EQUIPE EDITORIAL
Alexandre do Nascimento
Alexandre Mendes
Barbara Szaniecki
Fábio Malini
Gerardo Silva
Gilvan Vilarim
Giuseppe Cocco
Leonora Corsini
CONSELHO EDITORIAL
• Alexander Patez Galvão - Rio de Janeiro, Brasil • Ana Kiffer - Rio de Janeiro, Brasil • Antonio
Negri - Roma, Itália • Beppe Caccia - Veneza Itália • Bruno Cava - Rio de Janeiro, Brasil • Caia
Fittipaldi - São Paulo, Brasil • Carlos Alberto Messeder - Rio de Janeiro, Brasil • Carlos Augusto
Peixoto Jr. - Rio de Janeiro, Brasil • Christian Marazzi - Genebra Suíça • Elisabeth Rondelli - Rio
de Janeiro, Brasil • Henrique Antoun - Rio de Janeiro, Brasil • Ivana Bentes - Rio de Janeiro, Brasil
• Karl Erik Scholhammer - Rio de Janeiro, Brasil • Maria Alice R. de Carvalho - Rio de Janeiro,
Brasil • Maria José Barbosa - Belém, Brasil • Maurizio Lazzarato - Paris, França • Micael Hersch-
mann - Rio de Janeiro, Brasil • Michael Hardt - Durham, Estados Unidos • Michèle Colin - Paris
França • Patrícia Daros - Rio de Janeiro, Brasil • Paulo Henrique de Almeida - Salvador, Brasil •
Paulo Vaz - Rio de Janeiro, Brasil • Peter Pal Pelbart - São Paulo, Brasil • Rodrigo Guéron - Rio de
Janeiro, Brasil • Suely Rolnik - São Paulo, Brasil • Tatiana Roque - Rio de Janeiro, Brasil • Thierry
Baudouin - Paris, França • Yann Moulier Boutang - Paris, França •
Quadrimestral
Irregular (2002/2007)
ISSN – 1415-8604
1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –
Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação. LABTeC/ESS.
CDD 302.23
306.2
EDITORIAL 7
UNIVERSIDADE NÔMADE
• Os novos manifestos sobre as cotas 11
Alexandre do Nascimento
• Vida no e contra o trabalho: afetos, crítica feminista
e política pós-fordista 17
Kathi Weeks
• Os direitos humanos no contexto da globalização:
três precisões conceituais 39
Joaquín Herrera Flores
• Análise da Nova Constituição Política do Estado 73
Raúl Prada Alcoreza
MÍDIA E CULTURA
• Mídia, Subjetividade e Poder: Construindo os
Cidadãos-Consumidores do Novo Milênio 89
João Freire Filho
• Resistências criativas: os coletivos artísticos e
ativistas no Brasil 105
Henrique Mazetti
• Guerra Civil Imaterial: Protótipos de Conflito
dentro do Capitalismo Cognitivo 121
Matteo Pasquinelli
• Midialivristas, uni-vos! 137
Adriano Belisário, Gustavo Barreto, Leandro Uchoas,
Oona Castro e Ivana Bentes
CIDADE E METRÓPOLE
• Cidade e Metrópole: a lição da barragem 145
Gerardo Silva
• Potências do samba, clichês do samba –
linhas de fuga e capturas na cidade do Rio de Janeiro 157
Rodrigo Guéron
• Trabalho – operação artística: expulsões 171
Cristina Ribas
• Cidades, cegueira e hospitalidade 191
Márcia de N.S. Ferran
• Dispositivo metrópole.A multidão e a metrópole 201
Antonio Negri
A CULTURA MONSTRUOSA
• A potência da hibridação –
Édouard Glissant e a creolização 211
Leonora Corsini
• Expressões do monstruoso precariado urbano:
forma M, multiformances, informe 223
Barbara Szaniecki
• Artaud, momo ou monstro? 237
Ana Kiffer
• O corpo e o devir-monstro 245
Carlos Augusto Peixoto Junior
• Do experimental informe ao Quasi-cinema,
observações sobre “COSMOCOCA - programa in
progress”, de Hélio Oiticica 257
Inês de Araujo
• Culturas múltiplas versus monocultura 271
Pedro de Niemeyer Cesarino
NAVEGAÇÕES
• “Faxina” e “pilotagem”: dispositivos (de guerra)
políticos no seio da administração prisional 283
Adalton José Marques
• Lutas operárias em São Paulo e no ABC nos anos 70 291
Jean Tible
• Nas peles da cebola ou da “segunda natureza”
em excesso.A delicada luta pelo estado de exceção
benjaminiano 311
João C. Galvão Jr.
RESENHAS
• Consumismo e Globalização – faces e fases
de uma mesma moeda? 324
João Batista de Almeida Sobrinho
• Um novo Imperialismo? 330
Marina Bueno
RESUMOS 333
Editorial
Com mais esse número duplo, a Lugar Comum continua, com potência
renovada, sua trajetória editorial. O núcleo temático sobre “Cidade e Metrópole”
desenvolve as reflexões propostas em vários outros números da revista sobre a
temática das redes metropolitanas como novos espaços produtivos do capitalismo
contemporâneo. Um tema de grande centralidade, sobretudo depois das recentes
eleições municipais que, por um lado, viram o avanço das forças progressistas e,
por outro, uma instrumentalização nacional das eleições nas grandes capitais que
acabou esvaziando o debate sobre os programas e as propostas de mobilização de-
mocrática da cidade. O segundo núcleo temático, “A Cultura Monstruosa”, mobi-
liza o tema do “monstro” e da cultura. Trata-se de um debate totalmente comple-
mentar à discussão sobre dinâmicas metropolitanas, pois é impossível apreender
essas últimas sem uma teoria dos sujeitos monstruosos que as desenham e atraves-
sam. Além disso, nessa seção, os temas da hibridação, da criação e do corpo são
discutidos, colocando a produção da cultura, sua monstruosidade, no cerne das
dinâmicas contemporâneas. Em “Navegações”, apresentamos uma série de con-
tribuições orginais e inovadoras: desde um estudo antropológico dos dispositivos
de guerra em âmbito prisional, até uma reflexão histórica sobre as lutas operárias
do ABC paulista, passando por discussões sobre os conceitos e as experiências de
resistência. A essas contribuições juntam-se, finalmente, os materiais mais polí-
ticos da seção “Universidade Nômade”, que nos falam da política e das lutas no
capitalismo pós-moderno: desde o manifesto em favor da política de cotas raciais,
até a produção dos direitos humanos no contexto da globalização, passando pelo
movimento feminista diante da dimensão afetiva do trabalho. Temas que serão
reencontrados nos artigos dedicado à temática “Mídia e Cultura”.
Este número da Lugar Comum propõe, enfim, mais um conjunto de re-
flexões teóricas e políticas para pensar os conflitos, a produção de subjetividade
que atravessam e estruturam o mundo contemporâneo. Trata-se de abordagens
inovadoras e criativas, cujo interesse é amplificado pela crise global (a chamada
crise financeira) na qual entramos. Ou seja, a leitura desta edição da Lugar Co-
mum permite-nos melhor apreender e debater o fim de um mundo (aquele da glo-
balização neoliberal) para enxergar horizontes possíveis, dos mundos possíveis,
que se abrem dentro dessa crise. Nessa abertura dramática dos possíveis, pensar
os lugares comuns do trabalho afetivo, comunicativo, articulador das redes me-
tropolitanas e nelas monstruosamente articulado, torna-se um terreno essencial
de resistência e inovação.
Boa leitura.
Universidade Nômade
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 11-16
Alexandre do Nascimento
1 Manifesto “Todos têm direitos iguais na República Democrática” (Brasília, 29/06/06) e Mani-
festo “Em favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial” (Brasília, 04/07/06).
12 OS NOVOS MANIFESTOS SOBRE AS COTAS
Grupos contrários às cotas argumentam, com razão, que esse tipo de política
afronta o ideal republicano da igualdade de todos diante da lei (grifos meus).
Federação, apresenta-se como “uma Marcha que vai exigir do Governo Lula e do
Congresso Nacional, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do Projeto de
Cotas nas Universidades”3.
Outro importante elemento do debate a ser destacado são os discursos.
É importante dizer que o debate sobre as cotas é um debate político, um debate
a partir de pontas de vista, onde não apenas a militância e o movimento negro
falam de um determinado lugar. Políticos, pesquisadores e cidadãos em geral
também argumentam a partir do seu lugar de classe, de raça/cor e dos interesses
e preconceitos que os mobilizam. Isso fica nítido no manifesto contrário às cotas,
apesar da tentativa de discurso que defende o princípio da igualdade de todos
perante a lei:
A sociedade brasileira não está livre da chaga do racismo, algo que é
evidente no cotidiano das pessoas com tom de pele menos claro, em especial entre
os jovens de baixa renda. A cor conta, ilegal e desgraçadamente, em incontáveis
processos de admissão de funcionários. A discriminação se manifesta de múltiplas
formas, como por exemplo na hora das incursões policiais em bairros periféricos
ou nos padrões de aplicação de ilegais mandados de busca coletivos em áreas de
favelas. Por certo existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não
é uma nação racista. Depois da Abolição, no lugar da regra da “gota de sangue
única”, a nação brasileira elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista
de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo. Há sete décadas, a
República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões signifi-
cativa de ódio racial.
Ora, a idéia de mestiçagem a qual se refere o manifesto é a mesma abor-
dagem que dá origem, no pensamento social brasileiro, do chamado “mito da
democracia racial”. Trata-se de um reconhecimento da mestiçagem que nega o
que a mestiçagem produz. Nesse discurso a mestiçagem aparece como negação
da existência (social) de raças, como denominação de uma homogeneidade (povo
mestiço) e, pois, como uma negação de que no Brasil existam relações raciais
assimétricas. Nesse pensamento, falar em criar cotas raciais nas instituições seria
criar uma “divisão perigosa” da sociedade em raças (Fry et al., 2007).
Referências
Kathi Weeks
4 Este artigo é uma versão abreviada do texto originalmente publicado em Ephemera, theory
and politics in organization, v. 7(1), p. 233-249, 2007 (disponível em www.ephemeraweb.org).
Tradução Leonora Corsini.
18 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO
potencial força disruptiva das relações capitalísticas de produção. Isto valia tanto
para a corrente que predominou no primeiro período (final dos anos 60), quanto
para a perspectiva desenvolvida nos anos subsequentes. Os debates focalizavam
as questões relativas ao trabalho doméstico em articulação com a teoria de Marx
da exploração e a perspectiva da teoria feminista, a qual estava mais interessada
nos sujeitos situados no interior dos sistemas capitalistas e patriarcais, bem como
nos agentes potencialmente contrários a esse modo de produção5. Em um plano
mais amplo de generalização, podemos dizer que o feminismo socialista desse pe-
ríodo enfatizava as contradições existentes entre os processos de acumulação de
capital e a reprodução social. Apesar de esboçarem um movimento em direção a
uma noção ampliada da reprodução como criação e sustentação de formas sociais
e relações de cooperação e socialidade, essas teorias acabaram lançando as bases
para uma concepção mais estreita, circunscrita ao trabalho doméstico não-remu-
nerado e aos cuidados, num âmbito de trabalho confinado ao espaço dos lares.
Abraçaram as questões de entender, assessar e confrontar a relação entre produção
capitalista e reprodução doméstica. O reconhecimento do lar como local de repro-
dução social delineia a luta fundamental para expandir as noções prevalentes do
trabalho. Provavelmente, uma das maiores conquistas das feministas socialistas
desse período foi repensar as concepções hegemônicas a respeito do que contava
como trabalho num tempo em que o trabalho era ainda tipicamente equiparado à
produção assalariada de bens materiais.
Mas, como já observamos, a tradição do feminismo socialista dos anos
1970 é instrutiva não apenas por seus sucessos, mas também pelos seus fracassos.
De modo particular, acho que seria útil relembrar a resistência que havia contra
a ampliação das categorias trabalho e produção. O primeiro daqueles projetos,
que reúne os debates sobre o trabalho doméstico, é particularmente interessante,
6 Parte do que está em questão aqui é a definição de uma estratégia política: as lutas feministas
deveriam seguir uma linha autônoma, ou deviam se integrar com os movimentos e agendas da
classe trabalhadora?
Kathi Weeks 21
7 Para uma revisão crítica dos debates do trabalho doméstico ver Ellen Malos (1995), especial-
mente a introdução e a conclusão.
22 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO
8 Cf., por exemplo, os ensaios clássicos de Hartsock e Rose (Harding, 2004). Exemplos de
como a teoria da perspectiva feminista se manteve ativa depois deste período podem ser encon-
trados em Harding (2004) e também em Hartsock (1998).
Kathi Weeks 23
9 Este é um projeto que Haraway (1985), para citar um exemplo, antecipou de forma brilhante,
ao ampliar e transformar a tradição da teoria da perspectiva feminista socialista.
10 Ao comparar as duas abordagens, é difícil não se impressionar com as diferenças de estilo.
Cada um dos textos é conduzido a partir de um registro afetivo diferente. Um assume a forma
de um libelo contundente, inflamado e indignado, enquanto o outro segue uma linha argumen-
tativa mais compreensiva, expressando compaixão e preocupação. Um vai no sentido de marcar
posição num tempo de complacência política, e o outro insiste, em congruência com a tradição
do feminismo, nas relações entre o pessoal e o político, para provocar identificação e disparar
a auto-reflexão.
26 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO
objetos e coisas, e mais com lidar com pessoas e símbolos (ibidem, p. 65). Numa
visão contemporânea, as idéias de Mills sobre o que ele designa como “mercado
da personalidade”, no qual “aspectos pessoais ou mesmo íntimos do empregado
são trazidos à esfera de negociação”, estão na ordem do dia (ibidem, p. 182). Esse
comércio de personalidade impõe novos parâmetros ao recrutamento e à seleção
de pessoas; esses parâmetros passam a ser baseados na avaliação da personalidade
(não mais na competência), criando novos ideais para a educação, novos alvos de
intervenção gerencial e, acima de tudo, criando um novo tipo de “comodificação”
dos sujeitos do trabalho. Como observa Mills, a rápida expansão e dissemina-
ção da atividade de vendas para novos espaços e relações sociais ampliou esse
mercado, tornando-o paradoxalmente “mais impessoal e mais íntimo” (ibidem,
p. 161).
De certa maneira, Hochschild retoma a reflexão em 1983, a partir do
ponto onde Mills havia parado (1951); mas desvia o foco, da ampla faixa do
trabalho imaterial em ocupações de colarinho branco, para o trabalho emocional
das trabalhadoras “colarinho rosa”, categoria da qual os(as) comissários(as) de
bordo são exemplos emblemáticos. No prefácio a The Managed Heart [O cora-
ção gerenciado], Hochschild reconhece sua dívida com a pesquisa conduzida por
Mills a respeito do modo como nós “vendemos nossa personalidade”, ao mesmo
tempo em que observa algumas insuficiências naquela análise (Hochschild, 1983,
p. ix). A categoria trabalho emocional, ou trabalho dos afetos, a qual “pressupõe
que possamos induzir ou suprimir os sentimentos, de forma a ativar e susten-
tar uma aparente tranquilidade que produza nos outros uma desejada disposição
mental” (ibidem, p. 7), poderia, como sugere a autora, ajudar a resgatar e trazer
à luz alguns aspectos das análises de Mills sobre o mercado da personalidade
que haviam ficado obscurecidos. Mais especificamente, faltaria “um sentido do
ativo trabalho emocional envolvido nas operações de vendas” (Hochschild, op.
cit., p. ix). Enquanto Mills “parecia assumir que, para que alguém possa vender
sua personalidade, basta possuí-la” (idem), a análise de Hochschild esclarece que
esse “ativo trabalho emocional” é, antes de mais nada, uma atividade que envolve
competência e, em segundo lugar, uma prática que tem efeitos constitutivos. Ao
contrário de Mills, Hochschild reconhece certas competências específicas que são
requisitos do trabalho emocional. Ao passo que Mills enfatiza o intercâmbio re-
lacional no “mercado da personalidade”, a categoria de “trabalho emocional” de
Hochschild desloca o foco para o próprio processo do trabalho.
O vendedor ou a vendedora, a aeromoça ou o comissário de bordo, por
exemplo, não apenas vendem suas “personalidades” em troca de salário, mas es-
Kathi Weeks 27
tão engajados em um tipo bem distinto de atividade. Com efeito, o trabalho dos
afetos não é simplesmente mais uma forma de trabalho, mas um exemplo de tra-
balho socialmente necessário. Quando Mills considera essas atividades apenas do
ponto de vista da troca comercial, aparentemente não está identificando nenhum
valor nessas práticas que, como observa Hochschild, também fazem parte do tra-
balho de reprodução social que ajuda a estabelecer e a manter relações de coope-
ração e civilidade. Através de uma lente feminista, Hochschild identifica a gestão
estratégica das emoções para efeitos sociais como uma prática do dia-a-dia que,
por ser tradicionalmente privada e feminizada, geralmente não é reconhecida e
valorizada como trabalho. Assim, sobretudo no domínio do “privado”, subsiste o
empenho em afirmar, reforçar e celebrar o bem-estar dos outros (ibidem, p. 165),
da mesma maneira que o trabalho doméstico, como uma forma de trabalho invi-
sível (ibidem, p. 167). E continua difícil apreender as habilidades e competências
envolvidas nesse tipo de gestão, de tal modo a expressão da emoção é não apenas
feminizada, mas também naturalizada nesse processo – como manifestação es-
pontânea, e não como algo que tenha de ser cultivado.
Em segundo lugar, quando fala de trabalho “ativo” Hochschild desen-
volve, ao contrário de Mills, uma instigante análise dos efeitos constituintes do
trabalho imaterial. Mills não reconhece os elementos de competência e habilidade
exibidos pela “vendedora”, por exemplo, características que ele reduz à categoria
pejorativa de manipulação: “o comportamento predatório e maquiavélico desses
praticantes de habilidades pessoais de aluguel” (Mills, 1951, p. xvii). E, além
disto, Mills parece não ter entendido o processo do trabalho como um processo
de subjetivação, como a performatividade específica do trabalho emocional. O
que para Mills era tão somente produção de insinceridade nesse novo “tempo de
venalidades” (ibidem, p. 161), é reconhecido em Hochschild por seus efeitos pro-
fundamente constituintes. De acordo com a explicação da autora, não se trata ape-
nas do trabalhador emocional “parecer ser” e sim de ele “vir a ser”; esse trabalho
não supõe apenas o uso da subjetividade, mas, principalmente, supõe produção
de subjetividade. Como exemplo, quando a expressão emocional do trabalhador
é parte do que esteja sendo vendido na prestação de serviço, “parecer amar o que
se faz torna-se parte do emprego”; e mais, “o empenho em realmente amar o que
se faz, em satisfazer os clientes, acaba ajudando o trabalhador em seu esforço”
(Hochschild, 1983, p. 6). Com efeito, o impacto dessa função de coordenar mente
e sentimento não se restringe ao que fazemos ou pensamos, à saúde e à energia do
nosso corpo ou aos nossos pensamentos. Esse impacto se estende à vida afetiva
28 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO
11 Para dar conta do impacto constituinte dessas práticas, a categoria dos afetos é mais uti-
lizada nas análises de Hochschild do que a categoria das emoções. O fato de a categoria dos
afetos atravessar as oposições mente e corpo, razão e emoção, acaba diluindo a redução onto-
lógica provocada por este tipo de dicotomia. Além do mais, sendo uma categoria que ressalta
as qualidades produtivas do fenômeno, torna-se mais resistente ao tipo de naturalização das
emoções que Hochschild vai justamente problematizar. Aqui podemos também ver melhor uma
das vantagens da ênfase no trabalho afetivo em detrimento do tipo de trabalho cognitivo, mais
frequentemente privilegiado nas argumentações de Mills, bem como em várias análises con-
temporâneas acerca do trabalho imaterial.
12 Consequentemente, Hochschild reconhecia que o desafio lançado pela nova ordem do tra-
balho aos ideais do individualismo liberal não era apenas, como Mills defendia, o fato dele
reduzir o indivíduo à condição de um ‘homenzinho’; tratava-se, ao contrário, do permanente
desafio à identidade “no país que mais celebra o indivíduo, mais e mais pessoas se perguntam,
sem conseguir identificar as raízes sociais mais profundas da questão: o que eu sinto realmen-
te?” (Hochschild, 1983, p. 198).
Kathi Weeks 29
Marx já antecipara, ou seja, que o problema do trabalho é que ele mobiliza muito
pouco de nossas habilidades e capacidades criativas. Em função da frustração de
nossa criatividade, somos levados a encontrar meios de canalizá-la nas atividades
de lazer (Mills, 1951, p. 236). “A cada dia, os homens vendem pequenos pedaços
de si mesmos para tentar comprá-los de volta depois do trabalho e nos fins de
semana com a ‘moedinha’ da diversão” (ibidem, p. 237). Esse foco na questão do
trabalho que não mobiliza suficientemente o self é uma versão da crítica da alie-
nação do trabalho feita na década de 1970 sob a forma de um discurso público. As
novas formas de gestão preconizadas como cura, pelo menos até os anos 80 – que
promoviam a reengenharia das culturas de trabalho de modo a incentivar o maior
comprometimento e lealdade dos trabalhadores e recompensar as iniciativas cria-
tivas – introduziram um novo conjunto de problemas. Hochschild, escrevendo no
âmbito de uma economia de serviços mais desenvolvida, percebeu o que Mills
ainda não havia enxergado: o fato de que aquilo que os trabalhadores põem à ven-
da e submetem ao comando do trabalho, ou seja, “um sorriso, uma disposição, um
sentimento, uma relação” (Hochschild, 1983, p. 198), significa que esse trabalho
requer muito, não pouco, de quem o executa. Assim, trata-se de perceber que o
trabalho não nos abandona simplesmente quando nos encontramos em situação
de não-trabalho; o trabalho transfere-se para as temporalidades, subjetividades e
socialidades do não-trabalho. Ao invés de enfocar somente a crítica tradicional da
colonização da vida pelo mercado – através da crítica do consumismo – Hochs-
child estende sua análise à colonização da vida pelo trabalho.
Em dado momento, a crítica da alienação torna-se problemática. Tanto
Mills quanto Hochschild estavam cientes das limitações inerentes à teoria do tra-
balho alienado conforme foi empregada pelo marxismo humanista: essa crítica
dependia de um ideal nostálgico de trabalho pré-industrial, de trabalho artesanal,
e de uma ontologia essencialista do trabalho. Mesmo que cautelosos com relação
e esse tipo de raciocínio nostálgico, eles acabam, mesmo assim, empregando, se-
não exatamente esses mesmos argumentos, algumas variações, mediante as quais
tentam mensurar a alienação do trabalho no contexto atual. Assim, como no caso
dos teóricos da perspectiva feminista socialista, que ancoravam suas análises num
fora que se reproduz, encontramos os dois autores, Mills e Hochschild, ainda de-
pendentes de um fora – nesse caso, de um lugar de trabalho não-alienado – e de
um modelo de self anterior à sua alienação, para animar sua crítica.
