele que vai em direção à edificação das identidades
minoritárias. Discursos ditos da “periferia” são os que surgem mais recentemente.
No entanto, não se pode deixar de sublinhar como essas mesmas noções serviram
à construção e manutenção dos grandes modelos hegemônicos de comportamento
e cultura, tendo sido sempre “financiados” por uma elite econômica e intelectual.
Outro discurso é aquele onde estamos sempre mais confortáveis, e que vai em
direção à crítica da própria edificação identitária e à necessidade de valorização de
conceitos antigos como hibridismo e mestiçagem. Parece-me que, para o avanço
dessa discussão, seria necessário repensarmos hoje, ao menos no âmbito da litera-
tura, quais as relações entre a arte e a vida e como essas noções se agenciam nos
textos e na cultura. Indo um pouco mais longe, isso significaria pensar na função
fraterna da literatura hoje, tomando esse conceito de Deleuze em seu ensaio sobre
Bartleby (DELEUZE, 1993). Dito de outro modo: como nos colocarmos juntos,
de modo a produzir minorias menos identitárias que transtornem a lógica do eu,
do próprio e da propriedade?
Termino com um trecho da fala de Édouard Glissant, no último mês de
maio em Paris, numa comemoração difratária da “Memória dos escravos e de sua
abolição nas Américas e Oceano Índico”, que serviria de inspiração inicial ao de-
Ana Kiffer 243

sejo de criação de um comum nômade que busque percorrer a lógica binária do eu


e do outro, numa direção cada vez mais radical que possa, porventura, deslocá-los
de seus lugares de origem:

Quanto à memória dos povos, que se dissipam elas também, nós sabemos hoje
que a principal maneira de preservá-las é colocando-as juntas. Enquanto escu-
tarmos sozinhos, em nosso meio, as misérias do mundo ou as suas glórias, ou
enquanto gritarmos sozinhos as nossas misérias e glórias, nós encurtaremos
nossa memória e nós desconheceremos essas dos outros106.

Referências

ARTAUD, Antonin. Oeuvres Complètes, Tome I*. Paris, Gallimard, 1976.


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Ana Kiffer é Professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, atual coordenadora


da Pós-Graduação, autora do livro Antonin Artaud, uma poética do pensamento pela Editora
Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, A Coruña, Espanha, 2003.

106 Texto inédito, registro escrito da fala pronunciada por Glissant em Paris em maio de 2008.
Tradução minha.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 245-255

O corpo e o devir-monstro107

Carlos Augusto Peixoto Junior

De acordo com Merleau-Ponty, o século XX foi o responsável por um


apagamento da linha divisória entre corpo e espírito, encarando a vida humana
como espiritual e corpórea de ponta a ponta, sempre apoiada sobre o corpo. Se
para muitos pensadores do século XIX o corpo era um feixe de mecanismos ou
um pedaço de matéria, o século passado teria restaurado e aprofundado a questão
da carne, ou seja, o corpo animado. Para Jean-Jacques Courtine, o século passado
também foi aquele que inventou teoricamente esse corpo. Essa invenção teria
surgido, em primeiro lugar, com a psicanálise, desde que Freud, ao observar os
corpos das histéricas de Charcot, teria decifrado a histeria de conversão e compre-
endido o que iria constituir um enunciado fundamental de muitas investigações
posteriores: “o inconsciente fala através do corpo” (Courtine, 2006/2008, p. 7).
Com isso, o corpo acabou sendo ligado ao inconsciente e ao sujeito, mas também
inserido nas formas sociais da cultura.
No entanto, desde Freud, restaria ainda um obstáculo a transpor: a ob-
sessão lingüística do estruturalismo, a qual, desde o pós-guerra até os anos 1960,
iria, efetivamente, tentar silenciar o corpo e seus devires. No entanto, já ao final
daquela mesma década, as coisas começariam a mudar. O corpo passou a de-
sempenhar papéis importantes nos movimentos individualistas e igualitaristas que
protestavam contra o peso das hierarquias culturais, políticas e sociais herdadas
do passado. Nestas condições, o discurso e as estruturas estavam estreitamente
ligados ao poder, ao passo que o corpo estava do lado das categorias oprimidas e
marginalizadas: as minorias de raça, de classe ou de gênero pensavam ter apenas
o próprio corpo para opor ao discurso do poder, assim como para se contrapor à
linguagem como instrumento que buscava impor o silêncio aos corpos.
Mas, se em linhas muito gerais, podemos considerar que esse foi o retrato
da resistência do corpo às forças reativas que buscaram enterrá-lo nos últimos

107 Trabalho apresentado no Colóquio Cultura, trabalho e natureza na globalização, RJ, Casa
de Rui Barbosa, 2008. Versão modificada de artigo intitulado “Sobre corpos e monstros: algu-
mas reflexões contemporâneas”, submetido à Revista Psicologia em Estudo da Universidade
Estadual de Maringá.
246 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO

tempos, no decorrer de toda a história da humanidade até os dias atuais, uma fi-


gura, também sempre marginalizada, fez com que a questão do corpo viesse com
freqüência à tona, despertando ao mesmo tempo horror e admiração. Trata-se da
figura do monstro, que aqui buscaremos analisar a partir de questões tais como
o corpo monstruoso, a monstruosidade como fenômeno, o devir-monstro e seus
reflexos no âmbito de uma política de subjetivação. Em todas estas vertentes, o
que poderemos notar é que o monstro sempre desestabiliza a representação e a
identidade em suas diversas formas de apresentação.
Segundo José Gil, o monstro mostra mais do que tudo o que é visto, pois
mostra o irreal verdadeiro. O transbordamento que ele veicula ultrapassa o conte-
údo representado, e está para além de sua origem e de sua causa. O monstro é, ao
mesmo tempo, absolutamente transparente e totalmente opaco. Quando o enca-
ramos, nosso olhar fica paralisado e absorto em um fascínio sem fim. Ao exibir a
sua deformidade, a sua anormalidade – que normalmente se esconde – o monstro
oferece ao olhar a sua aberração para que todos a vejam.
Seu corpo difere do corpo normal na medida em que revela o oculto, algo
de disforme, de visceral, de “interior”, uma espécie de obscenidade orgânica. Tal
obscenidade, ele não apenas a exibe como também a desdobra, virando a pele do
avesso, desfraldando-a, sem se preocupar com o olhar do outro, para fasciná-lo.
Mas na realidade o olhar nada vê, dado que fica suspenso nessa revelação-oculta-
mento que é a própria imagem do corpo monstruoso. Para Gil, o que fascina é que
o interior do monstro se corporifique e que não seja realmente um corpo porque
não é dotado de alma. Mostrando o avesso de sua pele, é sua alma abortada que
o monstro exibe: seu corpo é o reverso de um corpo com alma. “Ao revelar o que
deve permanecer oculto, o corpo monstruoso subverte a mais sagrada das rela-
ções entre a alma e o corpo: a alma revelada deixa de ser uma alma, torna-se, no
sentido próprio, o reverso do corpo, um outro corpo, mas amorfo e horrível, um
não-corpo” (Gil, 2006, p. 79).
Nestas condições, estamos na presença de um corpo não codificado, de
um corpo que prolifera num processo de absorção dos signos que transforma o
próprio corpo em signo delirante, parasitando todos os outros signos da lingua-
gem. Trata-se, portanto, da irrupção no espaço social de um corpo individual a-
significante que, devorando os signos, amedronta e provoca angústia no nosso
ser cultural. Ainda de acordo com Gil, o monstro “mostra a natureza – o corpo
– tentando significar por ela própria, sem a ajuda de (e contra) a cultura: significa,
ao mesmo tempo, demasiadas coisas e nada” (Gil, 1997, p. 49). Seguindo essa
mesma linha de argumentação, podemos afirmar que o monstro é como um corpo
Carlos Augusto Peixoto Junior 247

significante caótico que, ao contrário de nos representar apenas de um modo de-


formado, esta aí “para indicar não só os nossos limites, mas as possibilidades em
potência dos nossos corpos, do Corpo” (Pinto da Silva, 2007, p. 6).
Abordando o tema da monstruosidade no âmbito da vida, Georges Can-
guilhem recorria a Gabriel Tarde para afirmar que o tipo normal era apenas o grau
zero da monstruosidade (Canguilhem, 1965/1992, p. 25). Do seu ponto de vista, a
vida não transgrediria as suas leis nem os seus planos e, portanto, seus acidentes
não constituiriam exceções, nem haveria nada de propriamente monstruoso nas
monstruosidades.
Aproximando-se do seu mestre à época de As palavras e as coisas, Mi-
chel Foucault também considerava que os monstros não seriam de uma natureza
distinta da das próprias espécies (Foucault, 1966/1981, p. 170), e constituiriam
apenas o ruído de fundo ou o murmúrio ininterrupto do mundo natural. Desta
forma, a partir do poder contínuo que a natureza detém, o monstro faria aparecer
a diferença colocando em questão, no âmbito do saber científico, o primado da
identidade e da representação.
Se no período dedicado à arqueologia do saber as referências foucaul-
tianas aos monstros se restringiam a esses aspectos da história natural – o que,
aliás, é notado por Gil quando menciona a ausência de referências ao anão na
análise do Las meninas de Velásquez feita por Foucault (Gil, 2006, p. 61-63) –, na
construção de sua teoria genealógica do poder, o tema da monstruosidade ocupará
um lugar importante. Em seu curso sobre Os anormais nos anos de 1974-75, ele
discute a ampla dimensão alcançada pelos monstros na genealogia do conceito de
anormalidade desde o século XVIII.
Dentre as principais figuras no domínio das teorias médico-jurídicas so-
bre as anomalias daquele período, destacava-se a do monstro humano. Foucault
nos mostra como, no quadro de referência legal do saber jurídico, o que definia
o monstro humano, tanto na sua existência como na sua forma, era não apenas a
violação das leis da sociedade, mas também a violação das leis da própria natu-
reza. Neste contexto, a existência do monstro enquanto tal já era suficiente para
considerar as infrações às leis. Apesar de ser considerado um fenômeno extremo
e extremamente raro no domínio biológico-jurídico, no limite, o monstro teria
sido transformado num ponto central para a avaliação de diferentes aspectos de
subversão das leis. Ainda de acordo com Foucault, “até a metade do século XVIII,
havia um estatuto criminal da monstruosidade, no que ela era transgressão de todo
um sistema de leis, quer sejam leis naturais, quer sejam leis jurídicas. Portanto,
era a monstruosidade que, em si própria, era criminosa” (Foucault, 1999, p. 69).
248 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO

O monstro, efetivamente, contradizia a lei constituindo uma infração levada ao


seu ponto máximo.
No entanto, se o monstro foi capturado pelo saber-poder médico-jurídico
no âmbito das anomalias, isso certamente ocorreu porque o anômalo também
comportava nele uma potência subversiva relacionada à multiplicidade e ao devir.
Conforme observam Deleuze e Guattari, “a palavra ‘anômalo’, adjetivo que caiu
em desuso, tinha uma origem muito diferente de ‘anormal’” (Deleuze e Guattari,
1980/1997, p. 25). Indo muito além desse adjetivo latino sem substantivo, o qual
qualifica aquilo que não tem ou contradiz a regra, a “a-nomalia”, substantivo gre-
go que perdeu o seu adjetivo, designa o que é desigual, rugoso, áspero, ou seja,
uma ponta de desterritorialização. Enquanto o anormal só poderia se definir em
função de características específicas ou genéricas, o anômalo é algo como um in-
divíduo excepcional, uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma
multiplicidade. A partir desse ponto de vista, “cada multiplicidade é definida por
uma borda funcionando como Anômalo; mas há uma enfiada de bordas (fibra),
de acordo com a qual a multiplicidade muda” (Deleuze e Guattari, 1980/1997, p.
33). E essa série de bordas enfileiradas constitui uma linha de fuga ou de desterri-
torialização. Nestes termos, o Anômalo, o Outsider ou, naquilo que nos interessa
aqui, o monstro – teratológico, isto é, real, ou ficcional – tem muitas funções: ele
não apenas tangencia cada multiplicidade, cuja estabilidade passageira ou local
ele determina com a dimensão máxima provisória, como também constitui a con-
dição da aliança necessária ao devir, levando cada vez mais longe na linha de fuga
as passagens de multiplicidades ou transformações de devir.
A desterritorialização presente nessa dimensão do devir implica a instau-
ração de um agenciamento, uma circulação de afetos impessoais, uma corrente
alternativa, a qual, atuando como uma máquina de guerra que anula diferentes
tentativas de reterritorialização, tumultua os projetos significantes e os sentimen-
tos subjetivos. Trata-se, portanto, da instauração de uma individuação impessoal,
a partir da qual o monstro, no seu devir, coloca em questão o conceito de sujeito
e a primazia do simbólico no campo da produção de subjetividades. Além disso,
o devir também problematiza toda idéia de evolução por dependência e filiação.
Para Deleuze e Guattari, “o devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação.
Ele é da ordem da aliança. Se a evolução comporta verdadeiros devires, é no vasto
domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas e reinos inteiramente
diferentes, sem qualquer filiação possível” (Deleuze e Guattari, 1980/1997, p.
19). É nesse sentido que os autores podem considerar que existe sempre uma
aliança anti-natureza em qualquer bloco de devir. Opondo a epidemia à filiação e
Carlos Augusto Peixoto Junior 249

o contágio à hereditariedade, eles nos fazem ver que o devir tem a ver com híbri-
dos, eles próprios estéreis, nascidos de uma união que não se reproduzirá, mas que
sempre recomeçam e a cada vez ganham terreno.
Diante dessas hipóteses, já poderíamos dizer que o que está em jogo no
devir-monstro do corpo é a sua dimensão de absoluta singularidade. Como afirma
Perret-Gentil, de certa forma e de acordo com uma certa proporção, “tudo aquilo
que é mostrado ou que se mostra afirmando a sua singularidade contra e através
do semelhante é monstruoso” (Perret-Gentil, 2004, p. 80). Se o monstro constitui
algo que é mostrado, ele é aquilo que faz ver a sua singularidade numa tal evi-
dência que pouco deixa a dizer, numa evidência que se mostra por si mesma sem
precisar se justificar. O seu mostrar, enquanto tal, já é suficiente para que se possa
ver e saber o que ele é. Trata-se portanto de um momento em que a expressão não
é mais propriamente equívoca, mas unívoca. Enquanto individuação absoluta, o
monstro constitui o impossível de toda generalidade.
Interrogando-se de forma mais detalhada sobre o que poderia ser a mul-
tiplicidade no domínio das espécies monstruosas, Jean-Clet Martin considerava
que a figura do monstro seria constituinte da multiplicidade e da unidade como
um todo, a qual produz uma diferença ínfima e, no entanto, altamente transforma-
dora. Com efeito, diz o autor, o monstro nos afeta por sua maneira heteróclita de
convocar uma diferença genérica suscetível de afirmar uma confusão entre as es-
pécies, como se o gênero irradiasse sua universalidade através de todas as singula-
ridades da matéria, renovando com o seu fluxo qualquer especificidade típica. “O
monstro é a mostração de uma vizinhança aberrante, de uma diferença que passa
pelo gênero engolindo a das espécies” (Martin, apud Perret-Gentil, 2004, p. 77).
Ser híbrido, o monstro designa a singularidade de um gênero materializado, indi-
vidualizado embora não-específico, atualizado no aqui e agora. Ele seria o gênero
enquanto tal, realizado em carne e osso. Portanto, ainda de acordo com Martin,
o que o monstro expõe por todos os lados é a realidade do gênero, o realismo do
universal e sua individualização no sensível: a idéia como formosa deformidade.
Essa relação complexa entre monstro e gênero – não mais no domínio
de uma história natural crítica, mas no contexto das discussões sobre o corpo e
a sexualidade no mundo contemporâneo – também foi objeto de algumas dis-
cussões do pós-feminismo americano, o qual busca realizar uma política de sub-
versão radical do conceito de gênero no âmbito do sexo. Em seu “Manifesto Ci-
borgue”, Donna Haraway afirma que os monstros sempre definiram os limites
da comunidade na imaginação ocidental. Os centauros e as amazonas da Grécia
antiga estabeleceram os limites da polis centrada do humano masculino grego
250 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO

ao vislumbrarem a possibilidade de casamento e as confusões de fronteira entre


o guerreiro, de um lado, e a animalidade e a mulher, de outro. Hermafroditas e
gêmeos univitelinos constituíram o confuso material humano dos primórdios da
França moderna, o qual fundamentava o discurso no natural e no sobrenatural, no
médico e no legal, nas maravilhas excepcionais e nas doenças, todos eles elemen-
tos cruciais no estabelecimento da identidade moderna. As ciências voltadas para
o estudo da evolução e do comportamento dos macacos e símios marcaram as
múltiplas fronteiras das identidades industriais do final do século passado. Já “os
monstros-ciborgue da ficção científica feminista definem possibilidades e limites
políticos bastante diferentes daqueles propostos pela ficção mundana do Homem
e da Mulher” (Haraway, 1991, p. 180).
De acordo com Haraway, essas seriam algumas das conseqüências de
se levar a sério a imagem dos ciborgues como sendo algo mais do que apenas
nossos inimigos. Nossos corpos, atesta a autora, são nossos eus; os corpos são,
na verdade, mapas de poder e identidade, e os ciborgues não constituem uma
exceção a isso. Só que o corpo do ciborgue não busca uma identidade unitária e,
portanto, não produz infindáveis dualismos antagônicos. Para o ciborgue, um é
pouco e dois, apenas uma possibilidade. Com ele, o intenso prazer na habilidade
da máquina deixa de ser um pecado e passa a constituir um importante aspecto do
processo de corporificação. Assim, a máquina deixa de ser idolatrada e começa a
fazer parte de nossos processos corporais. Se podemos ser responsáveis pelas má-
quinas, também podemos nos responsabilizar pelas fronteiras e passamos a cons-
tituir, nós mesmos, essas fronteiras. Nesse sentido, os ciborgues podem expressar
seriamente o aspecto, às vezes parcial ou fluido, do sexo e da corporificação se-
xual. A encarnação ciborguiana, não obedece a um calendário edípico no qual as
terríveis clivagens de gênero seriam curadas através de uma utopia simbiótica oral
ou de um apocalipse pós-edipiano. “Os mais terríveis e promissores monstros dos
mundos ciborguianos estão corporificados em narrativas não-edípicas, obedecen-
do a uma lógica de repressão diferente, a qual, em nome de nossa sobrevivência,
precisamos compreender” (Haraway, 1991, p. 150). Nesse sentido, o ciborgue é
uma criatura do mundo pós-gênero que não tem qualquer compromisso com as
sexualidades edipianas em geral, todas elas fundadas em representações dicotô-
micas.
Aproximando os monstros das mães e das máquinas, Rosi Braidotti tam-
bém traz contribuições significativas para a apreensão do papel subversivo das
figuras monstruosas no que diz respeito ao debate sobre as relações entre sexo
e gênero em uma política pós-feminista. Segundo a autora, os monstros sempre
Carlos Augusto Peixoto Junior 251

ocuparam um lugar importante na história e na filosofia das ciências biológicas,


indicando a relação delas com a diferença e com os corpos diferentes. No contexto
biológico, eles sempre representaram não apenas as mal-formações do organismo
humano, como também assinalavam o lugar intermediário das misturas e da ambi-
valência. Esse aspecto já estaria implícito na raiz grega antiga da palavra monstro,
teras, a qual significava tanto horrível como maravilhoso, objeto de abjeção e
adoração. Desde o século XIX, seguindo o sistema de classificação da monstruo-
sidade elaborado por Geoffroy Saint-Hilaire, as mal-formações corporais haviam
sido definidas em termos de excesso, falta ou deslocamento de órgãos. Mesmo
que antes de chegar a esse tipo de classificação científica a filosofia natural já
lutasse para dar conta destes objetos de abjeção, Braidotti afirma que “a constitui-
ção da teratologia como ciência oferece um exemplo paradigmático das manei-
ras pelas quais a racionalidade científica lidava com diferenças do tipo corporal”
(Braidotti, 1994, p. 78).
Assim, de acordo com a autora, fica evidente que o discurso sobre os
monstros incide sobre uma questão de suma importância para a teoria feminista: o
estatuto da diferença no escopo do pensamento racional. Com sua lógica de oposi-
ções binárias, tal pensamento sempre tratou a diferença como aquilo que é alguma
outra coisa que não a norma. Considerando que o corpo feminino em diferentes
momentos foi aproximado do monstro devido à sua falta ou incompletude em re-
lação ao corpo do homem, e que o corpo e o desejo das mães foram tomados como
causa ou origem de diferentes anomalias ou anormalidades, Braidotti nos mostra
que isso se deveu antes de tudo ao fato de que, durante muito tempo, não se con-
seguiu pensar diferentemente a diferença. Nestes termos, a aproximação entre os
corpos dos monstros, das mulheres e das mães nos serve como instrumento de
denúncia do pensamento falogocêntrico que sempre procurou tratar o feminino
e a feminilidade como objeto de abjeção. Além disso, marcando a sua diferença
singular, como um degenerado que se contrapõe ao tipo genérico, o monstro tam-
bém nos obriga a recusar a idéia de mulher genérica. Conforme mostrou Eliane
Robert Moraes, “diante das interrogações que as criaturas teratológicas lançam,
na afirmação de sua diferença, não seria possível postularmos um ideal universal
feminino, que negaria, igualmente, a singularidade de cada ser” (Moraes, 2005, p.
24). Se mulheres e monstros puderem ser considerados figuras emblemáticas da
incompletude, acima de tudo, vale lembrar que ambos nos mostram que somos,
cada um de nós, um desvio em relação ao suposto homem genérico e universal e
que, portanto, nessa qualidade, cabe a cada um e a todos a aventura sensível de
uma existência.
252 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO

Mantendo-nos no âmbito destes desdobramentos políticos da corporei-


dade do devir-monstro, não poderíamos deixar de mencionar aqui as importantes
contribuições de Antonio Negri a propósito do corpo e da monstruosidade no
contexto de uma política imanente da multidão. De acordo com o filósofo italia-
no, “o corpo mais singular é também (...) o mais comum” (Negri, 2003, p. 202).
Como potência de determinação que vive na singularidade materialista, o corpo
se alimenta de uma ruptura que gera desmedida. E é na ruptura da temporalidade
que o autor situa a chave da produção do ser. Nessas condições, o corpo reage à
ruptura produzindo um ser novo. Inserido no domínio da materialidade do eterno,
o corpo o conduz à ruptura, e revivifica a eternidade, experimentando-se como
práxis do tempo. Portanto, antes de tudo, a reflexão corpórea seria “uma imersão
ontológica que ativa o eterno mediante a abertura, deste eterno, sobre a borda do
ser, sobre o ponto do porvir” (Negri, 2003, p. 82). Com isso, pode-se dizer que,
ao refletir, o corpo não apenas se vê imerso em um campo material, mas também
se abre à inovação. O corpo reflete o eterno pondo-o em contato com o devir,
porque, apesar de essa relação ser desmedida, ela também é produção. No campo
do comum, pensa Negri, é a singularidade que constitui a potência de desmedida.
É ela que estabelece uma relação entre o “fora da medida” próprio à resistência à
exclusão, e o “além da medida” relativo à potência que constitui um novo comum.
Abrindo-se para a desmedida biopolítica, o corpo é afetado por ela e essa afetação
já é, ela própria, potência. Para o autor, se o corpo é capacidade de exprimir afe-
tos, tal como queria Espinosa, ao se mostrar afetado pelas relações produtivas, ele
tem a sua potência aumentada.
Ainda de acordo com o filósofo italiano, a passagem da época do ho-
mem-homem para a do homem-máquina, do moderno para o pós-moderno, fez
com que o corpo se transformasse na potência que constitui a base da máquina, ao
mesmo tempo em que também se desenvolveu através dela. Na época do homem-
máquina, o trabalho vivo é potência de geração metamórfica, geração teleológica
materialista e não-finalista. Nenhum transcendental, assim como nenhuma cone-
xão dialética precede ou informa o efeito dessa geração. Nessa teleologia, “a cau-
sa é sempre externa porque se debruça sobre a borda do tempo, onde o novo surge,
e – em um certo aspecto – o produto da geração inovadora é sempre um ‘mons-
tro’” (Negri, 2003, p. 207). Se “o monstro pode ser reconhecido como potência
de metamorfose” (Negri, 2002, p. 137), toda metamorfose implica passagens. A
metamorfose é sempre singular porque se constitui na criação de um novo ser,
para além da borda do tempo, onde a marca da singularidade se coloca. Quando
o singular ultrapassa a borda do tempo, a passagem se transforma em multidão
Carlos Augusto Peixoto Junior 253

porque “constrói novo ser comum, que, por isso mesmo, vale para a multidão de
singularidades” (Negri, 2003, p. 203). As metamorfoses também dizem respei-
to aos corpos enquanto conjunto de mutações sensoriais, perceptivas e mentais
produzidas pela experimentação no mundo da vida dentro de novos ambientes
maquínicos e da produção desterritorializada. Neste sentido, Negri considera que
a metamorfose é geração biopolítica. A artificialidade ou a naturalidade dos pro-
cessos biopolíticos, expostos sobre a borda do ser, constituem uma nova natureza
ou um novo artefato. Por isso, complementa o autor, diz-se, no pós-moderno, que
o sujeito se torna ciborgue ou artefato tecnológico. Na verdade, através de todas
as metamorfoses anteriores, ao longo do desenvolvimento das diferentes tecnolo-
gias, “o corpo já se tornou, de alguma maneira e em algum aspecto, um ciborgue;
mas a transformação atual, na era do homem-máquina, é realmente a transforma-
ção do ciborgue, em sentido próprio” (Negri, 2003, p. 222).
Nos tempos atuais, época em que o horizonte social definitivamente se
constituiu como o campo por excelência da biopolítica, Negri e Hardt acham que
devemos sempre nos lembrar dos monstros e de suas primeiras histórias modernas,
posto que o efeito monstro desde então só se multiplicou. “Hoje, Frankenstein é
da família” (Negri e Hardt, 2005, p. 255), dizem os autores. Sem dúvida, neste fim
de século os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, nos
quadrinhos, em gadgets e brinquedos, livros e exposições de pintura, no teatro e
na dança. Invadindo o planeta, eles definitivamente tornaram-se familiares. A pró-
pria teratologia tornou-se fantástica. Já não nos contentamos mais com as classifi-
cações de Geoffroy Saint-Hilaire, que finalmente pareciam pacificar um universo
confuso, racionalmente escandaloso, incapaz, desde há séculos, de estabelecer
as “leis da aberração”. Nesse contexto, o discurso dos seres vivos deve se tornar
uma teoria de sua construção e das possibilidades que os aguardam no porvir.
Imersos nessa realidade instável, diante da crescente artificialidade do mundo e
da institucionalização do social, é necessário que estejamos cada vez mais prepa-
rados para que os monstros surjam a qualquer momento, como, aliás, não param
de surgir. Se Deleuze já havia reconhecido o monstro no interior da humanidade,
afirmando que o homem é o animal que está mudando sua própria espécie, Negri
e Hardt levaram a sério essa formulação. Com o avanço dos monstros e com o
tratamento científico dado a eles, a humanidade transforma a si mesma, assim
como também modifica sua história e a própria natureza. Ainda de acordo com os
autores, “o problema não consiste mais em decidir se essas técnicas humanas de
transformação devem ser aceitas, mas em aprender o que fazer com elas e saber
se funcionarão em nosso benefício ou em nosso detrimento. Na realidade, precisa-
254 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO

mos aprender a amar certos monstros e a combater outros” (Negri e Hardt, 2005,
p. 256). Assim, precisamos utilizar as expressões monstruosas da multidão para
desafiar e subverter as metamorfoses da vida artificial transformadas em merca-
doria, o poder capitalista que vende as mutações da natureza e a nova eugenia
que sustenta esse poder. Pois, se como afirmam Negri e Hardt, “o conceito de
multidão obriga-nos a entrar num novo mundo no qual só podemos entender a nós
mesmos como monstros” (Negri e Hardt, 2005, p. 253), é justamente nesse mundo
dos monstros que a humanidade tem que se apropriar do seu futuro.

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criticanarede.com/teses/deleuze.pdf, 2007.