A crítica do trabalho alienado está tradicionalmente ancorada em um ou-
tro tipo de fora, não apenas um ideal de trabalho não-alienado, mas um determi-
nado modelo de trabalhador do qual somos alienados e para o qual deveríamos
Kathi Weeks 31
retornar. Os dois autores são críticos do essencialismo presente nesse tipo de abor-
dagem. Mills recusa-se a basear suas análises numa “visão metafísica em que o
sujeito se expressa primordialmente na atividade do trabalho” (1951, p. 225). Ho-
chschild, por sua vez, evita atrelar sua abordagem à autenticidade das emoções,
insistindo em que a expressão dessas emoções jamais é independente dos atos
de gerenciamento e, portanto, é sempre social (1983, p. 17-18). Porém, apesar
dessas precauções, o fato é que a crítica da alienação opera evocando um self já
dado, cuja alienação desencadeia uma crise. Mills argumenta que podemos adotar
a crítica sem entrar numa metafísica do trabalho, muito embora acabe também
ele evocando uma ontologia do indivíduo liberal. Encontramos, igualmente, uma
tensão, no coração da análise desenvolvida por Hochschild: ela insiste na constru-
ção social e na maleabilidade das emoções, ao mesmo tempo em que postula que
essas emoções são fundamentais para o self , de tal maneira que a alienação do
sujeito dessas emoções constitui um problema. Sua estratégia de fazer referências
a um self “real”, “verdadeiro” e “autêntico” entre aspas acaba paradoxalmente
problematizando uma certa dose de essencialismo do qual essa análise, em últi-
ma instância, depende. Em outras palavras, sua argumentação é animada por um
ideal de “coração não gerenciado”, associado a um mundo privado de práticas e
contatos emocionais, ou àquilo que poderia ser experimentado como um “verda-
deiro” self . Portanto, tanto Mills quanto Hochschild reconhecem as limitações
das abordagens críticas que dependem de ideais nostálgicos do trabalho e de mo-
delos essencialistas do sujeito, mas acabam reproduzindo de certa maneira esses
mesmos ideais.
mais valia e manter as relações de socialidade da qual essa mais valia depende dão
ensejo a uma série de problemas, cuja análise pode alavancar críticas importantes.
Uma tal problematização serviria, por exemplo, para dar novo contorno à discus-
são sobre o valor relativo das práticas, incluindo particularmente, a subvaloriza-
ção das práticas de cuidado – tanto as remuneradas quanto as não-remuneradas
– em relação aos seus efeitos na generificação e na racialização da divisão do
trabalho. Mas, uma vez que “a própria vida torna-se máquina produtiva” (Hardt e
Negri, 2004, p. 148), os termos dessa distinção e seus conflitos complexificam-se
ainda mais. Em contextos nos quais a reprodução já não é identificada a um es-
paço particular, ou assimilada a um conjunto de práticas específicas, tornando-se
coextensiva à produção, é preciso recolocar de outro modo o antagonismo.
Nesse sentido, gostaria de propor – de modo apenas especulativo – o es-
boço de uma possível estratégia alternativa. E se substituíssemos a antiga divisão
entre produção e reprodução pela distinção entre vida e trabalho? Será que essa
nova maneira de mapear o terreno das relações capitalistas e das linhas de antago-
nismo ajudaria a inverter os termos da análise política do trabalho pós-fordista?
Acredito que um enquadramento desse tipo traria alguns benefícios potenciais.
Por um lado, em comparação com a categoria da reprodução, a vida tem a vanta-
gem de ser conceito mais amplo. E, sendo categoria mais abrangente, não corre
o risco de circunscrever as práticas constitutivas da vida social aos domínios do
trabalho doméstico ou, pior, equipará-las à instituição família. Dessa forma, a luta
política que confronta a vida ao trabalho é menos equiparável ou redutível a um
projeto de re-valorização do mundo privado da família e de defesa de seus valores
tradicionais.
Porém, parece-me mais instrutivo para os propósitos da nossa discussão
aqui interrogar se a distinção crítica entre vida e trabalho pode dar conta das
premissas fundamentais reunidas a partir das análises de Mills e, sobretudo, de
Hochschild, acerca do trabalho e da construção de subjetividades.
Se se reconhece que o trabalho produz subjetividades, os limites subja-
centes são postos em evidência. E não apenas porque trabalho e vida não podem
ser confinados a lugares específicos, uma vez que, na perspectiva da produção de
subjetividade, vida e trabalho se interpenetram completamente. As subjetividades
moldadas no trabalho não ficam circunscritas ao espaço do trabalho, mas invadem
todos os espaços e tempos do não-trabalho, e vice-versa. Não existe posição de
exterioridade nesse sentido: o trabalho é inexoravelmente parte da vida; e a vida
faz parte do trabalho.
34 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO
14 Aqui, a categoria da vida tem uma função crítica análoga a que desempenhou na filosofia de
Nietzsche: instrumento para formular a crítica dos valores ascéticos; vida é empregada como
uma espécie de abreviação daquilo que os valores do ascetismo – neste caso, o trabalho e sua
ética tradicional – não reconhecem e que excedem e desconstroem os reducionismos conceitu-
ais e institucionais subjacentes a este ascetismo.
Kathi Weeks 35
fronteira entre o que é trabalho e o que é vida? O que conta como trabalho e como
vida, e a fronteira entre os dois, não são dados a priori. Essa, ao contrário, é uma
questão política e, eu acrescentaria, alvo importante das lutas feministas. Isso
posto, parece-me que a contínua integração das mulheres no universo do trabalho
remunerado no regime pós-fordista e a re-privatização do trabalho doméstico sob
o neoliberalismo, torna ainda mais difícil o projeto de dar visibilidade e criticar as
divisões de gênero, as divisões raciais e internacionais do trabalho doméstico (ver,
a esse respeito, B. Young, 2001).
Retornando às contribuições de Mills e Hochschild, acredito que suas aná-
lises a respeito do impacto dos mercados do trabalho imaterial sobre os indivíduos
e sobre a sociedade sugerem a importância cada vez maior de uma perspectiva
crítica assentada no discurso da subjetividade e numa noção alternativa de sujeito.
Hoje, a expansão das formas afetivas do trabalho torna ainda mais impactantes as
investigações a respeito de em quê (ou em quem) nos transformamos como tra-
balhadores dos afetos, num contexto de “mercado da personalidade”, no âmbito
da tessitura e da qualidade das relações sociais. Uma vez que reconhecemos a
força constituinte do trabalho em sua modalidade afetiva, uma vez que a subjeti-
vidade é contratada, gerenciada e posta a trabalhar “a prescrição e a definição de
tarefas transforma-se em prescrição de subjetividades” (Lazzarato, 1996, p. 135).
A questão, a meu ver, é como dedicar atenção crítica ao trabalho considerado
mecanismo de subjetivação, sem contar com o aparato conceitual da alienação e
da distinção entre existência e essência da qual somos herdeiros. Como formular
uma avaliação crítica a respeito do quê estamo-nos tornando mediante o trabalho,
sem depender de um modelo prévio do que ‘verdadeiramente’ seríamos?
Uma possibilidade seria apoiar nossa crítica na subjetividade, não na
crença de um verdadeiro e essencial self , mas na busca de um self potencial. E
se imaginássemos um modelo alternativo de subjetividade, não em termos dos
modelos existentes agora e que podemos acessar, mas em termos das modalidades
de vida que poderiam vir a existir? Uma vez que o horizonte de um futuro possível
substitua os limites espaciais de uma esfera já existente de padrões de identidade,
o padrão mediante o qual o presente é julgado poderia ser ampliado para visões do
que poderíamos desejar, em lugar da defesa do que já temos, sabemos, ou somos.
O self no trabalho poderia assim ser avaliado em termos do que alguém possa
desejar vir a ser, e tanto o tempo de trabalho quanto o de não-trabalho poderiam
ser julgados em relação à possibilidade de nos tornarmos algo diferentes do que
somos. Assim, a crítica desenvolvida em torno da lógica da alienação poderia ser
36 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO
recodificada de tal maneira que não se aplicasse mais a um self a preservar, mas
a um self a inventar.
Mais uma vez, no entanto, surge a questão do que aconteceria com o
gênero, se as análises se deslocassem nessa direção. À medida que o trabalho
é dotado de sentido e dividido por gênero, a crítica do trabalho como modo de
subjetivação deve convergir para um projeto que justamente problematize a ade-
quação da identidade de gênero como base para reivindicações políticas e como
meio de engajamento político.
Muitos já perceberam, sobretudo no que diz respeito à sexualidade e raça,
os problemas que envolvem modelos identitários que acabam reforçando estere-
ótipos de gênero exclusivos e normativos. Mas, e se as análises feministas não
ficassem restritas à afirmação do que somos como mulheres ou homens, sendo
nossas identidades produzidas por aquilo que fazemos, e, ao invés disso, enfati-
zássemos as visões coletivas do que gostaríamos de vir a ser ou fazer? Criticar e
enfrentar as contínuas formas de generificação do trabalho não seria assim muito
mais reproduzir identidades de gênero, do que expressar o desejo feminista?15
Mais do que um self verdadeiro em contraposição a sua forma alienada,
ou mesmo uma esfera reprodutiva versus uma esfera da produção propriamente
capitalista, uma proposição crítica alternativa dever-se-ia voltar para a distinção
entre vida e trabalho, partindo da percepção do que os sujeitos em relação poder-
se-iam tornar, mantendo em perspectiva e valorizando o que gostaríamos de nos
tornar, não em essência, mas na lógica de um desejo político imanente à existên-
cia. Essas são perspectivas biopolíticas que podem, talvez, nos conduzir a linhas
mais promissoras e a um conjunto de respostas políticas à organização do trabalho
sob o pós-fordismo.
15 Propondo uma alternativa semelhante a uma política feminista identitária, Wendy Brown
interroga “e se tentássemos suplantar a linguagem do ‘eu sou’ ... com a linguagem do ‘eu desejo
isto para nós’”? (1994, p. 75).
Kathi Weeks 37
Referências
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38 VIDA NO E CONTRA O TRABALHO
1. As três precisões
16 Este trabalho é parte de um texto mais amplo, realizado por Joaquín Herrera Flores e Ale-
jandro M. Médici, intitulado Derechos Humanos y Orden Global: tres desafios teórico-políti-
cos, a ser publicado em Desclée de Brouwer. Traduzido do espanhol pelo Coletivo de tradução
attraverso (Désirée Tibola, Leonardo Retamoso Palma, Lúcia Copetti Dalmaso e Paulo Fernan-
do dos Santos Machado).
40 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
direitos humanos são entidades que estão – ou devem estar – à margem de nossas
ações, à margem do humano e devem ser entendidos como se dependessem de
uma entidade transcendente a nossas debilidades humanas que nos protegerá, em
última instância, do horror e das violações. Os direitos suporiam, pois, uma esfera
“objetiva” de limites à própria ação do homem, sobretudo quando esse ostenta o
poder sobre a vida e a morte de seus congêneres.
Ainda que os benefícios “imediatos” dessa fundamentação filosófica se-
jam importantes para mobilizar as consciências e denunciar o horror da tortura,
da discriminação, da indiferença frente ao homem ou ante a destruição do meio
ambiente, sob um olhar mais atento, vemos que os problemas que acarretam são
maiores que os benefícios que trazem.
Pretender colocar os direitos em um mais além, liberado de qualquer tipo
de impureza contextual, pode nos servir, como dissemos, para conscientizar de
modo ingênuo e imediato os que tenham, como única bagagem, a esperança de
um mundo melhor e sem injustiças: daí a forte legitimação que conseguiram as
propostas da teologia da libertação no campo dos direitos humanos. Contudo,
bastaria inflar a esperança, para solucionar os problemas concretos e reais? É
suficiente confiarmos em uma instância transcendente e benevolente, para funda-
mentar práticas sociais que articulem movimentos de luta pelos direitos? E mais:
por que lutar pelos direitos, se já os temos garantidos metafísica, ideal ou reli-
giosamente? De que nos vale a essência metafísica que dizem nos pertencer pelo
mero fato de sermos seres humanos, ante as práticas depredadoras das grandes
corporações transnacionais? O que se conseguiu nos mais de cinquenta anos da
assinatura da Declaração Universal, que contribua, hoje, para resolver os pro-
blemas de condições de vida de mais de oitenta por cento da humanidade? Não
estaremos universalizando um só ponto de vista: o judaico-cristão-ocidental, e
apresentando-o como a essência imutável de algo que tem necessariamente de
contar com outras formas de conceber e resolver os problemas que subjazem aos
particulares conceitos de dignidade? Como garantir o acesso à justiça àquelas e
àqueles que defendem e praticam um conceito diferente de dignidade humana, ou
que hierarquizam de modo diferente os valores?
Nietzsche ensina que, quando falamos de conhecimento ou de realidade,
é preciso negar a existência em si (separada de suas condições de existência) e
negar termos tais como espírito, razão, consciência, alma ou pensamentos “verda-
deiros”. “O conceito de verdade é um contra-senso... todo o reino do verdadeiro
e do falso refere-se tão somente a relações entre seres, não ao em si... Não há
nenhum ser em si, como tampouco dá-se ou pode dar-se algum conhecimento
Joaquín Herrera Flores 41
humana para construir espaços onde desenvolver as lutas pela dignidade humana.
Por mais que se fale de direitos que as pessoas têm por serem seres humanos,
quer dizer, por mais que se fale de essências “anteriores” ou “prévias” às práticas
sociais de construção de relações sociais, políticas ou jurídicas, inevitavelmente
teremos de decifrar o contexto de relações – a trama densa de relações que de-
finem o sujeito – que lhe dão origem e sentido, sobretudo se queremos fugir da
tentação de “imputar” a toda a humanidade o que não é senão produto de uma
forma cultural de ver e estar no mundo.
detener la avanzada de la nueva derecha, ese enemigo que no ha dejado de vencer” (Alejandra
Ciriza, 1999, p. 237).
21 “El capitalismo alcanza su mayoría de edad cuando automatiza lo que en el periodo de
la acumulación originaria era simple expropiación arbitraria, desposesión salvaje...La nor-
malidad sucede a la anomalía, la legitimidad a la ley de la jungla, la plusvalía al robo. Todo
es conforme a la ley, conforme al valor, y el ciclo de la reproducción se basta por sí solo, con
muda constricción, para garantizar su continuidad ampliada” (Antonio Negri, 1989, p. 21).
22 “Lo privado incluye no sólo los intereses económicos de los sujetos, su forma de inserción
en el proceso de producción y reproducción de la vida misma, sino además el conjunto de re-
laciones que los ligan a otros sujetos en el espacio doméstico, las creencias particulares, las
prácticas e identidades sexuales y raciales” (Alejandra Ciriza, op. cit. p. 239).
23 Desde uma perspectiva liberal, a tolerância com os diferentes se reduz à mera contemplação
da diversidade. Nesse sentido “la diversidad es débilmente democrática: reconoce la mera de-
Joaquín Herrera Flores 47
e garantido. O argumento ideológico que se usa, uma e outra vez, é que não se
deve “contaminar” o debate filosófico jurídico com questões como as sexuais,
étnicas ou raciais. Todas as questões estão embebidas no princípio universal de
igualdade formal que constitui o sujeito “generalizado”. Qualquer argumentação
que parta das características concretas e das inserções contextuais específicas dos
sujeitos “concretos” é rapidamente apelidada de comunitarismo, evitando a co-
nexão que tal categoria ou esquema tem com a realidade norte-americana para a
qual foi criada24. A questão não consiste em introduzir o sexo, a raça ou a etnia no
jurídico e no político, diluindo o debate com perguntas tais como: as normas têm
sexo? Precisamente, a reclusão das diferenças em um âmbito separado do público,
faz com que a raça, o sexo e a etnia adquiram importância para o direito e para
a política. Se num Parlamento a ratio homem-mulher é de 80 para 20%, nessa
instituição o sexo tem muita importância: é um critério configurador do pertenci-
mento à instituição. Se em um código civil ou em uma teoria da justiça segue-se
utilizando o termo “pai de família”, o sexo daquele que firma os contratos ou
daquele que pode se dizer uma pessoa representativa, tem muita importância: é
um critério discriminatório em benefício de uma das partes. Agora, numa confi-
guração institucional onde a diferença, nesse caso sexual, reconhece-se como um
recurso público a garantir e onde a percentagem se aproxima a 50%, a caracterís-
tica sexual deixa de ser algo relevante ao ter todas as partes sua cota de participa-
ção e visibilidade: estamos frente à encarnação real, não somente formal/ideal do
princípio de não discriminação. Reconhecer pública e juridicamente as diferenças
tem o objetivo de erradicar o sexual, o étnico ou o racial do debate político, já que
todos teriam a possibilidade de apresentar suas expectativas e interesses sem ter
em conta, agora sim, suas diferenças. Não estaríamos diante de uma política de
discriminação inversa, com toda a conotação adversa que tem a palavra discri-
minação; mas diante de políticas de inversão da discriminação e dos privilégios
semejanza. Se podría decir que su padrino intelectual es John Locke en su Letter on Toleration.
Enfrentado a la diversidad de visiones de los grupos religiosos adoptó una táctica que reducía
el poder a religión organizada ... la religión era ante una cuestión de creencias individuales y
no de representaciones colectivas” (Sheldon Wolin, 1996, p. 154).
24 Quando os conceitos aplicáveis a um contexto que goza de hegemonia, sem maior refle-
xão, “exportam-se” para outros contextos hegemonizados, chega-se à conclusão de que ditos
conceitos não são particulares, mas de aplicação universal. Ver Bourdieu e Wacquant 2000, p.
110 e 113. Sobre o contexto da polêmica liberais-comunitaristas, ver “Universalism ‘x’ Comu-
nitarianism: Contemporary Debates in Ethics”, em Philosophy & Social Criticism, nº. 3-4, V.
14, 1998.
48 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
25 De acordo com A. Ciriza (op. cit., p. 245), “La aceptación plena de las premisas liberales
e individualistas en relación a la ciudadanía conducen, mal que le pese a Zolo, a predicar,
sin saberlo y probablemente sin desearlo, un retorno a la barbarie. Efectivamente, una de las
tensiones de la ciudadanía es precisamente la de requerir de un mínimo de inserción con vista
al goce de los derechos. De ahí la importancia de tener en cuenta la tensión, y no la mutua
exclusión, entre economía y política. La consideración puramente política de los derechos
deriva en su configuración como privilegios”(o grifo é do autor do artigo).
Joaquín Herrera Flores 49
gozando de privilégios formais, mas para criar as condições que permitam gozar
de maiores cotas de liberdade e riqueza sem a contrapartida da desigualdade.
Por essa razão, devemos acrescentar um quarto plano aos anteriores: o
plano político. Nesse plano trata-se de compreender as relações entre os conceitos
de igualdade e de liberdade. A luta pela igualdade – ou, o que é o mesmo, a socia-
lização dos recursos – é uma condição da liberdade – vista, por enquanto, como
socialização da política. A luta pela igualdade não esgota a luta contra a discrimi-
nação nem contra as desigualdades (Grupo DIOTIMA, 1995). Há que introduzir
no debate a luta pela liberdade que, baseando-se nas condições de não discrimina-
ção e da igualdade de recursos, sempre irá “mais além da igualdade”. Dependendo
do que entendamos por liberdade, assim interpretaremos essa reivindicação.
Da liberdade existem, ao menos, duas interpretações: a primeira, e mais
estendida dada a força expansiva da ideologia “liberal”, entende a liberdade como
autonomia, como independência radical de qualquer nexo com as “situações”,
os contextos ou as relações. A liberdade, a partir dessa interpretação, supõe um
gesto de recusa a toda relação de dependência ou de contextualização, dado que
tende à garantia de um espaço moral e autônomo, de desdobramento individual,
considerado como “o universal”. Nesse espaço moral individual todos somos se-
melhantes e todos nos vemos envolvidos em um só tipo de relação, a de indiví-
duos morais e racionais, sem corpo, sem comunidade, sem contexto. Esse espa-
ço da semelhança garante que os indivíduos morais e racionais possam dialogar
“idealmente” na pura abstração da linguagem, relegando ao terreno do irracional
toda reivindicação de dessemelhança, diversidade, de pluralidade ou de diferen-
ça. Essa interpretação da liberdade conduz ao que denominaríamos “o mal-estar
do individualismo abstrato”: a proposta de independência do contexto supõe um
tipo de sujeito imóvel ou passivo frente aos diferentes e mutáveis embates que
procedem do contexto social “irracional” em que, necessariamente, ditos indiví-
duos “racionais” se debatem. Para evitar, ou melhor, para ocultar a entrada desse
contexto irracional na ação individual, há que garantir política e juridicamente
um espaço moral-racional ideal – definido pelos direitos civis e políticos e pela
“mão invisível do mercado” – que permita a ação isolada e apolítica de indiví-
duos dirigidos por seus próprios e intocáveis interesses. O paradoxo está exposto:
indivíduos que se definem como “não situados”, dependem da “situação” em que
vivem. Recusa da política – como construção de condições sociais, econômicas e
culturais – e dependência dela – como garantia do espaço moral individual. Como
não proteger a liberdade enquanto autonomia?
Joaquín Herrera Flores 51
26 Ver as obras de Richard TUCK, Natural Rights Theories, Cambridge University Press,
1981; Philosophy and government: 1572-1651, Cambridge University Press, 1993; e, sobretu-
do, The rights of war and peace: political thought and the international order from Grotius to
Kant, Oxford University Press, 1999.
Joaquín Herrera Flores 53
direito e as convenções da ordem social são, sem dúvida, importantes para esse
mundo (normativo) e, no entanto, somente são uma pequena parte do universo
normativo que deveria chamar nossa atenção” (p. 16). Ficarmos no aspecto pura-
mente formal nos faz esquecer, ou oculta ideologicamente, que atuamos no marco
de um conjunto de narrações que situam as normas e lhes outorgam significado
cultural. Toda constituição – afirma Cover – tem uma épica, como todo decálogo
tem uma Escritura. “Quando se o entende no contexto das narrações que lhe dão
sentido, o direito deixa de ser um mero sistema de regras a serem observadas e se
transforma em um mundo no qual vivemos”.
Os direitos humanos funcionam como esse contexto de narrações ao
estabelecer “processualmente” as relações entre o mundo normativo e o mundo
material, entre os limites e obstáculos da realidade e as demandas ético-culturais
da comunidade. Que esse contexto de narrações nos conduza a um paradigma de
passividade e de resignação ou a outro de contradição e resistência dependerá de
nossos “compromissos interpretativos” na relação com o dominante estado de
coisas. Reduzem-se os direitos a sua componente jurídico-formal, perderemos
isso que George Steiner denomina a “alternidade” do “nomos”, ou seja, a faculda-
de de construir “o distinto ao que é”, ou seja, “... as proposições, imagens, formas
do desejo e da evasão contrafática com as quais alimentamos nossa vida mental
e através das quais construímos o meio mutável e em grande medida fictício de
nossa existência somática e social”.28
Se analisarmos as normas (ou, o que é muito importante, as consequên-
cias de sua aplicação a coletivos tradicionalmente marginalizados das vantagens
que supõe a adoção daquela ficção e desse “nomos”) e as teorias ou reflexões
sobre as mesmas, percebemos as dificuldades existentes a nível jurídico e insti-
tucional para incluir as expectativas e os valores de grandes camadas da popula-
ção: o patriarcalismo, o individualismo possessivo e o formalismo estão na base
de dita norma fundamental, de dita hipótese, ficção ou, melhor ainda, de dita
cultura jurídica dominante. Agora, ao toparmos com universos discursivos e não
28 Ver também Cover, op cit., p. 23: “El alcance del significado que se puede asignar a toda
norma –la interpretabilidad de la norma- se define, entonces, tanto por un texto legal, que ob-
jetiva la exigencia, como por una multiplicidad de compromisos implícitos y explícitos que lo
acompañan. Algunas interpretaciones están escritas con sangre, y permiten apelar a la sangre
como parte de su fuerza de legitimación. Otras interpretaciones suponen límites más conven-
cionales acerca de cuánto debe arriesgarse en su defensa. Las narraciones que cada grupo
particular asocia con la ley revelan el alcance de los compromisos del grupo. Esas narraciones
también ofrecen recursos de justificación, condena y debate a los actores del grupo que deben
luchar para vivir su ley”.
Joaquín Herrera Flores 59
29 Termo latino que significa esforço de, ou esforço para; na filosofia do século XVII, é usado
a partir da nova física que, ao apresentar o princípio da inércia (um corpo permanece em mo-
vimento ou em repouso se nenhum outro corpo atua sobre ele modificando seu estado), torna
possível a idéia de que todos os seres do universo possuem a tendência natural e espontânea
à autoconservação e se esforçam para permanecer na existência. Ver Marilena Chauí, 1995, p.
106.
30 Os valores não constituem uma esfera separada ou objetiva que orienta a ação humana desde
fora de si mesma. Por exemplo, a liberdade, para Spinoza, não se identifica com o livre arbítrio
da vontade no momento de escolher entre várias opções que se apresentam heteronomamente.
De acordo com Spinoza, a liberdade não é um ato de escolha voluntária, mas a capacidade
para converter-nos em agentes ou sujeitos autônomos de nossas idéias, sentimentos e ações, de
acordo com a causalidade interna de nosso “conatus”. Ver Marilena Chauí, op. cit. p. 107.
Joaquín Herrera Flores 61
31 Sobre o conatus espinozano, entendido como fundamento imanente dos direitos humanos,
pode-se consultar a Parte III da Ética (RBA, Barcelona, 2002) e o Tratado Político, Alianza,
Madrid, 1986. Ver também em Lucía Lermond Leiden, The form of man: human essence in
Spinoza’ s “Ethic”, E.J. Brill, 1988; G. Deleuze, Spinoza: filosofia práctica, Tusquets, Barcelo-
na, 2001; A. Negri, La Anomalía Salvaje: ensayos sobre poder y potencia en Baruch Spinoza,
Anthropos, Barcelona/UAM Iztapalapa, 1993; e a magna obra da filósofa brasileira Marilena
Chauí, 1999.
32 Joaquín Herrera Flores “Hacia una visión compleja de los derechos humanos”, 2001.
62 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
33 No entanto, não devemos ter uma visão unilinear da história; ao lado dessas “declarações”
liberais, foram surgindo alternativas que tentavam superá-las a partir de diferentes âmbitos:
a incorporação da mulher (O. de Gouges), os direitos das massas populares (jacobinos), os
anseios de liberdade e justiça dos escravos (Haiti). Alternativas que foram imediatamente des-
manteladas por um poder burguês que foi assumindo a hegemonia e que não aceitava ir mais
além do que seus ideólogos ilustrados tinham concebido.
Joaquín Herrera Flores 65
abstrata dos direitos, que pretendia vê-los como a modelação histórica do des-
dobramento de uma natureza humana a-histórica, produto de alguma instância
transcendental alheia aos processos de lutas sociais e separada da extensão do
capitalismo como base ideológica, econômica e política da reconstrução mundial
após a segunda grande guerra. Esses três elementos implicaram uma redução do
conceito a seus limites individualistas, etnocêntricos, estatalistas e formalistas,
perfeitamente funcionais diante da nova fase de acumulação do capital que ocor-
reu na segunda metade do século XX e suas correspondes formas de poder social,
econômico e cultural.
Na atualidade, tal como vimos amplamente no “desafio contextual”, esta-
mos assistindo a uma nova fase histórica que está exigindo uma nova perspectiva
teórica e política no que concerne aos direitos humanos. Desde o final dos anos
oitenta e princípios dos noventa do século passado, e em consequência de fenô-
menos como a queda estrondosa do socialismo real e a consequente expansão
global do modo de produção e de relações sociais capitalistas, iniciaram-se novos
processos que estão colocando em questão a natureza individualista, essencialis-
ta, estatalista e formalista dos direitos que prevaleceram desde 1948 até quase a
última década do século XX.
A nova fase da globalização, a denominada “neoliberal”, pode caracte-
rizar-se, em termos gerais, sob quatro características articuladas: a) a prolifera-
ção de centros de poder (o poder político nacional vê-se obrigado a compartilhar
“soberania” com corporações privadas e organismos globais multilaterais); b) a
inextricável rede de interconexões financeiras (que faz as políticas públicas e a
“constituição econômica” nacional dependerem de flutuações econômicas impre-
visíveis para o “tempo” com o qual joga a práxis democrática nos Estados-Na-
ção); c) a dependência de uma informação que circula em tempo real e é captura-
da pelas grandes corporações privadas com maior facilidade que pelas estruturas
institucionais dos Estados de Direito; d) o ataque frontal aos direitos sociais e
trabalhistas (que faz com que a pobreza e a tirania convertam-se em “vantagens
comparativas” para atrair investimentos e capitais) (José Eduardo Faria, 2002).
Essas características próprias da nova fase de apropriação do capital es-
tão provocando uma mudança importante na consideração dos direitos humanos:
primeiro, a nível jurídico, esses “fatos” induziram, em primeiro lugar, à crise do
direito nacional dos direitos humanos, já que as constituições – sobretudo as que
surgiram na América Latina e na Europa Latina após as ditaduras do último terço
do século XX, nas quais verteu a última esperança do Estado democrático de
direito – estão perdendo seu caráter normativo e estão aproximando-se perigosa-
66 OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
34 Consulte-se a mudança de tom e de fundo que surge, dentre outros textos, na “Convenção
marco sobre mudança climática” (Rio de Janeiro, 1992), a “Convenção da UNESCO sobre a
proteção do patrimônio mundial cultural e natural (de 1972); A “Earth Charter Initiative” na
qual os direitos humanos condicionam-se a uma visão concreta da dignidade humana (Parte
I), à proteção ambiental – com especial atenção às relações sociais de produção, distribuição e
consumo – (Parte II), à justiça social e econômica (Parte III) e à construção de relações políticas
democráticas e não violentas, como precondições para a construção de um “Espaço Público
Compartilhado” (Parte IV); o “Manifesto 2000 para uma cultura de paz e não violência”, no
qual a situação violenta vê-se como consequência da falta de aplicação dos direitos sociais, eco-
nômicos e culturais; a “Declaração do Milênio”, que começa com o objetivo de eliminação da
pobreza e a promoção de desenvolvimento; a importante “Declaração de Responsabilidades e
Deveres Humanos” adotada pela UNESCO e organizada por ADC Millénaire e a Fundação Va-
lencia Terceiro Milênio, na qual desde o princípio aposta-se na imputação de responsabilidade
tanto aos organismos públicos como aos organismos privados pelas consequências que provoca
a ordem política, social e cultural que surge da ampliação da globalização: veja-se o capítulo
3 sobre “seguridade humana e ordem internacional equitativa” (artigos 10-15) e o capítulo 10
sobre “Trabalho, qualidade de vida e nível de vida” (sobretudo o artigo 36, em cujo parágrafo
Joaquín Herrera Flores 67
ante uma nova dinâmica histórica que enfrenta as novas circunstâncias pelas quais
atravessa o mundo no início do novo milênio? Os direitos humanos são algo dado
e construído de uma só vez ou são processos em permanente construção e recons-
trução? Não estaremos assistindo à instauração de um novo processo de direitos
humanos que afronta diretamente a globalização neoliberal?
Conclusões
mas se atua “como se” se estivesse em outro. Através do “conatus”, a ação política
e social tenderá à construção de uma cultura de poder na qual se manifestem clara
e contundentemente as diferenças, a pluralidade e a potencialidade humana de
transformação social.
A “ingenuidade” em política é, nas palavras de Slavoj Zizek, a pressupo-
sição de que a realidade é algo dado de uma vez por todas, algo ontologicamente
auto-suficiente, sendo nossa liberdade o espaço de autonomia que nos permite a
existência no marco do que se considera objetivamente puro e alheio às impurezas
da subjetividade. A “maturidade” em política, então, supõe afirmar a incompletu-
de ontológica da “própria” realidade: “há realidade só na medida em que houver
um hiato ontológico, uma fenda, em seu próprio centro”, sendo a liberdade então,
a assunção de nossa capacidade e nossa potencialidade para aproveitar as brechas
e os interstícios do que se considera objetivo e criar novas formas de organização
e de luta. Antígona não somente nega a lei pública, senão que, como manifesta-
ção de sua potência como ser humano, a transcende e luta por transformá-la em
outra.
A nova fase do processo de construção social, política, econômica e cul-
tural de uma nova forma de estar no mundo a partir da categoria convencional e
imanente dos direitos humanos, implica necessariamente em lançar luz sobre o
conjunto de relações que o neoliberalismo globalizado vem nos impondo como se
se tratasse de uma realidade transcendental e intocável. Mas essa “necessidade de
contexto” não fica por aí. Reconhecer a dependência das categorias sociais como,
por exemplo, os direitos humanos, de suas condições sociais de existência, não é o
único aspecto que nos interessa. Há que se dar um passo a mais e afirmar a presen-
ça da subjetividade revolucionária e antagonista como motor móvel do processo
de luta pela dignidade humana. As fases históricas não estão determinadas “obje-
tivamente”, tal qual o atual determinismo do mercado, ou o velho determinismo
comunista, queriam fazer-nos pensar. A passagem de uma época à outra é produto
de subjetividades que configuram o processo de transição e estabelecem as bases
da nova configuração social. Não é a transição objetiva a que se materializa nas
lutas; mas são as lutas que se materializam sob a forma da transição, da mudança,
da transformação, desde o desdobramento do “conatus” coletivo spinozano.
Pois bem, o que constitui o ponto de vista decisivo em todo esse pro-
cesso, não são mais as determinações objetivas do mesmo, mas a criação de sub-
jetividade antagonista capaz de apresentar alternativas à ordem dominante: em
nossos termos, os direitos humanos como processo de luta. Contra a passividade
dos humanismos que defendem o desdobramento natural e orgânico da natureza
Joaquín Herrera Flores 69
e grande desafio que citamos nessas páginas e que deverá constituir o foco que
ilumine nossas práticas, é afirmar que o que convencionalmente denominamos
direitos humanos não são meramente normas jurídicas nacionais ou internacio-
nais, nem meras declarações idealistas ou abstratas, mas processos de luta que se
dirijam abertamente contra a ordem genocida e antidemocrática do neoliberalis-
mo globalizado. O sujeito antagonista constitui-se nesse processo e reproduz-se
na riqueza de suas práticas sucessivas. Não há nada de mais objetivo que a “força
da multidão que – como defendia Deleuze – converte em comum a luta e dota de
realidade a utopia”.
Referências
Caracterização do Estado
A caracterização do Estado como unitário, social, de direito plurinacional
e comunitário é nova, não se encontra esta descrição ampla e complexa na antiga
constituição. A caracterização do Estado é espinhosa e integra, articula a dimen-
são jurídica com as emergências políticas, o Estado Unitário Social de Direito
com o caráter Plurinacional, Comunitário e Intercultural, ratificando sua condição
de Livre, Independente, Soberano e Democrático. Funda-se na pluralidade e no
pluralismo que se move em distintas dimensões: política, econômica, jurídica,
cultural e lingüística. Baseia-se no reconhecimento da pré-existência dos povos
e nações indígenas originários, o que implica o reconhecimento de seu direito à
livre determinação. A caracterização do Estado faz uma descrição do povo em
sua diversidade e multiplicidade, identificando sua composição mal combinada
enquanto nações, classes e estratos sociais, dispersos nas cidades e no campo. A
caracterização do Estado assume uma forma de governo democrática e partici-
pativa, além de se abrir a múltiplas formas de representação, direta, universal e
comunitária. Por outro lado, combina valores culturais dos povos e nações origi-
nárias com princípios liberais. Esta concepção composta da caracterização do Es-
tado acolhe a evolução constitucional liberal e se enriquece com o aporte indígena
às novas formas constitucionais e políticas.
A constituição de transição
Pode-se dizer que a Nova Constituição Política do Estado é uma consti-
tuição em transição. Trata-se da transição de um Estado unitário e social a um Es-
tado plurinacional. De um Estado que renunciou ao federalismo depois da guerra
de fins do século XIX e princípios do século XX, a chamada Guerra Federal: um
Estado que optou pelo unitarismo. De um Estado que construiu um modelo de
Estado populista, depois da Guerra do Chaco, consolidando-o como um Estado
35 Traduzido do espanhol pelo coletivo de tradução attraverso (Désirée Tibola, Leonardo Re-
tamoso Palma, Lúcia Copetti Dalmaso e Paulo Fernando dos Santos Machado).
74 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO
de bem estar, ao estilo latino americano, colocado em cena durante os doze anos
da Revolução Nacional (1952-1964). O unitário e o social são, então, uma he-
rança do passado. Esta é a forma como a Bolívia se defrontou com modernidade.
O novo na Nova Constituição é o caráter plurinacional e comunitário, o novo é
a descentralização administrativa, política e o sistema de autonomias. O caráter
plurinacional tem a ver com o eixo descolonizador como rota desconstrutora do
Estado republicano, colonial e liberal. O plurinacional tem a ver com o reconheci-
mento, desde a pré-existência colonial, das nações originárias, ou seja, o reconhe-
cimento da matriz populacional do povo boliviano. O povo boliviano é caracteri-
zado descritivamente por sua diversidade etnográfica e sociológica. O pluralismo
estatal que é, além disso, um pluralismo de nações, é um avanço substantivo no
pluralismo democrático, construído a partir do desdobramento das identidades
coletivas e do comunitarismo político. O caráter comunitário da Nova Consti-
tuição baseia-se no reconhecimento das instituições culturais que estruturam os
comportamentos e condutas das comunidades não só rurais, mas também urbanas.
Falamos, além disso, dos ayllus36, das tentas37, das capitanias, das estruturas estru-
turantes que codificam as migrações, os assentamentos migratórios, as festas, as
feiras, as challas38, os ritos e as cerimônias, onde se aninha o simbolismo coletivo.
Uma primeira conclusão poderia ser a seguinte: trata-se de uma transição do cará-
ter unitário e social do Estado para o caráter plurinacional e comunitário.
Trata-se também de uma transição constitucional devida à composição
combinada de desenvolvimentos evolutivos dos direitos, deveres e garantias libe-
rais com demandas indígenas constitucionalizadas e formas jurídico-políticas que
dão um marco constitucional ao processo de nacionalização e recuperação dos
recursos naturais. Em outras palavras, não deixa de ser uma constituição liberal,
mesmo que em uma versão bem mais pluralista, incorporando quatro gerações de
direitos: os direitos individuais, os direitos sociais, os direitos coletivos e os direi-
tos relativos ao meio ambiente. É também uma constituição indígena e popular, já
que incorpora a institucionalidade própria das nações e povos indígenas originá-
rios, suas estruturas e práticas autóctones. Do mesmo modo, é uma constituição
que reconhece o papel primordial do público na forma de Estado interventor, de
bem estar e industrializador. Esta combinação do liberal pluralista, do indígena
Estrutura constitucional
A estrutura do texto constitucional consta de cinco partes: caracteriza-
ção do Estado, direitos, deveres e garantias; estrutura e organização funcional
do Estado; estrutura e organização territorial do Estado; estrutura e organização
econômica do Estado; e hierarquia normativa e reforma da constituição. Nesta
última encontram-se as disposições transitórias. A primeira parte refere-se ao blo-
co dogmático da constituição e as outras partes, excetuando a última, referem-se
ao bloco orgânico da constituição. A caracterização do Estado estabelece que a
Bolívia é um Estado unitário, social, de direito plurinacional, comunitário, livre,
independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com auto-
nomias. Nos princípios, valores e fins do Estado, diz-se que a soberania reside no
povo boliviano e que se exerce de forma direta. O artigo 8 combina os princípios
e valores andinos, amazônicos e chaquenhos com princípios e valores democráti-
cos, símbolos imanentes culturais com significações transcendentais políticas. O
gênero é um eixo transversal a todo o documento, assim como o plurinacional e
o comunitário. Isto diz respeito aos novos sujeitos e subjetividades constitutivas
da nova forma política. Os sujeitos de gênero, sobretudo o feminino, os diversos
sujeitos e subjetividades da pluralidade e os sujeitos coletivos emergem como
novos imaginários e atores dos novos cenários no novo horizonte político. Isto dá
uma dinâmica molecular à engrenagem institucional e aos dispositivos políticos.
Não que os outros sujeitos, os clássicos da modernidade, tenham desaparecido;
mas aparecem nestes novos cenários animados pelas cores de uma pluralidade de
figuras. Outra é a trama e, portanto, os desenlaces esperados.
A representação abre-se a várias formas, direta e participativa, por voto
universal e comunitária, de acordo com normas e procedimentos próprios. Este
universo representativo condiz com o pluralismo das formas de representação e
com a diversidade de sujeitos: sujeitos individualizados e coletivos, sujeitos fe-
mininos e das comunidades. Fala-se também das distintas formas da democracia,
representativa, direta e comunitária. A democracia retorna a devir da ação política
e à forma primordial de deliberação: a assembléia. Rompe-se então o monopólio
da classe política, politizando o exercício mesmo, em todos os âmbitos da gestão
social. A democracia já não é de poucos, mas de todos. Os muitos exercem sua
76 ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO
maioria na dialética com as minorias, dialética na qual se põe em cena a trama dos
interesses e das perspectivas, lugar onde se dá a ocasião da síntese política.
Os direitos se dividem nos fundamentalíssimos, como uma aquisição
na evolução dos direitos, além dos fundamentais e das garantias constitucionais.
Entre os direitos fundamentalíssimos encontram-se o direito à vida, à água e à
alimentação, à educação e à saúde, ao habitat e à moradia e ao acesso aos serviços
básicos de água potável, saneamento básico, eletricidade, gás domiciliar, correios
e telecomunicações. Estes direitos não podem ficar suspensos por nenhum moti-
vo, nem sequer num estado de sítio.
Hidrocarbonetos
No que diz respeito aos hidrocarbonetos se estabelece que o Estado de-
finirá a política de hidrocarbonetos, promoverá seu desenvolvimento integral,
sustentável e eqüitativo, e garantirá a soberania energética (Artigo 360).
Água
No capítulo quinto da parte que corresponde a Estrutura e Organização
Econômica do Estado, no que diz respeito aos recursos hídricos, estabelece-se
que:
ções privadas e tanto eles como seus serviços não serão concessionados (Artigo
373).
Também:
II. O Estado regulará o manejo e gestão sustentável dos recursos hídricos e das
bacias para irrigação, segurança alimentar e serviços básicos, respeitando os
usos e costumes das comunidades.
1. Existir livremente.
10. Viver num meio ambiente são, com manejo e aproveitamento adequado dos
ecossistemas.
13. Sistema de saúde universal e gratuito que respeite sua cosmovisão e práticas
tradicionais.
Raúl Prada Alcoreza é intelectual do Grupo Comuna de La Paz, Bolívia e foi mem-
bro da Assembléia Constituinte boliviana.
Mídia e Cultura
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 89-103
40 Não existe consenso quanto às diferenças e aos nexos entre as noções de adolescência e ju-
ventude. Nas esferas acadêmica e comercial, os dois termos são empregados, amiúde, de forma
intercambiável, sem maiores preocupações com a distinção conceitual; certos textos, entretan-
to, procuram identificar, por razões de ordem metodológica e/ou política, as particularidades
dos dois marcos etários (Freire Filho, 2006, p. 38).
João Freire Filho 91
Para pautar a presente edição especial, VEJA adotou como critério dividir as
matérias de acordo com os temas de maior interesse dos adolescentes. E, por
certo, também daqueles que mais preocupam seus pais. Esse elenco de assuntos
corresponde ao apurado em perfis de comportamento realizados por instituições
especializadas, na opinião de nossos consultores e nas entrevistas diretas feitas
com jovens de todo o país. O conjunto é um retrato como poucas vezes se traçou
de uma geração. Foi pensado para que o adolescente disponha de informações
que o ajudem a refletir e ir em frente com o processo de amadurecimento. Para
os pais, é uma oportunidade de olhar para dentro do mundo dos filhos (O retrato
de uma geração, p. 14).
Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 80), sem qualquer menção à baixa
qualidade da rede pública de ensino e à falta de opções de lazer e de perspectivas
de realização profissional da “galera” menos “descolada” (dos constrangimentos
estruturais, supõe-se).
Sem desprezar por completo os processos biodesenvolvimentistas e psi-
cossociais tradicionalmente vinculados à adolescência, os assíduos “retratos da
nova geração” buscam outros parâmetros para descrever e explicar as peculiari-
dades da juventude hodierna. Sua intenção é captar características e experiências
distintivas compartilhadas pela maioria das pessoas jovens, dentro de uma com-
binação particular de condições sociais, culturais, econômicas e políticas. Utili-
zam, como mananciais de saber, a ubíqua consultoria dos experts, os discursos
e as pesquisas elaboradas pelo mercado (cujos cálculos estratégicos se baseiam,
crescentemente, em conhecimentos psicológicos a respeito das paixões, das per-
plexidades, dos medos e dos sonhos que informam a vida subjetiva cotidiana de
nichos específicos de consumidores), além da reciclagem de um vasto repertório
de estereótipos sobre este Outro que nos envolve (em todas as acepções do ter-
mo...) – enigmático, exótico, sedutor, temível, invejável...
Já fortemente inserido no patrimônio da sociologia funcionalista estrutu-
ral, o tema da geração tem experimentado um renascimento em diferentes esferas
acadêmicas, desde o começo da década de 1990. Segundo Corsten (1999), a razão
preponderante para o renovado interesse pelo assunto é a “crise das identidades
coletivas” tradicionais. O esvaziamento heurístico de categorias como classe so-
cial no bojo da modernidade reflexiva teria aberto espaço para que idade e gera-
ção se fortalecessem como marcadores de diferenciação e conflito. Não disponho
de espaço, aqui, para aprofundar o que pode haver de pensamento desejoso nesta
narrativa histórica. O fato é que a mídia comercial – movida por sua índole no-
vidadeira – não só abraça, com entusiasmo, o conceito de geração, como ajuda
enormemente a vulgarizá-lo.
Dentre as ofertas de um mercado continuamente abastecido, três emble-
mas geracionais adotados por nossas revistas parecem-me particularmente suges-
tivos: “Geração Vaidade”, “Geração Digital” e “Geração Perigo”. Suas estratégias
discursivas enfatizam a relação dos jovens com, respectivamente, o consumo cos-
94 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER
41 “É ponto pacífico que os jovens brasileiros nunca tiveram tanto dinheiro na mão. E eles con-
somem mesmo. Principalmente roupas” (Eeeu teeeeeenhoo as cooooompras!!!, Veja Especial
Jovens, setembro de 2001, p. 15); “São adolescentes, mas pode chamá-los de maquininhas de
consumo” (Eles gastam muito, Veja Especial Jovens, agosto de 2003, p. 81); “Pitadas extras
de narcisismo são parte da natureza do adolescente” (Geração Vaidade, Veja, 11 maio 2005, p.
86).
42 “Garotos e garotas da Geração Z, em sua maioria, nunca conceberam o planeta sem com-
putador, chats, telefone celular. Sua maneira de pensar foi influenciada desde o berço pelo
mundo complexo e veloz que a tecnologia engendrou. Diferentemente de seus pais, sentem-se
à vontade quando ligam ao mesmo tempo televisão, o rádio, o telefone, música e Internet”,
(Geração Z, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 15); “Para esse público, o celular pas-
sou a representar um acessório definidor da personalidade” (Eles não vivem sem celular, Veja
Especial Jovens, junho de 2004, p. 79); “Para seus pais, a tecnologia é apenas um complemento
de sua vida. (...) Para os adolescentes, essa separação entre o real e o virtual é imperceptível.
Eles nasceram e cresceram na rede – e, mais importante, em rede. (...) Para a geração digital,
sem celular, comunidades online ou blogs não há vida” (Geração Digital, Exame, 24 ago. 2006,
p. 22); “Os jovens navegadores somam hoje 30% da população mundial, contra 29% dos boo-
mers. Vêem o computador como extensão natural de suas vidas e são mais bem informados do
que qualquer geração anterior” (Geração Virtual, IstoÉ, 12 abr. 2000, p. 54).