Carlos Augusto Peixoto Junior é Psicanalista; Professor do Programa de Pós-gra-


duação em Psicologia Clínica da PUC-Rio; Pesquisador do CNPQ; Organizador de Formas
de subjetivação, RJ, Contracapa, 2004; autor de Metamorfoses entre o sexual e o social, RJ,
Civilização Brasileira, 1999, e de Singularidade e subjetivação: ensaios sobre clínica e cultura,
RJ, PUC - Rio/7Letras, 2008.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 257-269

Do experimental informe ao Quasi-cinema,


observações sobre “COSMOCOCA-
programa in progress”, de Hélio Oiticica

Inês de Araujo

Distinguindo-se em primeiro lugar por suprimir como finalidade expres-


siva a criação de objetos, o caráter experimental do trabalho de Hélio Oiticica foi
paradoxalmente oposto à tendência geral de desmaterialização e dessubjetivação
da arte. Traços que caracterizaram muito da orientação tomada por parte expres-
siva dos movimentos antiarte, underground e contracultura da sua geração, que
despontavam nos anos 60/70. As proposições do artista, seus não-objetos de uma
“nova-objetividade”, contrapondo-se a qualquer totalização espacial, não cessa-
ram de desdobrar espaços não projetivos, guardando marcas de uma operação
construtiva. Nesse trabalho, a ruptura com o modo de reconhecimento social do
valor artístico e o investimento em circuitos alternativos de produção e recepção
de arte nunca deixaram de envolver qualidades expressivas e subjetivas, aspectos
que remontavam às singularidades processadas pelo neoconcretismo.108
Por ter no corpo seu principal instrumento de experimentação, por valo-
rizar a vivência, a noção experimental em jogo nesse processo de arte, ao invés de
superar os limites de um meio plástico e visual, passa a incorporá-los. Investe em
sua intensidade. Sem empregar o corpo como modelo, mas por compreendê-lo –
como diz o artista, “o que resta enfim a nós, como arma de conhecimento direto,
perceptivo, participante...” (Helio Oiticica, 1996, p. 126) – neste trabalho, o expe-
rimental adota o prolongamento aberto da plasticidade e sensorialidade do corpo.
Este, como valor que supera ou extravasa o domínio mental, acentua uma expe-
riência perceptiva, sensível, única, variável, mundana. Suas invenções partem do
corpo para além de seus contornos, se interessam por aquilo do que esse gesto se
descarta, o objeto, a representação, mas a partir de dados sensíveis, de relações e
experiências imanentes, ou seja, uma vez que possam ser apropriados, incorpora-

108 Segundo Ronaldo Brito (1985), a subjetividade e a expressividade, longe de representarem


um retorno à estética idealista, apontam para a diferença e avanço do neoconcretismo em rela-
ção ao concretismo. “A pesquisa em arte, como a compreendiam aqueles artistas, inclui, obri-
gatoriamente as singularidades. A tarefa era justamente formalizá-las. Daí resultou em grande
medida a diferença neoconcreta e seu avanço em relação à arte concreta.” (p. 74).
258 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...

dos e vivenciados. Empregado como instrumento de apropriação, o experimental


tece outra interlocução com seus limites, privilegia relações deliberadamente de
devoração e incorporação, mais do que de oposição e superação.109
Por outro lado, toda a flexibilidade que estas experiências devolvem aos
limites de sua linguagem não deixa de apontar para a volatilidade das experiên-
cias imanentes, menos exclusivas de qualquer recorte experimental determinado.
Considerar nesse trabalho a imanência dos seus limites expressivos, como se ele
continuasse acontecendo, como se ele se processasse no presente, embaraça, in-
viabiliza a tomada de distância, a análise, mas permite discutir alguns traços do
seu modo de ser heterogêneo, refratário aos discursos e dispositivos culturais do-
minantes. Leva-nos também a interrogar a violência implícita do formato absor-
vente das relações de consumo estético. Pulsões homogêneas nas nossas socieda-
des ditas pós-modernas, adequadas às mercadorias da cultura e às relações sociais
que a partir delas se autorizam. Desperta para o ruído que transita nas entrelinhas
da relação espectador-espetáculo. Interferências cada vez mais filtradas, abafa-
das, sussurradas, desalinhadas, que ocupam a extremidade oposta da hierarquia
de valores eternizados dos produtos de entretenimento. Mas, será que elas ainda
serão capazes de precipitar fissuras da diferença irredutível da arte, apontar para a
imanência de seus fluxos inacabados?
Tais questões superficialmente esboçadas sobre o experimental, além de
remeterem ao estatuto fenomenológico da experiência direta, sua condição ima-
nente, não deixam de sinalizar as reflexões do artista sobre a singularidade do
nosso campo cultural. As “ambivalências” e “multivalências” que essas questões
implicam se afinam com seu amplo projeto cultural, com a interpretação dada pelo
artista ao destino do modernismo, como tarefa de criação de uma “linguagem-
Brasil”.110 Programa que envolve tanto suas idéias de uma “Super-antropofagia”,

109 Como observa Fernanda Pequeno (2007), a noção crítica e antropofágica do artista aponta
para diferença entre arte do Brasil e arte no Brasil: “encontrar Mondrian em experiências que
lhe são alheias ou anteriores significa apontar a qualidade cultural da forma, a instância pública
e total da arte, outra ordem de universalidade, distinta da ilusão européia ou ocidental”.
110 No texto “Brasil diarréia”, o artista apresenta suas “posições globais vida-mundo-lingua-
gem-comportamento” e sua “pressa em criar (dar uma posição) num contexto universal a essa
linguagem Brasil.” O que caracteriza a radicalidade crítica dessas posições, seu desejo de ques-
tionamento da posição colonialista, contrariamente à defesa de valores absolutos, é incluir as
ambivalências e multivalências de todos os elementos culturais, incorporando a superficiali-
dade e a mobilidade dessa cultura numa “face Brasil universal”. Também bastante ilustrativo
desse universalismo todo multivalente e ambivalente é sua defesa de valores culturais contradi-
Inês de Araujo 259

quanto de uma “nova-objetividade”.111 Conceitos que integram, no trabalho do


artista, desde a condição processual de suas experiências, inseparáveis de suas
vivências, até investigações estruturais e poéticas. Em tal processualidade expe-
rimental se entrelaçam conceitos, questões de ordem construtiva e expressiva,
sensorial e ética. Na prática, seja em construções, eventos ou acontecimentos,
a articulação (para além dos limites da representação) de relações de espaço, de
tempo e de cor, e das passagens e fusões entre imagem e texto e entre texto e
imagem, permanece atuando em todos os experimentos. Promovendo oposições
relativas, entre o dentro e o fora, entre os limites do seu campo e contra-campo,
a análise de relações plásticas, abre brechas na linguagem visual, precipitando
descentramentos do lugar do sujeito da visão.
A abertura perceptiva própria a essa démarche envolvia problemas es-
truturais e globais, mobilizando em seus processos de arte tanto uma participação
total, social, sensorial-corporal e semântica, quanto uma experimentação coleti-
va. Todas essas questões teóricas, estéticas e culturais são longamente discutidas
pelo artista em vários dos seus textos.112 Nosso intuito, no entanto, será abordar
um pouco das conseqüências dessas experimentações-devorações, percorrendo
alguns aspectos do trabalho “COSMOCOCA – programa in progress”.113

Quasi-cinema
“COSMOCOCA – programa in progress” é um conjunto de experiên-
cias, trabalho conjunto de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida que, nas palavras

tórios: “certo é sem dúvida consumir o consumo como parte dessa linguagem”. Helio Oiticica,
op. cit., p. 114.
111 Os termos se referem aos textos de Hélio Oiticica reunidos no catálogo anteriormente ci-
tado de sua obra. Ainda que nossa retomada da reflexão crítica que aparece nos textos teóricos
do artista seja apenas pontual, vale mencionar, para um debate sobre a atualidade política e
cultural da noção de antropofagia, o texto “Anthropophagies, racisme et actions affirmatives”,
conferência proferida por Giuseppe Cocco em fevereiro de 2008, em que o autor propõe uma
reflexão política sobre a cultura brasileira contemporânea do ponto de vista de uma ontologia
constituinte.
112 Referimo-nos especialmente aos textos “Manifesto da Nova Objetividade”, “Brasil diar-
réia”, e o texto “Tropicália”, que se encontram no catálogo (1996) da grande exposição retros-
pectiva dos anos 90.
113 O nome reproduz as anotações do artista. Ao longo de todo o trecho que se segue, sobre
o Quasi Cinema, as expressões entre parênteses referentes aos textos de Hélio Oiticica, foram
extraídas dos escritos publicados no referido catálogo, relativos aos blocos-experiências das
COSMOCOCA – programa in progress, Ibidem, p. 174 a 189.
260 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...

do artista, desvia-se do que originalmente era um projeto de filme de Neville


d’Almeida e se torna um “quasi-cinema”. Conjunto que conduz o artista ao pro-
cessamento de um programa em aberto e de um projeto inacabado. Igualmente
proposição de jogo com a multiplicidade de experiências individuais simultâneas,
que modificam a vida e o comportamento. Sua crítica às imagens hegemônicas
da cultura, da linguagem-cinema, incorporando plasticidade e sensorialidade a
formas imutáveis, inventa novas experimentações-devorações.
Realizado a partir de 1973, o trabalho reúne cinco blocos-experiências
(outra apelação anexada a eles) feitos com Neville, e soma nove blocos-expe-
riências feitos ao todo. Os blocos experiências da COSMOCOCA-programa in
progress, receberam a abreviatura de CC seguidas da numeração de cada um dos
blocos. Cada bloco é composto de vários elementos. Projeções de slides rebatem
sobre paredes, teto e chão, fotos de objetos dispostos horizontalmente. Deslocando
planos, tais imagens são justapostas lateralmente. Escapando à frontalidade, não
projetam plano infinito, antes fragmentam e deslocam possibilidades de percurso
no espaço em que ocorrem. Nas palavras do artista, os quasi-cinema surgem “não
fossem as longas conversas caminhadas, limite criado por MANGUE-BANGUE
de Neville D’Almeida”. São imagens de fotos descentradas de capas de disco,
livro e revista sobre as quais aparecem fileiras de cocaína desenhando esquemati-
camente alguns contornos ou traços sobre as figuras ou textos dos suportes esco-
lhidos. Constam também alguns objetos para o consumo da droga; canivete, nota
de dólar enrolada e papelote.
O artista deixou várias instruções para os blocos-experiências das CC.
Tratam-se de determinações para cada “situação-espaço-PERFORMANCE” que
detalham a projeção de cada conjunto de slides em cada bloco, a duração e o
timing das projeções, o uso de diferentes projetores ou não. O percurso das proje-
ções também é indicado simultânea e alternadamente sobre várias paredes e o teto
do local, assim como suas relações com as trilhas sonoras; as performances parti-
culares e performances coletivas, suas ações e incidências “indoors ou outdoors”,
e o ambiente dos penetráveis fragmentados que abrigam cada experiência.
As instruções para o CC 3 MAILERYN, por exemplo, indicam proposi-
ções (chance operation) para a realização das fotos, da projeção, da trilha sonora
e das performances. Uma imagem traz a capa com celofane do livro de Norman
Mailer sobre Marilyn Monroe, com a foto da atriz com quem foi casado. Outras
imagens trazem fotos da capa sem celofane, sobre as quais são dispostos diferen-
tes acessórios para o consumo de cocaína, e desenhos esquemáticos com a própria,
sobre a imagem, além da foto do “CAPE 24 P31 PARANGOLÉ – HO/NYC/72”.
Inês de Araujo 261

A trilha sonora é de um repertório latino-americano, interpretado pela cantora


Yma Sumac. As projeções dos slides são simultâneas sobre as quatro paredes.
As performances indicadas são públicas e privadas. O ambiente é um penetrável.
Ambiente este de areia coberto com vinil e balões de gás coloridos, de topografia
ondulada improvisada, onde os participantes podem rolar no chão.
Acrescentaríamos que as anotações e indicações técnicas de montagem
também prolongam cada bloco-experiência. Integrando a eles mais uma interfe-
rência e desvio da atenção, descentrando nosso foco das imagens e concretizam,
nas palavras do artista, um “MUNDO-INVENÇÃO”. Portanto, os vários escri-
tos, anotações e indicações se relacionam ativamente à primeira série dos cinco
BLOCOS-EXPERIÊNCIAS inventados nesse diálogo entre Hélio e Neville, e
transformados em “COSMOCOCA-programa in progress”. Tais escritos, além
de qualquer função descritiva que possam cumprir, distendem as fronteiras desse
terreno de diálogo em andamento. Parecem antes contaminar ou ser contaminados
pelos blocos-experiências.
Já o cinetismo é tratado por Hélio como um momento, “o cinetismo do
‘fazer o rastro’ e sua ‘duração’ no tempo resultam fragmentados ... não resultam
em algo, já constituem momentos”. Desde as indicações de como projetar os sli-
des, investiga-se o conceito de projeção e é apresentada uma alternativa ao plano
seqüencial do cinema. É como se o movimento congelado pela foto, pela projeção
do slide, desacelerasse a ilusão do movimento. Por outro lado o acelerado consu-
mo de imagens, de superfícies, intensificado pelas imagens superficiais, estereoti-
padas, fixam menos do que uma imagem. Convertidas em superfícies, rebatidas,
de imagens consumíveis passam a consumadas, indicando usos em desusos, as
imagens sofrem uma intervenção sobre sua linguagem, devoradas não se referem
a nenhum sentido anterior.
Os slides seguem a ordem em que as fotos foram batidas, são “semi chan-
ce operation”. As fotos são registros simultâneos aos arranjos de suas imagens.
Novas variáveis residuais se acrescentam a todos esses fragmentos em deriva,
quem projeta, o som, o ambiente, “SÃO MOMENTOS-FRAMES: fragmenta-
ção do cinetismo”. Anexando mais um suplemento, mais um evento lateral, tais
momentos-frames recortam arbitrariamente rastros trans-figurados. Momentos de
um jogo com o sentido deslocado da imagem, com as lacunas que seus lances
operam, ofuscam. De momento a momento, suas fronteiras disruptivas se disten-
dem. Postando-se para fora do processamento do cinema, prolongam a qualidade
dos intervalos, das separações entre parênteses, de “um sentido de não-fluir não-
narrativo”, às reviravoltas da vida, e aos “limites da não representação”.
262 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...

Segundo o artista “o deslocamento da supremacia e da constância da


IMAGEM é o cerne disso tudo”. E por imagem com letra maiúscula ele caracteri-
za o discurso do cinema, sua seqüência superdefinida e completa, ou as “constân-
cias idealizantes” de seu tipo de argumentação “verbo-voco-visual”. Uma outra
passagem dos escritos refere-se a seu descontentamento, a sua inquietação “com
a relação (principalmente visual) espectador-espetáculo (mantida pelo cinema e
desintegrada pela TV) e a não ventilação de tais discussões...”. A discussão veicu-
lada pelos comentários e descrições das cosmococas: programa in progress busca
opor-se à passividade dessas relações. Mas essa imagem não é apenas virtual, vale
também como índice de uma demagogia discursiva conceitual e ideológica, “era
STALIN e MACCARTHY”.
Num determinado momento de suas anotações – que mais parecem trans-
crever uma performance do que narrar um comentário, indicar uma instrução –,
o artista declara “e não teria sido outra a glória e a queda de MARILYN MON-
ROE: a suposta unicidade da IMAGEM fragmentava-se ao resistir ao estereótipo
q deveria defini-la e limitá-la:” segue-se o diagnóstico da imagem semântica que
dissolvia sua unicidade: “MAO-MARILYN: TV-ROCK: os BEATLES”. Hélio
descobre, através dessas outras imagens, fusões fragmentações. Dissolver repre-
sentações e hábitos unívocos de uma cena fixa que confina o lugar do espectador
no esquema tradicional da representação revela outro tipo de identificação, que
leva ao comportamento e ao experimental.
Considerar que o contrário de uma imagem hegemônica pode ser outra
coisa que não o efeito de atomismo, operar uma fragmentação das IMAGENS,
transgredindo sua univocidade, tem por conseqüência, para o artista, o progra-
ma dos quasi-cinema; permite-lhe imaginar o cinema como outra coisa além da
“seqüência e constância do fluir temporal: constância verbo-voco-visual:???:...”.
Nesse quasi-cinema, o movimento fissura o próprio modo de representação e dis-
cursividade do cinema. Seu outro movimento coloca de lado a “unilateralidade do
cinema espetáculo”, além de tocar um poderoso sistema cognitivo dos dispositi-
vos sociais, as IMAGENS. O quasi-cinema começa como “não representação”,
“não fluir narrativo”, e se volta para o lado da “fragmentação da realidade e do
mundo das coisas...”.
As operações em jogo nesse trabalho parecem convergir com alguns con-
ceitos estéticos de Bataille, especialmente a noção de informe. Na revista Docu-
ments, Bataille afirma que o termo informe não define apenas um adjetivo, antes
Inês de Araujo 263

tem por finalidade desclassificar as formas e designar o que escapa ao sentido.114


Tal operação informe, que afirma que o “universo” com nada se assemelha, não
deixa de apontar para o modo como Bataille formula um pensamento das imagens.
Ainda na revista Documents, outro texto, dedicado ao termo chaminé;115 coloca
em evidência o modo de atuação das imagens por revelação. Traço que caracte-
riza o pensamento das imagens privilegiado por Bataille. O filósofo observa que,
apesar de a maior parte das pessoas não verem numa chaminé mais do que um
signo do trabalho, ou uma abstração, sua imagem pode ser reveladora do estado
de coisas violento do qual fazemos parte. Sugere também que essas imagens, mais
do que aquelas a que o termo se refere, são as que se endereçam ao olhar aterrori-
zado de uma criança, ao momento em que ela vê nascer, de um modo concreto, a
imagem da imensidão na qual toda a sua vida se desenrolará.
Nos “blocos-experiências” dos quasi-cinema, as projeções de imagens de
slides não cumprem a função representativa, nem fazem comparecer a forma tra-
dicional da “linguagem-cinema”. Mas não representar, e não narrar, também faz
nascer um olhar – condensa uma potência reveladora de imagens. O que está em
jogo é a modificação de um olhar, a produção de margens no sistema do sentido,
de brechas na poderosa conexão espectador-espetáculo. Nesta outra experiência,
inadequada ao dispositivo da “linguagem-cinema”, é o lugar do sujeito que está
em movimento. Interrompida, a cena se altera; posta em suspenso, no entanto,
incorpora outros movimentos, e o próprio espectador. Para aqueles que passam
a fazer parte do seu acontecimento, a experiência das imagens é deflagradora.
Não fixa, mas provoca o movimento das imagens, momento em que as imagens
surgem com a vida.
Acrescentamos que os quasi-cinema afetam os sentidos, excedem qual-
quer ponto de observação. Mas nos ultrapassar tem a ver com seu modo de nos in-
cluir em sua dinâmica. Sua abertura vertiginosa – do cosmos às imagens standard,

114 A noção do informe faz parte de um dos verbetes de um dicionário crítico publicado por
Bataille e outros autores, na revista Documents. Se seu tom é bombástico e paródico, e sua crí-
tica baseada nas figuras dos verbetes da rubrica dicionário crítico publicada na revista editada
por Bataille em 1929, através dele o filósofo não deixa de expor suas posições anti-idealistas
e suas idéias sobre o pensamento das imagens. (Cf. BATAILLE, Georges, 1968). Sobre a re-
vista Documents, Georges Didi-Huberman, que discute o pensamento de Bataille em vários de
seus livros e artigos, não deixa de frisar a especificidade da relação entre texto e imagem que
caracteriza este periódico de vanguarda. Ver por exemplo o artigo, “Pensée par image, pensée
dialectique, pensée altérante. L’enfance de l’art selon Georges Bataille” de 1994.
115 “Cheminée d’usine” é mais um dos termos que integrou a rubrica deste singular dicionário
crítico na revista Documents. Idem.
264 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...

do coletivo aos consumos privados – convida a penetrar num labirinto. Propõe


“conduzir-se (CORPO!) em vez de ser conduzido (ESPECTADOR)”, e percorrer
desvios, seguir relações dispersas de dupla face, multiplicações de escalas e frag-
mentações de imagens-movimento. Absorvem igualmente problemáticos limites
expressivos, perceptivos, cósmicos, até sintomáticas fronteiras movediças, pólos
de relações entre indivíduo e cultura, fazendo ceder o lugar que nos é próprio.
Num labirinto a saída é incerta, precipitada pelas configurações que se embara-
lham, pelos movimentos dos afetos simultâneos das imagens. Multiplicados ras-
tros, no entanto, fazendo-se nos lances singulares, convocam à participação do
seu jogo, a um novo lance de dados. Provisória, uma linha, uma saída, um desvio,
imprevisível, mudo, rumo, de “IMAGENS” inter-DITAS.
Mas as anotações de fato já são parte do trabalho. Se nelas aparecem
reflexões sobre as relações unívocas entre imagem e comportamento, questiona-
mentos sobre “TV-ROCK”, a “linguagem cinema”, a “hipnotizante submissão
do espectador frente à tela de super-definição visual ...”, além de incorporarem
interlocutores privilegiados, Cage, Hitchcock, Mondrian, Godard, “EU-NEVIL-
LE”, Haroldo de Campos, entre outros, suas descrições são também instruções de
performance, passam de como foram feitos os trabalhos para como ele deve con-
tinuar. Fazendo-se, desviando-se, não se atendo: “EU e NEVILLE quase q mão a
mão desviamos do projeto de mais um filme...”, “não ater-se ao que se acha q deva
ser e q não se quer fazer ...”. Além disso, ao sabor do ritmo das idéias, as palavras
viram siglas, clichês, ganhando contudo, tornando-se mais agudas, imprimindo
sua presença, da profusão de outras grafias. Figuram viradas, excessos de pagina-
ção, pontuação, repetição, palavras compostas, neologismos, e ainda que mudas
figuras, deslumbram, à força da desorganização sintática. Além do mais, as nume-
rosas negociações entre as frases, ventilando mais do que o plano detalhado que
prescrevem, impregnando-se para o lado de fora do seu jogo, escapam à leitura,
metamorfoseiam a leitura.
Passagens permeadas de explicações avessas às imagens unívocas pas-
sam as vezes para implicações de riscos equívocos. Da brincadeira corrosiva do
conceito do plágio “como se tivesse sido desenterrado e ressuscitado”, desliza
a fileira de cocaína que copia o contorno da figura rebatida na imagem, brinca
com e acusa o “carreirista de arte”. As “COSMOCOCA-programa in progress”
exploram um modo de descondicionamento da recepção das experiências estéti-
cas. Atravessado de ruídos, não narrativos, não representativos, os quasi-cinema
intensificam o momento da recepção estética, este seu objeto. Recusando acaba-
mento aos processos de arte, eles implicam perceptivamente e politicamente o es-
Inês de Araujo 265

pectador. Cabe àquele que se investe como participador do trabalho, o trabalho do


sentido. Seguindo a experiência direta das relações e associações engendradas em
seus atos. Num momento em que a droga e o tráfico ainda não haviam assumido
a violência de suas atuais proporções de guerra civil, o uso controverso da subs-
tância narcótica nessas invenções de cosmos de sensações marca especialmente
algumas proposições. A oposição às matrizes dos comportamentos instituídos e a
intensificação sensorial engajando uma experiência de criação do real, à margem
da instituição arte e da cultura de massa.116
De algum modo, toda a necessidade de usar tantas citações dos escritos
do artista, para deixar exalar-se essa imagem apropriada em seus escritos, essa
mobilização de grafismos e grafias de imagens própria a seu questionamento da
“IMAGEM” – esses traços da sua crítica experimental e fragmentar do “super-
visual, que desafia a fragmentação da realidade e do mundo das coisas...”, da
“IMAGEM como matriz comportamento...”, e de “um tipo de argumentação ver-
bo-voco-visual q se caracterizava por constâncias idealizantes...” –, põe à mos-
tra o corte vivo das palavras pulsando, substituindo, circulando num conjunto
maior de fragmentos – a seu modo também rompe com a homogeneidade das
imagens. Da impossível consumação das imagens do consumo, aparecem refra-
tárias aparências, “brechas que levam o espectador a se investir em participador”
trazendo-o de volta ao corpo, à potência “ambivalente” e “multivalente” das suas
experimentações-devorações.

Corpo vetor
Vetor de orientação e desorientação, de construção e desconstrução, o
corpo que participa dessas experiências é um corpo para além de seus contornos.
Incorpora-se ao trabalho como também envolve atos de vida. Aponta para as dico-
tomias que essas experiências visam superar, as oposições entre arte e vida, con-

116 Abordar a Cosmococa, leva ao assunto da droga. A esse respeito vale a pena mencionar
algumas observações de Guy Brett, crítico de arte contemporânea, amigo do artista. Em seu
texto para o catálogo Hélio Oiticica, ele trata o assunto com bastante discernimento. Após
observar que não se pode tornar aprazível o que na época pretendia claramente ser perturbador,
Guy Brett declara: “Se o assunto é droga as pessoas parecem sentir-se obrigadas a tomar uma
das seguintes posições: moralismo indignado, distância sociológica, conluio consciente. Quero
respeitar a visão de Hélio de que “só a pessoa que toma droga pode saber a relação dela com
a droga”. Sua atitude em relação à cocaína era positiva e não negativa; mas ele sabia, é claro,
que o assunto era explosivo e que Cosmococa, o “programa em progresso” feito com Neville
d’Almeida em 1974 era inexibível (na verdade, Neville diz que eles planejavam mantê-lo em
silêncio dez anos antes de revelá-lo.)”. Catálogo Helio Oiticica, 1996, p. 234.
266 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...

templação e participação, representação e acontecimento. O corpo, como suporte


da percepção, envolve a impossibilidade de determinar um ponto de vista fixo, a
indiscernibilidade dos sentidos engajados na experiência do presente. Residual,
subjaz ao processamento atual de todos os sentidos. À diferença do cálculo, da
soma de seus efeitos, lança uma indagação viva sobre os limites da experiência.
Para um trabalho que coloca em movimento as fronteiras da cultura e do ambiente
artístico, que transgride seus limites e aventura-se por variadas direções, sejam
elas as mais contestáveis, o corpo parece constituir sempre um limite inalienável.
As próprias construções “estruturas-abrigo-labirinto”, verbais, visuais, ambien-
tais, éticas, coletivas, dessas proposições abertas a relações, voltadas para a vida,
recusam incorporações mecânicas. Persistem, ao contrário, como orientações
múltiplas de espaços flexíveis e des-hierarquizados.117
Sinal de uma relação perceptiva e ambígua com o mundo, o corpo é esse
lugar paradoxal a partir do qual surgem todas as distâncias, ainda que seja inse-
parável da cena que inaugura. Sem distância outra de seu próprio horizonte senão
a que se funde com suas próprias sensações e trajetórias perceptivas. O corpo em
questão, antes relativo à própria experiência perceptiva, atual e inatual, eminente
e imediata, menos do que uma forma, irredutível a qualquer de suas projeções,
abstrações, representações e ações, sede de todos os fenômenos, transborda qual-
quer totalidade. É para esse corpo fenomenológico que a própria efemeridade,
transitoriedade e precariedade das construções experimentais do artista parecem
apontar, objetivando razões do corpo.
Mas as razões desse corpo, para além dos limites do corpo, expressam
uma potência irredutível à razão, o movimento da vida. No seu modo de escapar
a qualquer contorno, a experiência das sensações mobilizada nesse trabalho faz
da sua razão menor, da sua natureza expressiva, estética e perceptiva, sua razão
maior. Tais razões do corpo novamente nos remetem ao pensamento de Bataille
(2003). Para o filósofo que elabora uma economia da despesa, as ações econômi-

117 Em seu livro sobre Lygia Clark e Hélio Oiticica, Beatriz Scigliano Carneiro relaciona a
exploração de espacializações simultâneas e relativas da Cosmococa com o conceito de hetero-
topia. Sua abordagem, aproxima as “estruturas abrigo labirinto” das construções de Hélio, do
emprego que Foucault faz deste conceito. Ela argumenta que os espaços inventados pelo artista,
reúnem vários outros espaços e tempos, mas não projetam nenhuma fábula imaginária. Hete-
rotopias fazem parte do espaço real. À diferença dos espaços utópicos, fora do real, os espaços
heterotópicos, são espaços abertos a experimentação, que podem contestar espaços reais e se
referir a situações de prática de liberdade, ou de guerra. Foucault descreve esses espaços como
espaços que podem conter outros espaços. Como espaços que se localizam nos espaços sociais
cotidianos, mas exercem funções diferentes e muitas vezes opostas a estes, deslocalizando-os.
Inês de Araujo 267

cas do homem não se limitam à utilidade que possam ter, mas engajam-se cons-
tantemente na criação de valores improdutivos, de qualidades insubordináveis, de
processos de despesa livre.
Apropriando-se criticamente da “linguagem-cinema”, de uma das mer-
cadorias culturais mais bem-sucedidas do século XX, o artista intervém num dos
sistemas normativos e cognitivos da imagem mais poderosos dos nossos tempos.
Basta lembrar, por exemplo, o quanto as relações entre palavra e imagem nos
fazem esquecê-las como palavras e imagens. Com base nos efeitos das aparên-
cias de códigos extremamente hierarquizados, “naturalmente” nos reconhecemos.
Com base na diferença, os quasi-cinema acionam um contradispositivo, não mais
nos identificamos. Seu gesto mostra uma outra imagem, devolve movimento as
imagens. Sua violência está em não se investir na representação das imagens em
movimento. Mas em modificar-lhes o entorno, provocar um deslocamento do sen-
tido, romper com a homogeneidade do seu discurso.
O contradispositivo em questão se funda nas razões do corpo. Rebaixan-
do-se à ordem dos sentidos, desclassifica a “constância idealizante” dos discursos
acabados, contrapõe ao “super-visual” da “IMAGEM” imagens do seu uso. Extrai
das imagens um lado avesso, reduzindo-as a uma máscara, “quasi-cinema”, “não
representativa”, “não narrativa”, mostra apenas a identidade das relações nelas
instituídas. Fragmentando um dispositivo narrativo da cultura de massa, a violên-
cia de seu gesto faz violência às relações entre discurso e imagem. Não se trata
de acabar com o cinema – o que está em jogo não deixa de ser da ordem da esté-
tica –, mas fazer surgir nele uma ocasião experimental, insubordinada, livre, não
condicionada, outra qualidade de experiência. Introduzindo a desordem na ordem
da linguagem-cinema, no quasi-cinema intensificam-se as condições residuais,
dispersivas, desviantes, simultâneas, fragmentares do mundo das coisas.
Nesse espelho refratário não deixa de se de refletir uma face menos ide-
ologicamente eficaz das imagens. Na CC3, as fileiras de cocaína que mascaram
maquiando a figura na capa do livro fotografado, certamente a força da proibição,
exercem grande força de atração revelando, para além da dicotomia entre a per-
cepção háptica e ótica, a aproximação entre o impulso do olhar e a compulsão en-
torpecente. Entre reflexos e rebatimentos, as imagens no bloco-experiência CC3
não passam de uma entre as ambivalências implícitas do conjunto. Este também
sugere outros desvios e opacidades, entre instituição artística e cultura de mas-
sa, entre as asperezas das relações de consumo e a crueza das imagens, entre as
paixões individuais e os rituais coletivos, o ilimitado no cosmos e o limite na
comunidade.
268 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...