43 “A se fiar nas estáticas, nunca foi tão arriscado ser jovem como agora. Nunca uma geração
foi exposta a tantos fatores hostis, do desemprego ao banditismo” (Geração Perigo, Veja, 09 set.
1998, p. 40); “Soam românticos os tempos em que se imaginava que o primeiro contato com
as drogas poderia ocorrer por intermédio de um lendário traficante disfarçado de pipoqueiro.
Hoje, sabe-se que os entorpecentes são vendidos dentro do próprio colégio, por um aluno que
trafica em troca de dinheiro para financiar seu vício. Pior: ele pode ser um colega de classe”
(Nunca foi tão fácil, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 28); “É saudável preocupar-se
com o físico. Na adolescência, no entanto, essa preocupação costuma ser excessiva. É a chama-
da paranóia do corpo. Nunca houve uma oferta tão grande de produtos de beleza destinados a
adolescentes. Hoje em dia, é possível resolver a maior parte dos problemas de estria, celulite e
espinhas com a ajuda da ciência. Por isso, a tentação de exagerar nos medicamentos é grande”
(A paranóia do corpo, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 70); “Os especialistas julgam
que esse cultivo do corpo é positivo, porque se trata de um contraponto a práticas como a ali-
mentação à base de fast food e o hábito de gastar horas diante do computador. Mas os jovens
devem ficar atentos aos riscos que estão expostos. Como seu corpo e sua identidade estão em
formação, o adolescente é naturalmente inseguro com a aparência. (...) Os garotos querem ficar
tão musculosos quantos os veteranos da academia. As garotas almejam a silhueta esbelta das
mulheres. Quando viram obsessão, esses desejos prejudicam a saúde, causam transtornos psí-
quicos e até levam ao caminho das drogas” (É melhor pegar leve, Veja Especial Jovens, junho
de 2004, p. 37).
João Freire Filho 95
44 “A juventude de agora já não precisa combater a ditadura nem se sente sufocada pela famí-
lia. Ela está mais à vontade com os códigos sociais e as tradições à sua volta: 99% acreditam
em Deus e 60% não pensam em sair da casa paterna” (Uma geração sonhadora, mas também
realista, Veja Especial Jovens, junho de 2004, p. 13).
45 “O que pode se afirmar com certeza é que se está diante de uma geração que trocou a utopia
pelo pragmatismo. Os jovens não são mais arrebatados por grandes questões de ordem, na linha
capitalismo versus comunismo ou rebeldia versus caretice. De olho no futuro, estão mais inte-
ressados naquilo que pode afetar sua felicidade de forma concreta” (Uma geração sonhadora,
mas também realista, Veja Especial Jovens, junho de 2004, p. 13); “Essa geração de jovens
enterrou qualquer sinal de utopia, palavrinha meio em desuso, que significa, grosso modo,
a busca por um mundo ideal, com base em um projeto coletivo e altruísta. (...) Ser solidário,
sim, mas o negócio é se dar bem e viver com conforto. Sem inimigos visíveis, esta geração
demonstra elevado desencanto com os políticos, mas ainda acredita no voto, não deve produzir
incendiários, e não há cenários para revolucionários de plantão” (Geração Família, Brasileiros,
setembro de 2007, p. 43).
46 “Ser radical é coisa do passado. Hoje, muda-se de tribo o tempo todo. (...) Vive-se hoje a
‘era do camaleão’. (...) Em vez de ideologia há acessórios. (...) Por isso não faz sentido brigar.
Por que combater alguém que apenas se diverte de forma diferente? (...) Entre os mais velhos,
que viveram tempos mais radicais, há quem veja nessa mudança constante um lado negativo,
um reflexo da superficialidade dos dias atuais. Na verdade, o exercício da tolerância é uma con-
quista da geração de hoje” (Eu sou “normal”, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 38-
39); “O teen de hoje gosta num dia do grupo americano Hanson, em outro dos Backstreet Boys,
no terceiro cobre todos eles com um retrato das inglesas Spice Girls. É infiel por natureza. (...)
A diferença é que, no passado, os ídolos serviam para definir turmas e posavam de guardiões de
determinados valores. (...) Hoje, de seus ídolos, os adolescentes querem apenas diversão. Co-
lecionar figurinhas. Guardar pôsteres. Comprar roupas parecidas. Urrar de paixão nos shows.
96 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER
E depois ir para casa dormir, pensando que amanhã será outro dia. Talvez com um ídolo novo”
(Apenas um pôster na parede, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 58-59).
João Freire Filho 97
Eles devem interpretar seu passado e sonhar seu futuro como desdobramentos
de escolhas feitas ou ainda por fazer. Tais escolhas, por sua vez, são vistas como
materializações dos atributos da pessoa que escolhe – expressões de personali-
dade – e refletem-se de volta sobre a pessoa que as efetuou (Rose, 2005, p. 87).
47 As ponderações dos experts são arrematadas por imagens e slogans da vida saudável difun-
didos pela publicidade – às vezes, de uma forma bem matreira: logo após o sumário de Veja
Especial Jovens (agosto de 2003), deparamo-nos com a manchete ”Hidrate seu corpo – Bebidas
esportivas são cientificamente desenvolvidas para auxiliar o rendimento físico”. O layout da
página e o texto de caráter jornalístico dão a impressão de que estamos diante de uma reporta-
gem. Ao final da leitura, somos informados – através de uma nota de pé de página de dimensão
liliputiana – de que a base científica da suposta matéria foi fornecida pelo Gatorade Sports
Science Institute (GSSI). A confirmação de que se trata mesmo de um advertorial (expressão
que, dentro dos padrões éticos atuais, parece ter perdido o sabor de oxímoro) vem logo a seguir,
quando viramos a página e topamos com uma garrafa convidativamente gelada de Gatorade
sabor de tangerina.
100 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER
Clínicas de São Paulo”, segundo os créditos fornecidos por Veja. “Dessa forma”,
complementa, por conta própria, a revista, “fica praticamente inevitável concluir
o óbvio” (donde se conclui que ainda há uma mínima margem para concluir o
inesperado...): “o lar onde existe diálogo tende a ser a melhor defesa contra os
conflitos e frustrações que transformam a curiosidade em vício” (Nunca foi tão
fácil, Veja Especial Jovens, setembro de 2001, p. 29).
De que maneira os responsáveis devem exercer sua autoridade sobre os
filhos (“sem incidir no autoritarismo, nem na permissividade”), a fim de garantir
que eles possam prosperar na sociedade capitalista informatizada e globalizada?
Como fazer valer a ascendência paterna, sem inibir a personalidade ou ferir a
auto-estima dos adolescentes? Como atender aos seus desejos, sem permitir que
eles se transformem em pequenos tiranos? Como ensiná-los a valorizar e admi-
nistrar sua própria liberdade, sem deixar que ela se converta em libertinagem?
De que forma a nova geração deve se portar para usufruir, agora e no futuro, de
um bom conceito, uma boa saúde e uma boa situação financeira? Que condu-
tas permitem aproveitar ao máximo todas as prerrogativas da adolescência, sem
ocasionar danos a si mesmo ou problemas para os outros? Ao articular respostas
especializadas para indagações fundamentais concernentes à formação dos jovens
como consumidores e sucessores, Veja e congêneres buscam sacramentar sua in-
dispensabilidade para os pais, os adolescentes e o mercado.
Diante da ampla difusão dos preceitos pedagógicos da mídia, surpreende
a escassez de estudos acadêmicos que abordem o seu papel proeminente no in-
centivo ao comprometimento subjetivo e prazeroso dos jovens com determinados
valores e modos de vida. A raridade de investigações neste sentido talvez se ex-
plique pelo fato de a produção de subjetividade não ser encarada como um tópico
de comprovação genuinamente científica ou com apelo suficiente para mobilizar
o interesse da opinião e dos cofres públicos. Acredito, porém, que o esforço teó-
rico de desnaturalização e desconstrução das concepções ideais de adolescência
e juventude abonadas pelos “retratos da nova geração” pode ter “virtualidades
críticas”, no sentido proposto por Larrosa (1994, p. 38) de “uma orientação refle-
xiva do pensamento com propósitos práticos e no trabalho da liberdade”. Trata-se,
enfim, de vislumbrar e construir – dentro do reconhecimento crítico dos limites e
dos espaços da nossa liberdade como sujeitos – as possibilidades de falar de outro
modo, de julgar de outro modo e de manter outras relações com o segmento popu-
lacional conceituado e administrado como adolescente ou jovem.
102 MÍDIA, SUBJETIVIDADE E PODER
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2008 (no prelo).
João Freire Filho 103
Henrique Mazetti
49 Exemplar do anseio dos próprios manifestantes por repensar seu papel social e lutar contra
os estereótipos associados a eles foi o convite feito pelo grupo inglês Reclaim the Streets a to-
dos os envolvidos nos protestos dos Dias de Ação Global para “abandonar o ativismo” (Ludd,
2002). Inspirado nas idéias de Raoul Vaneigem (2002), membro do grupo artístico e político
francês Internacional Situacionista nos anos 1960, o convite era, na verdade, uma tentativa de
criticar a prática de ativismo como uma espécie de sacrifício próprio, em que o ativista se isola
do mundo como expert em transformações sociais.
106 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL
50 http://www.bijari.com.br/
110 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL
lidade que os caracteriza. Com este intuito, são apresentadas, a seguir, observa-
ções sobre dois coletivos atuantes no país: o Media Sana, sediado em Recife e que
trabalha com apresentações multimídia, e o Poro, grupo de intervenção urbana
com base em Belo Horizonte. Estas breves análises51 têm como principal objetivo
investigar como estas manifestações utilizam o humor, o afeto e a criatividade
como combustível para o questionamento e a crítica social, ou seja, como os co-
letivos atuam como resistências criativas.
51 A metodologia utilizada nos estudos de caso envolveu a observação presencial das ativi-
dades dos coletivos, entrevistas não-dirigidas com seus membros e coleta de informações na
imprensa e na internet. Versões mais extensas dos estudos de caso, assim como informações
mais detalhadas sobre a metodologia utilizada podem ser encontradas na minha dissertação de
mestrado (Mazetti, 2008a).
Henrique Mazetti 111
Com estes elementos típicos, que podem variar de acordo com a estrutura
disponível e os integrantes do coletivo presentes, o Media Sana apresenta aquilo
que chamam de “canções midiáticas”. O termo se refere ao fato de que a imen-
sa maioria do material visual utilizado nas apresentações do grupo é retirado da
programação diária da TV. Trechos de telejornais, novelas, propagandas, debates,
entrevistas, discursos políticos e depoimentos de anônimos que constroem as nar-
rativas predominantes da televisão comercial são recortados e recombinados, ao
vivo, para constituírem, então, uma crítica a estas narrativas52.
Entre os temas abordados pelo grupo estão: a distorcida construção da
realidade social pela mídia comercial, a sufocante ubiqüidade da propaganda no
cotidiano, o poder desmesurado do mercado e das grandes corporações na socie-
dade e a falência da política institucional. Além disso, o Media Sana desenvolve
um discurso em favor daquilo que chamam de “cultura livre”, isto é, a garantia
do acesso à informação e à cultura sem os entraves econômicos e jurídicos prove-
nientes das leis autorais em vigência no país.
Para os integrantes do grupo, a reciclagem de trechos da televisão co-
mercial não é vista como simples ferramenta estilística. Mas, sim, como uma
forma de consumo ativo, uma resposta pessoal à produção televisiva comercial.
Enquanto há uma preocupação do coletivo em conscientizar seu público sobre
os temas abordados através dos excertos da programação diária da TV, o próprio
fazer destes vídeos, o ato de assistir criticamente e recortar os trechos da televi-
são são entendidos também como um desafio à lógica midiática que coloca os
receptores – no caso, os próprios membros do Media Sana – como coadjuvantes
passivos dentro de todo o processo.
As “canções midiáticas” do coletivo são, ao mesmo tempo, disruptivas e
dialógicas. Elas aspiram questionar os meios de comunicação comerciais, o senso
comum de que o que aparece na TV, pelo simples fato de ser midiatizado, é ver-
dade, mas não como um questionamento que tem fim em si mesmo. A intenção é
divulgar para o público as múltiplas possibilidades de interpretação a que o ma-
terial veiculado pela mídia está sujeito, assim como a possibilidade de o próprio
público se tornar produtor de informação e cultura.
Ainda que sejam confrontacionais, as performances do Mídia Sana não
apontam para uma obstrução da mídia por completo, uma negação improdutiva e
paralisante dos meios de comunicação comerciais. Ao contrário, tentam fomentar
no público a capacidade de decodificarem ativamente as mensagens veiculadas
pela grande mídia para tornarem seu posicionamento mais participativo.
O Media Sana se insinua como uma provocação, um chamado ou con-
vite à prática midiática como um instrumento para o exercício da cidadania. O
coletivo pode atacar a primazia do mercado na atualidade ou o caráter manipu-
lador da publicidade utilizando-se de dados, números e citações de especialistas.
No entanto, a maneira como isso é feito, através dos fragmentos recombinados e
repetidos nas suas apresentações, tem um caráter eminentemente questionador e
aberto. A maior força discursiva do Media Sana está em transformar aquilo que é
dado como certo em pontos de interrogação.
Os integrantes do coletivo vêem suas performances como uma espécie
de inversão do entretenimento e do espetáculo, que se traduz no uso do humor em
ironias e paródias construídas a partir das recombinações visuais dos trechos tele-
visivos. Para os membros do Media Sana a diversão e a afetividade andam juntas
com a crítica mais incisiva e o apelo à cidadania. Quando perguntado sobre como
é possível conjugar política e diversão, Gabriel Furtado responde que:
Acho que isso tem a ver com a evolução da sociedade mesmo. As passeatas de
protesto não são quase sempre carnavalescas? Não acredito que as críticas te-
nham sempre que ser sisudas. Nos países do primeiro mundos já se manifestam
vários movimentos que conjugam as duas coisas, como o “reclaim the streets”.
No entanto, me parece que a intenção é mais inversa: fazer da diversão um ato
político. Às vezes penso que é uma mudança de paradigma mesmo.
do FMI foi feita na Argentina e chegou a outros países da América Latina. Logo,
o dinheiro se transformou também em um meio de crítica à instituição financeira
mundial e suas intervenções em economias domésticas em outros países.
O carimbo do FMI é uma iniciativa do coletivo Poro, formado na capi-
tal mineira por volta de 2002 pela dupla Marcelo Terça-Nada, fotógrafo e web-
designer, e Brigida Campbel, designer gráfica e ilustradora, que anteriormente
participavam de outro coletivo, o GRUPO, originado na Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais. Desde a sua constituição, o Poro tem pro-
duzido intervenções urbanas das mais variadas espécies, em que o foco principal
no espaço público é trabalhado em atividades de cunho efêmero e lúdico.
As asserções do grupo são marcadas pela sutileza, ao apelarem, na maio-
ria das vezes, para o aspecto afetivo e sensitivo e não para o discurso verbal. A crí-
tica ao sistema (econômico, social, simbólico) vigente está presente nos trabalhos
do Poro, assim, de uma forma oblíqua, por vezes poética ou suavemente irônica,
da mesma maneira em que são experimentais e efêmeras as alternativas propostas
pelo coletivo a estes sistemas. Para o Poro, o campo de atuação é o dia-a-dia da
urbe; a cidade é entendida sempre como um lugar de diálogo, de troca de expe-
riência e de afeto com o outro. Assim, as ferramentas que o coletivo utiliza estão
enraizados no cotidiano: carimbos, panfletos, cartazes, lambe-lambes e outdoors.
Há ainda a transformação de objetos ordinários, cédulas monetárias e camisetas,
por exemplo, em mídias, mas é a própria concepção da cidade como lugar de
experiência comunicacional que as atividades da dupla sugerem, como se o gru-
po incorporasse e pretendesse potencializar a polifonia citadina que Canevacci
(1993) acredita permear o tecido urbano.
O Poro enumera seis objetivos para suas ações: 1) apontar sutilezas; 2)
criar imagens poéticas; 3) trazer à tona aspectos da cidade que se tornam invisí-
veis pela vida acelerada nos grandes centros urbanos; 4) estabelecer discussões
sobre problemas da cidade (falta de cor, crescimento não sustentável, concreto/
vegetação etc.); 5) refletir sobre as possibilidades de relação entre os trabalhos em
espaço público e os espaços expositivos “institucionais” como galerias, museus
etc.; e 6) reivindicar a cidade como espaço para a arte.
Com este espírito, diversos trabalhos foram desenvolvidos. Em uma ação
semelhante à distribuição de cédulas monetárias com o carimbo do FMI, o Poro
colocou em prática o projeto “Propaganda política dá lucro!!!”. Nos períodos elei-
torais de 2002 e 2004, o coletivo confeccionou um santinho tipográfico que anun-
ciava o “Curso Profissionalizante Cara-de-pau”, que prometia formar publicitá-
rios free-lance em apenas uma semana para trabalharem com marketing político
Henrique Mazetti 115
nas eleições. O panfleto anunciava até mesmo a ementa do curso, que incluía entre
seus tópicos: “como vencer uma discussão sem precisar ter razão” e “estratégias
de sonegação fiscal e superfaturamento de orçamentos”. Distribuído em locais
públicos e em situações como palestras, filas e pontos de ônibus, o panfleto foi
ainda afixado em quadros de aviso, paredes de bar, bancas de jornal e galerias
de arte. Foi colocado junto aos demais folders, flyers e cartões de divulgação em
cinemas, centros culturais e outros lugares que dedicam um espaço para a oferta
de anúncios desse tipo. Finalmente, foi digitalizado e distribuído pela Internet por
e-mail, em uma tentativa de se criar uma espécie de corrente.
Já no Fórum Social Mundial de 2004, o grupo produziu camisetas com
uma paródia do slogan da corporação agrícola multinacional Monsanto, uma das
maiores responsáveis pela disseminação de sementes transgênicas no mundo. O
epíteto escolhido pela empresa continha apenas o verbo “Imagine” (provavelmen-
te associando suas práticas de adulteração genética das sementes à construção de
um possível futuro melhor); a camiseta produzida pelo Poro continha os dizeres
“Imagine... um mundo onde as sementes já nascem mortas... Este mundo é pa-
trocinado pela Mon$anto” (agregando ao slogan da empresa o fato de que suas
sementes geneticamente modificadas eram estéreis).
O uso do humor e da paródia nos trabalhos do Poro, mesmo que de modo
singelo, apontam para a mesma lógica bakhtiniana de carnavalização que caracte-
riza a reciclagem midiática posta em prática pelo Media Sana. Opera-se, nos dois
grupos, uma tentativa de recodificar os signos culturais, não para oferecer um
outro sentido dominante, uma verdade “mais justa”, mas para abrir diferentes pos-
sibilidades de interpretação. Assim como o coletivo multimídia de Pernambuco,
a dupla mineira pretende produzir inquietação e transformar aquilo que era dado
como natural em momentos de reflexão. No entanto, este deslocamento não se dá
somente por meio de paródias de slogans de corporações multinacionais ou santi-
nhos. Ao mesmo tempo em que o Poro investe esforços nestes tipos de empreita-
das, também atua em intervenções de maior cunho poético, em que a experiência
urbana se torna objeto de questionamento de modo mais sensível e abstrato.
Assim, em 2004, com o objetivo de “salpicar um pouco de poesia” nos
transeuntes da cidade de Belo Horizonte, o coletivo produziu centenas de rosas
de papel celofane vermelho e plantou-as em um canteiro abandonado em uma das
principais avenidas da cidade. No mesmo ano, o grupo criou uma “enxurrada de
letras” nas ruas do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, ao espalhar letras
feitas com papel cartolina como se elas estivessem escorrendo de canos e escoa-
douros de água por mais de trinta pontos do bairro.
116 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL
O Poro explica que “muito nos incomoda o fato de que tudo hoje em dia
vira ‘mídia’ para a publicidade – há propaganda num número cada vez maior de
lugares: nos postes de iluminação, dentro dos ônibus, na mesa do bar, no guarda-
napo de papel”. Assim, a dupla sustenta a possibilidade de que suas intervenções
trabalhem a favor de uma retomada do espaço público frente à invasão publicitá-
ria no dia-a-dia: “o espaço simbólico das cidades não pode ficar nas mãos da pu-
blicidade, que utiliza o espaço público como se fosse um espaço privado”, explica
o coletivo, ao justificar suas ações.
Ao contrário de outros coletivos artísticos e ativistas, que agregam a arte
como um horizonte de atuação possível, mas não fundamental, as iniciativas do
Poro partem do campo artístico para reverberar suas posições políticas e pôr em
prática a tentativa de ressignificar os meios de comunicação. Entretanto, a con-
cepção de arte que emana dos trabalhos do Poro não se enquadra, pelo menos de
imediato, nas obras de arte que preenchem galerias e museus e convidam o públi-
co à contemplação. Pelo contrário, como garante em seu site, o coletivo acredita
em uma arte que “crie relações entre pessoas” – ou seja, uma arte que seja, funda-
mentalmente comunicativa e participativa.
Terça-Nada observa que a intenção do Poro é levantar questões sobre os
problemas da cidade e realizar “uma ocupação poética dos espaços”. Segundo
o artista: “acreditamos que a cidade deve ser cada vez mais reivindicada como
espaço para a arte. Através de nossas ações, tentamos problematizar a relação das
pessoas com a arte, a relação das pessoas com a cidade e a relação da arte com a
vida.” A noção de uma arte que se volta para a vida, em contraposição com a arte
voltada para si mesma, é um projeto que, de acordo com o teórico alemão Peter
Bürger (1984), teria se iniciado a partir das manifestações das vanguardas histó-
ricas européias, cujo objetivo era reintegrar a arte no contexto cotidiano. Para o
autor, foi neste período em que se tornou possível a identificação e a crítica da arte
como uma instituição, autonomizada da vida.
Burgüer (op. cit.) sugere que os movimentos de vanguarda europeus do
início do século podem ser definidos como um ataque ao estatuto da arte na so-
ciedade burguesa. Não como uma negação de uma forma anterior de arte – ou
seja, um estilo – nem como uma demanda de que as obras de arte devessem ser
socialmente significantes, pois o que as vanguardas históricas colocavam em jogo
não se relacionava com o conteúdo de trabalhos individuais. Para o autor, a crítica
das vanguardas históricas se direcionava à maneira como a arte funcionava na
sociedade, ou seja, seu efeito social.
Henrique Mazetti 117
Considerações finais
“Poucos conceitos resistem tanto a uma definição categórica quanto o de
resistência”, afirma Freire Filho (2007, p. 13). Isto se deve, em parte, à intensa
polissemia que o termo irradia nos debates atuais. Outrora circunscrita a manifes-
tações coletivas, organizadas, de grande amplitude e que visavam transformações
estruturais e sistemáticas da sociedade, a concepção de resistência abriga agora
também diferentes atividades localizadas, cotidianas, muitas vezes individuais,
que enfatizam a mudança nos fluxos de poder, mesmo que temporariamente, e
atentam aos processos de produção de subjetividade.
É inegável que a abertura semântica do termo propiciou algumas apro-
priações intelectuais, no mínino, dúbias – para críticos mais comedidos – ou sim-
plesmente populistas e acríticas, para aqueles que se vinculam a uma linha de
pensamento maximalista ou mais ortodoxa. Mas, é patente, também, o fato de
que a emergência de novas modalidades e estratégias de resistência e luta não se
devem somente a mudanças de quadros teóricos, às divergências epistemológicas
ou às diferentes posições políticas dos analistas sociais que tomam por objeto as
práticas de contestação e dissenso na contemporaneidade. Mudanças concretas
nas conjunturas políticas e socioeconômicas também podem explicar o surgimen-
to de manifestações que se pretendem resistentes, mas que se recusam a apenas
emular os tradicionais modelos de questionamento, procurando novas maneiras
de formular críticas e propor alternativas às configurações sociais sedimentadas.
É sob o prisma da busca de opções e do gosto pela experimentação que
as manifestações dos coletivos artísticos e ativistas nacionais contemporâneos são
melhor interpretadas, mas não, necessariamente como uma substituição das mais
tradicionais modalidades de crítica. Invalidar determinadas práticas de dissenso
em favor de atividades contemporâneas que ainda não terminaram de germinar e
das quais ainda pouco se sabe é uma atitude, no mínimo, contraproducente. Ao
mesmo tempo, é preciso continuar investigando as maneiras como o poder se legi-
tima e se naturaliza na atualidade, assim como não se pode ignorar as experiências
alternativas e as idéias que buscam desestabilizar o senso comum.
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120 RESISTÊNCIAS CRIATIVAS: OS COLETIVOS ARTÍSTICOS E ATIVISTAS NO BRASIL
Matteo Pasquinelli
em grande medida fora dessa definição: depois de muitos anos, Tony Blair ainda
está roubando nossas idéias. Tentemos um outro retrospecto.
Em primeiro lugar, existe uma genealogia européia. Adorno e Horkhei-
mer moldaram, em 1944, o conceito de “indústria cultural” como uma forma de
“decepção em massa” no seu Dialética do Esclarecimento. No início dos anos 90,
o pós-operaísmo italiano (no exílio ou não) introduziu os conceitos de trabalho
imaterial, intelecto geral, capitalismo cognitivo, cognitariado, como as formas
emergentes do poder autônomo das multidões (autores como Negri, Lazzarato,
Virno, Marazzi, Berardi). Neste mesmo período, Pierre Lévy falava de inteligên-
cia coletiva. Posteriormente, a partir de 2001, a mobilização transnacional do
Euro May Day interligou trabalhadores precários e trabalhadores cognitivos sob a
sagrada proteção de São Precário.
Em segundo lugar, há uma genealogia anglo-americana. Durante a era
de ouro da cultura de rede, o debate em torno das ICT55 e da nova economia vi-
nha freqüentemente ligado à economia do conhecimento (conceitualizada por Peter
Drucker nos anos 60). Em 2001, o debate do copyleft ultrapassou as fronteiras do
Software Livre e estabeleceu as licenças Creative Commons. Em 2002, o best-seller
The Rise of the Creative Class de Richard Florida (baseado em evidências estatísti-
cas controversas) disseminou conceitos da moda como o de economia criativa.
Depois de anos fetichizando o trabalho precário e uma economia da dá-
diva abstrata, acontece (espera-se) agora uma virada copernicana: a atenção se
desloca para o trabalho autônomo e para a produção autônoma. Uma nova cons-
ciência surge em torno da criação de sentido, isto é, criação de valor e – conse-
qüentemente – criação de conflito. Trata-se do re-engajamento político de uma
geração de trabalhadores criativos (ao invés de ficarem misturados com os traba-
lhadores de chão-de-fábrica56) e, ao mesmo tempo, o engajamento “econômico”
de uma geração de ativistas (tal como o movimento de Seattle, mais preocupado
com questões globais do que a sua própria renda). Minha criatividade = meu va-
lor = meu conflito. E vice-versa.
uma investigação dos processos sociais que se desenvolvem por trás da criativi-
dade, o poder criativo do desejo coletivo e a natureza política de qualquer produto
cognitivo (idéia, marca, mídia, artefato, evento). Pergunta: o quê, ou quem produz
o valor? Resposta: a “fábrica social” produz a maior parte do valor (e do confli-
to). Depois disto, focalizo o espaço político da competição cognitiva. Não me
concentro nas condições de trabalho ou políticas neoliberais dentro da Indústria
Criativa, e sim na vida pública dos objetos imateriais. Coloco os produtos cogniti-
vos em um espaço de forças, delineando tais objetos a partir do exterior, ao invés
do interior. Esta é uma tentativa de responder a uma outra pergunta: se a produção
se torna criativa e cognitiva, coletiva e social, quais são os espaços e as formas de
conflito? Como conclusão, apresento o cenário de uma “guerra civil imaterial”,
um espaço semiótico do qual a Indústria Criativa é apenas uma pequena parte.
Até aqui parece um cenário linear, mas há também uma zona cinzenta
a se levar em consideração: a massificação da atitude “criativa”. “Todo mundo é
criativo” é um slogan comum hoje. Muitos anos depois da obra-de-arte de Benja-
min, o artista de massa entra na era da sua reprodutibilidade social, e a “criativi-
dade” é vendida como um símbolo de status. A base social da Indústria Criativa
está se tornando maior (pelo menos no mundo ocidental) e revela novos cenários.
Num primeiro momento, a Indústria Criativa torna-se hegemônica (como um fato
e como um conceito). No segundo, ela enfrenta uma entropia de significado e de
produtores. Graças à internet e à revolução digital, testemunhamos todos os dias
os conflitos desse último estágio.
Todas as diferentes escolas anteriormente apresentadas focalizam, cada
uma, uma perspectiva diferente. Para clarificar o assunto, temos que dividir a
questão em seus componentes. A “coisa criativa” poderia ser decomposta em:
trabalho criativo (como trabalho autônomo ou dependente); criatividade, como
faculdade e produção; o produto criativo (com todas as suas camadas: hardware,
software, knoware, marca, etc,); a livre reprodutibilidade do objeto cognitivo; a
propriedade intelectual sobre o produto em si; a criatividade social por trás dele; o
processo de valorização coletiva em torno dele. Além disso, o grupo social de tra-
balhadores criativos (a “classe criativa” ou “cognitariado”), a “economia criativa”
e a “cidade criativa” representam contextos maiores e mais amplos.
A definição original de Indústria Criativa concentra-se na exploração da
propriedade intelectual. Os conceitos de Richard Florida de classe criativa e eco-
nomia criativa são baseados somente em estatísticas (controversas) e sobre a idéia
de uma agenda política para a IC alimentada por governos locais. Num outro ní-
vel, o Creative Commons trata de licenças abertas, uma solução formal para lidar
124 GUERRA CIVIL IMATERIAL
57 Fonte: www.creativecommons.org/about/history
58 N.T.: public welfare, no original.
Matteo Pasquinelli 125
valor de uso, mas também em outros tipos de valor, como valor-verdade e valor-
beleza (Lazzarato: “A psicologia econômica é uma teoria da criação e constitui-
ção de valores, enquanto a economia política e o Marxismo são teorias para medir
valores”) (idem, a tradução é minha).
A percepção crucial de Tarde refere-se à relação entre ciência e opinião
pública. De acordo com Lazzarato: “Para Tarde, uma invenção (científica ou não)
que não seja imitada, não é socialmente existente: para ser imitada uma invenção
precisa chamar a atenção, produzir uma força de ‘atração mental’ sobre outros cé-
rebros, mobilizar seus desejos e crenças por meio de um processo de comunicação
social. [...] Tarde descobre uma questão transversal a todo o seu trabalho: o poder
constituinte do público” (idem). Poderíamos dizer: qualquer idéia criativa que não
seja imitada não é socialmente existente e não tem valor. Em Tarde, o Público é o
“grupo social do futuro”, integrando pela primeira vez a mídia de massa como um
aparelho de valorização num tipo de antecipação do pós-fordismo. Além disso,
Tarde considera a classe trabalhadora em si como um tipo de “opinião pública”
unificada na base de crenças e afetos comuns, ao invés de interesses comuns.
A conexão Tarde-Lazzarato oferece um modelo mais competitivo ou di-
nâmico, onde objetos imateriais têm que enfrentar as leis da noosfera – inovação
e imitação – em um ambiente bastante darwinista. Tarde é também famoso por
introduzir a curva em forma de S para descrever o processo de disseminação da
inovação, outra boa sugestão para todos os planejadores digitais que acreditam em
um espaço livre e plano.
59 N.T.: street credibility, no original: expressão que indica credibilidade e aceitabilidade entre
pessoas, em especial entre os jovens e os simpatizantes da cultura do hip-hop.
60 N.T.: brainchildren, no original.
61 N.T.: referência ao ruído branco, barulho produzido pela combinação de diversos sons em
uma única onda, alusivo à mistura de diversas cores que produz o branco. O autor faz uma
metáfora da confluência de assuntos na sociedade atual.
62 N.T.: brain workers, no original.
128 GUERRA CIVIL IMATERIAL
De acordo com Harvey, a cultura produz hoje marcas de distinção que podem
ser exploradas pelo capitalismo através da venda dos bens materiais. Na escala de
uma cidade, as transações imobiliárias são o maior negócio acionado pela eco-
nomia do conhecimento. Qualquer espaço imaterial tem seus parasitas materiais.
Pensem no compartilhamento de arquivos e nos iPods.
Se o grau de disseminação cria o valor de um produto cognitivo, como
aponta Rullani, Harvey impõe um limite a essa valorização. Uma disseminação
que vai longe demais pode dissolver as marcas de distinção, culminando em um
produto de massa. Há uma finalização entrópica em qualquer idéia depois do seu
período hegemônico. Harvey destaca aí uma primeira contradição: a entropia das
marcas de distinção.
Uma vez que capitalistas de todos os tipos (incluindo os mais exuberantes dos
financistas internacionais) são facilmente seduzidos pelos prospectos lucrativos
de potências monopolistas, nós imediatamente percebemos uma terceira con-
tradição: que os globalizadores mais ávidos darão apoio a avanços locais que
tenham o potencial de gerar renda de monopólio, ainda que o efeito de tal apoio
seja produzir um clima político local antagônico à globalização!
mada “classe criativa” não é nada mais do que um simulacro do capital simbólico
coletivo para aumentar as marcas de distinção de uma dada cidade. A “classe cria-
tiva” é o capital simbólico coletivo transformado em marca antropomórfica e uma
renda de monopólio aplicada a partes distintas da sociedade (“classe criativa”), do
território (“cidade criativa”), da cidade em si (“distrito criativo”). A “classe cria-
tiva” é um simulacro parasita da criatividade social, que é separada do precariado
e anexada à classe superior.
Harvey aponta, este tipo de círculo vicioso funciona ainda melhor no caso da
resistência local. Os capitais globais precisam de resistência anti-global para me-
lhorar a renda de monopólio. Especialmente no caso dos trabalhadores criativos,
a resistência é sempre bem-educada e bem-concebida: e no caso de Barcelona
ela produz um ambiente excitante e nunca perigoso para a classe média global.
Inspirados pela história de Barcelona, introduzimos uma guerra civil imaterial no
espaço do capital simbólico.
7. Enfrentando o parasita
Parasita é a exploração paralela da criatividade social. Na verdade, há
modos de exploração do trabalho criativo que não são baseados na propriedade
intelectual e que produzem mais valor e conflito. Como vimos, Harvey introduz
a estrutura do “capital simbólico coletivo” e sugere que “intervenções culturais
possam elas mesmas se tornar uma arma potente da luta de classes”. Ativismo
político no setor cultural, indústria criativa e a nova economia têm sempre per-
manecido dentro desses recintos ficcionais, fazendo protestos locais e deman-
dando mais bem-estar cultural ou contratos estáveis. Contemporaneamente, uma
demanda mais radical para contrapor a exploração da criatividade social envolve
uma renda básica para todos (ver www.euromayday.org). Inversamente, Rullani
observa que um sistema de bem-estar transfere tanto a inovação quanto o risco
para o aparelho do Estado, reforçando-o. Contudo, o que Harvey sugere é tomar
medidas não apenas no nível de capital simbólico coletivo, mas também no nível
do parasita que explora o domínio cultural. Um ponto difícil para o pensamento
radical entender, é que toda a economia imaterial (e da dádiva) tem uma contra-
partida material, paralela e suja, onde o grande dinheiro é trocado. Veja o MP3 e
o iPod, P2P e ADSL, música livre e concertos ao vivo, estilo de vida de Barcelo-
na e especulação imobiliária, mundo das artes e gentrificação, marcas globais e
sweatshops63.
Uma forma de resistência sugerida por Harvey no caso de Barcelona, é o
assalto ao mito da “cidade criativa”, no lugar de reações do tipo “quero-ser-radi-
cal” que possam contribuir para torná-la ainda mais exclusiva. Se as pessoas dese-
jam reivindicar aquela mais-valia simbólica vandalizada por uns poucos especu-
63 N.T.: sweatshops: locais de trabalho com condições bastante difíceis e perigosas para as
pessoas.
134 GUERRA CIVIL IMATERIAL
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Midialivristas, uni-vos!
Adriano Belisário
Gustavo Barreto
Leandro Uchoas
Oona Castro
Ivana Bentes
cidadãos que, nesta condição, pouco podem fazer a não ser discordar com vee-
mência. É a conhecida figura do cara que fica sentado ao sofá, assistindo televisão
e reclamando do conteúdo nela exibido, sem qualquer repercussão a não ser na
própria família, que provavelmente já conhece suas opiniões.
Por outro lado, quando este mesmo grupo de cidadãos está em rede, esta
discordância vira uma reivindicação concreta: será agora um grupo de muitos, e
não “cada um na sua”, que reivindicará um posicionamento mais honesto para
determinada veiculação. Esta dinâmica de sociabilidade permite criar um novo
hábito cidadão, humano, que precisa, no entanto, de um respaldo desta rede. É
preciso pensar que estamos em rede por meio de nossas próprias pernas e que, se
desejamos mais democracia nos meios de comunicação, desejamos, com ainda
mais ênfase, uma revisão do próprio modelo de sociabilidade humana, pois o
atual, de “massa”, parece-nos ultrapassado.
Para a consolidação das mudanças desejadas, todos os cinco grupos reu-
niram em um manifesto uma síntese das reivindicações, que podem ser conferidas
na íntegra no site do Fórum. Um dos principais eixos do documento final trata da
implantação de “pontos de mídia” como política pública, integrados e articulados
aos pontos de cultura, veículos comunitários, escolas e ao desenvolvimento local,
viabilizando, por meio de infra-estrutura tecnológica e pública, a produção, dis-
tribuição e difusão de mídia livre. Trata-se de uma proposta central, pois busca
intrinsecamente a maior participação cidadã na vida política e social do país. Esta
rede ponto a ponto – tal como o modelo P2P, largamente utilizado hoje na Internet
– permitirá, por exemplo, que idéias como a realização de consultas públicas com
maior eficiência avancem, tornando-se instrumentos de radicalização da demo-
cracia participativa.
Outra proposta é o estímulo à criação e ao fortalecimento de modelos
de gestão colaborativa das iniciativas e mídias, como os sistemas de trocas de
serviços. Temos exemplos, entre os integrantes do Fórum de Mídia Livre, deste
tipo de intercâmbio, diretamente vinculado ao conceito de economia solidária,
gerador de renda e trabalho. São alternativas flexíveis e mais sintonizadas com
uma economia em que os bens intelectuais não são escassos e onde se atua em
rede, permitindo aos produtores de conteúdo abrir mão do modelo concentrador
de distribuição de obras artísticas.
Belisário, Barreto, Uchoas, Castro, Bentes 141
Gerardo Silva
des de definição quando vinculada a critérios tais como tamanho, atividades eco-
nômicas principais ou especialização funcional (cf. Lacour et Puissant, 1999).
elemento que não encontra lugar nas concepções antigas da cidade. Tampouco
os elementos de centralidade podem ser mais os mesmos. Mas é a velocidade das
comunicações (e das transformações) e os desequilíbrios monstruosos que ela
provoca que espantam Le Corbusier. A velocidade dos automóveis, a velocidade
do crescimento urbano, a velocidade da produção, a velocidade dos negócios. O
resultado é o caos e o congestionamento. Para ele, a conseqüência é muito clara:
ou a cidade se aparelha ou ela perece.
O embasamento dessas premissas possui, em Le Corbusier, um aliado
fundamental: a estatística. Os fatos que demonstram a emergência da grande ci-
dade com seus problemas específicos, não são constatações arbitrárias, mas evi-
dências comprováveis através de dados, gráficos, curvas e tendências. Com ajuda
dessas ferramentas, com efeito, é possível construir uma cartografia estatística da
cidade, da sua população, das densidades, da distribuição das atividades, da ocu-
pação do solo, da circulação. “Por virtude da estatística”, diz Le Corbusier, “po-
demos em um instante, mesmo sendo alheios às complexidades de uma questão,
tomar conhecimento dela e, com um espírito criador, discernir direções seguras”
(Urbanismo, [1925] 2000, p. 100). Contudo, será preciso ainda multiplicar as es-
tatísticas, ampliar sua capacidade de revelar aspectos pouco visíveis porém vitais
para o desenvolvimento da grande cidade.
Um segundo elemento de constatação dessas premissas é a opinião públi-
ca expressa através dos jornais. Por um lado, ela se encarrega de expor cotidiana-
mente os problemas ocasionados pela inadequação da cidade às novas exigências
do maquinismo. Os relativos à circulação são os mais graves, mas também apare-
cem, nos recortes de jornais que Le Corbusier seleciona, problemas vinculados à
moradia, à deposição do lixo, à saúde pública. Por outro lado, os mesmos jornais
são responsáveis pela difusão de um termo que, até esse momento, permanecia
sem contornos definidos: urbanismo. O urbanismo, com efeito, é a ciência da
grande cidade, isto é, a ciência que nasce junto com ela como arte de governá-la
através do controle e do planejamento. Anos depois, com a publicação da Carta
de Atenas (1943), Le Corbusier outorgará a esse termo uma extensa definição
conceitual.
Por último, antes de apresentar a idéia da cidade contemporânea, Le Cor-
busier volta a insistir, como o tinha feito anos um ano antes em Por uma arqui-
tetura (1923), no fato de que os meios estão prontos para a solução. Trata-se de
problemas de grande escala que exigem tratamento em grande escala. Entre me-
dicina e cirurgia, ele diz, é preciso cirurgia. Para exemplificar semelhante poder
de intervenção segue-se a “lição da barragem”:
Gerardo Silva 149
de diminuir seu número e seus cruzamentos (“O cruzamento das ruas é o inimigo
do trânsito”). A rua moderna, para Le Corbusier, deve ser uma obra-prima de
engenharia civil e, sobretudo, uma rua sem pedestres. No projeto da Cidade Con-
temporânea isso é possível criando circulações exclusivas para os automóveis e
circulações internas para pedestres, entre os prédios e os quarteirões.
No que diz respeito à composição arquitetônica, que é o que interessa
principalmente a Le Corbusier, o Plano da Cidade apresenta uma combinação
de “arranha-céus” e “habitações de cidade”, distinguindo, entre as últimas, aque-
las construídas em loteamentos com reentrâncias (ou de residência luxuosa) e as
construídas em loteamentos fechados. Os “arranha-céus”, construídos no centro
da cidade, também chamados de prédios cartesianos, possuem sessenta andares;
as habitações em loteamentos com reentrâncias, seis; e as de loteamentos fecha-
dos, cinco; e todos eles distribuídos em grandes quarteirões de 400 metros, o
tamanho ideal a percorrer até as estações do metrô. Para Le Corbusier: “Cumpre
industrializar a construção (...). Urge reformar o espírito do pedreiro fazendo-o
entrar na engrenagem severa e exata do canteiro de obras industrializado” (Urba-
nismo, [1925] 2000, p. 165).
***
veis. Contra essa última acusação, Le Corbusier se defende dizendo que no fundo
o Plano Voisin é uma operação financeira em que os ganhos de incorporação são
entre 4 a 5 vezes maiores que o valor incorporado atual. Afinal, trata-se do centro
de Paris, uma das capitais da Europa.
Por sua vez, as críticas da esquerda e do campo progressista visam dois
elementos defendidos por Le Corbusier. Em primeiro lugar, a sua aberta defesa
das reformas do Barão Haussmann. Para o arquiteto, com efeito, essas reformas,
mesmo que limitadas, foram providenciais para o funcionamento da cidade na
segunda metade do século XIX. Sem elas, Paris teria perecido por congestiona-
mento. Já para os críticos da esquerda, essas reformas apenas visavam o controle
das manifestações populares, abrindo a cidade para uma entrada mais contunden-
te das forças repressivas. Em segundo lugar, Le Corbusier nunca escondeu seu
posicionamento perante a revolução de 1917. Em Por uma Arquitetura, livro-
manifesto da arquitetura moderna, escreve: “Um grande desacordo reina entre um
estado de espírito moderno que é uma injunção e um estoque asfixiante de detritos
seculares (...). Tudo está aí, tudo depende do esforço que se fará e da atenção que
se concederá a esses sintomas alarmantes. Arquitetura ou revolução. Podemos
evitar a revolução” ([1923] 2002, p. 205, destaque nosso).
Por último, também incomodam a Le Corbusier as críticas em termos de
“futurismo” e “utopia”. Quanto ao primeiro, por mais simpático que seja o rótulo,
pelo fato de vincular sua proposta com o movimento artístico que na Itália assu-
mia a era da máquina como paradigma estético para construir uma visão de futuro,
ele entendia que sua proposta não era para elaborar uma visão do futuro, mas do
presente. Além do mais, ele diz, não se trata de uma fascinação pela beleza (efê-
mera) da máquina, mas de uma engenharia estrutural e duradoura. Com relação à
utopia, nada mais distante da sua perspectiva. O seu esforço por colocar em relevo
os meios e as possibilidades técnicas e concretas do urbanismo é justamente para
tornar o urbanismo uma eventualidade real: “Não parto para construir minha cida-
de na Utopia. Afirmo: é aqui [e agora], e nada mudará isso” (Urbanismo, [1925]
2000, p. 281, destaques do autor).
Ora, quem é que poderia levar adiante um plano dessa envergadura, que
é literalmente um plano de reconstrução? Qual o ator com poder suficiente para
mudar as regras do jogo da cidade e para mobilizar energias e recursos nessa
direção? Esse agente chama-se Estado. Não necessariamente o governo de um
Estado-nação, mas o governo de uma cidade com os poderes do Estado. Poderes
para expropriar, para derrubar, para reorganizar, para construir, para fiscalizar. O
poder que se requer para essa tarefa é, portanto, um poder novo. Um poder que as
prefeituras não conhecem, ou que conhecem excepcionalmente. Assim, boa parte
da obra de Le Corbusier será a de insistir na constituição de uma vontade coletiva
(não necessariamente democrática) capaz de enxergar o problema da grande cida-
de e de colocar as prefeituras e os poderes locais “à altura dos tempos”.
Mas, por que a cidade? Eis provavelmente o fio da meada da nossa inda-
gação. Talvez no início tenha sido apenas um “vício” profissional, posto que Le
Corbusier era arquiteto e os arquitetos estão sempre de olho na cidade. Depois
soubemos, entretanto, que além do vício profissional sua própria concepção do
trabalho arquitetônico levou-o para a cidade de um modo mais específico (“O ur-
banismo é o suporte da arquitetura”). Porém, nessa passagem, e essa é a principal
hipótese que defendemos aqui, o que descobriu foi o caráter produtivo da cidade,
ou melhor, o vínculo estreito e indissolúvel entre o vertiginoso crescimento das
cidades e o novo regime de produção industrial. De maneira intempestiva, com
efeito, Le Corbusier intersectou a modernidade na sua crise e reformulação, isto
é, no momento em que o capitalismo industrial apoderou-se definitivamente da
cidade para transformá-la à sua imagem e semelhança64. Nesse sentido, parece-
nos que o radicalismo, mas, sobretudo, o estupor causado pela Cidade Contem-
porânea e o Plano Voisin, devem-se mais ao acontecimento que exprimem do que
propriamente às imagens que projetam.