No conjunto de representações que os slides mobilizam, resta apenas a


reunião dos seus indícios, pistas de uma imagem em ruptura com a lógica do con-
sumo das imagens, sobre a qual não deixam de fazer seu comentário. “Maquia-
gens”, projeções de foto, capas de livro, balões no ambiente, o circuito espiral das
projeções, a trilha sonora, os objetos, o jogo, a droga, os objetos de corte sobre
imagens, textos, fotos, rastros, indícios dos seus laços afrouxados, permeados de
outras espessuras anexadas às imagens.
Mas a CC3 tem também outro nome, Maileryn. Colocando em cena o
escritor, o nome híbrido se anexa como uma imagem, assim como a foto do livro
remete à cena da escrita. A biografia descreve a trajetória do mito, mas o que o
escritor tem a mostrar é o que não pode ver. Para ele falta distância em relação aos
acontecimentos. O objeto do escritor é certamente o mesmo que o do artista, como
parece confirmar os jogos entre espelhos opacos e rebatimentos heterogêneos. O
testemunho do escritor é menos do que a descrição do mito, do ícone pop, mas
sugere um uso para a escrita, o que nomeia, altera o próprio nome, introduz nova
identidade. Intoxicado por suas imagens, o artista, por sua vez, também modifica
o seu próprio instrumento de discurso; produzindo menos do que uma imagem,
reinventa a possibilidade de uma experiência estética. Ambos fazem parte desse
limite, sobre o qual se lançam. Mostram o que não podem ver.
Experimentam no recorte instantâneo, transitório, o momento que se es-
tende brevemente, momento de dispersão fora de seus próprios contornos. Am-
bos redesenham uma fronteira temporal, entre atualidade e atuação. Trata-se de
uma imagem, e de uma história. Como ambas lhes pertencem, nelas só podem
implicar-se. Trata-se de uma história que lhes dá as costas mas da qual não podem
desvencilhar-se. Declínio do impossível ou o único possível? Em todo caso, está
em jogo essa outra cena, “essa mútua incorporação experimental no play das ex-
periências simultâneas q se permeiam: como CORPOS Q DANÇAM e q se laçam
e se afastam jamais fixados num “ponto de vista” permanente)...” Auto-retrato de
um “auto-teatro sem espetáculo”? Escrevendo, inscrevendo, fazendo rastros, para
poder “não ver”, “não representar”, “não narrar”, e nos revelar no movimento
com as nossas imagens.

Referências

BATAILLE, Georges. Documents, Paris, ed. Mercure de France, 1968.


______. La Part Maudite, Paris: Ed. Les editions de Minuit, 2003.
Inês de Araujo 269

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Oiticica, vida com arte. São Paulo: Ed. Imaginária, 2004.

Inês de Araújo é artista plástica, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes


da UERJ e doutoranda em Artes Visuais na EBA UFRJ.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 271-280

Culturas múltiplas versus monocultura118

Pedro de Niemeyer Cesarino

Por ocasião da revisão do status da demarcação da Terra Indígena Raposa


Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal, mas também por outros e diversos
motivos, os “assuntos indígenas” têm ocupado bastante nos últimos meses as pá-
ginas dos jornais e a atenção nacional. Situações como essa acontecem periodi-
camente no Brasil e são particularmente importantes para verificar a persistência
de uma constante nos pressupostos dos brancos sobre índios. Tais pressupostos
baseiam-se na idéia que os “índios”, essa categoria genérica, são justamente des-
providos de pressupostos intelectuais e consistem, de certa forma, num obstácu-
lo ou numa obsolescência em meio à modernidade industrial. Por supostamente
não possuírem pressupostos intelectuais, os “índios” podem então ser julgados
a torto e a direito. As afirmações descabidas provenientes do senso comum, que
atravessam setores diversos da intelligentsia e da política nacional, sejam estes de
esquerda ou de direita, governistas ou não, ainda repousam sobre uma infeliz base
positivista e evolucionista.
Pretendo aqui, de modo bastante breve, mostrar como julgamentos apres-
sados e equivocados (para não dizer perniciosos) sobre sociedades indígenas não
apenas as distorcem e jogam cortinas de fumaça sobre as reais questões em jogo,
como arriscam minar as pontes para uma interlocução entre os pontos de vista
indígenas e não-indígenas sobre os processos de mudança, alteração e, como di-
zemos nós, de desenvolvimento. Parece não interessar à política nacional colocar
a pergunta feita, por exemplo, pelo antropólogo Geraldo Andrello sobre os povos
do alto rio Negro, que têm um longo histórico de relação com o mundo não-
indígena:

... além do reconhecimento oficial de suas terras, quais seriam as expectativas


indígenas em um contexto de intensificação e diversificação das relações com
os brancos? Já que se tratava de grupos com mais de dois séculos de contato,
teriam os índios do alto rio Negro elaborado uma apreciação própria daquilo
que os brancos chamam de desenvolvimento? (...) haveria um discurso próprio,

118 Uma versão deste artigo foi apresentada no seminário “Cultura, trabalho e natureza na
globalização” (Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, setembro de 2008).
272 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA

indígena, relativo ao desenvolvimento a ser negociado com a sociedade envol-


vente? (2006, p. 33).

É exatamente esse tipo de questionamento que diversos intelectuais e


dirigentes têm menosprezado, tal como podemos ver em algumas breves citações
de passagens publicadas na mídia impressa. O deputado federal Aldo Rebelo, por
exemplo, disse recentemente, em entrevista publicada n’O Estado de São Pau-
lo (27 de abril de 2008), que “a cosmogonia tem valor para as populações que
não tiveram contato com o não-índio”. Entenda-se, pela negativa, que aqueles
que tiveram “contato” não têm mais uma “cosmogonia”. Ora, e o que é essa tal
“cosmogonia” supostamente perdida pelos índios “sem contato”? Se o deputado
tivesse algum conhecimento de causa sobre o assunto, saberia que as cosmologias
ameríndias são caracterizadas por processos de relação com multiplicidades de
povos que se dão desde os tempos míticos e que, justamente por isso, envolvem a
idéia de “contato” em sua definição. É isso que faz com que tenham sobrevivido
com bastante vigor à relação com os brancos ao longo dos séculos, a despeito dos
massacres realizados pelo processo colonizatório. Mantendo suas “cosmologias”,
os povos indígenas também mantêm os seus direitos originários sobre as reservas
que ocupam. Afirmações como estas colocam Rebelo em pé de igualdade com o
sociólogo Hélio Jaguaribe, para quem

... a perpetuação de culturas nativas, em que se fundamenta, no Brasil, a política


de reservas, carece de sentido. Em termos antropológicos, pois é impossível sus-
tar o processo civilizatório. As populações civilizadas do mundo são descenden-
tes de populações tribais, que seguiram, em todos os países, o secular caminho
que leva paleolíticos a se transformarem em neolíticos e estes, em civilizados
(Folha de São Paulo, 26 de abril de 2008).

O trecho, que não merece maiores comentários, parte de pressupostos


similares aos de Rebelo, insiste em um evolucionismo tacanho, varre para debai-
xo do tapete os genocídios causados por tal “processo civilizatório” e se confessa
ignorante com relação ao conceito de cultura, fundamental para a disciplina exer-
cida pelo autor. Bases similares às de Rebelo e Jaguaribe parecem permear tam-
bém o discurso do professor e ministro Mangabeira Unger, tal como podemos ver
em uma entrevista concedida ao caderno Aliás de O Estado de São Paulo (15 de
junho de 2008). Mangabeira Unger poderia reconhecer que a Amazônia não é um
vazio natural, uma região habitada por povos que “carecem de um projeto”, como
escreveu ali. Poderia procurar se informar sobre os projetos alternativos que já
existem na Amazônia há milênios e que foram atropelados pela história. Ora, tais
Pedro de Niemeyer Cesarino 273

projetos não colocaram o planeta em risco, assim como tem feito a produção ca-
pitalista que, agora, se quer sustentável.
As “inovações que exigem grande esforço de imaginação”, do qual de-
pende a preservação e o pretendido desenvolvimento da região amazônica – os
termos são do ministro – não podem ser realizadas de modo unilateral, sem con-
siderar os pontos de vista dos povos que não ocupam propriamente a floresta,
mas que constituem um sistema com o ambiente. E em que consiste “formar um
sistema” com isso que chamamos de natureza? Tal relação complexa e particular
com a paisagem, que marca os pensamentos e práticas indígenas, é distinta de
nossas noções de “meio ambiente” ou de “natureza”. Os pensamentos ameríndios
não concebem a natureza como uma esfera exterior à agência humana, passível,
portanto, de ser submetida aos seus caprichos e necessidades produtivas, tal como
ocorre ao longo da história da modernidade ocidental.
Para os pensamentos da floresta, humano não é algo restrito ao que consi-
deramos como “humano” (o Homo sapiens sapiens), mas sim uma qualidade sub-
jetiva distribuída por toda a paisagem. É essa distribuição de subjetividades pela
“paisagem” (na falta de um termo melhor) que constitui aquilo que o professor
Viveiros de Castro (2002) e a professora Tânia Stolze Lima (1996) chamaram de
“perspectivismo”, e que o antropólogo francês Philippe Descola (2005) considera
como “animismo”. Tal distribuição torna o que tratamos por “paisagem” ou “na-
tureza” um horizonte permeado de equilíbrios, tensões e limites próprios, e não
uma tabula rasa inerte e passiva, incondicionalmente submetida à ação da cultura
ou da civilização. Vou tentar explorar rapidamente esse contraste aqui.
Em sua entrevista, o ministro diz que a “Amazônia é nossa grande fron-
teira, não só em termos geográficos, mas [também] imaginários”. Convidamos
então o professor a conhecer melhor as diretrizes das imaginações da floresta,
ignoradas pela episteme que está na base de seu projeto impositivo. Convidamos
a conhecer as idéias e os intelectuais dos quais ele diz sentir falta no Brasil. A co-
meçar pelos próprios intelectuais da floresta, que existem sim por ali, por trás da
suposta “coleção de árvores” mencionada pelo ministro e por outros. Vamos ver
então como os povos da floresta têm colocado o problema do “desenvolvimento”
em seus próprios termos, lembrando que, aqui, “humano” não é uma prerroga-
tiva exclusiva à espécie humana detentora da cultura e da civilização, mas uma
qualidade subjetiva distribuída por inúmeras posições. Não custa lembrar que,
se os termos ameríndios soam “ambientalistas”, não podemos dizer que assim o
parecem por razões ideológicas ou pós-ideológicas, já que são independentes da
história moderna das idéias.
274 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA

O antropólogo Bruce Albert (2000, p. 250) nota com precisão como as


reflexões dos Yanomami sobre o ouro e outros metais não são um sintoma de “mu-
dança cultural”, mas sim expressão de uma reflexão tradicional característica das
sociedades da Amazônia. Em suas reflexões, o xamã Davi Kopenawa Yanomami
dizia que

O ouro e outros minérios que não conheço, Omama [o demiurgo] encontrou e


depois escondeu debaixo da terra para que ninguém mexesse com eles. São coi-
sas que não se comem. Só deixou de fora aquilo que comemos... Esses minérios
ninguém os come, são coisas perigosas. Só provocam doenças que se alastram e
matam todo mundo, não somente os Yanomami, mas os brancos também (Yano-
mami, apud Albert 2000, p. 249-250).

Há portanto um “metal perigoso” enterrado no fundo da terra pelo de-


miurgo Yanomami. E sobre a terra já há o suficiente, já há “as coisas que se co-
mem”. Tal metal é “o ‘pai do minério’, a ‘ossatura da terra’, ‘os pés/raízes do céu’,
um tipo de axis mundi [eixo do mundo] metálico”, como nota Albert (2000, p.
250). Os Yanomami, assim como os Marubo e outros povos indígenas, temem o
que chamam de uma “epidemia-fumaça” tais como as que parecem emitir o ouro
e outros metais. É o que escreve Albert: “Enquanto a fumaça do ouro manipulado
in situ provoca uma contaminação local, a fumaça das outras matérias-primas
espalha suas exalações patogênicas (...) até queimar o peito do céu, o qual, sendo
atingido em sua essência sobrenatural, morre de epidemia, [tal] como os Yanoma-
mi, [tal] como a floresta’” (ibidem, p. 251-252). Davi Yanomami não fala de um
mal que atinge apenas o espaço cosmográfico de seu povo, mas que se alastra à
urihi pata, “grande floresta, universo”, isto é, ao “mundo inteiro” (idem):

Esta fumaça-epidemia atinge o ‘mundo inteiro’... O vento leva-a até o céu. Quan-
do chega lá, seu calor queima-o pouco a pouco e ele fura. O ‘mundo inteiro’ é
então ferido como se estivesse queimado, como um saco de plástico derretendo
no calor (Kopenawa, apud Albert 2000, p. 252).

Albert observa como uma metáfora tradicional utilizada para designar a


feitiçaria guerreira feita outrora através de fumaça venenosa passa, de um modo
bastante eloqüente, a servir como “uma tradução xamânica do efeito estufa” (ibi-
dem, p. 252). Observei a mesma operação entre os Marubo (do Vale do Javari/
AM), para os quais a gasolina emite uma “fumaça-morte” (vei koĩ) similar à utili-
zada em outros tempos nos ataques de feitiçaria perpetrados pelos antigos. O ce-
nário apocalíptico traçado por Davi Kopenawa é também partilhado por Armando
Pedro de Niemeyer Cesarino 275

Cherõpapa, um xamã marubo com o qual trabalho, que coloca o problema em


termos similares em suas especulações sobre a gasolina:

Se isso acabar, isso que carrega a terra, isso aí que estão pegando e acabando,
se acabar o que carrega a terra , é verdade, a terra despenca mesmo. (...)

Chama-se ‘gordura da terra’, e o nome de vocês é ‘gasolina’. (...) A gasolina é


forte, fica lá no fundo da terra junto com um osso gigantesco, e assim carrega
a terra. Carrega a terra ventando muito forte. Mas se acabar – e é do tamanho
inteiro da terra –, ela cai, cai mesmo. (...)

Existe um rio, um rio mesmo. E embaixo tem um lago gigante do tamanho des-
ta terra onde tudo vai se desmoronando, e as pessoas acabam, tudo acaba, as
árvores acabam, todos estes rios acabam, as sucuris todas acabam, os bichos
da terra todos acabam, os espíritos desta terra acabam, é porque fazem assim
que as pessoas acabam. É verdade, não se deve mesmo mexer nisso, mas eles
[os brancos] encontram a gordura e ela acaba, do tamanho inteiro desta terra
é esta gordura com a qual estamos acabando e que faz a terra cair, cai mesmo
(Marubo 2008, p. 152-153).

Se o cataclismo marubo é decorrente da queda da terra, o yanomami


ocorre a partir de uma queda do céu. Em ambos os casos, entretanto, acaba-se a
dimensão inteira de subjetividades (espíritos, pessoas-animais, viventes ou huma-
nos, brancos ou não-indígenas), e não apenas o que chamamos de “humano” uma
vez que é todo o equilíbrio relacional que se rompe com a extração desmesurada
de determinados elementos (gasolina ou ‘gordura da terra’, ouro, minérios). “Os
brancos”, diz Davi Kopenawa, “são apenas engenhosos, eles ignoram o xamanis-
mo, não são eles que poderão segurar o céu...” (apud Albert 2000, p. 255).
E em que consiste esse “xamanismo” que os brancos ignoram? Os xama-
nismos amazônicos estão baseados em vastas mitologias, nas quais são narradas,
entre outros feitos, antigos cataclismos e destruições de mundos e humanidades,
mais os sucessivos contatos e relações entretidos pelos antepassados até que o
mundo adquirisse sua atual configuração. Mas o xamanismo consiste propriamen-
te em uma operação ou uma atividade sobre o campo ampliado de “humano”. Ou
seja, sobre o campo de subjetividades tais como as dos espíritos que, na cosmolo-
gia marubo, guardam os pilares que sustentam o tal lago subterrâneo onde repousa
a “gasolina” ou “gordura da terra”. Nesta referência, a própria natureza que nós
consideramos com inerte, objetificada ou desumanizada pode se converter em
sujeito e em locutor, capaz de avisar os xamãs sobre perigos iminentes. É assim
que explica/traduz mais uma vez Davi Kopenawa:
276 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA

Assim fala Omama [o demiurgo-natureza]: ‘não destruam o lugar onde moram


os meus genros [os Yanomami] e meus espíritos!’ É assim que a ‘natureza’ fala
aos brancos, mas eles não entendem. São surdos e ignorantes. Seu pensamento
é perturbado por vertigens. Olham para suas peles/cascas de imagem e aí vêem
outras coisas: o desenho da escrita das coisas que estão debaixo da terra e que
eles desejam, o metal e o ouro. E assim se vangloriam de serem inteligentes
(apud Albert 2000, p. 258).

A diferença entre xamãs e não-índios é, pois, uma diferença de olhar:


brancos que se julgam sabidos têm a rigor “olhar de morto” ou “olhar-morte”
(vei vero), como dizem os Marubo. “Sabem escrever, mas não sabem pensar”,
acrescentam os xamãs do mesmo povo, que possuem desenhos invisíveis grava-
dos em seus peitos, através dos quais podem traduzir o que dizem os espíritos ou
subjetividades disso que chamamos de “natureza”. “‘Meio ambiente’”, explicava
Kopenawa a Bruce Albert, “é a palavra de outra gente, é uma palavra dos brancos.
O que vocês chamam de ‘meio ambiente’ é o que resta do que vocês destruíram’”
(ibidem, p. 259).
Kopenawa retraduz para seus próprios termos o que chamamos de “dis-
curso ecológico ou ambientalista”: ao assim fazer, cabe insistir, não está lançando
mão de um discurso que aprendeu em sua relação com os brancos, mas sim de
estruturas de fundo dos pensamentos ameríndios. São essas estruturas que podem
ecoar, por exemplo, nas reflexões de um xamã marubo colega seu, cujo conta-
to com os brancos é intermitente. É a partir destes termos que, ainda de modo
pontual, os discursos xamânicos tendem a se constituir como discursos políticos
diante das intervenções do Estado e de outros setores da sociedade civil organiza-
da, como observa mais uma vez Albert para o caso yanomami (Albert, 2000). O
uso tradutivo e diplomático das tradições xamanísticas é, portanto, algo bastante
distinto do imaginário moderno, que cola à imagem da natureza inerte a figura
do índio genérico e simplório, a ser confinado em retalhos de floresta ou então
absorvido como subalterno nos processos de produção. As coisas parecem ficar
bastante graves quando o discurso intelectual da floresta, conhecido apenas por
alguns poucos etnólogos, permanece sendo sistematicamente ignorado pelos qua-
dros pensantes e dirigentes do país.
Ora, mas as “ecologias xamânicas”, tais como as expressadas por Davi
Kopenawa e por Armando Cherõpapa, ocorrem em um contexto no qual as trans-
formações, produtos e mercadorias dos brancos são cada vez mais presentes na
vida dos povos da floresta. Como compreender tal processo sem lançar mão da
falaciosa noção de aculturação ou dos evolucionismos tacanhos, que sustentam
Pedro de Niemeyer Cesarino 277

o insustentável, isto é, a violação dos direitos originários dos povos indígenas e


de seus conhecimentos tradicionais? A ecologia xamânica tem também os seus
desafios internos: como se não bastasse a imposição das lógicas de produção pela
sociedade não-indígena, é também necessário dar conta dos conflitos vividos pela
juventude, pelos trânsitos para as cidades, pela miséria e doença, em alguns casos,
ou pelo excesso de mercadorias, em outros.
A sociedade xikrin mebêngôkre tem vivido grandes e impactantes modi-
ficações causadas pela entrada de indenizações oferecidas pela Companhia Vale
do Rio Doce, em virtude de suas operações da Floresta Nacional de Carajás. A
introdução de grandes e sistemáticas quantidades de dinheiro – o que, veja bem,
é coisa rara na maioria das sociedades indígenas do Brasil – seria argumento su-
ficiente para considerar os Xikrin como aculturados ou oportunistas que se valem
de sua posição como “indígenas” para adquirir benesses dos brancos e introduzir
a “divisão de classes” em sua sociedade? Esse seria o pensamento de má-fé, ou
então uma transposição apressada de processos capitalistas a sociedades radical-
mente distintas das nossas. Em seu livro dedicado ao assunto, o antropólogo Cesar
Gordon conclui que

os Xikrin descobriram que o dinheiro é o grande poder transformativo do atual


momento histórico. O dinheiro é a grande capacidade de ação e de estabelecer-
se na posição de sujeito. (...) Sua potência transformativa é imensa, mas precisa
ser conduzida e canalizada de maneira que os Xikrin continuem comportando-se
e reconhecendo-se como parentes (2006, p. 410).

A passagem possui termos que, mais uma vez, nos mostram como até
mesmo o dinheiro é apreendido a partir de critérios próprios (os critérios dos
pensamentos ameríndios), que passam despercebidos aos olhares desavisados. O
dinheiro faz com que os Xikrin assumam posição de sujeitos, possui imensa e
arriscada potência transformativa. Pode, no limite, fazer com que os Xikrin dei-
xem de se reconhecer como parentes. O que tudo isso quer dizer? “O dinheiro”,
segue Gordon, “pode fazer com que todos virem branco rapidamente, que todos
sejam pequenos xamãs” (ibidem). Sim, pois o xamanismo implica um processo de
alteração, de assunção de um outro ponto de vista ou subjetividade (cf. Viveiros
de Castro, 2002) – a dos brancos, no caso. O dinheiro, continua, “permite que os
Xikrin transitem em vários mundos e vejam com a pele de branco e de Mebên-
gôkre” (idem).
Ao assim fazerem – de modo análogo ao xamã que se jaguariza e, desta
forma, passa a possuir o conhecimento e os hábitos corporais das onças ou jagua-
278 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA

res –, também os Xikrin alterizam-se ou transformam-se em brancos (e transfor-


mação não é o mesmo que aculturação). No limite, é mesmo o seu corpo que
se altera pelo contato excessivo com as coisas trazidas pelo dinheiro, entre as
quais os alimentos industrializados e suas doenças, tais como obesidade, diabetes
e hipertensão. Há limites extremos, tais como os dos jovens que passam a viver
exclusivamente em cidades não indígenas (bem como outros limites, tais como os
de cidades que se tornam indígenas e que são reconfiguradas pelas lógicas amerín-
dias). No primeiro caso, familiar aos Xikrin, nota Gordon, “os parentes começam
a se estranhar. Começam a não se reconhecer” (ibidem, p. 413). A tendência é
temida pelos próprios Xikrin, uma vez que os brancos “são outro tipo de gente”;
são aquele tipo de gente “que não reconhece os parentes” (ibidem, p. 414). E o
processo precisa então ser mediado e controlado através de rituais e elaborações
internas, a fim de que essa característica essencial às relações ameríndias, o pa-
rentesco, não se perca.
A noção (ameríndia) de transformação engloba portanto as mudanças tra-
zidas pelo processo de “desenvolvimento”. É por isso que ela pode também ser
usada para traduzir o termo “civilização” em tukano (língua indígena do alto rio
Negro), como observa Andrello:

A definição de civilização com base no mesmo mecanismo semântico que desig-


na as transformações rituais experimentadas por uma pessoa ao longo da vida
sugere também que esta diz respeito a uma transformação que incide sobre a
pessoa. (...) Assim como as capacidades manipuladas nesses eventos ditos “tra-
dicionais”, a civilização dos brancos viria a ser alocada sobre o corpo e suas
maneiras, pelo domínio da nova língua, pelo uso das roupas e pela incorporação
de novos hábitos e comportamentos (2006, p. 60).

Andrello nota bem como os corpos dos indígenas atuais, que atravessa-
ram a catequização sistemática dos salesianos e outras formas de imposição da
cultura única, “diferem em alguns aspectos dos de seus antepassados, uma con-
sequência ligada principalmente ao crescente uso da comida dos brancos” (An-
drello, 2006, p. 60). Por conta disso, “a capacidade de memória e a inteligência,
atributos igualmente associados ao corpo, também vêm diminuindo com o passar
dos anos, e isso é atribuído especificamente ao abandono do uso do alucinógeno
caapi (Banisteriopsis caapi)” (idem). Como consequência, os jovens de hoje em
dia são mais “tristes e desanimados” do que os de outrora, uma vez que “os nomes
pessoais não são atribuídos com o mesmo zelo” (idem). O nome-alma, uma vez
Pedro de Niemeyer Cesarino 279

bem colocado, garante certas capacidades à pessoa tais como robustez e alegria,
coisa que parece faltar atualmente aos jovens.
A situação é bastante análoga ao caso marubo – seus jovens permanecem
muitas vezes em um limbo entre o modus vivendi dos antigos e dos brancos das
cidades, tornando-se melancólicos e, muito frequentemente, doentes. A situação
se generaliza para diversos povos indígenas e, em alguns deles, têm como limite
o suicídio, tal como entre os Guarani. Vale citar uma última passagem de Davi
Kopenawa sobre o problema entre os yanomami:

Por isso, quando meu pensamento está triste, às vezes me pergunto se, no futuro,
ainda haverá xamãs. Talvez não. Nesse caso, nossos filhos estarão tão confusos
que deixarão de ver os espíritos e de escutar seus cantos. Sem xamãs, viverão
desprotegidos e perderão o juízo. Passarão seu tempo a vagar entre os brancos.
(...) Por isso, nos esforçamos sem trégua para convencer nossos filhos e genros
a inalar yãkoana e fazer dançar os espíritos como faziam os nossos antigos.
Assim as palavras dos xapiripë [espíritos] jamais se perderão (Kopenawa 2006,
p. 21).

A potência transformativa dos xamanismos amazônicos, sua capacidade


de retraduzir o novo a partir de premissas próprias, conseguirá dar conta do avan-
ço avassalador desta “civilização”? Será o pensamento de um Jaguaribe o próprio
anúncio de que o desenvolvimento desenfreado será feito, mais uma vez, às custas
dos outros, à revelia de seus pontos de vista e da capacidade de sustentação da
própria floresta? Vale a pena citar uma passagem escrita por Mauro Almeida e
Manuela Carneiro da Cunha sobre os conhecimentos da floresta que, ainda hoje,
seguem sendo sistematicamente marginalizados:

Dizer que a observação é posta a serviço de práticas não significa que se redu-
za a elas. Tão pouco discutido quanto os que vigoram em outras sociedades é,
na nossa, o pressuposto da racionalidade econômica. Credita-se assim o saber
tradicional ao simples apetite de comida. Mas as populações pesquisam e espe-
culam sobre a natureza muito além do que seria necessário ou racional do ponto
de vista econômico. Há um ‘excesso’ de conhecimentos somente justificado pelo
mero prazer de saber, pelo gosto do detalhe e pela tentativa de ordenar o mundo
de forma intelectualmente satisfatória. Dentre os apetites, o apetite do saber é
dos mais poderosos (2002, p. 13).

Essa apresentação tentou ser um convite para aqueles que, tal como o
professor Mangabeira Unger, têm se furtado a colocar os povos da floresta na
posição de interlocutores possíveis. Não é apenas a incompreensão de seus graves
280 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA

dilemas sociais que está em jogo, mas também a chance de tomar decisões sen-
satas para o futuro da floresta e de seus povos – decisões que, aliás, deveriam ter
sido tomadas décadas atrás (para não dizer séculos), se o que se almeja são mesmo
as ditas “ações a longo prazo”.

Referências

ALBERT, Bruce. “O ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da econo-
nia política da natureza (Yanomami)”. In: B. Albert & A.Ramos (orgs.). Pacificando
o Branco (Cosmologias do contato no norte-amazônico). São Paulo: Editora Unesp/
Imprensa Oficial/ IRD, p. 239-277, 2000.
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São Paulo: Editora da UNESP/ NuTI/ ISA, 2006.
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Aliás, 15 de junho de 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo,
Cosac & Naify, 2002.

Pedro de Niemeyer Cesarino é bacharel em filosofia pela Universidade de São Pau-


lo, mestre e doutor em antropologia social pelo Museu Nacional. Atualmente, realiza um pós-
doutorado no Departamento de Letras da Universidade de São Paulo. É também co-editor da
revista Azougue.
Navegações
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 283-290

“Faxina” e “pilotagem”: dispositivos


(de guerra) políticos no seio da
administração prisional119

Adalton José Marques

A reportagem especial sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC ou


“Partido”) realizada pela revista Veja de 19 de julho de 2006 apresenta, no início
da matéria, uma reflexão segundo a qual as duas ondas de ataques promovidas
por essa “facção”, ocorridas em diversas cidades do estado de São Paulo ao longo
do mês de maio e entre a madrugada do dia 11 (terça-feira) e a tarde do dia 13
(quinta-feira) de julho, ambas naquele mesmo ano, encerram um paradoxo:

Os cabeças da organização estão presos, o que demonstra a eficiência do traba-


lho policial. Querem, no entanto, ditar as condições em que cumprem suas penas
e, ao fazê-lo com explosiva capacidade de comando e coordenação, comprovam
que continuam a lançar um repto mortal à autoridade do Estado.

Nesse raciocínio, que constrói o citado paradoxo, a erupção de vozes


prisionais que querem “ditar as condições” para o cumprimento de suas penas é
tida como espantosa e extraordinária. Apesar disso, parece que, de um modo um
tanto despropositado, a própria reportagem fala de uma tal “história mundial de
repressores e reprimidos”, na qual, sob condições imutáveis, aqueles que estão
presos teriam a seu favor o “fator tempo” e a “excepcional mobilização de recur-
sos mentais e psicológicos” na luta contra as autoridades. Tal teoria jornalística,
que postula a invariância histórica da luta entre repressores e reprimidos nos aju-
daria a corroborar uma reflexão segundo a qual o espantoso não pode ser nenhuma
reação de prisioneiros – mesmo que através de “táticas terroristas”, como afirma
a reportagem – às autoridades que os aprisionam, mas antes, uma possível ca-

119 Agradeço aos meus amigos Delcides Marques (PPGAS/Unicamp), Eduardo Dullo (PP-
GAS/Museu Nacional) e Gabriel Pugliese (PPGAS/USP), pois cada um a seu modo vem contri-
buindo com discussões de pontos centrais de minha pesquisa e apresentando pontos centrais de
suas pesquisas para que eu possa discuti-los. Agradeço imensamente a minha orientadora, Ana
Lúcia Pastore Schritzmeyer, pelas discussões, pelo apoio e pela confiança. Devo mencionar que
este trabalho vem sendo construído com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP), pela concessão de bolsa de estudos.
284 “FAXINA” E “PILOTAGEM”

pacidade da prisão de anular ou neutralizar qualquer reação desses indivíduos.