Contudo, as imagens contêm uma carga simbólica explosiva: a força que
pode tanto destruir quanto construir a cidade é a mesma. E aqui, diferentemente
dos críticos contemporâneos de Le Corbusier, acreditamos que sua intenção não
era a de acabar com a cidade, mas a de restaurá-la sobre bases diferentes. Afinal,
mesmo projetada sobre uma imagem “maquínica”, a cidade contemporânea re-
produz as hierarquias e as formas de segregação urbana herdadas do século XIX.
Por um lado, o desenvolvimento de uma centralidade dura que, ainda que sob
numa fisionomia inteiramente diferente, não deixa de operar no plano simbólico-
institucional; pelo outro, um conjunto de medidas de correção da expansão de-
64 Quando Le Corbusier publica a Carta de Atenas, em 1943, quase 20 anos depois da publi-
cação de Urbanismo, essa passagem já está completada.
Gerardo Silva 155
sordenada dos subúrbios, porém mantendo sua população próxima das indústrias
e separada do centro e das áreas residenciais de luxo por um extenso cinturão
verde não-edificável cuja função, segundo Le Corbusier, é a de “permitir à cidade
respirar”. E devemos assinalar que, a julgar pela enorme influência exercida por
seu pensamento ao longo do século XX, ele foi bem sucedido nessa empreitada.
Como afirma novamente Lewis Mumford ([1962] 1969):
Referências
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HARVEY, David. A Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
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ris: Antrophos, 1999.
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MUMFORD, Lewis. A Cidade na História. Suas origens, transformações e perspec-
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novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SIMMEL, Georg. “A Metrópole e a Vida Mental [1903]” in Otávio Velho, O Fenôme-
no Urbano. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.
Rodrigo Guéron
nas espalhadas pela cidade. Muito se fala sobre o papel agregador e politicamente
estratégico do candomblé – às vezes funcionando quase como uma maçonaria
negra – para estas comunidades desde a Bahia. É neste raciocínio que se atribui à
Tia Ciata, mãe de santo (além de ser, na prática, uma empresária negra, talvez a
única), uma atuação política chave na fundação das Escolas de Samba.
Foi, de fato, uma decisão de certa maneira política que os sambistas de
diversas comunidades tomaram nos encontros em sua casa. A despeito da compe-
tição existente entre as várias escolas para ver qual seria a primeira, não há dúvida
de que figuras como Ismael Silva, da Deixa Falar, Argemiro e Cartola, da Man-
gueira, Paulo da Portela e outros, decidiram juntos fundar em suas comunidades
uma agremiação. Por que então esta estratégia?
É como se parecesse aos sambistas, e à própria Ciata, que a força do
samba como expressão artística, dança, música, performance, combateria o estig-
ma social, apaziguaria a repressão do Estado; enfim, as comunidades poderiam
produzir sua alegria, sua festa, e atrairiam mais gente para elas, numa produção
socialmente respeitada e influente. O próprio ato de registrar em cartório faria par-
te desta estratégia. O samba, agora “legal”, exerceria uma espécie de resistência
afetiva à segregação, à repressão e ao preconceito, usando a própria sedução da
música e da dança como uma espécie de desarme do biopoder. De alguma forma
era preciso fazer os brancos dançarem, como numa doce armadilha espinosista:
afetos alegres, corpos contagiados... Quem poderia resistir?
O novo mapa da cidade era então o novo mapa do carnaval do Rio. De
um lado, no centro da cidade “higienizado” pelo bota-abaixo, nas grandes ave-
nidas abertas no centro entre os prédios de arquitetura neoclássica fake, eclética,
Europa fake em geral, o carnaval dos brancos, que contava com o entusiasmo e a
promoção dos colunistas de jornais e da imprensa em geral. De outro, ainda antes
das escolas de samba, o carnaval da Pequena África, onde o centro era a Praça
Onze, o carnaval dos negros, mestiços, e de quem mais quisesse ir àquele “territó-
rio”. Uma tropa da cavalaria cuidava de guardar a fronteira entre a Pequena África
e o “novo centro”, onde o carnaval era formado por glamurosos bailes como os do
Teatro Municipal (uma cópia arquitetônica reduzida do Opera de Paris), o desfile
das grandes sociedades com seus luxuosos carros alegóricos, e os corsos, onde a
aristocracia exibia seus magníficos automóveis recém chegados da Europa e dos
Estados Unidos.
Porém os cordões, antecessores das escolas de samba, não desfilavam só
na Pequena África; eles desciam dos morros e podiam aparecer em muitos bair-
ros, onde eram implacavelmente perseguidos pela imprensa que pedia uma ação
162 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA
enérgica da polícia; esta, por sua vez, agia. Os encontros de cordões eram às vezes
de uma grande violência. Conta-se inclusive que as alas de baianas eram formadas
por homens com facas escondidas sob as saias rodadas, e o mestre-sala, que veio
a ser uma espécie de primeiro bailarino das escolas de samba, era o mais forte e
hábil brigador de todos: o que deveria proteger o estandarte da escola.
Aí está o exemplo da transformação dos cordões para a escola de samba.
Uma bela moça passou a levar o estandarte, “protegida” por aquele que pouco
a pouco não precisava mais ser o mais forte, porém o mais exímio dançarino. A
dança dos dois, a propósito, tornou-se uma dança própria, uma técnica peculiar,
bem distinta da dos outros passistas. Da mesma maneira, na frente das escolas de
samba recém fundadas iam os mais velhos da comunidades, o mais elegantemente
vestidos possível, com ares de respeitáveis senhores, saudando o público e pedin-
do passagem, com a função de mostrar que ali não vinha um cordão “ violento”,
mas uma escola de samba com toda a sua arte e alegria.
pelo simples fato de não ser getulista. Consta até mesmo que seria a associação
simpática ao ditador que teria feito a proposta ao governo, qual seja, as escolas
de samba seriam oficializadas e tornadas símbolos da cultura do Rio e do Brasil,
se cantassem sempre nos carnavais sambas que falassem da história, da “cultura”
(em particular do folclore) e das “belezas naturais” do Brasil.
Mesmo com este “acordo nacionalista”, num dado momento o Estado
nacional getulista dá o que parecia ser um golpe de morte nas Escolas de Samba,
que foi de fato um golpe na “Pequena África”, nome que rapidamente seria esque-
cido. Expressão do desenvolvimentismo, faz passar uma gigantesca avenida – a
Av. Presidente Vargas – por cima da Praça Onze, que sofre assim, décadas depois
da operação higienista do Prefeito Pereira Passos, o seu próprio “bota-abaixo”.
É quando Grande Otelo, que parece ter vivido e ajudado a inventar quase todas
as imagens – e clichês – do samba em sua carreira, compõe: “Vão acabar com a
Praça Onze, não vai haver mais Escolas de Samba...”.
Mas elas não acabaram. Os Estado Novo deu aos negros um lugar no car-
tão postal da paisagem desenvolvimentista urbana do Rio. De uma maneira ou de
outra, o poder percebeu que não adiantava mandá-los cada vez mais para longe. A
palavra cartão postal parece neste caso realmente adequada, uma vez que a opera-
ção de captura era sem dúvida uma tentativa de regulamentação e disciplinamento
da impressionante força dos deslocamentos, das performances e das imagens do
samba. No cartão postal, o samba, homens e mulheres negras, são devidamente
disciplinados num clichê. Assim, por exemplo, a beleza da dança das cabrochas
– a dança das mulheres negras – transformara-se em “mulata exportação” do de-
senvolvimentismo do Rio cidade turística, férias de estrelas de Hollywood.
O samba serviria, uma vez disciplinado, sobretudo ao que o Estado Novo
buscava: como vimos, um Estado a procura de um “povo” e de uma “identidade
nacional”. Assim, sorridente, dançando, simpático “cordial”, parecia ser adequa-
do que o negro entrasse no molho da mestiçagem. Depois de tanto bota-abaixo,
de tanto higienismo parcialmente mal sucedido por estas resistências biopolíticas
que não paravam de acontecer, os poderes constituídos já não podiam mais fazer
o discurso positivista e explicitamente racista. Mesmo o “mercado”, a “indústria
cultural”, não poderiam abrir mão da impressionante capacidade produtiva que
vem de toda esta multiplicidade. É neste momento inclusive que alguns sambas
que exaltam a malandragem são censurados e os sambistas aceitam mudar a letra
para a exaltação do trabalho. O samba é então parcialmente – e apenas parcial-
mente – capturado nesta engenhosa operação que transforma as mil e uma mo-
dulações que constituem a mestiçagem do povo brasileiro na imagem do “povo
166 POTÊNCIAS DO SAMBA, CLICHÊS DO SAMBA
passarela oficial do desfile pago, nas semanas que antecedem o carnaval, fazendo
assim o seu próprio desfile. Tudo isso, evidentemente, ganhando rapidamente as
páginas dos jornais, os folhetos turístico, o novo clichê cartão-postal do ano que
virá.
Referências:
AZEVEDO, Celia M. Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das
elites do século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
COUTINHO, Eduardo Granja. Os Cronistas de Momo. Rio de Janeiro, editora UFRJ,
2006.
DELEUZE, Gilles. L`Image-Temps. Paris, Lês Edition de Minuit, 1983.
FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique – Cours au Collège de France.
1978-1979, Paris, Gallimard/Seuil, 2004.
GUÉRON, Rodrigo. Cinema e Clichê, o Niilismo na Imagem. Tese de doutorado apre-
sentada no departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Rio de Janeiro, 2004.
REVEL, Judith. Michel Foucault – Expériences de la pensée. Paris, éd. Bordas,
2005.
Cristina Ribas
68 Este texto foi apresentado em formato de palestra na série de colóquios: Cultura, Trabalho,
Natureza na Globalização, organizado pela Universidade Nômade e a Casa de Rui Barbosa no
Rio de Janeiro, em abril de 2008. Retornei ao texto inicial incorporando reflexões teóricas e
experiências desenvolvidas desde então e transformando-o no presente artigo.
69 Para diferenciar o termo “trabalho” relacionado à noção de serviço ou a investigação a partir
das teorias do trabalho do conceito de “obra de arte” usarei neste artigo o termo em itálico quan-
do se referir à criação artística (visto que muitas vezes diz-se “trabalho de arte”) .
172 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES
A pesquisa
Em meu atelier dispus em um papel diversos termos que tentam perfazer
uma relação entre “arte” e “trabalho”: “negar” um em relação ao outro, “camu-
flar” um no outro, “duvidar”, “convergir”, “assumir”. Neste artigo, faço um relato
não linear de alguns trabalhos de arte realizados por mim entre 2004 e 2008, que
são lançados, sobretudo, com base na proposição de um “serviço” e algumas ve-
zes não estão dedicados à produção de objetos materialmente estáveis (esculturas,
instalações, etc. dados à experiência estética visual ou sensorial).70
71 Jacques Rancière denomina “regime estético das artes” referindo-se aos valores e caracte-
rísticas estilísticas típicas da arte pré-moderna e moderna.
Cristina Ribas 175
constitui enquanto arte parece ser então o afeto puro, um “bloco de sensação” que
não consegue ser atravessado por outra experiência.
Divisão do trabalho
“Procuro Ofereço” é um “trabalho de arte” que começou a ser realizado
em 2003 a partir de um cartaz encontrado em postes nas ruas de Belo Horizonte.
Chamou-me a atenção que um mesmo profissional acumulasse tantos serviços,
condição explícita pelo enunciado “BOMBEIRO GAZISTA ELETRICISTA”.
Diferente de uma divisão do trabalho, o cartaz apresentava uma sobreposição de
capacidades (e porque não de saberes), um sintoma que expunha a relação de ser-
viços de outra forma. Na divisão do trabalho uma alienação conserva cada um em
seu lugar, os trabalhadores implicados em um mesmo processo produtivo, que são
relacionados por um poder de associação que os aparta e não permite constituir
uma cooperação. Existe na divisão uma subjugação a uma estrutura majoritária
que valora e controla as partes (a montagem na fábrica, por exemplo).
Então, no espaço público da cidade, sobre o poste, expõe-se uma saída
econômica desesperada, calcada na acumulação de serviços delatando a condi-
ção múltipla e criativa de um mesmo homem que poderia estar lá, num processo
produtivo controlado. Aquele que se faz desdobrado em tantos outros torna-se,
contudo, uma nova forma produtiva. Não se pode dizer se está por fora das tro-
cas econômicas, mas de fato atinge o manancial economicamente mais denso em
pontos de intersecção frágeis, e não estáveis. Impossível garantir sua atuação em
relação a uma carreira, a uma promoção profissional, por exemplo.
A semelhança entre este homem múltiplo e a figura do artista muito me
tocou. Os artistas, à sua forma, elaboram uma capacidade similar de conciliar em
um mesmo corpo uma grande quantidade de capacidades produtivas. No primei-
ro ensejo da fusão operação artística-trabalho me interessava investigar também
qual a medida do esforço e qual a medida do cansaço cuja fadiga corporal sinali-
zaria uma “jornada”. Uma vez que o tempo criativo é muito difícil de mensurar,
pode-se acabar trabalhando o “tempo todo”?
Na tentativa de mapear e entrevistar artistas e seus pares a partir de seus
desejos, condições de produção, formação e acúmulo de capacidades, propus
cadastrar profissionais formando uma espécie de “banca de serviços” que fosse
duplamente um banco de currículos (recursos humanos) e uma agência de em-
pregos. Ali surge a primeira aproximação entre aqueles serviços enquadrados em
produções culturais e os serviços oferecidos nas ruas. “ARTISTA, PROFESSOR,
FIGURANTE”; “FILÓSOFO, BOMBEIRO, ELETRICISTA”. No cartaz eu co-
Cristina Ribas 177
Três anos depois retomo e desloco a banca de serviços para o lugar das
exposições de arte, dos festivais e das mostras coletivas. Retomo aquela primeira
elipse em que a arte desaparecia ocultada como serviço propondo a discussão
das questões ao redor da banca. O intuito era fomentar uma troca intensa entre
os participantes organizando encontros e chamando a todos. Depois incorporo a
72 Sem “tempo” aqui, apenas aponto mais algumas dúvidas: como isto funcionaria na dinâ-
mica autoral, em que o artista assume a concepção de um projeto? Como este processo seria
encadeado no corpo de produção artístico?
178 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES
Desaparecimento do artista
Uma elipse se apresenta hoje: Negri e Lazzarato apontam para a hiper-
valorização do intelecto criador, manifesta como “hegemonia do trabalho intelec-
tual” (Lazzarato e Negri, 2001); e Virno analisa a dimensão criativa do “general
intellect” nos termos de uma virtuose. O que acontece com a arte em uma socie-
dade onde todos se tornam criadores? A idéia de profanar a arte no mundo, pela
proposição do artista como um trabalhador, pode ser vista, contudo, de forma
negativa. Poderia forçar uma desaparição, na sociedade, das experiências sen-
síveis, tal como numa dominação totalitária de governo que sobre-significaria
uniformemente a religiosidade, a economia, a cultura. Mas, na ficção da produção
artística, a elipse da arte como trabalho no âmbito de um discurso e, portanto, o
desfecho do medo de seu desaparecimento pode ser travado da mesma forma que,
se tudo é trabalho, também nada o é.
O desejo de ver o artista como um profissional (trabalho autônomo) rela-
cionado aos demais em uma cadeia de colaboração refere-se seguramente à pro-
cura de um valor social para as artes, de um valor de uso por fora da valoração
econômica, que pode, contudo, passar pelo exercício desta valoração para tentar
encontrar este valor (e/ou expulsar-se dele).
Na desconfiança da identificação do artista com uma “profissão”, pode-
mos propor novas configurações subjetivas (e coletivas) para suas atribuições.
Aquela indagação: “o que você (artista) faz quando trabalha?” é o centro da dú-
vida da natureza constituinte da arte. É também investigação da natureza do tra-
balho. Investigar requer destituir e instituir. Requer considerar a singularidade
das formas de ação sem determinar o que cabe ao artista como ator social, ao
passo que a desidentificação da experiência artística em relação aos demais agen-
ciamentos mundanos é urgente – a captura como um exemplo indelével – outro
“equilíbrio precário”.74
No campo da arte, idealiza-se que o que faz um artista é a criação de um
objeto inédito dado à experiência sensível e, portanto, dos sentidos; um objeto
criado para fora de si. A ação artística pode ocorrer por meio de três elementos da
ação virtuosa apontados por Virno: a atividade sem obra (a execução virtuosística
não resulta em nada material); o exercício de uma faculdade singular; a relação
com uma audiência. Porém, a leitura que Virno faz da imagem do artista, do pia-
nista, do bailarino, não “resolve” o problema da arte no campo da arte (e de um
trabalho).
A semelhança entre a produtividade do trabalho imaterial e a virtuose
colocada por Virno é o que ele chama de “eclipse”: “o virtuoso trabalha (ou me-
lhor, é trabalhador par excellence), não contra a sua vontade, mas exatamente
porque a sua atividade se aproxima das práxis política.” (Virno, 2007, p. 103)
74 “Equilíbrio precário” é uma expressão usada por Virno em referência ao bailarino e ao pia-
nista: podem tornar-se exemplos de trabalho assalariado que não é, ao mesmo tempo, trabalho
produtivo, e aludem à ação política (Virno, 2007, p. 99).
180 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES
Profissionalização
Entre 2003 e 2006 participei de dois programas de bolsa para artista.
Um do Museu de Arte da Pampulha, com a qual tinha que morar e produzir em
Belo Horizonte (Minas Gerais) e outra fornecida por uma instituição do estado de
Pernambuco (Fundarpe). Pelo fato de receber mensalmente durante um ano e ser
acompanhada por críticos e historiadores de arte, tendo “colegas de trabalho” (de
bolsa), a experiência se caracterizou para mim como “profissionalização” ou “em-
prego”. Nestas situações a execução artística (ou constituição subjetiva no mun-
do) como trabalho torna-se “realização de si” (Lazzarato e Negri, 2001, p. 73).
Em Recife, a segunda experiência, o possível enquadramento “servidora
pública” me motivou a mapear situações específicas e ordinárias nas cidades de
Recife e Olinda e me afetar por acontecimentos, fatos e ou materialidades, incor-
porando a experiência a meu projeto de exposição. Desejava que meu “serviço”
fosse tomado como público, mesmo considerando os relatos pessoais de vidas
alheias a mim e experiências de trabalho e de fuga dele. Ao final de doze meses de
trabalho (bolsa), eu estava novamente “desempregada”.
Experiências em que instituições fomentem o processo criativo e não
exatamente a produção de obras de arte determinadas são bastante raras. O au-
mento das bolsas de estímulo à produção acontece recentemente em detrimento
das Leis de Incentivo gerenciados pelo Estado. Neste sentido, cabe fazer um breve
mapeamento dos possíveis profissionais para o artista hoje: a Universidade ou o
ensino, o Mercado, os projetos via Lei de incentivo, e os demais fomentos públi-
cos ou privados - que devem sempre ser conciliados com a árdua e instável prática
da arte. Seguramente, o artista se torna neste contexto tanto mais um “produtor”,
porque constrói juntamente com os sistemas econômicos aliados as suas formas
de participação e integração a isto; ou, melhor dizendo – como trabalhador autô-
nomo, deve dar conta das possibilidades associativas de seus saberes em redes de
colaboração (ou “empresas”).
Cristina Ribas 181
Há uma relativa liberdade dada aos artistas ao serem fomentados via bol-
sa, diferente dos demais programas de fomento para produção cultural em geral.
Por outro lado, editais públicos de fomento à cultura em geral são organizados por
gestores públicos, e requisitam aplicabilidade para um contexto dado, justificati-
vas, objetivos, contrapartida social, etc., projetos com os quais se deve vislumbrar
“resultados” para comunidades, públicos específicos ou mesmo para a instituição
de fomento.
Tempo de trabalho
O tempo de trabalho não é mais, segundo Lazzarato e Negri, a grande
fonte de riqueza, quando antes era a mais valia obtida em trabalho de forma ime-
diata. Trabalha-se menos (Lazzarato e Negri, 2001, p. 28). O artista, por sua vez,
trabalha tão livre que parece livre do tempo; mas, em contraste, esse “tão livre”
é a impregnação de todas as suas ações possivelmente produtivas, impregnação
naturalizada naquela “hegemonia do trabalho” contemporânea.
As perguntas presentes no questionário de “Procuro Ofereço”: “quanto
tempo você precisa para trabalhar?”, “como é o tempo no seu trabalho?” surgi-
ram neste sentido, buscando ampliar a noção de um tempo produtivo medido na
capacidade de um corpo (a medida do cansaço: o trabalhador da construção civil
como exemplo, cuja produtividade fica exposta na equação capacidade do corpo
x construção de paredes, vigas, estruturas habitáveis...), e tentando entender as
infinitas formas subjetivas de agir com o tempo.
Na prática da arte, o incremento da Ação como tendo efetuação Política
pode produzir uma ética pautada não apenas pelas preocupações sobre a sustenta-
bilidade pessoal de uma prática no estriado do mundo capitalista, mas uma ética
que possa conectar outras formas de vida, outros tempos de trabalho. Se a revolu-
ção produz o tempo,75 como escreve Giuseppe Cocco, ele é sobretudo um tempo
que não se fecha. O tempo de produção da arte mantém o estado de revolução,
para poder forjar um tempo próprio capaz de conter aquela desmesura de tempo:
desejo coletivo do “tempo do trabalho que se liberta, indeterminado e aberto (...)
tempo revolucionário que constitui o futuro porque produz nova riqueza e nova
humanidade” (Cocco, 2001, p. 15). A pergunta individual deve então tomar pro-
porções coletivas: quanto tempo precisamos para trabalhar?
Subjetividade criadora
A produtividade relacionada à subjetividade é uma característica do tra-
balho imaterial. Artistas fazem de suas formas de vida formas artísticas. E o modo
de produção e recepção da mercadoria torna-se um “modelo estético”. A subjetivi-
dade e a audiência significam este modelo. Reside aí algum tipo de instituição da
criação. Será que podemos pensar a criação como afecção pura e o artista, quando
cria, como alguém submerso em uma experiência sensível? Abro um parênteses
para inserir um questionamento para mim inédito: parece que, no momento da ex-
posição, da ação virtuosa – aquela ação que Virno qualifica como sem “obra” – o
artista, de certa forma, captura em si mesmo aquilo que se torna a obra.
76 A imprensa e demais mecanismos agem da mesma forma: reificam o objeto artístico, feti-
chizando-o, agregando um valor cultural capaz de fomentar a circulação então econômica deste
produto.
184 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES
Greve na arte
A aproximação entre arte e trabalho não é inédita no circuito de produção
artístico. A luta travada pelo proletariado tem sido há muito o (re)começo do de-
bate sobre a condição do artista. Cronologicamente, aponto o posicionamento de
Guy Debord, Raoul Vaneigem e dos Situacionistas contra o trabalho e a afirmação
de uma supressão para que a arte se realizasse.77 Nos anos 70 e 80, os grupos Art
& Language (de 1968), Art Workers’Coalition (atuante entre 69 e meados dos 70)
e, posteriormente, os Neoístas (formado em fins de 79, atuando até a década de
90), problematizaram a relação entre arte e trabalho em termos de uma greve (ma-
nifestos organizados por Stewart Home). Mais recentemente, a greve é declarada
também por Fulvia Carnevale e Alejandra Riera em 2004-2005 em Barcelona e
Madrid (“Travail en greve”)78.
No início dos anos 90 declarou-se uma greve de artistas. No entanto, a
impossibilidade da arte ser uma greve, já que não é trabalho assalariado, é respon-
desde há muito tempo os artistas são por definição membros de uma classe não
trabalhadora.80. Desde que existe o proletariado, os artistas não fazem parte dis-
to. À medida que a identidade histórica do proletariado se desenvolveu, ao con-
trário, a orientação a uma classe artística se atenuou (Art & Language, 2000,
p. 352).