Mas não pretendemos formular nenhuma teoria geral da luta entre aprisionados
e aprisionadores. Aqui apresentaremos apenas alguns dados, que parecem tirar
completamente o sentido dos enunciados – comuns nos discursos eleitorais – que
compreendem as negociações do Estado com prisioneiros como indício de per-
da da soberania estatal, reveladores de uma multiplicidade intensa e pulverizada
de relações – brandas e de guerra120 – entre essas partes, nas quais a parte ativa
da negociação121 são os prisioneiros. Mais precisamente, queremos falar de um
dispositivo(-prisioneiro) capaz de colocar em exercício um poder específico de
(re) organizar a prisão. Ora esse dispositivo é chamado de “faxina” (denominação
mais comum entre nossos interlocutores que viveram em prisões paulistas até
meados da década de 90), ora é chamado de “pilotagem” (mais comum entre nos-
sos interlocutores que viveram em prisões a partir da consolidação do PCC como
“facção” dominante no estado de São Paulo)122. No limite, pensamos que esses
dados encerram um problema fundamental: será possível, ou melhor, plausível
realizar políticas públicas que buscam “zerar-nos” num gráfico cujo índice válido
para mensuração da soberania estatal é representado por um gradiente que vai
do “nenhuma negociação com criminosos”/ “soberanamente soberano” ao “inu-
meráveis negociações com criminosos”/ “ausência absoluta de soberania”? Será
que possui alguma exeqüibilidade um projeto de prisão que pretenda “represar”
qualquer tática de negociação, de reivindicação ou de enfrentamento por parte de
prisioneiros? Pensamos estar numa conjuntura histórica na qual a negociação com
os presos nunca foi tão necessária.
É válido abrir um parênteses antes de passarmos à exposição dos dados.
O paradoxo apresentado por Veja e os enunciados tipicamente eleitoreiros pare-
cem guardar em seus âmagos a convicção de que a tecnologia prisão conseguiu
em algum ponto do tempo e do espaço, ou conseguirá talvez, eliminar, ou pelo
menos neutralizar, as vontades dos prisioneiros em suas relações – negociações,

120 Utilizamos o predicativo “de guerra” para caracterizar tais relações como bélicas. Não a
usamos no sentido que Deleuze e Guattari atribuem à “máquina de guerra” (2005).
121 Biondi (2007) apresentou uma importante contribuição sobre as negociações entre presos
e a administração prisional.
122 Os “faxinas” e “pilotos” são presos que concentram em si a capacidade política de in-
termediar as relações entre presos e destes com a administração prisional. Por vezes ocupam
cargos, como o de faxineiro, disponibilizados pela administração das prisões para a população
prisional; tais cargos possibilitam uma maior circulação no interior das construções prisionais,
servindo, assim, como ocupações estratégicas para o exercício político destes homens.
Adalton José Marques 285

lutas, obediências etc. – com a administração prisional. Seguindo este raciocí-


nio, a instituição prisão ainda é recoberta, como o fora em seu nascimento, na
transição para uma “penalidade de detenção”, por um caráter de obviedade: 1) é
óbvio que a “privação de liberdade” é o castigo igualitário numa sociedade em
que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira; e 2) é óbvio
que seu papel é o de transformar os indivíduos123. Tal obviedade permaneceria
intacta se seu objetivo de tornar os indivíduos dóceis e úteis através de um traba-
lho preciso sobre seus corpos não apresentasse inconvenientes. Ora, sua reforma
é contemporânea ao seu nascimento; sua reforma é seu próprio programa124. E
ainda não paramos de reformá-la. Ou melhor, não paramos de repetir fórmulas
para reformá-la. Desde seu nascimento, um de seus princípios é o isolamento, um
duplo isolamento: do “mundo” e entre os presos. O primeiro isolamento pretende
instaurar a solidão como instrumento positivo de reforma dos presos; o segundo
pretende impedir “complôs e revoltas (...) cumplicidades futuras (...) associações
misteriosas. Enfim, que a prisão não forme, a partir dos malfeitores que reúne,
uma população homogênea e solidária” (Foucault, 2004, p. 199)125. Não parece
que a prisão paulista tenha impedido o surgimento dessas “associações misterio-
sas”. Por outro lado, o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)126, parece mais
uma reedição desse princípio elementar das prisões modernas: o isolamento: “Há
um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remé-
dio; a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu
fracasso permanente (...)” (Foucault, 2004, p. 223).
Este processo forma um ciclo sobre o qual não paramos de rodopiar: a
prisão, com seu princípio de isolamento, produz o delinquente127; os delinquentes

123 Sobre o caráter de obviedade da prisão, ver Foucault (2004, p. 195-197).


124 Sobre a reforma da prisão ver Foucault (2004: p. 198).
125 Entre os anos de 1820 e 1845 já se criticava, entre outros pontos, o fato de que a prisão “fa-
vorece a organização de um meio de delinqüentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos
para todas as cumplicidades futuras” (Foucault, 2004: pp. 221-222).
126 A Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, tornou legítimo aos gestores prisionais bra-
sileiros utilizar o RDD para coação de presos, provisórios ou condenados, suspeitos de “envol-
vimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando”,
conforme descrito no segundo inciso de seu qüinquagésimo segundo artigo.
127 “(...) o aparelho penitenciário, com todo o programa tecnológico de que é acompanhado,
efetu[a] uma curiosa substituição: das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas aquilo
sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é claro, nem mesmo exatamente o infrator,
mas um objeto um pouco diferente, e definido por variáveis que pelo menos no início não
foram levadas em conta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva.
286 “FAXINA” E “PILOTAGEM”

por sua vez, diante de um poder específico que incide sobre seus corpos, produ-
zem táticas, seja para “ditar as condições” para o cumprimento de suas penas
– para o espanto de Veja –, seja para “quebrar cadeia” e “bater de frente com a
polícia” – estes sim, pilares da política do PCC frente à prisão128. Mesmo diante de
seu fracasso, a prisão retoma, sob novas vestimentas, as mesmas táticas que usou
outrora para “represar” as táticas-delinquentes. O rodopio não para. Como afirma
a própria reportagem de Veja, a segunda onda de ataques pretendia impedir a
transferência dos “líderes da facção” para a então recém-inaugurada penitenciária
de segurança máxima de Catanduvas (prisão do governo federal).
Passemos aos dados. Neles se entrevê, como exposto acima, que as táti-
cas da prisão para docilizar e tornar úteis os corpos dos prisioneiros não são postas
em prática sem se defrontarem com contra-táticas elaboradas por esses próprios
prisioneiros. Iniciaremos com um relato que nos foi contado por um participante
ativo de uma rebelião promovida pelo PCC no Dakar III de Pinheiros, por volta de
maio de 2005. O segundo relato é sobre a última rebelião ocorrida na Penitenci-
ária José Parada Neto (Guarulhos), em outubro de 2005. Penitenciárias estas que
compõem o pequeno grupo de prisões que não estão sobre o domínio do PCC.
Enfim, encerraremos a exposição dos dados com relatos dispersos de presos que
experienciaram o encarceramento antes da fundação do PCC, ou em cadeias que
ainda não haviam sido dominadas pelo PCC, no final da década de 90.
O primeiro relato foi-nos contado por um ex-presidiário que participou
ativamente do evento descrito. Por volta de abril e maio de 2005, após sucessivas
rebeliões recentes, os presos do Dakar III de Pinheiros – cadeia peculiarmente
considerada “tomada” pelo PCC, já que nela não se admite a entrada rotineira de
policiais militares129, passaram a receber comida azeda da administração prisio-
nal. À esta tática administrativa os “pilotos”130 do “raio” conhecido por abrigar
os “irmãos”131 e os “primos leais”132 do PCC responderam com nova rebelião,

Esse outro personagem, que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado, é
o delinqüente” (Foucault, 2004: p. 210).
128 Tratamos dessas táticas do PCC em outra ocasião (Marques, 2006: especialmente o capí-
tulo 3).
129 Apenas operações policiais promovidas por divisões especiais como o GATE – Grupo de
Ações Táticas Especiais são capazes de quebrar, à força é claro, essa imposição política do PCC.
130 Nesse contexto os “pilotos” são, geralmente, pertencentes ao PCC.
131 Presos filiados ao PCC.
132 Presos que apesar de não pertencerem ao PCC permanecem no convívio com os “irmãos”,
respeitando e compartilhando suas regras.
Adalton José Marques 287

potencializando uma das propostas políticas fundamentais do PCC: “quebrar ca-


deia”. Ao contrário de significar um mero procedimento de vandalismo, esta tática
consiste em manter um estado permanente de tentativas de fuga133. “Os sentine-
las” – policiais que se posicionam nas muralhas da prisão para vigiá-la – passaram
a efetuar disparos contra os presos rebelados e esses se abrigaram nos espaços
cobertos que não estavam ao alcance das balas. Portando três pistolas automáticas
– duas “PT’s” e uma “380” – dois “irmão” e um “primo leal” passaram a atirar
contra os “sentinelas”, formando um grande tiroteio. Conforme “os sentinelas” se
movimentavam sobre a muralha, os presos rebelados precisavam se movimentar
na parte coberta da “galeria” para se abrigar do alcance das miras; e os presos ar-
mados precisavam encontrar novas paredes para se posicionarem no tiroteio. Ao
invés de uma guerra de posições fixas, o que se tinha eram miras e alvos em movi-
mento. A situação ficou dramática para os prisioneiros rebelados quando cessaram
as munições e “os sentinelas” puderam se movimentar livremente sobre a mura-
lha. A movimentação das miras ocorreu mais rápido do que a movimentação dos
alvos, e um dos rebelados foi alvejado com um tiro na perna. Um dos “irmãos”
que havia participado do tiroteio com “os sentinelas” saiu rapidamente para o
pátio da “galeria”, e já na quadra desenhada no chão, justamente na linha de fogo
dos policiais, gritou para um “dos sentinelas”: “Aê safado, acabou a bala aqui
covardão”. “O sentinela” respondeu imediatamente para aquele “irmão”: “Eu não
vou dar tiro não, mas você vai comer comida azeda uma cara”134. Minutos depois,
o GATE invadiu aquele “raio” do Dakar III e após conduzir todos os presos para
o pátio, obrigaram-nos a se despir e a permanecer sentados no chão. Após darem
uma surra na maioria dos presos (“eles sentaram o pau geral”), alguns entre aque-
les policiais civis chamaram pelo nome os dois “irmãos” que haviam participado
do tiroteio – e que faziam parte de um pequeno grupo que não haviam sofrido nem
ao menos um fraco tapa dos policiais – para uma conversa particular no canto do
pátio. Depois da saída do GATE, aqueles “irmãos” informaram que aquele seria o
último dia que comeriam comida azeda, já que não dava mais tempo da adminis-
tração prisional providenciar novo alimento para o jantar. No dia seguinte, logo na
primeira refeição, receberam comida fresca para o consumo.

133 “(...) os presos “comuns” cavando túneis, quebrando paredes, serrando grades etc; os pre-
sos da “cela dos evangélicos” rezando alto para ocultar o barulho das colheres, ferros e serras
que os presos “comuns” utilizam para “quebrar cadeia”; e, os “irmãos” em liberdade captando
recursos para libertarem seus pares presos” (Marques, 2006, p. 49).
134 “Uma cara” quer dizer “bastante tempo”.
288 “FAXINA” E “PILOTAGEM”

O segundo relato foi-nos contado por um ex-presidiário, confirmado por


presos e não desmentido por funcionários (inclusive confirmado por um) da Peni-
tenciária José Parada Neto (PJPN). Antes, é necessário fazer um pequeno adendo.
Esta cadeia é uma das poucas do estado de São Paulo que não está sob o comando
do PCC. Ela é definida a partir de três pontos de vista: pelos presos de cadeias
sob o domínio do PCC é considerada um refúgio de “coisas” ou “lagartos” (“lar-
gatos”), presos que certamente seriam mortos nas cadeias do PCC por não “te-
rem proceder”135 e não se adequarem as propostas políticas de “quebrar cadeia”
e “bater de frente com a polícia”, sendo, portanto, considerada como “cadeia de
seguro”; pelos próprios presos da PJPN ela é considerada uma cadeia na qual, sob
a organização do Comando Revolucionário Brasileiro do Crime (CRBC), não se
está submetido a extorsões dos “pilotos” e nem obrigado a participar de fugas, im-
posições do PCC; pelos funcionários que lá trabalham ela é considerada uma pri-
são “mais tranqüila” e, portanto, melhor para se trabalhar. Talvez por isso a última
rebelião que ali ocorreu, em outubro de 2005 seja lembrada como aquele último
assalto ocorrido há dois ou três anos pelos moradores de alguma cidadezinha do
interior. É essa rebelião o evento contado por nossos interlocutores. As motiva-
ções eram claras: protestava-se contra as infiltrações de presos do PCC naquela
cadeia. Após inúmeras negociações para o fim da rebelião, um funcionário da
prisão (talvez um agente prisional, talvez um diretor), se dirigiu aos presos rebe-
lados e ordenou: “Vamos para com essa comédia. Aqui é cadeia de seguro, o que
vocês estão querendo?” Imediatamente um dos “pilotos” rebelados se aproximou
das grades que os separavam dos funcionários e, mostrando a cabeça decepada
de um dos tais pertencentes do PCC, retrucou: “Aqui não é seguro não”. Um dos

135 Em síntese, a palavra “proceder”, enquanto substantivo, é utilizada para denominar um


complexo conjunto de regras que orienta parte significativa da experiência cotidiana. O uso de
tal noção atravessa a rede social; Pereira (2005), por exemplo, verifica seu uso entre “pixado-
res”. No interior das prisões o “proceder” orienta a distinção entre os presos de acordo com seus
históricos “no crime”, a distinção entre os artigos criminais, as resoluções de litígios entre pre-
sos, os modos de se portar na chegada a prisão, a utilização do banheiro, a habitação das celas,
os modos de se portar no refeitório, os modos de se portar durante os dias de visita, os modos de
se despedir do cárcere etc. Enquanto adjetivo, o “proceder” é um atributo daquele que tem sua
experiência prisional considerada pelos outros presos como estando em consonância ao “pro-
ceder” (substantivo). Um indivíduo nesta condição é denominado “cara de proceder”, “sujeito
homem”, “ladrão” etc, possuindo, portanto, os requisitos para viver num espaço denominado
de “convívio”. No mesmo sentido (enquanto adjetivo), mas tomando o exemplo contrário, o
“proceder” é aquilo que falta ao indivíduo que é exilado no espaço “seguro” ou morto durante
um “debate” (Marques, 2006).
Adalton José Marques 289

funcionários com os quais conversamos sobre este evento disse-nos: “aqui é real-
mente uma cadeia mais tranqüila, mas ela pode virar a qualquer momento, porque
não são quatro, cinco, seis ou sete agentes prisionais que vão segurar trezentos e
cinqüenta homens de um raio prontos para se rebelarem”.
Enfim, não é raro escutarmos de presos e de ex-presidiários que estive-
ram em prisões paulistas nas décadas de 70, 80 e 90 (o relato mais antigo é de
um interlocutor preso em 1976) que as primeiras rebeliões de que participaram
foram motivadas para reivindicar o fim dos maus tratos por eles sofridos. Não é
raro também a afirmação de que o PCC surge exatamente para desempenhar uma
representação na negociação com a administração prisional e uma intermediação
nos litígios entre presos, funções que os antigos “faxinas” – em meio a inúmeras
“facções” emergentes – já não conseguiam mais desempenhar. O primeiro exer-
cício é conhecido como “guerra com os polícias” e o segundo é conhecido como
“paz entre os ladrões”. O interessante é que essas afirmações não são apenas pro-
venientes de presos antigos que aderiram ao PCC e que, portanto, poderiam estar
enviesados politicamente. Até presos antigos que hoje estão na PJPN reconhecem
esse papel desempenhado pelo PCC; suas críticas são dirigidas à alguns “pilotos”
que teriam aproveitado o poder de pertencer ao “Partido” para tirar proveito em
suas guerras particulares e em extorsões de presos primários (conduta, aliás, criti-
cada pelos próprios membros do PCC).
Podemos falar ainda de inúmeras micro-negociações entre presos e admi-
nistração prisional que, a despeito de parecerem insignificantes diante das grandes
negociações travadas durante as rebeliões, promovem verdadeiras reorganizações
no seio da prisão. Um de nossos interlocutores, “faxina” em diferentes prisões, de
meados da década de 80 até meados da década de 90 (quando obteve sua liberda-
de), disse ter negociado diretamente com um diretor da COESP (Coordenadoria
dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado de São Paulo) a autorização da
instalação de uma cela exclusiva para evangélicos na Penitenciária de Samaritá
(São Vicente) e a elaboração de um calendário de cultos promovidos por visitan-
tes de diferentes denominações evangélicas. Um outro disse estar presente no
pavilhão 7 do extinto Carandiru, em 1995, quando os “faxinas” desativaram uma
ala inteira de evangélicos ao descobrirem que existiam celulares naquelas celas, e
mandaram a maioria de seus ocupantes para o pavilhão 5 (“seguro”)136. Os exem-
plos são abundantes.

136 Há um consenso entre nossos interlocutores de que o preso evangélico não pode utilizar
qualquer contravenção – como drogas, celulares, bebidas etc – durante sua permanência na
prisão. Fala-se, comumente, de um “proceder para os evangélicos”.
290 “FAXINA” E “PILOTAGEM”

Seja reivindicando o fim dos maus tratos sofridos, protestando contra o


fornecimento de comida estragada, chamando a atenção da administração prisio-
nal para a infiltração de inimigos de outra “facção”, seja instaurando celas para
evangélicos, administrando a permanência de presos no “convívio” ou a passa-
gem para o “seguro”, a “faxina” e a “pilotagem”, pensamos tratar-se de contra-
ataques a um poder137 específico e ainda por estudar, que a prisão paulista exerce
sobre os corpos dos prisioneiros. E o poder exercido por esses dispositivos – po-
der este cuja função igualmente ainda está por ser estudada –, por sua vez, incide
diretamente sobre o Corpo organizativo da prisão: seja com uma “naife”138 no
pescoço de um funcionário seqüestrado, seja com o acerto de um tiro no peito de
“um sentinela”, seja, finalmente, com o afrouxamento de um dos braços da admi-
nistração prisional. Se “o delinqüente é o produto da instituição” (Foucault, 2004,
p. 249), também é verdade que a instituição é produto do delinquente. Ou, dito de
um outro modo, se por um lado a administração prisional organiza os corpos dos
prisioneiros, por outro esses corpos organizam a administração prisional. Com
essa sentença provisória concluímos o propósito desta comunicação.

Referências

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VII Reunião de Antropologia do Mercosul, Porto Alegre, 2007.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações:
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grafia (Graduação em Sociologia e Política). Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, 2006.
PEREIRA, Alexandre Barbosa. De “rolê” pela cidade: os “pixadores” em São Pau-
lo. Dissertação (Mestrado em Antropologia). FFLCH – USP, 2005.

Adalton Marques é mestrando em antropologia da Universidade de São Paulo.

137 Não cremos que se trata de um poder disciplinar ou de controle, compreendidos por Fou-
cault (2004) e Deleuze (1992), respectivamente, a partir de diferentes dados históricos.
138 Faca.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 291-309

Lutas operárias em São Paulo


e no ABC nos anos 70

Jean Tible

Os anos 1970 representam para o Brasil um período bastante particular.


Trata-se do momento em que “novos personagens entraram em cena”, título de
um dos relatos mais conhecidos dos movimentos de resistência daquela década
(Sader, 1988). Nosso objetivo, neste artigo, é o de narrar (e interpretar) as lutas
operárias nos anos 70 na Grande São Paulo, buscando enfatizar as próprias práti-
cas dos trabalhadores e suas formas de luta.
Esta década marca uma novidade na história brasileira: trabalhadores em
movimento e em grande número, criando suas práticas de luta num processo de
autoconstrução. Neste contexto, como destaca Marco Aurélio Garcia (1982), “foi
a prática da luta social que levou os trabalhadores a avanços inigualáveis em
termos de consciência e organização”. Assim, “inverteu-se a expectativa de que
um dia a teoria chegasse à classe operária, para melhor guiá-la: foi a classe que
chegou à teoria”.

Contextos

Econômico, Político
A partir dos anos 30, com a industrialização do Brasil, São Paulo vai se
tornando, em detrimento do Rio de Janeiro, o principal pólo econômico do país
e da América Latina, passando a produzir tecidos, sapatos, móveis, materiais de
construção, peças de locomotiva e material ferroviário. Ao mesmo tempo, com
uma crescente intervenção do Estado na economia, são criadas várias estatais da
indústria pesada, tais como a Companhia Vale do Rio Doce, Petrobrás e Compa-
nhia Siderúrgica Nacional. Ocorre uma progressiva diversificação e indústria de
bens de capital, tais como máquinas, tratores, geradores.
Nos anos 50 tem início a indústria de autopeças, a partir da implantação
das indústrias automotivas, baseada no tripé desenvolvimentista do governo JK:
Estado, empresas nacionais e capital internacional. Esta década assinala uma forte
mudança na classe operária, que cresce numericamente e se diversifica, ao mesmo
292 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

tempo em que se verifica uma intensa migração do campo em direção à cidade;


em poucas décadas, o Brasil transforma-se de rural para urbano.
No final dos anos 60 e início dos 70 ocorre o chamado “milagre econô-
mico”, com altas taxas de crescimento do PIB, com base em outro tripé: forte
endividamento (produzido, em boa parte “politicamente”, em apoio ao regime
militar); fortes investimentos na indústria pesada, construção civil, eletroeletrôni-
ca e automobilística; e, enfim, arrocho salarial, aumento da exploração, das horas
extras e do ritmo de trabalho. Ao final da década de 70, 400 mil metalúrgicos
seriam empregados em mais de dez mil empresas na Grande São Paulo.
Em 1964, ocorre o golpe de Estado civil-militar, que já havia sido ensaia-
do em diversas oportunidades na década anterior, como, por exemplo, na crise
política que culminou no suicídio de Getúlio Vargas em 54, ou na tentativa de
impedimento da posse de João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros, posse
que somente seria garantida pela Campanha da Legalidade, em 61.
As primeiras medidas da ditadura foram de intervenção nos sindicatos e
movimentos estudantis, instauração da censura, proibição das greves, cassação de
mandatos de parlamentares e criação de um serviço secreto de informações. Com
o Ato Institucional número 5 (AI-5), efetua-se uma virada ainda mais autoritária,
com o fechamento do Congresso Nacional e outorga de poderes quase ilimitados
ao Executivo.

Resistências
Como se organizaram as diversas resistências à ditadura no final dos anos
60 e início dos anos 70? No plano sindical, formaram-se chapas de oposição para
disputar as eleições dos sindicatos com uma série de reivindicações: contra o arro-
cho salarial, pela estabilidade do emprego, contra a estrutura sindical e defesa da
organização de comissões de fábrica democraticamente eleitas. Tais mobilizações
ocorriam e revelavam uma articulação com militantes católicos, notadamente a
JOC (Juventude Operária Católica) e a ACO (Ação Católica Operária).
Naquele contexto, a chapa de oposição venceria a eleição em Osasco,
tendo como cabeça de chapa José Ibrahim, membro da comissão de fábrica da
COBRASMA, além de ser militante de uma organização de esquerda clandesti-
na. O mesmo ocorreu em Contagem (Minas Gerais), onde a chapa de oposição
saiu vitoriosa, sendo, no entanto, obrigada a travar uma dura batalha na Justiça
do Trabalho, sofrendo intervenção do Ministério do Trabalho e a destituição do
presidente eleito e de três membros da diretoria, antes de tomar posse.
Jean Tible 293

Foi neste cenário que ocorreram as greves de Osasco e Contagem em


1968. Nas duas cidades, os trabalhadores ocuparam as fábricas e elegeram em
grandes assembléias comandos de greve unificados. Em Contagem, mais de 20
mil operários aderiram à greve. O governo ditatorial ocupou, então, a cidade com
tropas da Polícia Militar, o que acabou levando à desmobilização das greves.
Num contexto de crescentes mobilizações, aconteceu a comemoração do
primeiro de maio na Praça da Sé, em São Paulo, momento em que foi organizado
um ato unitário dos sindicatos de São Paulo, Osasco e São Bernardo. Por um
lado, os pelegos e interventores (nomeados pelo governo após o golpe de 64)
convidaram o governador de São Paulo, nomeado pela ditadura, Abreu Sodré,
gerando forte tensão. Por outro lado, militantes do Sindicato de Osasco, das opo-
sições sindicais (que eram maioria no ato), apresentaram suas reivindicações de
fim do arrocho salarial, por uma greve geral, pelo direito de organização operária
e pelo fim da ditadura. O desenlace desta tensão se deu durante a fala do Gover-
nador, momento em que o palco foi apedrejado, tomado pelos manifestantes e
incendiado. Enquanto a maior parte dos presentes saiu em passeata, o Governador
refugiou-se na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.
No mês seguinte, eclode a greve em Osasco na COBRASMA, fábrica de
material ferroviário, onde existia desde 63 uma comissão de fábrica. Em efeito
dominó, outras fábricas foram paralisadas, juntando seis mil grevistas. O exército
foi enviado, invadiu o sindicato, prendeu a direção e quinhentos grevistas.
É importante lembrar que, no âmbito estudantil, também ocorreram vá-
rias mobilizações estudantis, como a passeata dos 100 mil no Rio.
Esses são marcos de tentativas de resistência à ditadura em sua fase de
menor repressão. Depois disso, com o AI-5, veio a supressão dos direitos polí-
ticos individuais e coletivos e a permissão para intervenção em entidades sem
necessidade de autorização judicial. Assim, no final da década de 60, a maioria
das organizações de esquerda acabou optando pela luta armada para derrubar a
ditadura militar. Essas organizações, por sua vez, seriam totalmente esmagadas
até 1973. Cabe enfatizar que a repressão do Estado não incidia somente contra
as organizações e grupos que tomaram este rumo, mas também contra qualquer
tentativa de organização operária, estudantil, de bairro. Após mortes, prisões e
torturas, parte dos que optaram pelo enfrentamento armado iriam se juntar a ini-
ciativas de organização dos trabalhadores, por sua vez fortalecidas por um longo
esforço, pelo “trabalho de formiguinha” dos militantes. Muitos destes, ao negar a
via armada, tentavam criar e reforçar a organização nas fábricas e nos bairros, um
tipo de mobilização e organização que iria desabrochar no decorrer dos anos 70.
294 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

Também deve ser registrada a presença de grupos de teatro e cinema, centros de


estudos e imprensa alternativa que, numa conjuntura de certa abertura do regime
militar, irão florescer.
Isto tudo aconteceu num contexto de crise do movimento de 64, já que, a
partir do governo Geisel (74-79) e depois de Figueiredo (79-85), houve uma dis-
tensão: a abertura “lenta, gradual e segura”, apesar dos assassinatos políticos de
opositores ao regime (direção do PCdoB, Vladimir Herzog, sindicalistas, invasão
da PUC-SP etc.). No plano internacional, Jimmy Carter elege-se e defende uma
política de direitos humanos mais efetiva (Freire, 2000).
Cabe enfatizar aqui o fato de as greves na Grande São Paulo terem
chacoalhado esta abertura “lenta, gradual e segura” e sua volta à “normalidade
democrática”. Essas greves marcaram a presença dos trabalhadores, em vez da
transição orquestrada pelos militares em conjunto com empresários, políticos da
situação, após o fim da década do milagre econômico. Isto porque, para parte
da esquerda (PCB em particular), esta “abertura” significava uma grande aliança
com a burguesia nacional e democrática.
Aproveitando certas brechas, os operários entraram em cena e mudaram
o país. Para alguns, tratava-se somente de reivindicações particulares destinadas a
somar-se ao projeto democrático-burguês, num contexto de reorganização social
e política do país. Porém, ao contrário, a ação da classe trabalhadora trouxe novos
elementos para pensar a democracia e a constituição de direitos historicamente
ignorados no Brasil.

Os movimentos: São Paulo e ABC


Tratamos aqui de duas experiências de organização operária no período
dos anos 70: a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo e o Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo. Ambos são processos de organização que desa-
brocharam no final da década, após um longo trabalho de organização operária
no local de trabalho – nas fábricas da ponta mais avançada da produção industrial
nacional. Isto se deu frente ao “ostensivo sistema de repressão contra qualquer
forma de organização e resistência operária nas empresas” (Sader, 1988, p. 73),
chegando a ter o DOPS uma sala em certas fábricas para interrogar e descobrir
autores de boletins e panfletos. Trata-se então, antes de mais nada, de processos de
resistência, a partir de contatos pessoais, troca de informações, estabelecimento
de relações, de confiança coletiva.
Lutas operárias foram travadas no interior das fábricas em busca de uma
organização autônoma dos trabalhadores. Diante do “poder absoluto” das chefias
Jean Tible 295

e das punições, das exigências de maior produção, do aumento do ritmo das má-
quinas, do controle das atividades cotidianos (existência e duração da pausa para
o cafezinho, possibilidade ou não de circular na empresa, idas ao banheiro), foi
construída a proposta de um contra-código operário: “inscrevem-se necessidades
de controle operário quanto ao ritmo de trabalho, à capacidade de produção, à
mobilidade na fábrica (...) que são atribuições das chefias”. Tal busca do “‘contro-
le operário’ sobre o ocupante do cargo acabou pondo em xeque o próprio cargo,
seu conteúdo e atribuições” (Maroni, 1982, p. 108).
Os dois movimentos que estamos tratando surgiram da prática das lutas
sociais; são processos de múltiplas formas de luta contra a opressão e a exploração
capitalistas, nas quais os trabalhadores descobrem-se como classe, transformada
em consciência de classe. De acordo com Marco Aurélio Garcia,

a análise do movimento operário não partirá de ‘causas estruturais’, entendi-


das enquanto racionalidade que se encontra fora dele. O movimento operário
não é reflexo de ‘estruturas’ econômicas ou políticas. Ele se autodetermina; sua
racionalidade está no seu interior, na forma pela qual ele faz (e se constitui na)
história, isto é, na luta de classes (1982).

Desta forma, a comissão de fábrica foi essencial para a emergência desse


sujeito coletivo, representando momentos de auto-afirmação dos grupos operá-
rios. A comissão de fábrica é “decorrência do encaminhamento concreto da luta.
Ou seja, ela não é formulada a priori como objetivo (...). Quando são eleitos os
participantes da comissão, evidencia-se o processo democrático do qual ela não é
senão o produto final” (Maroni, 1982, p. 87).
Ambas as experiências sofreram, em seu processo de organização, as
conseqüências e ensinamentos do isolamento e derrota das greves de Osasco e
Contagem no fim dos anos 60. Esses exemplos de luta permaneceram, no entanto,
como marco da necessidade de ruptura com o sindicalismo oficialista e de cúpula.
Indicam, além disto, os limites e fragilidades das mudanças que, mesmo seguindo
uma direção combativa, teriam que ser enfrentados: a permanente possibilidade
de intervenção governamental/estatal.
A perspectiva de constituição de um sindicato organizado desde baixo
começou a ser retomada no decorrer dos anos 70 na Grande São Paulo. No in-
tervalo entre os dois momentos ocorreram práticas clandestinas de organização
e “trabalho de formiga”. As mobilizações de São Paulo e São Bernardo vão ga-
nhando espaço e força em virtude do contexto de uma certa abertura no governo
Geisel, mas, sobretudo devido a uma série de reivindicações dos moradores da
296 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

periferia por melhorias no transporte, por mais escolas, creches, contra a elevação
do custo de vida, culminando com as maciças votações no MDB em novembro
de 74, e pequenas greves de seção em várias fábricas (Sader, 1988). Assim, vários
esboços de organização operária começaram a eclodir.

A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo


A Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo nasce de três instituições
em crise: a Igreja, a esquerda marxista e o sindicalismo (Sader, 1988). A primeira
pedra originária da Oposição é a Igreja. No âmbito do Concílio II do Vaticano e
da ação dos Papas João XXIII e Paulo VI, houve uma mudança na alta hierarquia
católica, que passou a se engajar na luta em defesa dos pobres, da participação
social dos trabalhadores e dos direitos humanos, com a criação das comissões de
Justiça e Paz. Isto marca, no Brasil, uma mudança significativa, uma vez que a
Igreja havia apoiado o golpe civil-militar de 64, tendo o Vaticano rapidamente
reconhecido o novo regime. Em 1968 foi realizada a Conferência dos Bispos da
América Latina em Medellín, cujo objetivo era pensar as diretrizes do Concílio
II do Vaticano a partir da América Latina. Esta Conferência permitiu, além disto,
enfatizar a opção preferencial pelos pobres e o comprometimento da Igreja com a
denúncia das estruturas sociais geradoras de desigualdades, pobreza e miséria.
No Brasil, a opção preferencial pelos pobres expressou-se principalmen-
te com o surgimento, em 1968, das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), cujo
primeiro encontro nacional aconteceu em 1975. Frei Betto estima que em 1981
as CEBs congregavam dois milhões de pessoas (Sader, 1988, p. 156). Em 1970,
Dom Paulo Evaristo Arns, importante figura na luta contra a ditadura, tornou-se
arcebispo de São Paulo. A principal diretriz do trabalho católico tradicional com
os operários era o de união e colaboração entre empregados e patrões, tendo em
vista o combate ao comunismo. Isto foi evidenciado na primeira encíclica papal
sobre a questão operária, a Rerum Novarum. Além das mudanças na hierarquia,
foram sendo organizados diversos círculos católicos que rompiam com as dire-
trizes conservadoras, inspirados pelo método ver-julgar-agir da educação popular
de Paulo Freire, em trabalhos sindicais de base, numa perspectiva favorável à
organização dos trabalhadores em comissões de fábrica.
No fim de década de 50 e início da de 60, foram realizados estudos sobre
a classe operária e passou a ganhar força a percepção das limitações da estrutura
sindical, em virtude de uma concepção de sindicato circunscrito a sua diretoria,
da exigência de autorização do Ministério do Trabalho e do não-reconhecimento
da organização dos trabalhadores na empresa. Foram então organizados peque-
Jean Tible 297

nos grupos e nucleações nas fábricas e locais de trabalho, constituindo o maior


exemplo a comissão de fábrica da COBRASMA, que se tornou um símbolo com
a conquista de seu reconhecimento em 63, após greve. Em 1970, oficializou-se a
criação da Pastoral Operária (Rossi, 2006).
A segunda pedra originária da Oposição é a Esquerda. Militantes marxis-
tas de organizações críticas ao stalinismo e às organizações ligadas à III Interna-
cional (PCB, PCdoB, MR-8) enfatizavam a idéia de independência de classe dos
trabalhadores e construção de uma sociedade socialista, o sindicato tornando-se
uma espécie de “escola do poder operário” (Stan, 2006). Deste movimento par-
ticiparam grupos como a Ação Popular, POLOP (Política Operária), POC (Parti-
do Operário Comunista) e outros, que questionavam a política do PCB, já antes
de 64. São muito críticos do reformismo do PCB, que defendia a aliança com a
burguesia nacional, que não se preparou para o golpe de 64 e que, no plano sindi-
cal, defendia uma postura conciliadora com os sindicatos oficialistas. Além disto,
esses militantes adotavam um referencial marxista de independência de classe,
transformação da sociedade e papel dos operários como um poder autônomo, pen-
sando na articulação entre lutas econômicas e luta política contra a ditadura.
A terceira pedra originária da Oposição são os operários e sindicalistas in-
dependentes, ou seja, sindicalistas com experiência sindical anterior a 64 e outros
que exerceram sua militância sobretudo a partir de suas próprias experiências de
luta, como a formação de grupos de trabalhadores, comissões de fábrica e criação
e representação nas CIPA (Comissão Interna para a Prevenção de Acidentes).
Deste modo, a Oposição nasce, em 67-68, ao formar uma chapa de opo-
sição à direção do Sindicato, constituída, por sua vez, por sindicalistas católicos
simpatizantes do PCB e sindicalistas descontentes com a atuação do Sindicato.
Esta “Chapa Verde” propunha “o pleno reconhecimento dos conselhos de empre-
sa, eleitos livremente pelos trabalhadores em cada local de trabalho” (Batistoni,
2001, p. 41). A chapa de oposição é derrotada, havendo suspeitas de fraude.
No contexto do AI-5, o espaço de atuação estreita-se ainda mais, inclu-
sive com o assassinato de dois de seus militantes (Olavo Hansen e Luis Hirata).
Dezenas de militantes são presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional
(LSN), muitos passam para a clandestinidade. Além disto, tendo em vista os ris-
cos de infiltração policial, as reuniões são semi-clandestinas.
Em 72 a Oposição organiza uma segunda chapa, sendo novamente der-
rotada. Isolada pela repressão, a Oposição dependia do Sindicato para manter
contato com os trabalhadores através da participação em cursos e nas colônias de
298 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

férias. É um momento bastante difícil, a ponto de o Sindicato não ser apenas um


espaço de pouquíssimas lutas operárias, mas pior, de delação e perseguição.
Apesar desta situação nacional adversa, acontecem pequenas práticas de
resistência, espontâneas. Ainda mais do que isso, numa fábrica em particular, a
Metalúrgica Villares, desenvolve-se uma greve, em 1973, a partir de pequenas
paralisações de 20, 30 minutos, em turnos, setores e horários alternados. Os tra-
balhadores conquistaram com esta greve aumento salarial e criaram um comi-
tê inter-fábricas, reunindo dez empresas da zona sul de São Paulo. Este comitê
manteve um enraizamento e mostrou-se muito útil no final da década. Muitos
dos demitidos encontraram emprego em outras fábricas da região, o que acabou
fortalecendo o comitê (Batistoni, 2001).
Naqueles anos, ações, queixas e reclamações cotidianas sinalizavam o
descontentamento dos operários e o início de focos de resistência, por conta dos
banheiros sujos, do horário inadequado do café, da qualidade da comida, da du-
ração da fila no restaurante, o que causava a perda de boa parte do horário de
almoço. Diante da repressão da ditadura em sua fase mais violenta, a Oposição
não consegue formar uma chapa em 75. Mas, por outro lado, seus militantes,
dispersos e com contatos esporádicos entre si, mergulham em pequenas lutas e
diversas mobilizações locais; por exemplo, no boicote ao restaurante na Arno,
que permitiu a obtenção de melhorias, uma conquista que, embora pequena, teve
importância fundamental no momento em que interrompeu uma seqüência de ten-
tativas frustradas de greve em anos anteriores, levando à maior autoconfiança dos
trabalhadores.
Também em 75 formou-se uma nova coordenação da Oposição, que ga-
nhou consistência ainda maior a partir de 76. Através da vivência no cotidiano dos
trabalhadores, do trabalho de base nos bairros e nas fábricas, a Oposição começou
a ganhar mais força, favorecendo a formação de grupos de fábrica. A Oposição foi
se consolidando na organização e integração da resistência operária no dia-a-dia
do conflito fabril e isto constituiu sua base. Ao mesmo tempo, ela se organizava
nos bairros, enquanto o trabalho da Pastoral Operária garantia uma retaguarda
importante.
Com a onda grevista de 78-79, a Oposição tornou-se um movimento de
massas. Em sua maioria, os grevistas repudiavam a direção do Sindicato e apoia-
vam a Oposição. Formaram-se comissões de fábrica e parte destas comissões con-
quistou reconhecimento das empresas, como no caso da Toshiba. Tornaram-se
praticamente as únicas interlocutoras do patronato, já que o Sindicato não tinha
Jean Tible 299

representatividade e os patrões, naquele momento e em alguns casos, passam a


legitimá-las.
A Oposição conseguiu formar uma nova chapa em 1978. Eram três cha-
pas concorrendo: a Chapa 1, do pelego Joaquinzão; a Chapa 2, dos reformistas; e
a Chapa 3, da Oposição. Esta última foi formada num amplo processo democráti-
co, tendo definido sua composição nas fábricas e através da participação nas CIPA
(Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), em greves e no interfábricas. O
resultado oficial deu a vitória à Chapa 1. Diante da fraude evidente, o procurador
Osvaldo Preus declarou anuladas as eleições. Contudo, duas semanas depois, Joa-
quinzão foi empossado pelo Ministro do Trabalho, fazendo a seguinte declaração:
“meus amigos, o que passou, passou”. A opressão e a intervenção do Ministério
do Trabalho prevaleceram, respaldadas pela legislação sindical, e foi bloqueada a
possibilidade dos movimentos de muitas fábricas dialogarem no âmbito do Sindi-
cato (Oliveira, 2006).
Em 1979 foi realizado o I Congresso da Oposição, momento de afirmação
do objetivo de desmantelar a estrutura sindical, substituindo-a por outra, indepen-
dente dos patrões e do Estado, colocando igualmente o combate ao imposto sindi-
cal e a importância das comissões de fábrica para a democratização do sindicato.
Houve, além disto, várias outras eleições do maior sindicato da América Latina
em 81, 84 e 87, que terminaram em derrota. Não se pode deixar de enfatizar que
foram mais uma vez eleições fraudadas. Em 87, mais um revés, os metalúrgicos
do ABC apóiam outra chapa e não a da Oposição, dividindo os sindicalistas mais
combativos e favorecendo a vitória dos pelegos.

O Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema


Na região metropolitana de São Paulo – em São Bernardo e Diadema
– uma outra experiência de organização dos trabalhadores ganha vida. Nesta ex-
periência, duas dinâmicas vão se combinar: a resistência nas fábricas e a atuação
combativa do sindicato.
Num contexto de reduzidas liberdades civis, de compressão salarial, dis-
ciplinarização e feitura de “listas negras”, começava a ter lugar uma teia de peque-
nas ações: jogar dominó, diminuir a cadência, demorar-se e/ou colar recorte no
banheiro. A estas, seguiram-se outras ações mais coletivas: operações tartaruga,
sabotagens, protestos, greves. Segundo Garcia (1982), “explorada e dominada
como nunca, isolada socialmente, privada das antigas alternativas ‘para os traba-
lhadores’, a classe foi-se descobrindo e, nesta descoberta, se constituindo”.
300 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

Por outro lado, São Bernardo apresentava um diferencial marcante: a atu-


ação do sindicato e de (parte de) sua direção. As duas dinâmicas fusionaram a par-
tir de 78, permitindo a explosão social. Em suma, “se é certo dizer que a prática
sindical teve influência na ação da classe, não é menos certo afirmar que a ação da
classe pesou significativamente no comportamento do sindicato” (idem). Um sin-
dicato habitual (naquele espaço e naquela época) concentrava-se na administração
do aparelho burocrático e nas funções assistenciais. Em São Bernardo houve uma
transformação por dentro, o sindicato passou a assumir lutas e reivindicações dos
operários. Em menos de uma década, de uma organização esvaziada, tornou-se
uma agência de mobilização dos operários. O significado de sindicato passou a ser
o de um edifício para a luta na fábrica.
De acordo com Eder Sader,

uma particularidade notável do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo


residiu na sua capacidade de assimilar e estimular as múltiplas e difusas formas
de resistência operária que ocorriam nas empresas. Essas ações surgiram em
geral à margem do sindicato, e seus agentes olhavam o sindicato com muita
desconfiança. Mas terminarão vendo nele um meio eficaz para a defesa de seus
interesses (1988, p. 288).

Cabe fazer uma pequena digressão histórica para melhor compreender


este processo. Em 1964 o Sindicato sofreu intervenção após o golpe e passou a
ser administrado por seus interventores. Em 69, Paulo Vidal foi eleito e assumiu a
presidência, em detrimento da esquerda, num contexto difícil, visto que pós-greve
de Osasco. Vidal, ao mesmo tempo em que defendia a disposição de colaborar
com o governo, reivindicava uma contrapartida para os trabalhadores, na forma
de melhoria de suas condições de vida. Apoiava os trabalhadores nos conflitos,
a partir da peça-chave do departamento jurídico do Sindicato. Teve assim início
uma certa combatividade frente aos patrões, como a campanha pela antecipação
salarial em 71 – em condições desfavoráveis (forte repressão ditatorial) – apesar
de se ainda manter uma perspectiva de sindicato como prestador de serviços.
Vidal reelegeu-se em 1972, vencendo a chapa de oposição apoiada por
grupos de esquerda, que sofrem perseguição da polícia e vêem vários de seus
membros serem presos. Luiz Inácio da Silva (Lula) foi eleito primeiro secretário.
O Sindicato começava a ganhar confiança dos trabalhadores com o ganho na jus-
tiça de algumas causas, como a do pagamento de adicional da insalubridade na
Ford, a limitação a duas horas-extras diárias, e a conquista de um dia de descanso
semanal.
Jean Tible 301

Em 1974 houve uma série de mobilizações por reajustes salariais. Pri-


meiro dos ferramenteiros da Ford, depois Volkswagen (VW), Mercedes, Villares
e Brastemp. Formavam-se pequenos grupos de fábrica num momento em que se
verificava uma importante distância entre fábrica e sindicato. O fato de Vidal ser
bastante conciliador acabou gerando descontentamento no grupo da direção (Lula
e outros), que defendia uma maior ênfase no trabalho de base e no apoio às rei-
vindicações operárias. A sensibilidade destes dirigentes para com as resistências
no chão-de-fábrica favoreceu a formação de uma instância intermediária, um elo,
entre a luta na empresa e a organização sindical: o Conselho de Coordenação dos
Trabalhos de Base. O ano de 1974 foi também o momento de organização do I
Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, mar-
cando o distanciamento da pouco combativa Federação dos Metalúrgicos de São
Paulo e afirmando sua preocupação com as condições de trabalho nas empresas.
Na Declaração de São Bernardo, eram enfatizadas as críticas à estrutura sindical e
afirmava-se a busca da liberdade sindical, com a revogação das restrições presen-
tes na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Trata-se do início do fortaleci-
mento e de um maior vínculo entre fábrica e sindicato.
No ano seguinte, Vidal deixa o sindicato e a ala mais combativa o assu-
me, Lula sendo eleito presidente. O discurso do Sindicato vai progressivamente
passar da conciliação à contestação. Da defesa dita responsável dos interesses dos
trabalhadores a reivindicações mais contundentes, havendo denúncias crescentes
de abusos das empresas e empenho em incentivar os trabalhadores e capacitá-los
em suas lutas. Num contexto de descoberta da manipulação dos índices de infla-
ção, ocorre a Campanha pela reposição salarial de 77. Isto dá mais legitimidade –
por conta do reconhecimento público das manipulações das estatísticas, inclusive
por parte do Banco Mundial – às reivindicações operárias, provocando, ao mesmo
tempo, um duplo enfrentamento: contra os empresários e contra o governo.
Porém, apesar das intensas mobilizações, o resultado foi negativo. Re-
presentou, contudo, um momento importante para as novas lideranças sindicais e
para o poder de mobilização dos operários. Reforçando a avaliação da necessida-
de de elevar o patamar de lutas, Lula declara: “os patrões só escutarão a voz dos
trabalhadores quando cessar o barulho das máquinas” (Sader, 1988).
Além de sua contribuição na greve de 78, o Sindicato articula e dirige
a greve de 79. Acontecem mobilizações massivas, articuladas com um trabalho
sólido nas fábricas. No entanto, essas grandes concentrações fortalecem a direção
e tencionam a relação base-sindicato, com desfecho desfavorável em 79 e inter-
venções em 79 e 80. Foi se consolidando, deste modo, uma tensão entre direção
302 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

e base, entre “a capacidade efetiva de um sindicato muito cioso de suas prerroga-


tivas, preocupado em afirmar seu caráter de entidade condutora do movimento,
apesar da crítica que seus dirigentes nunca esconderam à estrutura sindical bra-
sileira” (Garcia, 1982). Tal valorização da estrutura sindical por parte da direção
levou-a a aceitar, em 79, um acordo praticamente sem ganhos para os operários,
em troca do levantamento da intervenção decretada – o que ocasionou o esvazia-
mento da assembléia, além de vaias, ao contrário das unanimidades anteriores.
No primeiro de maio de 1980, 130 mil operários juntaram-se no Estádio
da Vila Euclides. Desta vez a sustentação da greve veio das fábricas e dos bairros.
Surgiam novas formas de ação e era reforçada a dinâmica desde a base. Foi fun-
damental naquele momento o Fundo de Greve, organizado fora do âmbito do sin-
dicato oficial. O bairro tornou-se retaguarda (com atividades cotidianas de apoio)
e oito mil participaram do Fundo de Greve. Porém, o Sindicato sofreu intervenção
estatal e foi fechado, sendo os dirigentes presos e enquadrados na LSN (Lei de
Segurança Nacional). Listas de demissão foram elaboradas e a reposição dos dias
parados exigida. As lideranças, por sua vez, assim que foram libertadas, voltaram
às bases, às portas de fábrica. Uma série de greves e outras mobilizações tiveram
lugar, como o boicote à decisão da VW de montar um simulacro de comissão de
fábrica e a derrota imposta à direção no plebiscito sobre redução da jornada e dos
salários em troca de estabilidade.
A experiência de São Bernardo indica dinâmicas e articulações às vezes
contraditórias, sendo necessário mergulhar nos problemas reais e nas lutas operá-
rias para ver o papel da fábrica e do sindicato e suas articulações e processos de
construção.

Duas experiências distintas de auto-organização operária


Quais seriam as relações entre essas duas interessantes experiências de
auto-organização dos operários dos setores de ponta da indústria brasileira (em
suas convergências e divergências)? Primeiramente, cabe colocar as diferenças
concretas entre o ABC e São Paulo. Por exemplo, com relação ao tamanho e
concentração das fábricas. Se na capital existia maior dispersão em milhares de
fábricas, em sua maioria médias e pequenas, dando condições favoráveis à mani-
pulação burocrática e pelega, São Bernardo tinha uma concentração de grandes
indústrias, dez delas fornecendo metade dos seus sindicalizados.
Embora as grandes greves do ABC tenham tido influência na mobiliza-
ção dos movimentos em São Paulo, e esses últimos tenham se solidarizado com
os trabalhadores do ABC, principalmente em 80, quando os sindicalistas e mili-
Jean Tible 303

tantes ligados ao PCB e PCdoB retiraram seu apoio às mobilizações do ABC por
temer pelo processo de redemocratização, existiram divergências importantes no
que toca ao papel do sindicato, às comissões de fábrica e à relação entre estas e
o sindicato.
Sempre houve reticências por parte de São Bernardo e seus dirigentes
em relação às comissões de fábrica e o temor de “paralelismo sindical”, como se
pode ver nas teses defendidas no II Congresso (1976). Vários autores destacam,
além disto, o excessivo apreço de São Bernardo pelo sindicato e a estrutura a ele
atrelada. Marco Aurélio Garcia (1982) interroga a este respeito se “não teria sido
oportuno, por exemplo, aproveitar a intervenção do Ministério do Trabalho no
sindicato para romper de vez com esta estrutura atrelada, criar um sindicato livre,
convocando os trabalhadores de todo o país a fazer o mesmo”. Ao que agrega
Amneris Maroni (1982):

[os sindicatos do ABC] de um lado tornam-se a expressão da luta pela autono-


mia e liberdade sindical, pelo direito de greve, contra a política econômica do
governo etc.; de outro lado, procurarão absorver as lutas difusas contra alguns
aspectos da organização do processo de trabalho. Os limites dos sindicatos no
encaminhamento dessas últimas lutas se farão sentir rapidamente (p. 116).

Outro importante militante da Oposição, Hélio Bombardi (2000), tam-


bém declara que:

ora defendiam delegados sindicais eleitos nas fábricas para fazer a ponte en-
tre a fábrica e o sindicato, ora defendiam as eleições das comissões de fábrica
ligadas organicamente e subordinadas aos sindicatos. Exemplo disso é que em
várias comissões de fábrica o sindicato indica um diretor para fazer parte da
comissão (p. 37).

Por outro lado, foram feitas muitas acusações de que o alto nível político
e ideológico da Oposição, suas bandeiras socialistas, de luta de classes, de enfren-
tamento com patrões, tê-la-ia feito desprezar as eleições do Sindicato, sendo esta
uma das causas de sua derrota. Tal posicionamento tê-la-ia transformado em uma
vanguarda distanciada das bases, contribuindo para a derrota de seus objetivos
imediatos, qual seja, ganhar as eleições sindicais. São Bernardo, por sua vez, não
possuía tanta elaboração ideológica, mas muita combatividade, muito espírito de
luta e organização.
Para nós, não faz sentido estabelecer uma polarização entre as duas ex-
periências de modo sectário. Nem São Bernardo constituiu apenas um sindicato
304 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

atrelado, nem a Oposição formou-se unicamente por comissões. Parece-nos mais


correto analisar as possibilidades concretas de cada uma, perceber duas estrutu-
ras sindicais distintas, com trajetórias próprias e particularidades. O depoimento
de Elias Stein (2000), que militou em ambos movimentos, ajuda a situar melhor
essas questões:

em São Bernardo, nos anos 1976 a 1980, tive o privilégio de ver e participar
ativamente de uma experiência sindical que também me marcou profundamente.
Em vez de milhares de empresas dispersas, com poucos sócios como em São
Paulo, a maioria dos operários de São Bernardo e Diadema estava concentra-
da nas grandes montadores automobilísticas e grandes fábricas de autopeças.
Uma classe operária jovem, trabalhando em empresas modernas, que ofereciam
transporte, alimentação, convênios médicos, tudo para ter uma mão-de-obra
preparada para produzir lucros cada vez maiores. Joaquinzão e seu sindicalis-
mo pelego e assistencialista não teriam nenhuma condição de sobrevivência em
São Bernardo. (...) Essa diferença sobre o papel dos sindicatos, das Comissões
de Fábrica, da autonomia da luta operária em relação ao aparelho sindical, que
poderia levar a uma troca de experiências muito rica, acabou resultando numa
desconfiança mútua, que trouxe prejuízos tanto para a Oposição quanto para os
dirigentes de São Bernardo. Enquanto a Oposição via no sindicalismo de São
Bernardo uma luta puramente economicista, que acabava reforçando a estrutu-
ra sindical vigente, os militantes e dirigentes de São Bernardo viam no trabalho
da Oposição de São Paulo um perigo do ‘sindicalismo paralelo’. Claro que nem
um nem outro estavam certos nessa visão (p. 28).

O essencial foi que cada um, a partir de suas especificidades, mudou o


curso da história do Brasil, num momento de crescente organização dos de baixo,
que se desdobrou na criação do PT, da CUT, do MST e na reorganização da UNE.
E, mais tarde, na vitória de 2002 nas eleições presidenciais.

As lutas, em movimento

Estrutura sindical e trabalhista


O início da organização sindical no Brasil é fruto de uma incipiente clas-
se operária da primeira década do século passado, que se concretizou na criação
da Confederação Operária Brasileira (COB), de inspiração anarquista e recebendo
forte influência dos imigrantes, principalmente espanhóis e italianos. Em 1917
eclodiu uma greve geral que se estendeu a outras cidades, sofrendo fortíssima re-
Jean Tible 305

pressão policial. Naquele momento, o Estado tratava qualquer conflito trabalhista


como caso de polícia.
No decorrer das décadas de 30 e 40, com o Governo Getúlio Vargas, isto
se transforma. Foi garantida uma série de direitos trabalhistas ao mesmo tempo
em que se reprimia qualquer iniciativa de organização autônoma das forças de
oposição, sobretudo comunistas. Deste modo, foi sendo criada uma estrutura sin-
dical vertical, por ramo de atividade e mantendo a representação sindical a um
único sindicato oficial por município. Em 1937 foram proibidas as greves e três
anos depois instituiu-se o imposto sindical obrigatório, atrelando as organizações
sindicais ao Estado. Em 1943, Getúlio proclama a Consolidação das Leis do Tra-
balho (CLT), que unifica numa mesma peça jurídica vários dispositivos, selando
a dependência das organizações sindicais frente ao Estado.
Tais medidas permitiram intervenções do Estado nos sindicatos, tornan-
do-os ilegais, por exemplo em 64 (golpe civil-militar) e no final dos anos 70, além
de manter um controle político permanente via Ministério do Trabalho; os sin-
dicatos funcionavam como uma espécie de órgão consultivo do Estado. O então
sindicalista Lula chegou a declarar que “a CLT é o AI-5 da classe trabalhadora”
(French, 2001, p. 71).
Ao longo dos anos 50 e início dos 60 foram feitas diversas tentativas de
organização sindical, com greves realizadas em 53, 54 e 57. Eram lutas contra a
inflação, contra o alto custo de vida, que prenunciavam o início de novas formas
de organização dos trabalhadores através de comissões de salários e de empresas,
delegados sindicais. Há nesta época uma divisão entre “vermelhos” (nacionalistas
e comunistas), “amarelos” (oficialistas, conservadores) e “renovadores” (cristãos,
comunistas dissidentes, socialistas, sindicalistas independentes). Com o golpe de
64, ocorre a intervenção nos sindicatos, com a cassação e nomeação de dirigentes.
Os sindicatos tomam o rumo assistencialista, de prestação de serviços (farmácia,
colônia de férias, ambulatório médico etc.), graças aos fundos do imposto sindical.
A CLT é complexa e ambígua. Em uma dimensão repressiva e centrali-
zadora, definiu os limites da (auto)organização operária, ao mesmo tempo em que
exerceu um papel-chave na garantia de alguns direitos mínimos dos trabalhadores,
despertando esperanças militantes e ajudando a constituir um horizonte comum
do que deveria ser dignidade e justiça nas questões de trabalho (Paoli, 1988). A
ação do Estado teve efeitos paradoxais, criando também um espaço para a orga-
nização dos trabalhadores. Além disto, outro problema foi sua pequena aplicação
prática. As conquistas na forma de leis não tiveram repercussão concreta, tendo
tido uma aplicação irregular. A CLT regula as condições de trabalho; no entanto,
306 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

seus benefícios só poderiam concretizar-se através da mobilização vinda de baixo,


com um crescente protagonismo dos trabalhadores. As questões sociais deixam de
ser questões unicamente de polícia. Para Maria Célia Paoli (1988), “a legislação
trabalhista desprivatizou o espaço fabril”, introduzindo “direitos genéricos, mas
públicos” (p. 64).
De acordo com French (2001), “neste contexto, podemos considerar que
a ‘legalização’ do movimento sindical, quaisquer que fossem os motivos de seus
arquitetos, teve um impacto favorável sobre seu processo de organização” (p. 82).
Além disto,

ao julgar o novo papel do Estado nas relações industriais, a questão crucial é


se a legislação e as iniciativas políticas que a fundamentaram criaram espaço
para reforçar o poder e a organização da classe operária – que é precisamente
o que ficou demonstrado pela experiência nas regiões industrializadas como o
ABC paulista, e ocorreu com força ainda maior nas regiões periféricas do país
(p. 91).