79 Faziam parte Stewart Home, Mark Pawson, James Mannox e outros, que formariam o braço
inglês do movimento. Segundo Mannox apenas Home seguido de Tony Lowes e John Berndt
realmente entraram em greve.
80 Grifo meu.
186 TRABALHO – OPERAÇÃO ARTÍSTICA: EXPULSÕES
Posicionamento
“Intermittents du spetacle” é uma organização política de trabalhadores
franceses do espetáculo organizada na forma de “coordenação” (Lazzarato, 2006,
p. 222), uma organização descentralizada e disforme. A organização surge para
defender os produtores do espetáculo nas relações trabalhistas com o estado e com
o mercado. Seu estado de greve anuncia: “não atuamos mais”. Segundo Lazzarato,
a anunciação faz ventilar a relação que eles mantêm com as práticas da “sociedade
de controle” (Foucault), ato que não se define em submissão ou revolta apenas. Os
intermitentes “vivem e trabalham no quadro da cooperação entre cérebros e suas
modalidades de controle”, e o poder da indústria que os emprega é um “poder de
captura da cooperação entre cérebros”.
O posicionamento é interessante na medida em que trabalhadores-do-
campo-da-arte (artistas e seus pares), geralmente lamentam a incapacidade dos ar-
tistas de constituírem uma classe outra. O que se apreende na atualidade, também
com a contribuição das teorias filosóficas pós-estruturalistas, são novas formas de
cooperação que não precisam ser colocadas na forma massiva da classe, mas sim
na forma da multiplicidade. Ou seja, nas formas coletivas destes agenciamentos.
Expulsar-se
Repentinamente observei-me como uma voluntária no campo da arte:
ali eu não estava recebendo o que poderia ser de direito. Se a instituição que é
designada a fomentar e difundir a produção artística não o faz, porque seria eu,
trabalhadora-autônoma a responsável por suprir as faltas da primeira, para a qual
fui convidada a participar, como artista? Outra elipse se formara: “voluntariar-se é
ser (a)político?”. O voluntariado, enquanto conceito de um trabalho não-remune-
rado, seria alguma desafirmação da arte como trabalho? Ou seria seu abandono?
O abandono da luta da arte? (É possível operar este abandono?).
Cristina Ribas 187
Referências
Cristina Ribas é Mestre em Artes Visuais no PPGArtes, IA, UERJ, Rio de Janeiro.
Desenvolve junto com A Arquivista a pesquisa militante Arquivo de emergência: documenta-
ção de eventos de ruptura. Faz parte do Grupo Laranjas (desde 2001, coletivo In situ).
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 191-200
residência, pelo menos de uma terra. Schérer observa que esta ligação entre o cul-
tivo da terra e certo sentido de possibilidade sine qua non da fixação do homem
sobre a terra e, daí mesmo, um sentido de hospitalidade, é característico de poetas
da época de Virgílio e de Hesíodo. No entanto, o autor não se satisfaz com esta
limitação e explora outro caminho que, ao contrário, vai vincular a hospitalidade
a um desenraizamento, aos povos nômades que acolhem os viajantes na sua ten-
da, sem grandes infra-estruturas, mas sempre com algum alimento a oferecer, na
atitude deliberada correspondente de “abrir a porta”; mesmo que sua condição ali
seja quase tão sem raízes quanto o do viajante. Na verdade, o nômade pratica uma
generosidade que é a condição mesma de sua existência singular. Em seus hábi-
tos mais arraigados, há uma percepção intrínseca de sua interdependência com o
outro, e da alegria que o encontro com o outro possibilita, da mesma ordem da
“transcendência” no parágrafo citado pouco acima.
Cegueira à hospitalidade
Schérer pergunta se a hospitalidade, finalmente, não seria “uma sensibi-
lidade específica ao outro”. Esboçada nestes termos, é um atributo de gratuidade
que aí se depreende, o indivíduo despossuído, pobre, é teoricamente tão emissor
de hospitalidade quanto um rico proprietário. Um largo arco de posturas indivi-
duais abre-se então para mostrar justamente que é antes daquele despossuído de
riqueza material que pode emergir esta hospitalidade especial.
Aqui, pensamos que uma pausa sobre a “previsibilidade” ou sobre a “pro-
gramabilidade” de um sentido da hospitalidade faz-se necessária. Ao focalizar a
imagem da “porta” no encadeamento de noções em Lévinas, que conduzem à
idéia de acolhimento e, em seguida, àquela de hospitalidade, Derrida alerta sobre
a importância, para um verdadeiro acolhimento, de condicionar uma porta aberta
a uma tomada de decisão espontânea, que seria “tudo menos uma simples passivi-
dade, o contrário de uma abdicação da razão” (Derrida, 1997, p.57).
Fica claro o problema que esta compreensão coloca para a filosofia ética,
já que não se pode depreender “soluções”, regras ou planejamento, no que seria
uma deontologia da hospitalidade!
O “bastão” está claramente na mão de cada pessoa e não nas mãos de
gestores de qualquer política, onde a racionalidade técnica é o princípio básico,
ainda que tão falido, como vários cientistas políticas atestam !!!
É sobre uma alteridade originária que repousam os verdadeiros fatores
em jogo na hospitalidade. Derrida sublinha que Lévinas fala de uma alteridade
radical que supõe uma separação inicial e que ele renomeia “a metafísica”, como
Márcia de N.S. Ferran 195
81 O Talmud é a versão escrita das lições e das discussões dos doutores rabinos que ensinavam
na Palestina e na Babilônia nos séculos que precederam e seguiram o início da nossa era, dou-
tores que continuavam provavelmente antigas tradições. A Thora, uma parte do Talmud onde se
insere a passagem sobre as cidade-refúgio, é considerada como exprimindo o cerne mesmo da
Márcia de N.S. Ferran 199
ligiosa reinaria, o próprio Lévinas lança sua correlação aos dias atuais numa mul-
tiplicação de diásporas:
Estas mortes, cometidas sem que os matadores as tenham querido, não se pro-
duzem por outro meio que não a lâmina que se solta do machado e vem derrubar
o passante?
Na nossa sociedade ocidental, livre e civilizada, mas sem igualdade social, sem
justiça social rigorosa, será absurdo se perguntar se as vantagens da quais dis-
põem os ricos frente aos pobres – e todo o mundo é rico frente à alguém no
Ocidente –, se estas vantagens, paulatinamente, não são elas próprias a causa
de alguma agonia, de certa parte?
Não existem, em alguma parte do mundo, guerras e matanças que são a conse-
qüência disto? Sem que nós daqui, habitantes de nossas cidades-capitais sem
igualdade, é certo, mas protegidas e abundantes-, sem que nós daqui, tenhamos
querido mal à quem quer que seja?
vontade de Deus à qual devem obedecer os judeus ditos ortodoxos. “O Talmud (...) consignado
por escrito entre o séc. II e o fim de século V da nossa era – é nos seus sessenta e oito tratados,
um texto imenso, de mais de três mil páginas in-folio coberto de comentários e comentários dos
comentários”
200 CIDADES, CEGUEIRA E HOSPITALIDADE
frontos. Nem se eximir de estar sempre fechando os olhos, que são usados não
no seu potencial de tecer encontros como proposto por Lévinas, mas apenas para
espetacularizar o medo do encontro, tornando o espaço do coletivo um espaço da
fuga do rosto do outro... olhares de través, olhares baixos...
É urgente repensarmos nossas cidades atuais como potencialmente ci-
dades-refúgio e cidades-exílio, onde lidar com cultura é cada vez mais lidar com
multilingüismo, intraduzibilidade e onde a cegueira mais perversa é a cegueira a
este estado de coisas. O direito de ir e vir, a dinâmica dos fluxos humanos está no-
vamente posta à prova em 2008, no que tange à compreensão dos países europeus
que vêm deliberando e se cegando em matéria de humanismo.
Ora, o que são os episódios de eclosão de revoltas e depredação urbana
senão protestos reativos a uma cegueira crescente, completamente impermeável
à hospitalidade ???
Referências
Dispositivo metrópole.
A multidão e a metrópole 82
Antonio Negri
82 Este artigo foi traduzido pelo coletivo de tradução attraverso (Désirée Tibola, Leonardo
Retamoso Palma, Lúcia Copetti Dalmaso e Paulo Fernando dos Santos Machado).
202 DISPOSITIVO METRÓPOLE. A MULTIDÃO E A METRÓPOLE
como mais produtiva e mais generosa do ponto de vista das figuras econômicas
e dos estilos de vida. Este esforço crítico não é solitário nem neutralizante. Pelo
contrário, produz ulteriores críticas, confia-as ao movimento real. Por exemplo,
quando introduzimos elementos diferenciais e antagonísticos no saber da cidade
e fazemos destes o motor da construção metropolitana, nós compomos também
novos quadros do viver e do lutar – comuns. Ainda um exemplo entre os outros:
a propósito de metrópole e coletivização. Esta velha palavra socialista certamente
já está obsoleta e totalmente superada na consciência das novas gerações. Mas
não é este o problema. O projeto não é coletivizar, mas sim reconhecer e organi-
zar o comum. Um comum feito de um patrimônio riquíssimo de estilos de vida,
de meios coletivos de comunicação e reprodução da vida e, principalmente, do
excedente da expressão comum da vida nos espaços metropolitanos. Gozamos de
uma segunda geração de vida metropolitana, criativa de cooperação e excedente
nos valores imateriais, relacionais e lingüísticos que produz. Eis a metrópole da
multidão singular e coletiva. Há muitos pós-modernos que recusam a possibi-
lidade de considerar a metrópole da multidão como espaço coletivo e singular,
maciçamente comum e subjetivamente maleável e sempre novamente inventado.
Estas recusas substituem o analista pelo bufão ou pelo sicofanta do poder. De fato,
nós recuperamos a idéia das economias externas, das dinâmicas imateriais, dos
ciclos de luta e tudo aquilo que compõe a multidão. Nova York é pós-moderna,
na medida em que participou em todos os graus do moderno e, por assim dizer,
consumiu-os na crítica e na prefiguração de outra coisa. O resultado é um híbrido,
o híbrido metropolitano como figura espacial e temporal das lutas, plano da mi-
crofísica dos poderes.
3. Metrópole e espaço global. Foi Saskia Sassen, antes e mais do que
qualquer outra pessoa, que nos ensinou a ver a metrópole, todas as metrópoles,
não somente, como Koolhaas, como um agregado híbrido e interiormente antago-
nista, mas como uma figura homóloga da estrutura geral que o capitalismo assu-
miu na fase imperial. As metrópoles exprimem e individualizam o consolidar-se
da hierarquia global, em seus pontos mais articulados, em um complexo de for-
mas e de exercício do comando. As diferenças de classe e a programação genérica
na divisão do trabalho na metrópole já não se fazem mais entre nações, mas entre
centro e periferia. Sassen vai olhar para os arranha-céus para deles extrair lições
implacáveis. Em cima está quem comanda e embaixo quem obedece. No isola-
mento daqueles que estão mais no alto está a ligação com o mundo, enquanto que
na comunicação daqueles que estão mais embaixo estão os pontos móveis, os es-
tilos de vida e renovadas funções da recomposição metropolitana. Por isso, temos
204 DISPOSITIVO METRÓPOLE. A MULTIDÃO E A METRÓPOLE
dos bairros para organizar tempo livre e segurança dos trabalhadores contra a
polícia e os fiscais etc. Enfim, a tomada de zonas da cidade, foi um projeto perse-
guido com muita atenção. Estas áreas chamavam-se na época “bases vermelhas”,
mas frequentemente não eram lugares, mas espaços urbanos, lugares de opinião
pública. Algumas vezes também acontecia que fossem decididamente não-luga-
res: eram manifestações de massa que em movimento percorriam e ocupavam
praças e territórios. Assim a metrópole começou a ser reconstruída por uma alian-
ça estranha: operários de fábrica e proletários metropolitanos. Aqui começamos
a ver como foi potente esta aliança. Na base destas experiências políticas estava
também uma outra e mais ampla experiência teórica. De fato, desde o início dos
anos setenta, começava-se a notar como a metrópole não fora tão somente inva-
dida pela mundialização a partir do cume dos arranha-céus, mas também como
ela fora assim constituída pelas transformações do trabalho que se estavam rea-
lizando. Alberto Magnaghi e seus colegas publicaram nos anos setenta uma for-
midável revista (Quaderni del territorio) que mostrava, a cada número de forma
mais convincente, como o capital investia a cidade, transformando cada rua em
um fluxo produtivo de mercadorias. A fábrica tinha então se estendido na e sobre
a sociedade: isto era evidente. Mas igualmente evidente era que este investimento
produtivo da cidade modificava radicalmente o embate de classe.
5. Polícia e guerra. A grande transformação das relações produtivas que
investem as metrópoles chega ao limite quantitativo nos anos noventa, configu-
rando uma nova fase. A recomposição capitalística da cidade, ou melhor, da me-
trópole, ocorre em toda a complexidade da nova configuração das relações de for-
ça no Império. Foi Mike Davis o primeiro a nos dar uma representação apropriada
dos fenômenos característicos da metrópole pós-moderna. A edificação de muros
para limitar zonas intransitáveis aos pobres, a definição de espaços mal-afamados
ou guetos onde os desesperados da terra pudessem se acumular, o disciplinamento
das linhas de escoamento e de controle que mantivessem a ordem, uma análise
preventiva e prática de contenção e de perseguição das eventuais interrupções do
ciclo. Hoje, na literatura imperial, quando se fala da continuidade entre guerra
e polícia globais, o que se esquece de dizer é que as técnicas contínuas e homo-
gêneas de guerra e de polícia foram inventadas na metrópole. “Tolerância zero”
tornou-se uma palavra de ordem, ou melhor, o dispositivo de prevenção que in-
veste estratos sociais inteiros, mesmo lançando-se individualmente sobre cada
refratário ou excluído. A cor da raça ou a roupa religiosa, os hábitos de vida ou a
diversidade de classe são, vez após vez, assumidos como elementos que definem a
zoning repressiva no interior da metrópole. A metrópole está construída sobre es-
206 DISPOSITIVO METRÓPOLE. A MULTIDÃO E A METRÓPOLE
Antonio Negri, cientista social e filósofo, é autor, entre outras obras, de Império;
Multidão (ambos em parceria com Michael Hardt); Anomalia Selvagem – poder e potência em
Spinoza; O poder constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade; Kairòs, Alma
Venus, Multitudo.
A Cultura Monstruosa
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 211-221
A potência da hibridação –
Édouard Glissant e a creolização83
Leonora Corsini
83 Este texto é uma adaptação da apresentação feita em agosto de 2008 no Colóquio Cultura,
Trabalho e Natureza na Globalização, organizado pela Rede Universidade Nômade e Fundação
Casa de Rui Barbosa.
212 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO
84 De acordo com o teórico dos estudos pós-coloniais François Cusset (2008), o pós-colonia-
lismo é, antes de tudo, um conceito literário, na medida em que a relação entre minoridade e
linguagem, poder e língua, está na essência de sua genealogia. Ainda segundo Cusset, Deleuze
já havia observado, por exemplo, que o americano contemporâneo é “trabalhado” por um black
english, e também um yellow, um red english, um broken english, “uma linguagem atirada com
uma pistola de cores” (op. cit., p. 137).
Leonora Corsini 213
85 Deleuze e Guattari também observam em Mil Platôs (1997) como Faulkner aponta a neces-
sidade de os brancos do Sul, após a guerra da Secessão, “devirem” negros, para não acabarem
fascistas, da mesma maneira que os alemães, após 1933, tiveram que devir judeus para não se
tornarem nazistas (op. cit., p. 89).
216 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO
segundo o autor, uma certa dimensão de determinismo); por sua vez, a creolização
é a impossibilidade de previsão, ela é produtora de imprevisibilidade, ao mesmo
tempo em que ela se produz na imprevisibilidade e na errância.
A interpretação de Glissant para o creole87 – contrariando as regras, como
ele mesmo diz – é de uma linguagem cujo léxico e cuja sintaxe pertencem a duas
massas linguísticas heterogêneas, que se coloca entre duas multiplicidades. O
creole é, de acordo com esta definição, uma língua compósita, nascida do contato
imprevisível entre elementos linguísticos heterogêneos, uma “heteroglossia” que
resiste. Uma língua creole não é nem o resultado da extraordinária operação que
os poetas jamaicanos praticam espontaneamente na língua inglesa – a dub poetry,
o reggae falado jamaicano, um tipo de poesia que surgiu na Jamaica e na Ingla-
terra no início dos anos 70 – nem um pidgin, linguajar rudimentar e instrumental,
nem um dialeto. É algo novo, mas, ao mesmo tempo, não podemos dizer que se
trata de uma operação original, já que, quando estudamos as origens de qualquer
língua, percebemos que quase toda língua nas suas origens é uma língua creole.
Por outro lado, Glissant afirma que a creolização só pode ser exemplifica-
da pelos processos, e certamente não pelos “conteúdos” nos quais estes processos
operam. A creolização exige que os elementos heterogêneos que são colocados
em relação “se intervalorizem”, ou seja, que não haja degradação ou diminuição
do ser nesse contato e nessa mistura. E o mundo se creoliza a partir do momento
em que as culturas do todo-o-mundo se colocam em contato umas com as outras
de maneira imprevisível, transformando-se, permutando entre si,
2005, p. 22). Temos, para ilustrar, os Black Indians da Louisiana [EUA], tribos que nasceram
da mistura entre os índios e os escravos negros foragidos (ibidem, p. 23).
87 Creole – que etimologicamente tem a ver com criar, produzir, a partir do encontro – é
um termo cunhado no século XVI com a grande expansão do poder comercial e marítimo da
Europa em direção às colônias nas Américas, na África, na Índia e na Ásia. Originalmente, o
termo se aplica às pessoas nascidas nas colônias, distinguindo-as das elites coloniais. Assim,
a língua creole é a linguagem falada pelos creoles. Muitas destas falas ou línguas creole estão
localizadas em áreas de passagem para os oceanos, incluindo as regiões do Caribe, as costas da
América do Sul, da África ocidental, e do Oceano Índico.
218 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO
88 Como diz Ivana Bentes (2007), hoje os movimentos locais, os novos produtores de cultura
das periferias que fazem parte do chamado “precariado” global (produtores sem salário nem
emprego, trabalhadores do imaterial, artistas, pesquisadores, trabalhadores informais) apon-
tam novas saídas, rompendo com o velho “nacional-popular” populista e paternalista e com as
idéias engessadas de “identidade nacional”, possibilitando formas de expressão de um “gueto
global”, ou do que ela denomina “guetos-mundo”.
Leonora Corsini 219
transmitida por uma rede de televisão européia no início de 2006 (Glissant refere-
se a este acontecimento como rastro magnético89).
89 Cf. o texto “Não há fronteira que não se possa atravessar”, Édouard Glissant, 2006.
90 O pensamento de sistema ou pensamento sistêmico traz embutida a idéia de sistemas que
visam à própria manutenção e conservação através do equilíbrio homeostático, e este tipo de
pensamento está evidentemente sendo criticado por Glissant. Mas ele aqui faz referência aos
sistemas caóticos estudados pela Física, sistemas complexos e instáveis caracterizados por es-
truturas dissipativas de energia e pela auto-organização. Neste caso, trata-se de sistemas pro-
fundamente sensíveis e dependentes de trocas com o meio para sua sobrevivência e evolução,
que funcionam segundo os princípios da instabilidade e do caos, combinando ordem e desor-
dem, determinismo e probabilidade, acaso e repetição como partes essenciais de sua história
(para mais detalhes sobre sistemas caóticos, sugiro o texto de Ilya Prigogine “Dos relógios às
nuvens”, 1996).
220 A POTÊNCIA DA HIBRIDAÇÃO – ÉDOUARD GLISSANT E A CREOLIZAÇÃO
Referências
______ Espaço fechado, palavra aberta. Revista Estudos Avançados, vol. 3, n. 7, São
Paulo, set-dez 1989.
NEGRI, A. Le monstre politique. Vie nue et puissance. Revista Multitudes n. 33, ve-
rão de 2008.
______ Kairòs, Alma Venus, Multitudo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
NEGRI, A.; HARDT, M. Multitude. War and democracy in the age of Empire. New
York: The Penguin Press, 2004.
PRIGOGINE, I. Dos relógios às nuvens. In: Dora Fried Schnitman (org.) Novos para-
digmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Renato Sztutman (org.) Coleção Encontros. Rio de Ja-
neiro: Azougue Editorial, 2007.
Barbara Szaniecki
1. Forma M
Monstros existem desde o Paleolítico, se desenvolveram da Antiguidade
à Idade Média, mas foi na Modernidade que surgiu uma primeira tentativa de do-
mesticá-los através da Razão. No campo da biologia, o monstro é o anti-natural,
no campo da psicologia, o monstro é o perverso. Já no campo religioso, tal como
apreendido pelas Artes, o monstro apresenta uma ambigüidade: demônios e anjos
são tidos como monstros pois ambos apresentam um desvio com relação à Natu-
reza. Seguindo os passos do “monstrólogo” Gilbert Lascault, chamei de “forma
M”, toda forma composta que não deriva da Natureza, nem apresenta abstração.
No século XVII, a “forma M” inquieta Descartes. Em sua Primeira Meditação,
ele se interessa pela imaginação criadora de monstros e considera que, mesmo
quando pintores se aplicam a representar seres monstruosos como sereias e sá-
tiros entre outros, as formas bizarras e extraordinárias que a eles atribui não são
jamais inteiramente novas ou originais, mas misturas e composições de formas já
existentes em seu repertório.
Nas condições de fabricação, no ‘fazer’ artístico, Descartes encontra uma
racionalidade. Para ele, a imaginação cria monstros graças a uma mera atividade
combinatória, um bricolage do qual emerge um monstro perfeitamente transpa-
rente para a Razão91. A partir da concepção de Descartes, torna-se possível realizar
uma classificação das formas M92: por um lado, seres monstruosos por natureza,
91 Séculos mais tarde, essa concepção constitui a base do surrealismo, cuja “receita de cozi-
nha” desmistifica completamente a atividade do artista.
92 “Por definição, a forma monstruosa foge efetivamente de outros modos de determinação
racional, usadas habitualmente. Desvio da natureza recusa de ser a imitação de uma realidade
natural anterior, ela não pode ser comparada a esta realidade nem ser classificada em função de
uma ordem das imagens paralela a ordem das realidades imitadas (retratos, naturezas mortas,
paisagens). Distinta do ser verbal, da contradição aberta definida por Spinoza, ela não pode ser
objeto de um estudo puramente lógico que denunciaria seus aspectos contraditórios. Oposta ao
monstro natural, ela foge aos critérios de uma classificação teratológica tal como foi elaborada
por exemplo por Isidore Geoffroy Saint-Hilaire. Distinta do monstro moral, do Mal encarnado,
224 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO
ela é valorizada distintamente e não saberia, em si mesma, receber uma significação não ambí-
gua graças ao julgamento ético de um sujeito livre. Nascida da imaginação individual, a forma
monstruosa deveria então, de acordo com uma opinião tradicional, fugir de toda classificação;
não haveria lógica do imaginário; não haveria conhecimento classificatório das formas estéti-
cas. Mas, nas condições de fabricação, no ‘fazer’ artístico, no ‘como’ do monstro – e Descartes
o revela – aparece uma racionalidade. No artifício, a racionalidade encontra seu lugar. E assim
a classificação torna-se possível. Como é o caso para toda técnica, esta racionalidade dos mé-
todos nem sempre é consciente para o criador, nem evidente para o espectador. Mas ela existe,
se ao nível da questão que ele coloca, Descartes tem razão. O estudo das figurações mons-
truosas deve permitir de determinar constantes no nível dos processos de fabricação; a partir
destas constantes, uma classificação formal dos monstros deve tornar-se possível. Ela se efetua
colocando-se em relação os monstros, as realidades produzidas e as práticas dos criadores, ou
seja, os processos de transformação de um dado anterior, tais como estes criadores a realizam.