Comissões de fábrica
Um dos eixos das práticas e lutas dos operários é a organização em
comissões de fábrica. A pioneira neste período foi a já citada comissão da CO-
BRASMA, em Osasco. Trata-se de um processo de organização dos trabalhadores
em seu local de trabalho, inspirado na Comuna de Paris, nos Soviet da Revolução
Russa e nos Conselhos Operários de Turim na década de 20 e 70.
É importante frisar que a CLT não contempla nenhuma forma de organi-
zação no local de trabalho. Em geral, essas comissões têm início com pequenas
reivindicações: almoço ruim, ausência de bebedouro, autoritarismo patronal, rit-
mo de produção. Forma-se um grupo de fábrica com quatro ou cinco membros.
Depois, reuniões inter-fábricas. No decorrer dos anos 70 e 80, com as milhares
de greves pelo país, mais de cento e vinte comissões de fábrica foram formadas
(Bombardi, 2006).
Um dos melhores exemplos é o da comissão da Asama, fábrica de cons-
trução de máquinas, com operários altamente qualificados. A comissão já existia,
porém seguia as normas ditadas pela empresa. Em fevereiro de 82 uma chuva
inundou a fábrica, deixando-a parada por três dias. A diretoria da fábrica exigiu
compensação dos dias parados, ao que os trabalhadores responderam com um
boicote liderado pelo grupo de fábrica; a empresa acabou cedendo, havendo pos-
teriormente uma nova comissão, com nova concepção – apesar da violenta pres-
Jean Tible 307

são do Sindicato. Definiram-se as seguintes instâncias deliberativas: assembléia


dos trabalhadores; comissão; presidente da comissão; revogabilidade da comissão
em assembléia. O Sindicato era ainda apenas um órgão consultivo da comissão,
invertendo a ordem natural. Com estabilidade conquistada, auto-sustentação fi-
nanceira, mantida através da contribuição de 80% dos trabalhadores, esta comis-
são chegou a estabelecer uma dualidade de poder. A empresa começou, a partir
de 84, a buscar formas de destruir a comissão, o que culminou com invasão da
PM em agosto de 85 e a demissão da comissão por “justa causa” após três meses
de paralisação. Como esses trabalhadores demitidos tinham estabilidade, foram
reintegrados em seguida, fato inédito no movimento sindical (Silva, 2006).

Da fábrica para sociedade


As grandes greves e mobilizações do ABC e de São Paulo ganharam o
apoio de trabalhadores de todo o país e de outras organizações. O curioso é que,
no início, pelo menos no ABC, havia uma certa resistência quanto a lutas “mais
gerais”, como a luta pela anistia dos presos políticos. No entanto, a própria prática
de questionamento da ditadura conduziu esses movimentos a uma outra perspec-
tiva. Os líderes metalúrgicos foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional
(LSN), veio a intervenção no sindicato e os militantes acabaram juntando-se à luta
das comissões pela anistia.
Por outro lado, formou-se um amplo Comitê de Solidariedade às greves
do ABC e de São Paulo, composto por militantes sindicais, associações de bairros,
estudantes, feministas, negros, ala esquerda do MDB, imprensa alternativa, artis-
tas, organizações que saíam da clandestinidade. Este movimento acabou dando
um respaldo político, mobilizando forças de apoio e não permitindo o isolamento
da greve. Além disto, o apoio dos trabalhadores de todo o país facilitou a pos-
terior formação da CUT, que nasceu com as bandeiras da autonomia sindical e
de organização dos trabalhadores, que desde sua origem defende a democracia
operária e a independência dos patrões e dos governos. Começaram a pipocar
greves em diversos outros setores: bancários, funcionários públicos, canavieiros
(Freire, 2000).
As raízes da CUT estão nas duas experiências abordadas neste artigo.
De um lado, a prática de organização dos trabalhadores, a recusa do sindicalismo
pelego e imobilista, práticas em que se destacam o Sindicato dos Metalúrgicos de
São Bernardo, os metalúrgicos de João Monlevade, os bancários de São Paulo,
Porto Alegre e Belo Horizonte e os petroleiros de Paulínia. De outro, as oposições
sindicais, da cidade e do campo, em luta pela criação de uma nova estrutura sindi-
308 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70

cal, movimentos compostos pelos metalúrgicos de São Paulo e Osasco, químicos


de São Paulo, além de trabalhadores rurais de Santarém (PA) e Colatina (ES)
(Giannotti, 2006).
As greves na Grande São Paulo também marcaram a divisão do sindi-
calismo brasileiro. De um lado, a luta pela organização autônoma e pelas greves.
De outro, a avaliação de momentos de não-confronto, ou seja, o gradualismo e a
moderação do PCB e sua defesa do pacto social. As grandes assembléias de São
Bernardo e as mobilizações nas fábricas de São Paulo constituem um divisor de
águas, juntando o sindicalismo de grandes mobilizações de São Bernardo com a
organização autônoma de São Paulo frente ao Estado. Estas duas experiências,
conjugadas com a reorganização das forças de esquerda no período pós-ditadura,
foram fundamentais para a democratização em curso no Brasil e são igualmente
importantes para compreendermos o processo atual – em suas potencialidades e
limites.

Referências

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Metalúrgica de São Paulo (1967-1987). Tese de doutorado, PUC-SP, 2001.
BOMBARDI, H. Comissões de Fábrica. In: Revés do Avesso, abril/maio de 2006.
FRENCH, J. Afogados em Leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasi-
leiros. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
FREIRE, A. Organizações e movimentos populares e de trabalhadores na segunda
metade dos anos 70 ou de um tempo quando não havia guias geniais dos povos. Fun-
dação Perseu Abramo, 2000.
GARCIA, M. A. São Bernardo: A (auto) construção de um movimento operário. In:
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GIANNOTTI, V. As Duas Raízes da CUT. In: Revés do Avesso, abril/maio de 2006.
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OLIVEIRA, A. B. Um Amplo Processo Democrático. In: Revés do Avesso, abril/maio
de 2006.
PAOLI, M. C. Labor, Law and the State in Brazil: 1930-1950. Tese de doutorado em
História, Birkbeck College, University of London, 1988.
ROSSI, W. A Primeira Batalha. In: Revés do Avesso, abril/maio de 2006.
Jean Tible 309

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas


dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
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abcdeluta.org.br
SILVA. G. F. Comissão da Asama. In: Revés do Avesso, abril/maio de 2006.
STAN. A Esquerda e a Oposição. In: Revés do Avesso, abril/maio de 2006.

Jean Tible é doutorando em sociologia (IFCH/Unicamp), mestre em relações in-


ternacionais (IRI/PUC-Rio) e membro do grupo de pesquisa “Movimentos Sociais na Arena
Transnacional” (NUPRI/USP).
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 311-322

Nas peles da cebola ou da “segunda


natureza” em excesso.
A delicada luta pelo estado de
exceção benjaminiano

João C. Galvão Jr.

Os verdadeiros estados de emergência ou de exceção


(Ausnahme-Zustände) são inaugurados pela própria ordem
legal, e não por qualquer ato criminoso perpetrado contra ela.
Nietzsche

A metáfora da cebola139 é adequada para retratar a “segunda natureza” em


excesso, quando a barbárie do poder soberano é contínua: assassinatos dos subal-
ternos, membros dos movimentos sociais, “cidadãos” excluídos, sofrendo com a
atuação mortífera da polícia política e legitimada por um sistema de justiça fascis-
ta. E, rapidamente, as pessoas passam a contentar-se com o “retorno” à “norma-
lidade”, reflexo de uma “violência calada” que mantém uma sociedade burguesa
naturalizando a violência e retirando da sociedade a capacidade de dizer não ao
sistema; a separação brutal entre os trabalhadores e sua produção, feita por leis san-
guinárias, a ferro e fogo, violência escondida que não é mais contestada pelo prole-
tário. A menos que esta cebola seja devidamente descascada, poder-se-ia dizer que
“o sonho acabou”, visto que nem os que fazem parte do “capitalismo de periferia”
são capazes de mover uma palha para dar um passo adiante, temerosos de perde-
rem “seus” direitos burgueses positivados ao longo da caminhada secular.
Porém, ainda há os que não se subordinam ao “estatuto do proletário”,
que sentem a força criativa do direito como fenômeno político e “arte do impossí-
vel” que pulsa na rua, ou, dependendo da intensidade, pulsa na violência popular.
Não calam essa violência, numa contra-violência, muito embora suas energias
não sejam “revolucionárias”; buscando uma vontade de vontade que se estabe-
lece e desafia tudo o que está presente; este desafio acontece e tem a expressão
na obra de Nietzsche. A “vontade de potência” nietzschiana que dialoga com a
investigação científica nas relações de força, tornando-se o que aqui chamamos
de “potência política”.

139 Cf. Grass, G. Nas Peles da Cebola, 2007.


312 NAS PELES DA CEBOLA OU DA “SEGUNDA NATUREZA” EM EXCESSO

A preferência pelos fortes exige coragem, um movimento que desce aos


subalternos, grande desafio de qualquer pensador que se posicione sem medo ante
o terrível, dizendo sim à realidade; deixando de lado a vontade de verdade que
esvazia o futuro, a vontade excessiva de conhecimento que esteriliza a vida, o
excesso de história produzido pelo conhecimento científico que paralisa as forças
criativas. A história, muitas vezes, se transmite “em carne e sangue, não sob a
forma de documentos amarelados ou de uma memória livresca” (Nietzsche, 2005,
p. 203). O viver num mundo subalterno se apresenta como um jogo de forças po-
líticas e sociais na afirmação diária de direito(s). É preciso ter algo de Nietzsche e
entender que somente após sua feliz mensagem, das cinzas da civilização que se
destrói, começa no mundo a grande política; e bastariam esses sintomas, para sentir
que há algo além da simples destruição; diferente da maioria dos “intelectuais” que
confundem violência com força. “Os canalhas não devem ser procurados entre os
que quebram a lei, mas entre os que nada quebram” (Nietzsche, 2004, p. 266).
Já no sertão brasileiro, Euclides da Cunha intuiu que ali nascia uma nova
forma de organização social; uma complexa formação de forças ativas em plena
seca, onde o que era água era considerado manifestações da vida. Nos Sertões,
referiu-se “as fortes tempestades que apagam o incêndio surdo das secas” (Cunha,
1963, p. 25, 30, 38), uma vontade de potência – “potência política” a romper com
o contínuo histórico, da “velha” república brasileira, “produzindo verdadeiras
avalanches que tudo destroem em sua passagem...”, criticando fortemente este
regime republicano: “o regime decorre num intermitir deplorável, que lembra um
círculo vicioso de catástrofes” (ibidem, p. 52); do topo da Favela, Euclides da
Cunha atenta para os “descampados”, os que hoje se poderia dizer os “sem-teto”
ou “sem-terra”. Ao mesmo tempo, o olhar fascinado perturbava-se no “desequilí-
brio das camadas desigualmente aquecidas” – energias de diferentes intensidades
a fluírem por toda sociedade, algumas fortes, mas sem a proteção estatal e algumas
fracas beneficiadas pela ordem “republicana”. Neste artificialismo “humano”, as
fracas energias vencem as fortes energias num jogo anti-dialético e covarde, cons-
truindo a história dos vencedores. Euclides alertava então, pela primeira vez no
Brasil, para a “absorção e defesa” (ibidem, p. 38) de uma “elevação”, anônimas na
ciência, ignoradas dos sábios e dos estrategistas estudiosos do artificialismo “hu-
mano”; uma força clandestina que defende e se dispersa nas massas; movimento
clandestino que se auto-alimenta dos trabalhadores subalternos, conquista mentes
e corações dos proletários, “unem-se, intimamente abraçados, transmudando-se
em plantas sociais”, usando-os como escudo; permanecendo invisíveis na socie-
dade subalterna, dentro da sociedade popular. Aquilo que o brasileiro Euclides da
João C. Galvão Jr. 313

Cunha comparou a uma “chapa incandescente de ardência inaturável” – pois, sim,


são poucos na sociedade burguesa que têm o prazer de tocá-la, saboreá-la e sentir
as sensações de suas potências elevadas a mil.
Será talvez relevante apontar que os estudos sobre vontade de potência
e teoria política são um compromisso alargado com a questão da ciência política
e filosofia, de tal forma que este posterior estudo pode ser visto como emergido
daquele questionar. No começo da lei, há um certo fora-da-lei, um certo real da
violência que coincide com o próprio ato de instauração da lei, a verdade última
sobre o império da lei é uma vontade de usurpação; e todo o pensamento político
filosófico clássico depende de desmentir esse violento ato de fundação. Este é o
hediondo momento fascista do pensamento burguês, no qual expõe a filosofia e a
teoria política à violência, mediante a tentativa de ligá-las à lei. Talvez por isso, às
verdades da filosofia faltam a necessidade e a marca da necessidade, e às verdades
da teoria política faltam conceitos que não sejam marcados pela violência da lei
e do Estado.
Portanto, é preciso descer da solidão da montanha para confrontar a ig-
norância da sociedade burguesa-fascista. Pela mesma via, os subalternos insur-
gentes, que não se ajoelham ante os valores burgueses seculares-cristãos, têm
mais força no corpo do que todos os “intelectuais” reunidos, esses, que desejam e
amam as sombras do poder. Na medida em que são livres, os insurgentes desafiam
a autoridade, constituindo uma força de resistência; trazem à lembrança épocas
fortes e povos vigorosos, que não cedem nos seu(s) direito(s), nos princípios que
fazem agir: a certeza instintiva na ação. Digno de pensamento é o estudo que
une racionalismo e irracionalismo numa perspectiva dialética; o “não-humano” é
frequentemente entendido como animalidade, a qual não é a base adequada para
caracterizar o outro. Poderá alguém chamar “irracionalismo” à tentativa de nos
acordar do sono, um conjunto de forças operando na “humanidade” dos seres
humanos?

2. Real da Violência
A sociedade burguesa toma inúmeras precauções contra a violência. E a
educação é orientada para atenuar de tal modo nossas tendências à violência que
somos naturalmente levados a pensar que todo ato de violência é uma manifesta-
ção de regressão à barbárie. A história do homem foi sempre violenta; viver em
sociedade foi sempre um viver violento; a violência, sempre presente, aparece em
suas várias faces. Nosso tempo está marcado pela violência, onipresente e multi-
forme nas suas variadas e distintas manifestações (Cerqueira Filho, 1983, p. 171).
314 NAS PELES DA CEBOLA OU DA “SEGUNDA NATUREZA” EM EXCESSO

O fenômeno da violência, em suas várias modalidades, passa a ocupar então um


lugar privilegiado no pensamento político filosófico, ainda que não se vise, aqui,
a estabelecer uma tipologia da violência; ainda falta um conceito preciso do que
seja violência, mas é hora de mostrar seu papel no processo histórico.
Em 1921, Walter Benjamin escreveu o ensaio “Zur Kritik der Gewalt”
(Para uma Crítica da Violência, 1986), que aparece em inglês como “The Criti-
que of Violence”. Gewalt denota não apenas violência, mas também o conceito
de poder, que dadas as suas sinistras ambiguidades, continua a ser um dos textos
mais problemáticos da obra de Benjamin. Neste texto, a semântica de Gewalt
oscila constantemente entre esses dois pólos: violência e poder. Todo o ensaio
então é construído sobre a ambiguidade da palavra Gewalt. Benjamin trabalha
para mostrar a origem do direito (e do Poder Judiciário) a partir do espírito da vio-
lência. Percebe-se que Benjamin fala sobre o direito (positivo), ou seja, a lei, que
a todo o momento reafirma-se a si mesma mediante a violência, revelando algo de
podre nesta mesma lei. A decadência interna da lei é decorrência de o preceito le-
gal não ser legitimado. O próprio espaço do raciocínio jurídico no qual prevalece
o preceito legal é sustentado por uma dimensão de força, poder e violência que
acabam por mascarar a falta dos fundamentos. Raciocina corretamente Benjamin,
negando a lei, que é fonte de um desequilíbrio e degeneração institucional crôni-
co, quando se auto-reafirma no enunciado: “A lei é a lei!”. Benjamin140 distingue
dois aspectos dessa dimensão da lei: a violência instauradora da lei (rechtsetzend
Gewalt) e a violência mantenedora da lei (rechtserhaltende Gewalt). A violência
instauradora da lei marca pela primeira vez a fronteira entre o que será con-
siderado legal e ilegal; a violência mantenedora da lei serve exatamente para
regular e manter as fronteiras entre os atos legais e ilegais. Benjamin dá a essa
violência (que instaura e mantém o direito) o nome de violência mítica (“poder
sangrento sobre a mera vida em nome da violência”), usando o conceito de mito
para entender os efeitos de poder das representações. Esta violência seria digna
de reprovação pois, instituindo um direito, poderia ser chamada de dominante;
devendo ser rejeitado todo poder mítico, o poder instituinte do direito, que pode
ser chamado de um poder que o homem põe (schaltende Gewalt). Para Benjamin,
diga-se de passagem, a polícia representa uma espécie de mistura espectral des-
sas duas formas de violência; a polícia é o lugar em que a violência extralegal,
da qual depende estruturalmente o preceito legal, manifesta-se da maneira mais
clara; é presença fantasmagórica, na vida dos Estados civilizados. No começo da

140 Cf. Santner, E. A Alemanha de Schreber: uma História Secreta da Modernidade, 1997,
p. 23.
João C. Galvão Jr. 315

lei, portanto, há um certo fora-da-lei, um certo real da violência que coincide com
o próprio ato de instauração da lei: a verdade última sobre o império da lei é uma
usurpação, e todo o pensamento político filosófico clássico depende de desmentir
esse violento ato de fundação. Žižek esclarece:

a violência ilegítima através da qual a lei se sustenta deve ser escondida a qual-
quer preço, pois essa ocultação é a condição positiva do funcionamento da lei:
ela funciona na medida em que seus sujeitos são enganados, na medida em que
vivenciam a autoridade da lei como ‘autêntica e eterna’, passando-lhes desper-
cebida ‘a verdade sobre a usurpação’ (1992).

Nesse contexto, Nietzsche influencia fortemente Benjamin, no que diz


respeito à violência instauradora da lei:

O ato mais decisivo, entretanto, que o poder supremo pratica (...) é a instituição
da lei, a declaração imperativa do que figura em geral como permitido e justo a
seus olhos, e do que figura como proibido, injusto: depois de haver instituído a
lei, ele trata a violência e os atos caprichosos por parte dos indivíduos ou grupos
inteiros como delitos contra a lei, como uma rebeldia contra o próprio poder
supremo. (...) “Justo” e “injusto”, por conseguinte, só existem depois da insti-
tuição da lei. (...) Falar em justo ou injusto em si é perfeitamente sem sentido (A
genealogia da moral, s/d).

O estado de emergência ou de exceção (Ausnahme-Zustände) é inau-


gurado pela própria ordem legal, e não por qualquer ato criminoso perpetrado
contra ela, diz Nietzsche. Ainda em 1921, Benjamin nega a lei, mas não realiza a
negação da negação:

...violência como “meio puro”, isto é, como figura de uma paradoxal “media-
lidade sem fins”: isto é, um meio que, permanecendo como tal, é considerado
independentemente dos fins que persegue (...) É pura a violência que não se
encontra numa relação de meio quanto a um fim, mas se mantém em relação com
sua própria medialidade (Agamben, 2004, p. 95-96).

É uma violência que opera na história, que opera transformações profun-


das nas estruturas seculares da sociedade burguesa cristã, determinando o desa-
parecimento de certos valores, rompendo com certos tipos de dominação e senti-
mentos e criando novas formas de relações entre os homens; movimento histórico
que se expressa na ação política na rua; isso tudo é um movimento de mudança
social e cultural, como diz Engels:
316 NAS PELES DA CEBOLA OU DA “SEGUNDA NATUREZA” EM EXCESSO

A violência desempenha na história, um papel revolucionário; sabemos que ela


é, também, para usar uma expressão de Marx, a parteira de toda a sociedade
antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento
por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as
formas políticas fossilizadas e mortas (Engels, 1990, p. 161).

Assim, é a leitura histórica, muitas vezes na atmosfera a-histórica como


produtora do ato político, que produz história, que permite assimilar revolução
e violência numa sintonia dialética e interpretar esta última como uma fase ou
síntese dialética neste processo histórico, necessária para romper estruturas so-
ciais burguesas seculares. É importante lembrar: comungamos do conceito de
secularização como nos apresenta o historiador Ginzburg: “A secularização não
se contrapõe à religião: ao invés disso, invade seu campo” (2006, p. 16). Já em
1940, neste movimento dialético, em suas teses sobre o conceito de história, o
próprio Benjamin lembrou que a história, tal como se veio desenrolando até o
presente, está impregnada de violência e de barbárie; tanto a história quanto o
direito sempre foram concebidos como oficiais; exatamente por isso, o olhar do
teórico do materialismo histórico não pode estar voltado para uma espécie de pro-
longamento natural dessa história, não promovendo a continuidade daquilo que
essa história produziu; o olhar historiográfico tradicional que se limita ao “que
realmente aconteceu”, fazendo da história uma corrente fechada, linear e homo-
gênea, já é a priori, formalmente, o olhar “dos que venceram”: vê a história como
um contínuo fechado da “progressão” que levou à dominação atual, abstraindo ao
mesmo tempo o que faltou na história, o que teve de ser negado para que se pu-
desse estabelecer o contínuo do “que realmente aconteceu” (Žižek, 1991, p. 181).
Por isso, Benjamin dirá que um espírito dialético, insiste em “escovar a história a
contrapelo” (Löwy, 2005, p. 70). Ainda sobre o conceito de história e sua crítica,
Benjamin mostra que o passado traz consigo um índice misterioso, que impele à
redenção (Benjamin, 1994, p. 223); e que a toda hora temos que nos perguntar
com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A res-
posta, diz Benjamin, é inequívoca: com o vencedor.

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento


da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tam-
pouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o
materialismo histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a
contrapelo (ibidem, p. 225).
João C. Galvão Jr. 317

A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de


vista, é luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas
coisas espirituais, esclarece Benjamin (ibidem, p. 223). Esta luta hoje em dia não
é somente de classes, mas de todos os grupos subalternos e oprimidos, que terão o
legítimo direito de encontrar seus direitos na violência, seja ela “pura” ou “revolu-
cionária”. Interessante, ainda, que Benjamin destaca a diferença entre a violência
de um movimento revolucionário que tenta tomar o poder estatal e a violência
de um movimento que, ao contrário, tenta destruir o poder do Estado rejeitando
qualquer relação com a lei. Essa segunda forma de violência é “pura” ou “ime-
diata”, no sentido de que não presta atenção a nada que seja externo, a nenhuma
representação. Benjamin tenta entender positivamente esta violência em termos
duma “violência divina”: poder puro sobre a vida toda em nome dos vivos, expri-
mindo a própria vida fora da lei, na forma do vivo, nunca sendo um instrumento
de execução sacra (Hardt e Negri, 2004, p. 171-172).
O próprio Benjamin disse que a tradição dos oprimidos nos ensina que
o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral e que preci-
samos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse
momento, percebemos que nossa tarefa é originar [criar] um verdadeiro estado de
exceção [emergência] (Benjamin, 1994, p. 226). Nesta interpretação da história, o
direito (não estatal) e a violência movimentar-se-ão também dialeticamente, não
como a violência “puramente pura”. Isso não significa que a violência benjami-
niana (pura/divina) deva ser descartada, pois se o conceito de história corresponde
à verdade do estado de exceção, não caberá só aos proletários mudá-la. A ruptura
caberá a todos os grupos subalternos, inclusive aos intelectuais marginalizados,
direcionando esta “violência pura” para criar um verdadeiro estado de exceção,
benjaminiano.

3. “Instante” ou “Tempo-de-agora”
Nesta leitura, atento à secularização e ao mesmo tempo à ruptura, a von-
tade de potência politizada ou “potência política”141 quer a eterna repetição do
instante (perdido historicamente); é no “instante” (Nietzsche) que se faz a rup-
tura histórica pelas forças ativas, afirmando seus direitos políticos pela potência
política na vontade de dar efetividade aos “direito(s) achado(s) na rua” (Roberto
Lyra Filho); esses direitos não são achados numa realidade dialética: têm de ser
“achados na violência” (J.C Galvão). Este sentido do instante é uma possibilidade

141 Conceito que estamos desenvolvendo na Teoria Política.


318 NAS PELES DA CEBOLA OU DA “SEGUNDA NATUREZA” EM EXCESSO

de liberdade; este instante traz consigo: potência, força, violência, ruptura; este
instante é o “tempo-de-agora” (Jetztzeit) benjaminiano, autêntico instante que in-
terrompe o contínuo da história (Löwy, 2005, p. 15). Por isso Proust vai em busca
do tempo perdido, repetindo um instante que deveria ter acontecido, redescobrin-
do o tempo perdido, possibilitando a descoberta do tempo pela arte, um “tempo
puro” significando uma razão suficiente (o tempo a priori que não necessita do
movimento empírico ou do excesso de razão), uma razão suficiente rompendo
com o contínuo histórico – que Benjamin denominou “violência pura” –, pondo
em suspenso o movimento dialético. A essência do tempo é ser puro, ou seja, não
ter excesso de razão, para que o “homem de ação” (Nietzsche, 2005, p. 76) possa
romper com o contínuo histórico no instante que a violência pura proporciona;
esse rompimento ou ruptura é feita pela “potência política”, redescobrindo um
tempo eternamente vivido no instante “a-histórico” (ibidem, p. 74), vivendo eter-
namente nos segundos da ação; há instantes em que “de repente o tempo pára e o
presente torna-se eternidade” (Dostoievski); só uma vez ou outra surge um “ho-
mem de exceção” (Buarque de Holanda), que possa criar um verdadeiro estado
de exceção; e tem de ser forte o bastante para resistir e, apesar de tudo, criar. O
aqui e agora – “instante” ou “tempo-de-agora” – visto numa perspectiva político
filosófica é o rompimento com a história oficial dos dominantes e conquistadores;
só em instantes de forte tensão os homens encontram-se frente à frente com as
forças subterrâneas que desmantelam sínteses:

... esses “instantes” representam o que há de mais importante e (...) todo o resto
se anula diante de sua força (Buarque de Holanda, 1996, p. 239).

A essência do direito, da política e da história vive no tempo perdido que


é redescoberto no eterno retorno político de captura do instante que deveria ter
ocorrido e não ocorreu; repetidamente volta-se no tempo para eternamente retor-
nar a este instante como forma da arte expressar-se na política rompendo com a
história: o eterno retorno numa perspectiva político filosófica entendido através
do tempo perdido redescoberto pelo “homem de ação“. O “homem de ação” é
sempre, segundo Goethe (1987, p. 68), despojado de escrúpulos, esquece tudo
exceto a coisa que quer fazer, não conhece senão um direito, o direito daquele que
vai agora nascer; possuindo uma energia selvagem nos olhos; grandes homens
como possibilidades reais sempre presentes da existência humana, gerando a cada
instante as forças vivas do presente, redimindo o tempo pela “potência política” e
criando uma ferida na ordem, abrindo para o presente uma multiplicidade de pos-
João C. Galvão Jr. 319

sibilidades; a vontade que liberta insurgindo-se contra fatos consumados, fazendo


sempre novas interpretações do passado.
Talvez fosse essa a intenção de Benjamin, no caminho de uma “história
aberta”, não sendo o futuro “conhecido antecipadamente” (Löwy, 2005, p. 149);
a contrapartida da objetividade histórica, a negação das forças subjetivas no curso
da história, nos grandes acontecimentos, extraindo do presente tudo o que ele tem
de forte, para só depois interpretar o passado. No estudo das relações de força,
qualquer período histórico que se considere é caracterizado por uma tensão entre
aquilo que está morrendo e aquilo que está nascendo.
Quando uma “revolução” não ocorre, nasce o estudo das catástrofes. En-
tão, questão importante a considerar é a ação política dos subalternos em tempos
de catástrofes, quando todas as formas se “dissolvem” (Lukács). Por isso, em
momentos históricos de desespero, a ação ou violência é “pura” (Benjamin); nesta
dialética de destruição e criação – dialética da violência, as formas de ação pre-
servam ou destroem, encontrando meios para outras formas de convivência.
Na nossa interpretação, seja o “espírito” de Hegel, a “teologia” de Ben-
jamin ou a “vontade de potência” em Nietzsche, existe uma força que movimenta
a história e ao mesmo tempo rompe com o contínuo histórico. Esta força está nos
grupos subalternos e deve ser buscada pelo estudo das relações de forças que
estes grupos produzem frente ao poder soberano. A esta força estamos chamando
de “potência política”, ou seja: vontade de potência politizada, que não é metafí-
sica, porque está atenta aos fatos concretos políticos e aos estudos empíricos das
relações destas forças geradas pelos subalternos; a potência política como força
de resistência contra grupos dominantes; a potência política que escreve a histó-
ria no “sentido contrário” trazendo as forças vivas do presente; o presente como
potencialidade da diferença.
Parece que a “revolução” não é mais dos proletários, MAS de todos os
subalternos, principalmente dos homens de ação que não se subordinam ao es-
tatuto do proletário; houve uma adesão do movimento operário ao Estado bur-
guês, a começar pelos sentimentos; o proletário não faz mais ruptura com a ordem
burguesa. E temos de prestar atenção às “novas formas de consciência social“
(Žižek), aos leões que o Estado não consegue domar. Por isso, numa importante
passagem, Nietzsche dirá:

É preciso que se tenha de estabelecer o próprio direito, à força: antes disto, não
se faz uso algum [da dialética] (Nietzsche, 2000, p. 23).
320 NAS PELES DA CEBOLA OU DA “SEGUNDA NATUREZA” EM EXCESSO

Na “revolução” de Benjamin chega-se a esse ponto, momento em que o


contínuo se rompe, aniquilando-se a textura da história prévia, a dos vencedores:

À primeira vista, essa posição de Benjamin é radicalmente anti-hegeliana: não é


a dialética a versão mais requintada do evolucionismo, quando as próprias rup-
turas são incluídas no contínuo do progresso, em sua lógica inelutável? Prova-
velmente, o próprio Benjamin vivenciou assim sua postura: ele designou o ponto
de ruptura do contínuo histórico como o da “dialética em suspenso”, como a
intromissão de uma repetição pura que punha entre parênteses o movimento
progressivo da Aufhebung (Žižek 1991, p. 186).

A suspensão do movimento é então o momento-chave do movimento dia-


lético, presente, fortemente, no anti-evolucionismo radical de Hegel: o “nada”, a
negatividade absoluta que impulsiona para diante o movimento dialético (idem).
Em todo caso, direito e violência estão hoje na situação de não mais poder fugir
a essa leitura político-filosófica da história e seu movimento, proporcionado pela
vontade afirmativa de potência como forma de criar uma nova política como arte
do impossível.

4. Conclusão
Interpretar positivamente a violência pura benjaminiana (1921) numa
perspectiva histórica, ou seja, junto com o verdadeiro estado de exceção benjami-
niano (1940) é tarefa de todo intelectual comprometido com as forças destrutivas
da “segunda natureza em excesso”, exatamente para que se possa descascar e
comer essa cebola. É importante não tratar esta violência como ‘inferior’ ou como
fenômeno próprio da história do fascismo. Esta violência é a única forma dos su-
balternos “poderem afrontar a arrogância, a impunidade e o saqueamento corsário
do Estado realizado pelas elites políticas, industriais e financeiras do país, que es-
tão mal acostumadas a serem protegidas pelo Estado à custa da predação daqueles
grupos” (Birman, 2003, p. 284-285).
A estratificação social e política não coloca outra opção a esses mesmos
grupos subalternos, numa sociedade secular hierarquicamente dividida em clas-
ses, além de pegar em armas, assaltar, assassinar. Estes grupos marginalizados
movimentam dialeticamente o direito na prática, exercendo uma forma de contra-
poder face aos dispositivos instituídos pelo poder, mostrando que o ato violento
é um legítimo direito político e está bem longe do conceito de barbárie. Como
enfatizou Adorno (1995), a tentativa de superar a barbárie é primordial para a
sobrevivência da humanidade (p. 155-168). Mas é preciso ficar atento ao discurso
João C. Galvão Jr. 321

oficial que tenta a cada dia, principalmente, através da mídia, confundir as massas
e misturar os conceitos de violência e barbárie. A violência pode ser um sintoma
de barbárie, mas não necessariamente. Diz Adorno:

Em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem cons-


trangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas
mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada a barbá-
rie (ibidem, p. 159).

Não é barbárie a ação dos movimentos sociais, grupos subalternos, nem


mesmo a ação das consideradas “organizações criminosas”, que usam muitas ve-
zes da violência política (até mesmo inconscientemente numa “violência pura”)
baseada em considerações racionais, através de uma razão sensível, ainda que
rompam os limites da legalidade. No entanto, é barbárie, por outro lado, a atuação
mortífera da polícia política na “segunda natureza”, legitimada por um sistema de
justiça fascista.
Em momentos como esse, de acentuado antagonismo social, o que há de
podre na lei é revelado por um excesso, seja numa “democracia” ou num “totali-
tarismo”, onde a política é missionária ou secular. É como se a força performativa
pertinente, em algum nível, a todas as instituições e aos fatos sociais que elas
patrocinam na segunda natureza, começasse a vazar da privada para fora de seu
espaço “normalmente” circunscrito e a dissolver a capacidade da instituição de
fornecer um contexto crível de realidade significativa. Em momentos como esse,
a autoridade revela-se fascista, incapaz de esquecer e incapaz primordialmente de
recalcar a dimensão pulsional da função simbólica, que se expande e transborda
num “estado de exceção schmittiano”.

Referências

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João C. Galvão Jr. é coordenador do Núcleo de Pesquisa Lyriana – NPL. Douto-


rando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense UFF, Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia ICHF, possui mestrado em Direito com ênfase em Ciências Humanas
Multidisciplinar. É um estudioso das idéias lyrianas, principalmente em seus aspectos de Fi-
losofia Política. Autor dos livros “Complexio Oppositorum”, 2009 (no prelo), “O Guardião da
Fé”, 2008, “Dialética da Violência e Relações de Força”, 2007, “A Doutrina Brasileira do HC”,
2005, “Criminologia Dialética”, 2004, além de estar traduzindo a obra “O Leviatã na Teoria do
Estado de Thomas Hobbes” de autoria de Carl Schmitt, texto de 1938. É membro da Comissão
Editorial da revista Trágica – Estudos sobre Nietzsche, que visa divulgar pesquisas referentes às
idéias de Friedrich Nietzsche e suas ressonâncias em manifestações culturais.
Resenhas
324 CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho

Gandini, Erik juntamente com o músico/redator Johan Sö-


Surplus denberg.
Atmo Produtora, Suécia, 2003 O documentário foi produzido com
Revista Glob(AL) Brasil imagens de arquivo de telejornais, jornadas
Rede Universidade Nômade de protesto, discursos de líderes mundiais,
performances de animadores de corporações
Consumismo e Globalização – transnacionais e imagens de trabalhadores. O
faces e fases de uma mesma autor cria uma compilação de imagens reais
moeda? utilizando a linguagem do vídeo clipe com
inserção de loops e repetições de frases e
João Batista de Almeida Sobrinho palavras que, ironicamente e sem excessos,
remetem aos ganchos compulsivos do mun-
O documentário Surplus142 (Suécia, do da propaganda e do marketing capitalista.
2003) do cineasta e produtor italiano Erik O autor utiliza-se da polifonia como recurso
Gandini143, desmistifica, materializa e cria para dar continuidade e armar a teia que com-
um paradoxo na sociedade contemporânea, põe o seu projeto audiovisual.
denunciando as incoerências na política mun- O filme inicia mostrando o G8 de
dial, destacando o posicionamento das corpo- 2001 realizado em Gênova, onde pessoas li-
rações multinacionais e seus respectivos líde- gadas a grupos e ao movimento pela não glo-
res diante da caótica aceleração da produção balização neoliberal e a movimentos sociais,
em massa, do desgovernado avanço tecnoló- em manifestação pacífica são surpreendidas
gico e dos estragos que todo esse processo em e agredidas brutalmente pela policia armada,
excesso vem causando ao meio ambiente. O causando morte, feridos e destruição aleatória.
tema geral do documentário é o processo de Todo esse episódio de imagens chocantes é
consumismo das sociedades pós-industriais, acompanhado por uma narrativa que descreve
no contexto da globalização. Inspirado nas com clareza as mazelas que o planeta na sua
idéias do anarco-primitivista John Zerzan144 totalidade vem absorvendo com a ignorância
e a ganância do homem manipulado pelas
grandes empresas corporativas, que, por sua
142 A melhor aproximação para esta palavra foi vez, dificultam qualquer possibilidade de se
encontrada no livro de Iztván Mészáros, Para
resolver essa tragédia econômica, social e am-
além do Capital, onde utiliza o termo Surplus-
labour como trabalho excedente e não mais-
valia. (pág. 631 do original em inglês, pág. 737
mo. Seus trabalhos focam o processo de origem
em português). Então, esclareço que a referência
e as conseqüências do surgimento da civiliza-
que estarei utilizando nesta resenha para o termo
ção industrial de massa, bem como sua inerente
surplus será como sinônimo de excedente. Ou
opressão, defendendo, assim, formas inspiradas
seja, o consumismo como algo que é excedente.
no modo de vida das sociedades humanas Pré-
143 Erik Gandini é um cineasta italiano, resi- modernas como modelos de sociedades plenas
dente na Suécia. É co-fundador da produtora de liberdade. Algumas de suas críticas mais de-
Atmo. safiadoras se estendem ao processo da domes-
144 John Zerzan (1943) é um anarquista norte- ticação à linguagem, ao pensamento simbólico
americano que se destacou na segunda metade (como matemática e arte) e à conceituação de
da década de 1980. Enquanto filósofo e escritor tempo. Critica o Capital, o Estado, a hierarquia;
é considerado um dos expoentes do Primitivis- toda forma de poder e de opressão.
CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho 325

biental que assola o planeta. O documentário ou injunção contraditória dirigida ao


também alerta para as estatísticas assustado- mundo dos excluídos. Esta injunção
ras quando se divulga que o primeiro mundo pode ser enunciada assim: “1. Todos
representa 20% da população mundial e con- devem ser como nós, ricos, consumis-
tas e felizes; 2. A condição pela qual
some 80% dos recursos naturais, o que nos faz
somos ricos, consumistas e fazemos
acreditar que certamente estamos caminhando
de conta que somos felizes está justa-
para o que Zerzan chama de colapso econômi-
mente no fato de que todos os outros
co mundial. Gandini apresenta uma dualidade
não o sejam” (p. 98).
onipresente, colocando-nos diante das incer-
tezas que nos cercam, posicionando-nos em
Numa primeira tentantiva de sín-
um macro-sistema, de poucas escolhas, ou
tese, deve-se acentuar que, através de uma
quase nenhuma ao mostrar que, no socialis-
temática pouco difundida nos meios de co-
mo de Cuba, os acessos por sua vez restritos
municação de massa, Surplus descarrega uma
alimentam a imaginação, causando ânsia de
gama de informações imagéticas que questio-
consumo principalmente entre os mais jovens,
nam o incansável mundo capitalista, marcado
que sonham em descobrir o mundo das possi-
pela extravagante sociedade de consumo. O
bilidades de consumo. E, por outro lado, nos
documentário apresenta, mas, não aprofunda
mostra como se alimenta o discurso único do
a discussão a respeito das rigorosas normas
neoliberalismo e o seu processo constante de
vigentes em Cuba, mostrando que em nenhum
auto-reprodução nos meios de comunicação,
dos sistemas políticos, sociais e econômicos,
configurando àquilo que alguns autores já de-
reside uma plena liberdade. Neste sentido, o
finiram como a lógica do “discurso único”.
documentário Surplus abre o caminho tam-
Mesclando o recurso de cenas cor-
bém para um melhor entendimento dos pro-
tadas, editadas e sobrepostas com áudios nor-
cessos civilizatórios, responsáveis por toda
mais, editados e sobrepostos, o autor enfoca
essa herança política que determina, interfere
e centra a linearidade do documentário nas
e influencia as relações sociais e econômicas
teorias de John Zerzan. Isto ajuda muito na
do mundo, o que, no seu desenvolvimento
identificação da problemática, mas ainda, está
histórico, acabou gerando uma má distribui-
longe de ser a solução ou um caminho a ser
ção de renda que consequentemente vem im-
seguido. No entanto, serve como uma panorâ-
possibilitando o desenvolvimento sustentável,
mica por seu aspecto cíclico (estrutura do do-
causando dependência e atraso para os países
cumentário) com o fato de que o capitalismo
menos desenvolvidos.
(sistema econômico, político e social que a
Dentro deste tema, é importante
grande maioria da humanidade vive) é cíclico
destacar nesta resenha a existência da Revista
e suas crises engendram saídas contraditórias
Global (América Latina), que foi lançada no
para que este sistema siga se auto-reprodu-
Fórum Social de Porto Alegre no ano de 2003,
zindo a partir de suas próprias externalidades
e que, na realidade, foi o segundo número ex-
(o que sobra de capital é reciclado na bolha
perimental de um projeto de revista (Global
capitalista para que possa ser revendido com
Magazine), lançado pela primeira vez, em
mais lucro e com um novo desenho – design).
versão italiana, no Fórum Social Europeu de
Como já escreveu Franco Berardi (2002),
Florença, em novembro de 2002.
A revista, a partir do seu lançamento,
A ideologia ocidental liberal é basea-
se propôs a cumprir o papel de interlocutor ao
da em uma fantástica dupla ligação
326 CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho

“movimento dos movimentos” (movimentos para Luca Casarini146 e publicada no número


de resistência à globalização liberal e conser- 0 da Revista Glob(al) com o título “Um efeito
vadora), e fazer a crítica à lei dos mais fortes sobre a vida (Da crítica às contra-cúpulas à
(11 de setembro de 2001). Ou, melhor dizen- necessidade de enraizamento social. Refle-
do, resistir à guerra global permanente através xões sobre o segundo ciclo de lutas globais)”.
de uma processo de constituição democrática Nessa entrevista a jornalista Naomi Klein
mundial, contra uma soberania imperial esva- aponta para algumas questões que ainda são
ziada de todo conteúdo democrático, contra o
fundamentalismo religioso e/ou nacionalista.
Isto é, driblando os modelos instituídos, a contra OMC e FMI. Klein também escreve regu-
única política (da multidão) possível é a que larmente para os jornais The Nation, In These
Times, Canada’s The Globe and Mail, This
consegue (sem atalhos subjetivistas, nem con-
Magazine e The Guardian.
cessões pragmáticas) juntar resistência e pro-
dução, ou seja, constituir a não limitação da 146 Luca Casarini – Tutte Bianche – grupo que
se tornou lendário por suas táticas e ações co-
democracia como princípio de uma ilimitada
municativas promovidas nas suas manifestações.
inovação. A revista apontou, no editorial do
Este grupo depois extinto, transformado no gru-
número 0, o fato de que organizar a luta é hoje po Disobedienti. Os Tutte Bianche usaram méto-
em dia organizar a produção e que a Global é dos de ativismo defensvo, antes inéditos, como
uma “revista de movimento para o movimen- enormes proteções corporais e escudos, e faziam
to, articulada nas dinâmicas de resistência em suas carreatas ao som de tecno. Com um visual
rede e produção de redes”. que misturava ficção científica e armadura me-
Na perspectiva deste tema: globaliza- dieval, eles foram, juntamente com Luther Blis-
ção, resistências e consumismo, ainda cabe des- sett, a mais completa tradução do ativismo pop
tacar a entrevista concedida por Naomi Klein145 mitopoético, que ainda hoje influencia vários
grupos, como os britânicos Wombles. Além das
suas proposições políticas encarnadas de forma
145 Naomi Klein – jornalista, escritora e ati- criativa através das suas participações nas ma-
vista canadense. A carreira de escritora de Klein nifestações anti-cúpulas mundiais. Oficialmente,
começou cedo com contribuições ao jornal Luca Casarini, é o porta-voz desse grupo, que
The Varsity na Universidade de Toronto, neste tem a Autonomia Operária como antepassado,
periódico escrevia sobre feminismo. Em 2000 que descende diretamente dos centros sociais
publicou No Logo (em português Sem Logo – A ocupados, mas que nos últimos anos, coincidindo
Tirania das Marcas em Um Planeta Vendido), com a revolta de Seattle, adquiriu uma imagem
que para muitos se transformou em um mani- pós-moderna ao adotar uma nova linguagem e
festo do movimento antiglobalização. O livro inacreditáveis macacões lunares de gaze branca
traz efeitos negativos da cultura consumista e as com escudos de plexiglas e armaduras de espu-
pressões impostas pelas grandes empresas sobre ma. Por certo, os Tute Bianche são apenas uma
seus trabalhadores. Uma das grandes criticadas minoria do multicolorido Povo de Seattle. Mas,
é a Nike, que em suas filiais no sudeste da Ásia, com sua habilidade para administrar a comuni-
segundo Klein, tortura os trabalhadores para que cação, converteram-se, ao mesmo tempo, em sua
estes cumpram as metas da empresa. Klein re- vanguarda de combate e seu símbolo midiático.
cebeu resposta da Nike por isso. Em 2002 pu- E Luca Casirini, paduano, 34 anos, diploma de
blica Fences and Windows (em português Cer- técnico em energia térmica e com a fala colorida
cas e Janelas), uma coleção de matérias escrita da região do Vêneto, é o emissário desse incrível
por ela sobre o movimento antiglobalização no movimento que fascina ao mesmo tempo em que
mundo como movimento zapatista e os protestos inquieta.
CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho 327

a chave para entender os limites do grau de Giuseppe Cocco (2002), em artigo publicado
desenvolvimento global a que chegamos, na revista Lugar Comum, afirma que, (...) “o
Luca Casarini: Depois do período movimento novo que se afirmou em Gênova
dos grandes conflitos iniciado em Seattle, é irreversivelmente globalista (e não mais
passando por Gênova, pode-se dizer que um antiglobalização)” (p. 68)147. E aí, o próprio
primeiro ciclo de lutas globais tenha chegado autor destaca algo que é muito interessante
ao fim? no processo de constituição de espaços demo-
Naomi Klein: Penso que estamos cráticos: enquanto, por exemplo, na cidade de
diante da conclusão de um primeiro ciclo, mas Porto Alegre houve um importante apoio ins-
isto não significa que o movimento tenha aca- titucional local e regional, por outro lado, na
bado. É parte de seu desenvolvimento exau- cidade de Gênova, os territórios constituintes
rir-se e abrir uma nova fase. Acabou o tempo do movimento sofreram o curto-circuito de um
em que se podia estar, simplesmente, do lado enfrentamento direto (violento) com a gestão
de fora das cúpulas, sob o sol, a gritar slogans. constituída do espaço e do tempo no Império
Hoje é necessário coligar-se com as questões (Cocco, op. cit., p. 67). No documentário Sur-
verdadeiras, com as lutas quotidianas, dia plus, durante todo o tempo aparecem cortes
após dia, contra as injustiças. Por exemplo, de imagens que demonstram as condições de
em Sevilha, na ocasião da contra-cúpula (mo- consumo nas cidades e para as pessoas (em-
vimento de resistência à cúpula oficial, n.t.) presários, mas principalmente trabalhadores,
européia sobre os imigrantes, um grupo de inclusive a indústria do entretenimento). E,
cinqüenta trabalhadores imigrados ocupou esta é uma das questões-chave para entender
a universidade depois de terem perdido seus este momento que seguimos vivendo, e que,
contratos temporários de trabalho. Sevilha e a alguns já denominaram muito bem, como a
Espanha estavam em greve e houve um nível era da Baixa Globalização ou da Guerra Glo-
considerável de auto-organização. Isto muda bal Permanente, à grosso modo, ainda é possí-
bastante a percepção e mesmo, creio, a cober- vel falar em desenvolvimento sustentável sem
tura da mídia: porque era fácil demais fazer ao menos mencionar a necessidade de discutir
a paródia das contra-cúpulas. Há uma ten- um consumo sustentável global?
dência, em geral, onde se vê muita gente do Dito de outro modo e, retomando
movimento transferindo-se de um summit a a entrevista concedida por Naomi Klein para
outro, pensando participar de uma espécie de Luca Casarini, este lhe pergunta pontualmen-
“revolução em miniatura”, cujo único objeti- te sobre a perspectiva do movimento dos mo-
vo é trazer mais pessoas para as ruas. E assim, vimentos, assim:
todas as nossas ações tornam-se simbólicas, Luca Casarini: Dissemos que o pri-
enquanto a realidade da qual falamos torna-se meiro ciclo de lutas globais centrava-se nas
cada vez pior. cúpulas e na economia capitalista. Parece que
É interessante, trazer para este de- este segundo ciclo é centrado na guerra glo-
bate um outro autor que pode esclarecer a
natureza da opressão consumista neoliberal e 147 Giuseppe Cocco, cientista político, doutor
a característica do movimento surgido desde em história social pela Universidade de Paris, é
Seattle, passando por Gênova, Florença e por professor titular da Universidade Federal do Rio
que não também, por Porto Alegre, através de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com
das três edições do Fórum Social Mundial. Antonio Negri, o livro “Glob(AL): Biopoder e
Luta em uma América Latina Globalizada”.
328 CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho

bal permanente. Qual é a discussão sobre este zza148 nos apresenta este conceito como uma
tema nos Estados Unidos e no Canadá, depois das categorias mais atraentes da teoria literá-
do 11 de setembro? ria das últimas décadas do século 20. Ou seja,
Naomi Klein: É análoga a que está Bakhtin ao tomar a palavra de empréstimo da
em curso na Europa: estamos falando das co- arte musical, isto é, o efeito obtido pela so-
nexões entre militarismo e economia. Temos breposição de várias linhas melódicas inde-
as novas cercas e esta é a violência: não po- pendentes mas, harmonicamente relacionadas
dem pensar, deste modo, excluir tanta gente nos abre a possibilidade de uma nova leitura
do bem-estar, sem prever uma estratégia si- do réquiem global que temos vivido. Segundo
multânea de contenção. E esta estratégia assu- Cristovão Tezza (op. cit.),
me muitas faces: o arame farpado que circun-
da as fábricas no México e nas Filipinas, para Para uma filosofia do ato, escrita no
manter as organizações sindicais à distância, início da década de 1920 e publicada
com guardas armados, significa a militari- apenas mais de sessenta anos depois,
encontramos um Bakhtin fundamen-
zação do modelo econômico. Pensamos nos
talmente filósofo, esboçando o projeto
arames farpados nas fronteiras, que servem
de uma filosofia moral que suplantas-
para manter os imigrantes fora da fortaleza- se o que ele chamava de cisão “irre-
Europa. Depois do 11 de setembro, contaram parável” entre o mundo da cultura
que uma conspiração havia acabado com e do pensamento e o mundo da vida
o período de paz e de bem-estar: creio que concreta. Para o jovem Bakhtin, su-
este argumento desabou junto com as Torres perar esse abismo significa que o meu
Gêmeas. Não há mais separação entre uma ato de cognição deve ser também a
discussão sobre guerra; devemos ligar estes minha ação, com toda a responsabi-
temas, porque mostram a violência intrínseca lidade concreta dos meus gestos e da
deste modelo econômico. minha vida.
Portanto, no documentário Surplus
e na Edição da Revista Glob(A.L.), existe um Para um maior aprofundamen-
tema transversal que abrange não somente to sobre este tema, que na verdade contém
a questão do consumismo, mas também o duas situações contemporâneas (globalização
processo de globalização conservadora que e consumismo) e que estão, grosso modo,
é fase e, ao mesmo tempo, uma das faces do atravessadas por um intenso processo de co-
desenvolvimento do capitalismo contemporâ- municação e semiotização da vida, deve-se
neo. Dito de outro modo, para pensar a lógica
deste sistema que muitas vezes beira às raias 148 Cristovão Tezza é escritor, autor dos roman-
da esquizofrenia, deve-se fazer um exercício ces O fotógrafo e Breve espaço entre cor e som-
de polifonia e para tanto, não como escapar bra (Rocco), entre outros, é professor de língua
portuguesa na Universidade Federal do Paraná e
da sobreposição de textos e imagens, por ser
doutor em literatura brasileira na USP com a tese
esta também a sua lógica interna. Em ensaio
Entre a prosa e a poesia – Bakhtin e o formalis-
publicado e apresentado, sobre o autor russo mo russo (Rocco). O ensaio citado resume parte
Mikhail Bakhtin (1895-1975) e o livro deste do texto A polifonia como uma categoria ética,
sobre Dostoiévski (literato russo), publicado apresentado no X Congresso Internacional sobre
pela primeira vez em 1929, Cristóvão Te- Mikhail Bakhtin, em Gdánsk, Polônia, julho de
2001. http://revistacult.uol.com.br/especial_po-
lifonia.htm.
CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho 329

não somente assistir ao documentário com a competências, de amizade e de generosidade


perspectiva aberta, mas também ler a revista que atualmente é desperdiçado em todas as
Glob(A.L.) como uma ferramenta a mais para partes do mundo, desviado, pervertido (Be-
compreender como o processo de aumento rardi, op. cit., p. 99).
da desigualdade econômica e social fez com Detalhe - desde o apocalipse do 11
que a violência explodisse em escalas as- de setembro, já se passaram sete anos, e, des-
sustadoras no mundo todo. Se por um lado de o lançamento do documentário Surplus e
a informação se tornou um mercado rentável da Revista Glob(A.L.), pelo cinco anos de ex-
e útil durante o declínio capitalista; por ou- perimento. Ou o mundo mudou muito, ou não
tro lado, com a potencialização do fenômeno mudamos tanto assim.
de domesticação das mentes, o surgimento
da síndrome do pânico com as suas variantes Referências
específicas como por exemplo: terror – a pes-
soa se isola para se proteger com medo de que GANDINI, Erik. Surplus. Suécia, 2003. Pro-
algo ruim possa acontecer repentinamente; e, dutora Atmo.
isolamento – doméstico e psicológico, gerado GLOBAL América Latina/Revista Glob(A.L.)
pelo medo de se expor aos perigos da rua, ao Brasil. Número (0), janeiro de 2003. Editorial,
contato com o mundo externo pelo risco de p. 2 e Entrevista com Naomi Klein, p. 28-29.
contágio de doenças, violência, acidentes e COCCO, Giuseppe. De Porto Alegre a Gê-
catástrofes; levou a humanidade a um intenso nova, a cidade na globalização. In: Revista
processo de interiorização do sistema de con- Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura
trole (panóptico) de uma forma perversa, pois e Democracia n 15-16, set 2001-abr 2002, p.
ele está centrado no caos de uma sociedade 68.
esvaziada de sentido. Não querendo ser apo-
BERARDI, Franco. Transformar a guerra
logético, mas deixando uma outra possibili-
globalista em seção ativa da inteligência. In:
dade de leitura e de ação, reitero que vivemos
Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura
numa “era adolescente” cujo ideal de justiça
e Democracia nº 15-16, setembro 2001-abril
é a vingança quente, ou numa “Era do Vazio”
cujo ideal de verdade é aquilo que se pode 2002. p. 98.
testemunhar com uma câmera de TV – de
preferência sensacionalista. No entanto, exa-
tamente aí existe um campo de possibilidades
que devemos experimentar como já foi dito
por Franco Berardi:
Os contestadores anticapitalistas
que nós somos estão dispensados da faina
de combater este sistema. O grosso de nos-
so trabalho está sendo feito por Bush e seus
comilitantes. Deixemos que trabalhem para
a destruição de sua própria civilização. Nós
devemos pensar, ao contrário, em salvar o que
pode ser salvo. E o salvável é a inteligência
coletiva, o enorme patrimônio de saber, de
330 UM NOVO IMPERIALISMO? / Marina Bueno

HARVEY, David. não foi possível impedir a guerra. Mesmo


O Novo Imperialismo com toda oposição, a ação militar no Iraque
2. ed. São Paulo: Loyola, 2005 foi iniciada sob o comando dos EUA. A partir
de tal análise, a atual condição do capitalismo
Um novo Imperialismo? global é examinada, sob o pressuposto de que
a chamada “nova ordem” tem por base o que
Marina Bueno Harvey chama de um “novo imperialismo”.
Para explicar tal afirmação, o autor
Há uma vasta literatura que discute faz uma contextualização partindo do antigo
as transformações ocorridas no cenário con- imperialismo exercido pelas grandes potên-
temporâneo – da acumulação capitalista, do cias européias, em sua histórica luta de base
poder político em escala mundial, do traba- territorial. Assim, avalia que o declínio do im-
lho e das atuais formas de resistência. Neste pério inglês, iniciado no segundo pós-guerra,
sentido, autores como David Harvey, Michael cedeu o poder global aos Estados Unidos. A
Hardt, Antônio Negri, entre outros, trazem à partir daí, começou a se configurar uma nova
tona conceitos e categorias históricas que, re- forma de imperialismo. O que o imperialismo
visitados, propõem difentes análises da atual atual mostra de novo é, pois, que “nele predo-
lógica do capitalismo contemporâneo. mina tipicamente a lógica capitalista, embora
Vivemos em tempos de um Novo haja momentos em que a lógica territorial ve-
Imperialismo ou do Império? Essa é a pergun- nha para o primeiro plano” (p. 36).
ta que David Harvey se propõe a responder Os EUA saíram da II Guerra Mun-
com o livro O Novo Imperialismo, publicado dial como a potência dominante, líder da tec-
pela primeira vez no Brasil em 2003, no bojo nologia e da produção global, além do aparato
de uma vasta discussão sobre a atual condição militar superior a todos os outros países. Re-
do capitalismo global. Como indicado pelo ferenciando-se em análises tradicionais sobre
próprio autor, O novo imperialismo parte de o imperialismo, sobretudo o norte-americano,
uma análise do cenário político interno e ex- Harvey ressalta como marco importante para
terno dos EUA, no intuito de demonstrar a ex- o reconhecimento de uma nova ordem, a pu-
pansão e domínio do poder norte-americano blicação de Império, de Hardt e Negri em
sobre o resto do mundo. Sua base da argu- 2000. Tais autores acrescentaram que a con-
mentação parte da explicitação das manifesta- figuração atual do império exibe novas quali-
ções que ocorreram como resistência popular dades. O império seria, pois, uma nova ordem
à possibilidade dos Estados Unidos e a Ingla- global que, além de um irreversível processo
terra moverem uma guerra contra o Iraque. de globalização, inaugurou uma nova estrutu-
Harvey faz um esforço no sentido de identi- ra de comando, uma nova forma de suprema-
ficar as forças motrizes presentes no entorno cia – onde a soberania é exercida por uma sé-
de tais eventos, afirmando que, mesmo com rie de organismos nacionais e supranacionais,
grande mobilização popular – num momento que se unem por uma regra única. Apesar de
em que a opinião pública global se viu dotada criticarem tal abordagem, muitos autores da
de uma espécie de voz coletiva – e uma atitude esquerda começaram a reconhecer que o pro-
favorável do Conselho de Segurança da ONU cesso de globalização inaugurou uma conjun-
à resolução diplomática das ameaças que o tura inédita, que pressupunha um novo quadro
governo “despótico” do Iraque representava, de análise. Harvey aceita tal fato, porém, ao
UM NOVO IMPERIALISMO? / Marina Bueno 331

contrário do que defendem Hardt e Negri, açada como agora. Porém, é exatamente este
afirma que, com base em tais mudanças, o im- o ponto mais frágil da sua argumentação no
perialismo não estaria chegando ao seu fim, livro. Os atuais movimentos de resistência são
mas sim assumindo uma feição diferente. vistos com grande pessimismo pelo autor, que
Citando eventos ocorridos nos EUA afirma que são movimentos que se alimentam
como a grande competição econômica, fraudes de revolta contra certas condições, mas, por
e corrupção política, escândalos, rumores de serem fragmentados e deixarem de lado a “fi-
assassinatos tramados na Casa Branca, tragé- nalidade do domínio do aparelho do Estado”,
dias de Oklahoma e Columbine, etc., Harvey permanecem com alvos e objetivos difusos.
argumenta que, ao introduzir uma inclinação Neste sentido, as possibilidades de constru-
à violência e à oposição interna, de forma que ção de alternativas partem de um saudosismo
a sociedade aparentava estar se fragmentando do tempo em que a resistência acontecia de
e perdendo coesão com rapidez, os EUA rea- forma institucionalizada, por meio de sindi-
firmaram seu propósito nacional – de acabar catos e partidos políticos. Ainda no que se
com o terrorismo – evocando, para isso, uma refere às tendências contra-hegemônicas, o
grande solidariedade nacional direcionada à autor apresenta uma análise que aponta muito
imposição da ordem, o que se efetivou com o mais para os limites do que para as potencia-
11 de setembro. Tais eventos permitiram aos lidades abertas por essas tendências. Harvey
EUA acumular mais poder, o que, ao mesmo afirma que as lutas apresentam uma tendência
tempo, se disfarçava por detrás de um “uni- multifacetada, ao contrário, segundo ele, do
versalismo abstrato”. “estandarte homogeneizante” do conceito de
Segundo Harvey este novo imperia- multidão defendido por Negri e Hardt no livro
lismo se afirma não apenas a partir de uma Império. Trata-se, evidentemente, de uma lei-
forma de acumulação puramente econômica tura completamente deturpada de tal conceito,
– o que ele chamou de opressão via capital que aponta justamente para a multiplicidade
– mas, sobretudo, por meio de uma acumu- das lutas e/ou das formas de resistência.
lação – via expoliação – que, chamada por Os acontecimentos em curso, de cri-
Marx de primitiva, encontra-se ainda presente se financeira em escala global, corroboram a
nos dias atuais, renovando suas antigas práti- tese de que a nova ordem capitalista não pode
cas, através, por exemplo, da privatização dos ser ditada por uma única potência. O poder,
recursos e substituição da agropecuária fami- como afirmam Negri e Hardt, não tem limi-
liar pelo agro-negócio. Além disso, o novo tes para ser exercido, muito menos fronteiras
imperialismo também se afirma por meio da nacionais, como no imperialismo. Por isto, a
“coerção consentida”, tanto no plano interno, impressão que fica ao leitor – além de uma
pela sociedade norte-americana, quanto no sensação catastrófica em relação às possibili-
externo, com base na defesa dos princípios de dades de resistência a esta ordem – é que Har-
liberdade e democracia. vey parece perder o contato com a realidade.
Por outro lado, Harvey aponta que
se evidenciam cada vez mais resistências
contra essa hegemonia, como é o caso dos Marina Bueno é assistente social
movimentos anti-globalização, que se co- da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
locam contra o domínio norte americano: a e mestranda da Escola de Serviço Social da
hegemonia dos EUA nunca esteve tão ame- UFRJ.
Resumos
RESUMOS 335

Os novos manifestos sobre as cotas


Alexandre do Nascimento
Resumo: O debate sobre as cotas raciais no Brasil parece longe de uma conclusão. A
proposta de política de cotas raciais ou reserva de vagas para negros e indígenas ainda
é muito polêmica. Em 2006, dois manifestos à Sociedade e ao Congresso Nacional,
um contra e outra favorável às cotas raciais, abriram um intenso debate. Em 2008,
dois novos manifestos, novamente um contra e outro favorável às cotas produziram
um novo episódio nesse debate, desta vez com a discussão sobre a constitucionalidade
das cotas. Neste texto, buscamos discutir os diferentes posicionamentos sobre as cotas
raciais presentes nos manifestos de 2008.
Palavras-chave: política de cotas, ações afirmativas, igualdade racial, movimento
negro, manifestos

Abstract: The debate surrounding racial quotas in Brazil seems far from a conclusion.
The proposal of implementing a system of quotas of vacancies in higher education
reserved for black and indian students is still very controversial. In 2006, two mani-
festos were issued: one addressed to Society and the other to National Congress, the
former against and the latter favorable to the measure. An intense debate followed
and, in 2008, another two new manifestos, once again, pro and con the establishment
of racial quotas produced a new episode, this time initiating a discussion over the
constitutionality of the measure. This paper aims to discuss the different standpoints
present in these two manifestos.
Key words: quota policies, affirmative actions, racial equality, black movement, ma-
nifestos

Vida no e contra o trabalho: afetos, crítica feminista e


política pós-fordista
Kathi Weeks
Resumo: As teóricas do feminismo vêm há muito se interessando pelas questões do
trabalho imaterial e afetivo, mesmo que estes termos sejam uma invenção recente.
As discussões contemporâneas acerca dos conceitos de trabalho imaterial e trabalho
afetivo poderiam ser enriquecidas com a melhor compreensão destas linhagens. Neste
sentido, este artigo focaliza dois projetos pioneiros do feminismo: o esforço do femi-
nismo socialista no sentido de agregar uma abordagem crítica do trabalho reprodutivo
à análise marxista do trabalho produtivo; e as contribuições de Arlie Hochschild com
relação aos trabalhos emocionais dos assim chamados trabalhadores de “colarinho
rosa” do setor de serviços aos trabalhos de C.W. Mills acerca do trabalho imaterial de
“colarinho branco”. Ao enfocar cada uma dessas intervenções do feminismo, podemos
entender melhor as especificidades do trabalho no modo imaterial e as dificuldades
336 RESUMOS

colocadas por esta teorização. As duas tradições são extremamente instrutivas, tanto
no que diz respeito aos seus avanços quanto aos insucessos de suas análises. A partir
do argumento que ambas estratégias críticas não se sustentam diante das novas condi-
ções da produção no pós-fordismo, o artigo conclui apresentando um breve exercício
de imaginar uma estratégia alternativa (e imanentista) de intervenção crítica/política,
que poderia ser útil tanto para abrir uma outra perspectiva quanto para emoldurar uma
resposta política diferente aos regimes de trabalho pós-fordistas.
Palavras-chave: trabalho imaterial, afetos, pós-fordismo

Abstract: Feminist theorists have long been interested in immaterial and affective
labor, even if the terms themselves are a more recent invention. Contemporary dis-
cussions of the concepts of immaterial and affective labor could be enriched by a
better understanding of these lineages. Towards that end, this paper focuses on two
pioneering feminist projects: the socialist feminist effort to add a critical account of
reproductive labor to a Marxist analysis of productive labor and Arlie Hochschild’s
addition of the emotional labors of pink collar service workers to the critical analyses
of white collar immaterial labor exemplified by the work of C.W. Mills. By focusing
on what each of these feminist interventions contributes one can better understand the
specificity of labor in the immaterial mode and the difficulties posed by its theoriza-
tion. The two traditions are instructive for both the achievements and the failures of
their analyses. Arguing that both of these critical strategies prove increasingly untena-
ble under the conditions of post-Fordist production, the paper concludes with a brief
attempt to imagine the terms of an alternative immanent strategy of critical/political
intervention, one that might serve to open another angle of vision on, and frame a
different kind of political response to, post-Fordist regimes of work.
Key words: immaterial labor, affects, post-Fordism

Os direitos humanos no contexto da globalização


Joaquín Herrera Flores
Resumo: O texto analisa o debate sobre os fundamentos teóricos, políticos e culturais
dos direitos humanos, apontando as transformações ocorridas nesse conceito a partir
da emergência do mundo globalizado. Criticando tanto as concepções essencialistas,
como as formalistas, o autor buscar compreender os direitos humanos como um con-
junto de diferentes processos sociais, econômicos, normativos, políticos e culturais,
apoiando-se no conceito de conatus inaugurado pelo pensamento de Espinosa.
Palavras-chave: Direitos humanos, formalismo jurídico, direito natural, globaliza-
ção, lutas sociais
RESUMOS 337

Abstract: The paper analyses the debate about the theorical, political and cultural
basis of human rights, stressing the transformations occurred in this concept from the
emergency of globalized world. Criticizing both essencialists and formalists ideas,
the author aims to understand human rights as a set of social, economical, normati-
ve, political and cultural processes, based on the concept of conatus, brought up by
Spinoza`s thought.
Key words: Human rights, legal formalism, moral rights, globalization, social stru-
ggles

Análise da nova constituição política do Estado


Raúl Prada Alcoreza
Resumo: A caracterização do Estado faz uma descrição do povo em sua diversidade e
multiplicidade, identificando sua composição mal combinada enquanto nações, clas-
ses e estratos sociais, dispersos nas cidades e no campo. Tal caracterização passa a
pressupor uma forma de governo democrática e participativa, além de se abrir a múlti-
plas formas de representação, direta, universal e comunitária. Por outro lado, combina
valores culturais dos povos e nações originárias com princípios liberais. Esta concep-
ção composta da caracterização do Estado acolhe a evolução constitucional liberal e
se enriquece com o aporte indígena às novas formas constitucionais e políticas. Neste
sentido, o autor analisa a nova constituição política do Estado boliviano entendendo
as nações e povos indígenas originários não apenas como populações, culturas e sa-
beres plenamente reconhecidos, mas também desde a perspectiva dos direitos. Não
se trata somente da declaração de direitos coletivos, mas de um capítulo específico,
dedicado aos direitos das Nações e Povos Indígenas Originários Campesinos. Nações
e povos indígenas fazem, assim, parte da estrutura dos direitos constitucionais, são
parte estruturante das estruturas da nova constituição.
Palavras-chave: diversidade, multiplicidade, participação democrática, nações e po-
vos indígenas originários

Abstract: The characterization of the State includes a description of its people in


terms of diversity and multiplicity, underlying the randomic composition of nations,
classes and social extracts, dispersed in the cities and in the field. Such a characteri-
zation presupposes democratic and participative forms of government, and also opens
to multiple forms of representation: direct, universal and communitary. On the other
hand, it combines cultural values of the originary nations to the liberal guidelines.
This conception also includes the liberal constitutional developments and is enriched
by the indians perspective of new forms of constitution and politics. In this sense,
the author analizes the new political constitution of the Bolivian State, addressing
originary nations and indians not only as widely recognized populations, cultures and
338 RESUMOS

knowledges, but from the perspective of rights as well. It goes further than a mere
declaration of collective rights, but implies a specific chapter dedicated to the rights of
the Nations and Peoples of originary indians. Indian Nations and Peoples are thus part
of the structure of constitutional rights themselves, a structuring part of the building
of the new constitution.
Key words: diversity, multiplicity, democratic participation, originary indian nations
and peoples

Mídia, Subjetividade e Poder: Construindo os Cidadãos-


Consumidores do Novo Milênio
João Freire Filho
Resumo: Neste artigo, examino o uso de três emblemas geracionais amplamente
adotados pela imprensa brasileira: “Geração Digital”, “Geração Vaidade” e “Geração
Perigo”. Meu objetivo é demonstrar como os retratos midiáticos da “nova geração”
exaltam discursivamente posturas e práticas juvenis que prefigurariam ou sintetiza-
riam um padrão exemplar de subjetividade, afinado com premissas e interesses do
atual estágio do capitalismo.
Palavras-chave: Juventude, Geração, Imprensa, Subjetividade, Neoliberalismo

Abstract: In this article I will examine the use of three generational labels widely
adopted by the Brazilian press: “Digital Generation”, “Vanity Generation” and “At-
Risk Generation”. My objective is to demonstrate how media portrayals of the “new
generation” discursively celebrate youth stances and practices, which would prefigure
or synthesize an exemplarily subjective pattern tuned with assumptions and interests
of the present stage of capitalism.
Key words: Youth, Generation, Press, Subjectivity, Neoliberalism

Resistências criativas: os coletivos artísticos e ativistas no


Brasil
Henrique Mazetti
Resumo: Este trabalho discute a atuação dos coletivos de arte e ativismo no Brasil sob
o prisma da recente valorização da criatividade e do afeto entre as práticas de resistên-
cia contemporâneas. Inicialmente, são feitas algumas observações teóricas sobre o po-
tencial crítico de modalidades comunicativas, colaborativas e expressivas baseadas na
afetividade e na imaginação. A seguir, discute-se a heterogeneidade do fenômeno do
coletivismo artístico e ativista no país. Por fim, são apresentados dois breves estudos
RESUMOS 339

de caso sobre o coletivo pernambucano Media Sana, que trabalha com apresentações
audiovisuais em que problematiza a relação entre mídia e cidadania; e o coletivo Poro,
sediado em Belo Horizonte, que atua, principalmente, com intervenções artísticas em
espaços públicos, visando criticar a invasão publicitária no cotidiano.
Palavras-chave: Coletivos de arte e ativismo; resistência; criatividade

Abstract: This paper discusses art and activist collectives’ actions in light of the re-
cent appreciation of creativity and affection between contemporary practices of re-
sistance. Initially, some theoretical observations are made on the critical potential of
communicative, collaborative and expressive activities based on affection and ima-
gination. Then, it problematizes the heterogeneity of the phenomenon of artistic and
activist collectives in the country. Finally, two brief case studies are presented on the
collective from Pernambuco, Media Sana, that works with audiovisual presentations
in which is questioned the relationship between media and citizenship, and Poro, ba-
sed in Belo Horizonte, which operates with artistic interventions in public spaces,
designed to criticize the advertising invasion in the day-to-day life.
Key words: Art and activism collectives, resistance, creativity

Guerra Civil Imaterial: Protótipos de Conflito dentro do


Capitalismo Cognitivo
Matteo Pasquinelli
Resumo: Matteo Pasquinelli tenta delinear algo que falta no debate sobre o chamado
trabalho criativo, especialmente em relação à dimensão coletiva da criação de valor
e ao espaço político da competição cognitiva. Uma vez que a “fábrica social” produz
a maior parte do valor atualmente, o cenário de uma “guerra civil imaterial” é intro-
duzido para mostrar formas de conflitos no interior do capitalismo cognitivo que não
possuem composição clara de classe e que compartilham o mesmo espaço de mídia.
Palavras-chave: indústria criativa, capitalismo cognitivo, trabalho imaterial

Abstract: Matteo Pasquinelli attempts to frame a missing part of the debate surroun-
ding the so called creative labor, especially on the collective dimension of value cre-
ation and on the political space of cognitive competition. Whilst the “social factory”
produces the greatest portion of value today, a scenario of an “immaterial civil war” is
introduced to show forms of conflicts within cognitive capitalism which have no clear
class composition and share the same media space.
Key words: creative industry, cognitive capitalism, immaterial labor
340 RESUMOS

Midialivristas, uni-vos!
Adriano Belisário, Gustavo Barreto, Leandro Uchoas, Ivana Bentes e
Oona Castro
Resumo: Mídia Livre. Do quê? Livre de ouvintes passivos. Livre para o exercício
da comunicação participativa. Livre do medo de arriscar. Livre para novas gestões
da propriedade intelectual. Livre do combate ao compartilhamento de informações.
Livre para transformar.
Palavras-chave: democratização da comunicação, novas tecnologias, políticas públi-
cas, redes, midiativismo

Abstract: Free media. Free from what? Free from passive listeners. Free to the exer-
cise of participative communication. Free from the fear of taking risks. Free to new
forms of managing intellectual property. Free from the combat to information sharing.
Free to transform.
Key words: democratization of communication, new technologies, public policies,
networks, mediactivism

Cidade e Metrópole: a lição da barragem


Gerardo Silva
Resumo: Esse artigo trata da tensão entre os conceitos de cidade e metrópole cons-
titutiva do urbanismo moderno e da cidade contemporânea, através da obra de Le
Corbusier. O seu livro Urbanismo, publicado pela primeira vez na França em 1925,
é um dos principais registros da emergência da preocupações urbanas vinculadas à
industrialização nos moldes fordistas. Na Cidade Contemporânea e no Plano Voisin,
principais propostas que visam transformar radicalmente a cidade de Paris, encon-
tramos os elementos para repensar o sentido (conservador) dessa transformação e
seus determinantes históricos associados à emergência da metrópole como força
produtiva.
Palavras-chave: cidade e metrópole contemporâneas, urbanismo, Le Corbusier

Abstract: This paper addresses the tension surrounding the concepts of city and me-
tropolis which inaugurates both the modern urbanism and the postulate of a contem-
porary city as in Le Corbusier's work. His book Urbanism, first appeared in France, in
1925, is one of the main registers of the emergence of an urban concern with fordist
processes of industrialization. In Contemporary City and Plan Voisin, major proposals
aiming to radically transform Paris, we find the elements to rethink the (originally
conservative) meanings of this transformation, as well as the historical determinations
associated to the rising of the metropolis as a productive power.
Key words: contemporary city and metropolis, urbanism, Le Corbusier
RESUMOS 341

Potências do samba, clichês do samba – linhas de fuga e


capturas na cidade do Rio de Janeiro
Rodrigo Guéron
Resumo: O samba é, ao mesmo tempo, uma das mais potentes expressões artísticas e
um dos maiores clichês da cidade do Rio de Janeiro. Clichê de “identidade nacional”,
do povo e do Estado-Nação. Mas, antes de ser capturado e tornado impotente num
clichê, o samba é uma linha de fuga, ou melhor, diversas linhas de fuga, de acordo
com as diferentes formas em que ele se reinventou ao longo do século XX. O samba
ajudou a desenhar o mapa da cidade do Rio de Janeiro com suas ocupações e divisões
territoriais.
Palavras-chave: samba, clichê, linha de fuga, expressões culturais, divisões e ocupa-
ções territoriais

Abstract: Brazilian samba is, at the same time, one of the most potent artistic expres-
sions and a big “cliché” of Rio de Janeiro. Cliché of a national identity, the people,
and the Nation-State. However, before being captured and becoming impotent and
reduced to a cliché, samba is being proposed as a line of flight, or indeed, many lines
of flight, according to the different lines through which it reinvented itself throughout
the twentieth century. Samba has helped to draw the map of the city of Rio de Janeiro,
with its occupations and territorial divisions.
Key words: samba, cliché, line of flight, cultural expressions, territorial occupations
and divisions

Trabalho – operação artística: expulsões


Cristina Ribas
Resumo: O objetivo deste texto é problematizar teoricamente uma tentativa de apro-
ximação via artes visuais entre a prática da arte e uma noção de trabalho. O trabalho
ao qual me refiro oscila entre o conceito de trabalho autônomo e o receio de enquadrar
a prática da arte em uma força-trabalho (alienação). O trabalho expulsa o valor artísti-
co? Por que a provocação desta elipse pode extrair o que há de artístico em uma ação
para o sensível, e o que isto significa nos termos de um debate da arte na atualidade?
O posicionamento emerge como luta política da operação artística em suas potencia-
lidades conectivas no corpo social. Também analiso a suposição de uma simultânea
supressão e realização da arte, tal como foi apresentado pelos Situacionistas.
Palavras-chave: práticas de arte, trabalho, operações artísticas

Abstract: The purpose of this paper is to theorethically discuss an attempt of appro-


ximation between the praxis of arts and a notion of labor. The labor I refer to oscilates
between a concept of autonomous labor on the one side, and the concern of the praxis
342 RESUMOS

being transformed into a work-force (estrangement). Does labor expel the artistic va-
lue? Why could this elipse extract an ‘artistic’ concern from an action oriented to the
sensible? What are the implications of these questions in contemporary arts debate?
My positioning emerges as a political struggle of the artistic praxis in its pontencial
connectivities with society. Another issue of analysis is the possibility of a simulta-
neous supression and realization of art, as it has been addressed by the Situationists
movement.
Key words: practices of art, labor, artistic operations

Cidades, cegueira e hospitalidade


Márcia de N.S. Ferran
Resumo: A visão é pouco discutida enquanto meio de controle, gestão da sociedade
e freio às pulsões mais anímicas do ser humano. No livro Ensaio sobre a cegueira de
José Saramago o autor conduz seus personagens a uma situação limite (borderline),
onde a função de ver significa não apenas ser capaz de guiar, decidir e julgar, mas
também de ter o triste privilégio de assistir ao colapso da civilidade. O colapso ético
e a calamidade urbana vêm em par. Em outra seção do artigo, apresentamos Auber-
villiers, a cidade-subúrbio ao norte de Paris, com seus blocos de condomínios popu-
lares e vestígios de chaminés que, em 2005, ficou ainda um pouco mais estigmatizada
pela ligação com os episódios de incêndios e rebeliões, resultantes de alarmantes ta-
xas de desemprego entre a população descendente de imigrantes. Este artigo trata das
possíveis conexões entre a cidade em colapso imaginada em Ensaio sobre a cegueira
e Aubervilliers. Usando a cidade francesa como pano de fundo, confrontamos a ordem
fantástica, a cegueira branca como Saramago a chama, com a problemática da ética da
hospitalidade pensada por Emmanuel Lévinas, para quem o sentido da visão é, antes
de mais nada, a possibilidade de se encontrar a face do outro, e é neste encontro que
reside o limiar entre a paz e a guerra.
Palavras-chave: cidade, hospitalidade, cegueira

Abstract: Sight is a subject that is little debated as a means of control, of society's ma-
nagement and as a brake to the most essential pulsations of the human being. In José
Saramago´s Assay on the Blindness the author leads his characters to a limit situation
(borderline) in which the function of seeing means not only being able to guide, de-
cide, and judge, but also to have the sad privilege of watching the collapse of civility.
The ethical collapse and the urban calamity come in tandem. In another section of
this article, we present Aubervilliers, a city-suburb in Northern Paris, full of blocks of
social housing buildings and vestiges of chimneys, which in 2005 gained a little more
of stigma in the headlines worldwide concerning the episodes of fires and rebellions,
as a result of alarming unemployment rates amongst immigrants' descendants. This
RESUMOS 343

text deals with the possible connections between the collapsing city imagined in As-
say on Blindness and Aubevilliers. Using the French city as a background, we con-
front the fantastic order, the white blindness as Saramago names it, to the problematic
hospitality ethics raised by Emmanuel Lévinas, to whom the sense of sight is, in the
first place, the possibility of one's meeting with the face of the other, and it is in this
encounter that lies the threshold between peace and war.
Key words: city, hospitality, blindness

Dispositivo metrópole. A multidão e a metrópole


Antonio Negri
Resumo: Este artigo é composto por um conjunto de notas sobre a relação produtiva
entre a multidão e a metrópole, no âmbito do Império, tomando como ponto focal de
partida as lutas dos operários sociais nos territorios, isto é, fora da fábrica e do regime
fabril. A "greve metropolitana" e/ou a "greve generalizada" são apresentadas como
poderosas estratégias de luta que devem ser mobilizadas contra a lógica da guerra
instaurada nas cidades e contra as novas formas de exploração. Aborda antecipações
teóricas e históricas desse movimento, dialogando com autores como Rem Koolhaas,
Saskia Sassen e Mike Davis, entre outros, e nos convoca à tarefa de reconstruir a me-
trópole e o sentido do comum.
Palavras-chave: Metrópole, Cidades Globais, Império, Guerra, Territórios, Trabalho
da Multidão, “Greve metropolitana”

Abstract: This paper is composed of a set of notes drawn on the productive rela-
tionship between the multitude and the metropolis, in the range of the Empire, using
as a focal starting point the social workers struggles within the territories, that is, out-
side the factory regime. The “metropolitan strike” and/or the “generalized strike” are
presented as powerful strategies of fight which must be mobilized against the logics of
the war instaurated in the cities and against the renovating forms of exploration. It ap-
proaches theorethical and historical anticipations of this movement, dialoguing with
authors such as Rem Koolhaas, Saskia Sassen and Mike Davis, among others, and
summons us to the task of rebuilding the metropolis and the sense of the common.
Key words: Metropolis, Global Cities, Empire, War, Territories, Labor of the Multi-
tude, “Metropolitan strike”

A potência da hibridação: Édouard Glissant e a creolização


Leonora Corsini

Resumo: A proposta deste texto é fazer uma reflexão em torno da idéia da potência
das culturas híbridas e da creolização, procurando valorizar as dimensões de impre-
344 RESUMOS

visibilidade e desmedida, conceitos importantes tanto nas teorizações dos filósofos e


cientistas políticos Antonio Negri e Michael Hardt, quanto nas de Édouard Glissant,
poeta, etnólogo, linguista, romancista e filósofo caribenho, que constrói um pensa-
mento bastante original em torno da creolização – uma mestiçagem sempre imprevi-
sível e que está sendo aqui chamada de monstruosa. O sentido dado à creolização é o
de potência disruptiva que resiste, desorganiza e faz romper os códigos e hierarquias
do poder, daí sua dimensão politicamente monstruosa.
Palavras-chave: creolização, mestiçagem, monstruosidade na política

Abstract: The purpose of this paper is to discuss the potency of hybrid cultures and
creolization, aiming to highlight the dimensions of unpredictability and incommensu-
rability, which are central concepts within the theorizations of philosophers and politi-
cal scientists Antonio Negri and Michael Hardt, as well as in the writings of caribbean
poet and philosopher Édouard Glissant, who develops a very original thinking around
creolization – an ever unforeseen and unpredictable miscegenation which is being
qualified here as “monstrous”. The meaning ascribed to creolization is thus that of a
resisting disruptive power which disorganizes and gives rise to the rupture of codes
and hierarchies of power, from which emerges its dimension of political monstrosity.
Key words: creolization, miscegenation, political monstrosity

Expressões do monstruoso precariado urbano: forma M,


multiformances, informe
Barbara Szaniecki
Resumo: Este artigo apresenta expressões de um precariado urbano entendido como
uma classe absolutamente heterogênea em luta por novos modos de viver nas metró-
poles contemporâneas. Estas expressões são tidas como monstruosas pois excessivas:
não “cabem” nas formas modernas, sejam elas políticas, sejam estéticas. Estas expres-
sões “trabalham as formas”, segundo expressão de Didi-Huberman sobre o trabalho
de Georges Bataillle, constituindo algo como um “informe”.
Palavras-chave: precariado, forma monstruosa, multiformances, informe

Abstract: This text presents expressions of a urban precariat understood as an abso-


lutely heterogeneous class fighting for new ways of living in the contemporaneous
metropolis. These expressions are monstrous because of their excessiveness: they
don’t “fit” in modern forms, either political or aesthetical. These expressions “work
the forms”, as Didi-Huberman says about the work of Georges Bataille, and constitute
something like an “inform”.
Key words: precariat, monstrous, multiformances, inform
RESUMOS 345

Artaud, momo ou monstro?


Ana Kiffer
Resumo: o presente texto aborda, na trajetória do poeta Antonin Artaud, as figurações
do momo e do monstro, sugerindo a construção de uma monstro-grafia enquanto saída
possível para o combate que se estabeleceu entre o poeta, sua escrita e os infortúnios
da vividos pela sociedade européia na primeira metade do século XX.
Palavras-chave: momo, monstro, monstro-grafia, crueldade

Abstract: this text will present two features (Momus and monster) of poet Antonin
Artaud's work. It will suggest the construction of a monster-writing as a possible so-
lution to the battle established between the poet, his writing and the European society
misfortunes during the 20th century's first half.
Key words: Momus, monster, monster-spelling, cruelty

O corpo e o devir-monstro
Carlos Augusto Peixoto Junior
Resumo: Este artigo tem como objetivo geral discutir algumas relações entre o corpo
e o fenômeno do monstro, teratológico ou ficcional, procurando avaliar os abalos que
a figura monstruosa provoca nos modelos de apreensão da subjetividade construídos
prioritariamente a partir dos referenciais da representação e da identidade. Em termos
mais específicos, são discutidas diferentes possibilidades de subversão suscitadas pela
monstruosidade em suas relações com o corpo, tais como as que ocorrem nos campos
da ciência, da cultura, dos estudos de gênero e de uma política de subjetivação, des-
tacadas por diferentes autores do pensamento pós-metafísico contemporâneo. O que
se procura ressaltar em todas essas vertentes é que, ao afirmar sua diferença radical, a
figura do monstro abre novas vias de acesso ao devir e à singularidade.
Palavras-chave: corpo, monstro, singularidade

Abstract: This paper has as its general aim to argue about some relations between
the body and the phenomenon of the monster, teratological or fictional, trying to eva-
luate the shocks that the monstrous figure provokes in the models of apprehension
of subjectivity mainly constructed on the references of representation and identity.
In more specific terms, the paper discusses different possibilities of subversion rai-
sed by monstrosity in its relations with the body, such as the ones that occur in the
fields of science, culture, gender studies and the politics of subjectivation, detached by
different authors of contemporary post-metaphysical thought. In all these versants it
tries to emphasize that, when affirming its radical difference, the figure of the monster
opens new ways of access to becoming and singularity.
Key words: body, monster, singularity
346 RESUMOS

Do experimental informe ao Quasi-cinema, observações


sobre “COSMOCOCA-programa in progress”, de Hélio
Oiticica
Inês de Araujo
Resumo: O artigo discute o trabalho “COSMOCOCA programa in progress” de Hélio
Oiticica aproximando algumas de suas questões estéticas do pensamento de Bataille,
especialmente do conceito de informe. Analisando alguns aspectos do “Quasi-cinema”
formulado por Oiticica, como experimentação, imagem, corpo e escrita, interrogamos
como esse processo de arte coloca questões críticas para o campo da cultura e desafia
a poderosa conexão entre espectador e espetáculo.
Palavras-chave: experimentação, corpo, imagem e escrita

Abstract: In this article we discuss the work “COSMOCOCA programa in pro-


gress” of Hélio Oiticica by connecting some of its aesthetics questions with Bataille’s
thinking, especially his concept of inform. Analysing some aspects of the “Quasi-
cinema” Oiticica work’s, like experimentation, image, body and writing, we argue
how this art process rises critical questions for the cultural field by challenging the
powerful conexion between spectacle and spectator.
Key words: experimentation, body, image and writing

Culturas múltiplas versus monocultura


Pedro de Niemeyer Cesarino
Resumo: Este artigo trata dos pressupostos ameríndios sobre o que chamamos de
"natureza" ou de "meio-ambiente". Partindo de algumas diretrizes dos pensamentos
xamanísticos e mitológicos elaborados por determinados povos da Amazônia, bem
como de certas análises da etnologia americanista contemporânea, pretende-se ofere-
cer uma análise crítica e um contraponto aos estereótipos vigentes nos discursos sobre
o desenvolvimento e a produção.
Palavras-chave: Amazônia, Xamanismo, Desenvolvimento, Meio-ambiente, Etnolo-
gia

Abstract: This paper addresses the amerindian standpoint concerning the so-called
“nature” or “environment”. Considering the presuppositions of xamanistic and mytho-
logic thinking developed by some of the Amazonic people, as well as certain analyses
of a contemporary americanist ethnology, the purpose is to offer a critical analysis
and a counterpoint for the stereotypes underlying current discourses of development
a