Ela ata o monstro às condições de produção.” (LASCAULT)
93 Lascault cita Cesare Ripa. Nova Iconologia. Pádua, P.P. Tozzi, 1618.
Barbara Szaniecki 225
Num monstro! Uma entrevistada diz: “fico com medo de passar por esse
túnel e ser assaltada”. Medo. Curiosamente, a passarela “embrulhada” em plástico
azul me fez lembrar de uma obra do artista Cristo94: o “embrulhamento” da Pont
Neuf, a mais antiga ponte de Paris. A passarela “embrulhada” no Rio de Janeiro
e a ponte “embrulhada” em Paris, compartilham uma mesma forma. Contudo,
enquanto a obra dos artistas gera o maravilhamento dos críticos de arte, a obra
dos camelôs gera a perseguição dos órgãos públicos. Como uma mesma forma
pode comportar conteúdos tão diferentes? Se a forma visual é a mesma, porque
suscitam reações tão opostas?95
Encontramo-nos frente a um enigma mais complexo do que aquele que
a esfinge apresentou a Édipo na mitologia! Trata-se de uma provocação, mas esta
questão coloca em xeque toda a Iconologia, certa filosofia da linguagem e parte
Samples não são “coisas” de DJs, também são estratégias de sobrevivência na neblina dos
conceitos, ou melhor, quando os conceitos se tornam propaganda. Sobrevida, com uma apro-
priação, não de matéria prima, mas do valor agregado (charme, liderança, fitness); nunca o belo
foi tão público. Consumir parafraseando a elite que nos sampleia, é simplesmente ser como o
outro, diluir as identidades de um no outro, mesmo que não dure mais do que os cinco minutos
de fama ou do produto). Genérico e não falso, nunca foi tão fácil ser outra pessoa, na rede ou
na moda, circulação de posturas, nossos relógios (ambos Rolex) marcam a mesma hora. Nosso
tempo é o mesmo. http://oinusitado.com/”
97 Ver em Maurizio Lazzarato As Revoluções do Capitalismo (2006) Os todos distributivos
e os todos coletivos: o processo constituinte enquanto agenciamento dos fluxos e networks, de
invenção e repetição, de singularidade e de multiplicidade, p. 48.
228 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO
Multidão Zero: quarenta anos nos separam do mítico ano de 68 e das transfor-
mações culturais e políticas então deflagradas. Grande parte do seu potencial
inventivo e de união foi esvaziado e canalizado em direção oposta, ao indivi-
dualismo alienante e à desmobilização social. Multidão Zero busca repensar a
230 EXPRESSÕES DO MONSTRUOSO PRECARIADO URBANO
98 http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ricardo.htm
Barbara Szaniecki 231
artistas e público em geral, sendo que o público não artista foi basicamente todo agendado na
rua, especialmente na Boca Maldita, em Curitiba. Misto de documentário e ficção, o projeto
evidencia o espaço público televisivo como resultante da somatória de espaços privados, os la-
res dos participantes. Simultaneamente, situa o indivíduo numa outra dimensão política, o pró-
prio vídeo, oportunizando uma situação de resposta crítica e criativa do sujeito receptor frente
a empresa emissora de TV. A liberdade e singularidade das situações de desligamento marcam
o trabalho também como espaço performático, agregando carga existencial, acaso e improviso
à proposta estruturalista, desconstrutiva e recodificante. De início, antecipou-se aos partici-
pantes as estratégias de captação de imagem: 1. TELA/ESPELHO: filmagem enquadrada no
monitor de TV na hora do desligamento, iniciando no aperto do botão, passando pelos frames
de sumiço da imagem (trecho c/ velocidade reduzida a 5%), até o momento onde manifesta-se
a TV transformada em espelho, refletindo o indivíduo e o ambiente privado, como num retrato.
2.PERCURSO/CENA: filmagem desde a porta de entrada da casa onde vive o participante até
o local onde ele assiste TV, seguida da gravação da cena de desligamento em si. A porta aqui
é concebida como uma membrana entre o público e o privado. Aos participantes foi dada a
orientação: “desliga a TV como quiser; e depois de desligar, faz o que quiser”. Desligare foi
realizado durante o ano de 2006 através do financiamento do projeto Bolsa Produção em Artes
Visuais do Fundo Municipal de Cultura da Fundação Cultural de Curitiba.
Barbara Szaniecki 233
Referências
Sites
Barbara Szaniecki é formada pela École Nationale des Arts Décoratifs de Paris e
atua como designer no campo social e cultural. Mestre, Doutoranda e pesquisadora do LARS
(Laboratório de Representação Sensível) do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio. É
co-editora das revistas GLOBAL/Brasil e LUGAR COMUM, ambas da Universidade Nômade,
e autora de Estética da Multidão.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 237-243
Ana Kiffer
Do Momo ao Monstro
Queria apresentar a hipótese que tomará Antonin Artaud como semblante,
na história contemporânea da humanidade eurocêntrica, de uma monstruosidade
que se estabelece no conflito e combate com a sociedade e com a vida. Na linha-
gem do que ele mesmo esboçou a respeito de Van Gogh, o suicidado da sociedade
(ARTAUD, 1996). Reparem bem: suicidado não é suicida, mas também não é
assassinado. A monstruosidade de Van Gogh – Artaud se distanciará, portanto,
de uma historiografia dos monstros na cultura ocidental, onde esses aparecem
sempre atrelados a um mal de nascença, a uma deformação física congênita, a um
corpo monstruoso, e por isso mesmo desalmado, que vem indiciar o prenúncio e
o presságio de algum mal maior. No caso de Artaud – Van Gogh, a monstruosi-
dade não se fará enquanto deformidade congênita, senão que se realizará na vida
do próprio infortúnio. Infortúnio esse que se apresentará numa conjunção entre
aquilo que Artaud tomou para si enquanto tarefa de prenunciar o mal, e o mal que
se abateu sobre a sociedade européia na primeira metade do século XX.
É claro que falar dessa conjunção significa re-visitar a temática das rela-
ções entre a arte e a vida, tão cara aos artistas vanguardistas, mas que permane-
cerá, em todo século XX, como “a pedra no meio do caminho”, sendo retomada
pelos neo-realistas ou pelo realismo socialista em literatura e, mesmo depois da
Segunda Guerra, por toda a edificação de uma arte engajada, como postulou o
filósofo Jean Paul Sartre no ensaio Que é Literatura?. Nos anos noventa, Gilles
Deleuze recolocará a questão sob outras bases, no ensaio intitulado Literatura
e Vida (DELEUZE, 1993). Essa amostragem só evidencia como ainda é fértil
recolocar essa mesma questão, de modo a resistir às evidências de um mercado
que quer o tempo todo nos convencer de modelos biográficos, autobiográficos ou
auto-ficcionais muito bem arrumados e estabelecidos.
É nesse sentido que proporei pensar a construção de uma monstruosidade
em Artaud, a partir do que chamarei aqui de monstro-grafia, num desejo expres-
so de que essa noção tensione a bio-grafia desse artista. Entendam, não se trata
de uma fobia formalista ou estruturalista que condena a biografia, trata-se de se
238 ARTAUD, MOMO OU MONSTRO?
(...) meu espírito me abandona em todos os graus (...) há alguma coisa que des-
trói meu pensamento, alguma coisa que mesmo não me impedindo de ser isso
que eu poderia ser, me deixa, se posso dizer, em suspenso. (...) Gostaria que
compreendesse bem: já que não se trata desse mais ou menos de existência que
extravasa através do que a convenção chama inspiração, mas sim de uma au-
sência total, de um verdadeiro desperdício (ARTAUD 1976, I*, p. 24-28)104
[grifo nosso].
104 “Je voudrais que vous compreniez bien qu’il ne s’agit pas de ce plus ou moins d’existence
qui ressorti à ce que l’on est convenu d’appeler l’inspiration, mais d’une absence totale, d’une
véritable déperdition. (...) Il y a donc un quelque chose qui détruit ma pensée; un quelque
chose qui ne m’empêche pas d’être ce que je pourrais être, mais qui me laisse, si je puis dire,
en suspens”.
Ana Kiffer 239
105 Jean Paulhan, que era em 1924 o secretário de Jacques Rivière, seria agora o diretor da
Nouvelle Revue Française.
240 ARTAUD, MOMO OU MONSTRO?
seu combate nos anos trinta em Paris, contra um teatro psicológico, reino de uma
comédia de costumes, feito para alimentar a gorda saúde dominante, como bem
sabemos ainda hoje!
A passagem do Teatro Alfred Jarry para o Teatro da Crueldade em Ar-
taud, já é ícone de um adensamento dessa grafia monstruosa. Passagem ou tensão
criativa entre as figurações do momo e do monstro que acompanharam toda sua
trajetória. Isso porque, no Teatro Alfred Jarry, via-se já a ênfase recair sobre a
noção de um humor destruidor, que, como lembrou o crítico Carlo Pasi, se fazia
como provocação e revolta. Cito Pasi: “A vontade de escandalizar e sacudir as
certezas defensivas do público através de uma visão cáustica e inquietante do ser
encontra em Artaud um eco explosivo, e isso desde os primeiros manifestos do
“Teatro Alfred Jarry”” (PASI, 2002, p. 181). “Artaud considerava o humor uma
espécie de força de decomposição das faculdades racionais” (ibidem, p. 185).
Ora, esse humor destruidor de Jarry é que prepara o terreno para o teatro cruel.
Essa passagem significando apenas a radicalização de um projeto de obra e vida.
Um direcionamento cada vez mais drástico para essa zona difícil, ou esse limbo,
como diria o próprio Artaud.
Quando o poeta retoma a cena artística, em 1945, 1946, após sair de
nove anos interno em asilos psiquiátricos franceses durante a Segunda Guerra
Mundial, ele decide “encenar” um monólogo no Teatro do Vieux Colombier em
Paris, intitulado Tête à Tête avec Artaud le Momo, vale a pena transcrever aqui o
depoimento de Paule Thévenin, amiga e futura editora de Artaud:
Sabe-se quão fora do comum foi essa sessão e quantos desses que a assisti-
ram foram por ela marcados. Eles se viram diante de um homem que se expôs
totalmente e muitos acharam isso insuportável. Antonin Artaud veio ao teatro
com três cadernos que continham um texto cuidadosamente preparado, assim
como cópias datilografadas de poemas que ele desejaria declamar. Teria sido o
confronto com o público muito forte? Ele, que diante dos amigos era um extra-
ordinário leitor estava ali imerso na mais extrema dificuldade, sem conseguir ler
seus poemas, as folhas se lhe escapavam, se misturavam, caiam sobre a mesa.
Tinha-se a impressão de que ele se sentia impedido de dizer o que queria (AR-
TAUD, 1994, XXVI, p. 198).
Quanto à memória dos povos, que se dissipam elas também, nós sabemos hoje
que a principal maneira de preservá-las é colocando-as juntas. Enquanto escu-
tarmos sozinhos, em nosso meio, as misérias do mundo ou as suas glórias, ou
enquanto gritarmos sozinhos as nossas misérias e glórias, nós encurtaremos
nossa memória e nós desconheceremos essas dos outros106.
Referências
106 Texto inédito, registro escrito da fala pronunciada por Glissant em Paris em maio de 2008.
Tradução minha.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 245-255
O corpo e o devir-monstro107
107 Trabalho apresentado no Colóquio Cultura, trabalho e natureza na globalização, RJ, Casa
de Rui Barbosa, 2008. Versão modificada de artigo intitulado “Sobre corpos e monstros: algu-
mas reflexões contemporâneas”, submetido à Revista Psicologia em Estudo da Universidade
Estadual de Maringá.
246 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO
o contágio à hereditariedade, eles nos fazem ver que o devir tem a ver com híbri-
dos, eles próprios estéreis, nascidos de uma união que não se reproduzirá, mas que
sempre recomeçam e a cada vez ganham terreno.
Diante dessas hipóteses, já poderíamos dizer que o que está em jogo no
devir-monstro do corpo é a sua dimensão de absoluta singularidade. Como afirma
Perret-Gentil, de certa forma e de acordo com uma certa proporção, “tudo aquilo
que é mostrado ou que se mostra afirmando a sua singularidade contra e através
do semelhante é monstruoso” (Perret-Gentil, 2004, p. 80). Se o monstro constitui
algo que é mostrado, ele é aquilo que faz ver a sua singularidade numa tal evi-
dência que pouco deixa a dizer, numa evidência que se mostra por si mesma sem
precisar se justificar. O seu mostrar, enquanto tal, já é suficiente para que se possa
ver e saber o que ele é. Trata-se portanto de um momento em que a expressão não
é mais propriamente equívoca, mas unívoca. Enquanto individuação absoluta, o
monstro constitui o impossível de toda generalidade.
Interrogando-se de forma mais detalhada sobre o que poderia ser a mul-
tiplicidade no domínio das espécies monstruosas, Jean-Clet Martin considerava
que a figura do monstro seria constituinte da multiplicidade e da unidade como
um todo, a qual produz uma diferença ínfima e, no entanto, altamente transforma-
dora. Com efeito, diz o autor, o monstro nos afeta por sua maneira heteróclita de
convocar uma diferença genérica suscetível de afirmar uma confusão entre as es-
pécies, como se o gênero irradiasse sua universalidade através de todas as singula-
ridades da matéria, renovando com o seu fluxo qualquer especificidade típica. “O
monstro é a mostração de uma vizinhança aberrante, de uma diferença que passa
pelo gênero engolindo a das espécies” (Martin, apud Perret-Gentil, 2004, p. 77).
Ser híbrido, o monstro designa a singularidade de um gênero materializado, indi-
vidualizado embora não-específico, atualizado no aqui e agora. Ele seria o gênero
enquanto tal, realizado em carne e osso. Portanto, ainda de acordo com Martin,
o que o monstro expõe por todos os lados é a realidade do gênero, o realismo do
universal e sua individualização no sensível: a idéia como formosa deformidade.
Essa relação complexa entre monstro e gênero – não mais no domínio
de uma história natural crítica, mas no contexto das discussões sobre o corpo e
a sexualidade no mundo contemporâneo – também foi objeto de algumas dis-
cussões do pós-feminismo americano, o qual busca realizar uma política de sub-
versão radical do conceito de gênero no âmbito do sexo. Em seu “Manifesto Ci-
borgue”, Donna Haraway afirma que os monstros sempre definiram os limites
da comunidade na imaginação ocidental. Os centauros e as amazonas da Grécia
antiga estabeleceram os limites da polis centrada do humano masculino grego
250 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO
porque “constrói novo ser comum, que, por isso mesmo, vale para a multidão de
singularidades” (Negri, 2003, p. 203). As metamorfoses também dizem respei-
to aos corpos enquanto conjunto de mutações sensoriais, perceptivas e mentais
produzidas pela experimentação no mundo da vida dentro de novos ambientes
maquínicos e da produção desterritorializada. Neste sentido, Negri considera que
a metamorfose é geração biopolítica. A artificialidade ou a naturalidade dos pro-
cessos biopolíticos, expostos sobre a borda do ser, constituem uma nova natureza
ou um novo artefato. Por isso, complementa o autor, diz-se, no pós-moderno, que
o sujeito se torna ciborgue ou artefato tecnológico. Na verdade, através de todas
as metamorfoses anteriores, ao longo do desenvolvimento das diferentes tecnolo-
gias, “o corpo já se tornou, de alguma maneira e em algum aspecto, um ciborgue;
mas a transformação atual, na era do homem-máquina, é realmente a transforma-
ção do ciborgue, em sentido próprio” (Negri, 2003, p. 222).
Nos tempos atuais, época em que o horizonte social definitivamente se
constituiu como o campo por excelência da biopolítica, Negri e Hardt acham que
devemos sempre nos lembrar dos monstros e de suas primeiras histórias modernas,
posto que o efeito monstro desde então só se multiplicou. “Hoje, Frankenstein é
da família” (Negri e Hardt, 2005, p. 255), dizem os autores. Sem dúvida, neste fim
de século os monstros proliferam: vemo-los por todos os lados, no cinema, nos
quadrinhos, em gadgets e brinquedos, livros e exposições de pintura, no teatro e
na dança. Invadindo o planeta, eles definitivamente tornaram-se familiares. A pró-
pria teratologia tornou-se fantástica. Já não nos contentamos mais com as classifi-
cações de Geoffroy Saint-Hilaire, que finalmente pareciam pacificar um universo
confuso, racionalmente escandaloso, incapaz, desde há séculos, de estabelecer
as “leis da aberração”. Nesse contexto, o discurso dos seres vivos deve se tornar
uma teoria de sua construção e das possibilidades que os aguardam no porvir.
Imersos nessa realidade instável, diante da crescente artificialidade do mundo e
da institucionalização do social, é necessário que estejamos cada vez mais prepa-
rados para que os monstros surjam a qualquer momento, como, aliás, não param
de surgir. Se Deleuze já havia reconhecido o monstro no interior da humanidade,
afirmando que o homem é o animal que está mudando sua própria espécie, Negri
e Hardt levaram a sério essa formulação. Com o avanço dos monstros e com o
tratamento científico dado a eles, a humanidade transforma a si mesma, assim
como também modifica sua história e a própria natureza. Ainda de acordo com os
autores, “o problema não consiste mais em decidir se essas técnicas humanas de
transformação devem ser aceitas, mas em aprender o que fazer com elas e saber
se funcionarão em nosso benefício ou em nosso detrimento. Na realidade, precisa-
254 O CORPO E O DEVIR-MONSTRO
mos aprender a amar certos monstros e a combater outros” (Negri e Hardt, 2005,
p. 256). Assim, precisamos utilizar as expressões monstruosas da multidão para
desafiar e subverter as metamorfoses da vida artificial transformadas em merca-
doria, o poder capitalista que vende as mutações da natureza e a nova eugenia
que sustenta esse poder. Pois, se como afirmam Negri e Hardt, “o conceito de
multidão obriga-nos a entrar num novo mundo no qual só podemos entender a nós
mesmos como monstros” (Negri e Hardt, 2005, p. 253), é justamente nesse mundo
dos monstros que a humanidade tem que se apropriar do seu futuro.
Referências
Inês de Araujo
109 Como observa Fernanda Pequeno (2007), a noção crítica e antropofágica do artista aponta
para diferença entre arte do Brasil e arte no Brasil: “encontrar Mondrian em experiências que
lhe são alheias ou anteriores significa apontar a qualidade cultural da forma, a instância pública
e total da arte, outra ordem de universalidade, distinta da ilusão européia ou ocidental”.
110 No texto “Brasil diarréia”, o artista apresenta suas “posições globais vida-mundo-lingua-
gem-comportamento” e sua “pressa em criar (dar uma posição) num contexto universal a essa
linguagem Brasil.” O que caracteriza a radicalidade crítica dessas posições, seu desejo de ques-
tionamento da posição colonialista, contrariamente à defesa de valores absolutos, é incluir as
ambivalências e multivalências de todos os elementos culturais, incorporando a superficiali-
dade e a mobilidade dessa cultura numa “face Brasil universal”. Também bastante ilustrativo
desse universalismo todo multivalente e ambivalente é sua defesa de valores culturais contradi-
Inês de Araujo 259
Quasi-cinema
“COSMOCOCA – programa in progress” é um conjunto de experiên-
cias, trabalho conjunto de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida que, nas palavras
tórios: “certo é sem dúvida consumir o consumo como parte dessa linguagem”. Helio Oiticica,
op. cit., p. 114.
111 Os termos se referem aos textos de Hélio Oiticica reunidos no catálogo anteriormente ci-
tado de sua obra. Ainda que nossa retomada da reflexão crítica que aparece nos textos teóricos
do artista seja apenas pontual, vale mencionar, para um debate sobre a atualidade política e
cultural da noção de antropofagia, o texto “Anthropophagies, racisme et actions affirmatives”,
conferência proferida por Giuseppe Cocco em fevereiro de 2008, em que o autor propõe uma
reflexão política sobre a cultura brasileira contemporânea do ponto de vista de uma ontologia
constituinte.
112 Referimo-nos especialmente aos textos “Manifesto da Nova Objetividade”, “Brasil diar-
réia”, e o texto “Tropicália”, que se encontram no catálogo (1996) da grande exposição retros-
pectiva dos anos 90.
113 O nome reproduz as anotações do artista. Ao longo de todo o trecho que se segue, sobre
o Quasi Cinema, as expressões entre parênteses referentes aos textos de Hélio Oiticica, foram
extraídas dos escritos publicados no referido catálogo, relativos aos blocos-experiências das
COSMOCOCA – programa in progress, Ibidem, p. 174 a 189.
260 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...
114 A noção do informe faz parte de um dos verbetes de um dicionário crítico publicado por
Bataille e outros autores, na revista Documents. Se seu tom é bombástico e paródico, e sua crí-
tica baseada nas figuras dos verbetes da rubrica dicionário crítico publicada na revista editada
por Bataille em 1929, através dele o filósofo não deixa de expor suas posições anti-idealistas
e suas idéias sobre o pensamento das imagens. (Cf. BATAILLE, Georges, 1968). Sobre a re-
vista Documents, Georges Didi-Huberman, que discute o pensamento de Bataille em vários de
seus livros e artigos, não deixa de frisar a especificidade da relação entre texto e imagem que
caracteriza este periódico de vanguarda. Ver por exemplo o artigo, “Pensée par image, pensée
dialectique, pensée altérante. L’enfance de l’art selon Georges Bataille” de 1994.
115 “Cheminée d’usine” é mais um dos termos que integrou a rubrica deste singular dicionário
crítico na revista Documents. Idem.
264 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...
Corpo vetor
Vetor de orientação e desorientação, de construção e desconstrução, o
corpo que participa dessas experiências é um corpo para além de seus contornos.
Incorpora-se ao trabalho como também envolve atos de vida. Aponta para as dico-
tomias que essas experiências visam superar, as oposições entre arte e vida, con-
116 Abordar a Cosmococa, leva ao assunto da droga. A esse respeito vale a pena mencionar
algumas observações de Guy Brett, crítico de arte contemporânea, amigo do artista. Em seu
texto para o catálogo Hélio Oiticica, ele trata o assunto com bastante discernimento. Após
observar que não se pode tornar aprazível o que na época pretendia claramente ser perturbador,
Guy Brett declara: “Se o assunto é droga as pessoas parecem sentir-se obrigadas a tomar uma
das seguintes posições: moralismo indignado, distância sociológica, conluio consciente. Quero
respeitar a visão de Hélio de que “só a pessoa que toma droga pode saber a relação dela com
a droga”. Sua atitude em relação à cocaína era positiva e não negativa; mas ele sabia, é claro,
que o assunto era explosivo e que Cosmococa, o “programa em progresso” feito com Neville
d’Almeida em 1974 era inexibível (na verdade, Neville diz que eles planejavam mantê-lo em
silêncio dez anos antes de revelá-lo.)”. Catálogo Helio Oiticica, 1996, p. 234.
266 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...
117 Em seu livro sobre Lygia Clark e Hélio Oiticica, Beatriz Scigliano Carneiro relaciona a
exploração de espacializações simultâneas e relativas da Cosmococa com o conceito de hetero-
topia. Sua abordagem, aproxima as “estruturas abrigo labirinto” das construções de Hélio, do
emprego que Foucault faz deste conceito. Ela argumenta que os espaços inventados pelo artista,
reúnem vários outros espaços e tempos, mas não projetam nenhuma fábula imaginária. Hete-
rotopias fazem parte do espaço real. À diferença dos espaços utópicos, fora do real, os espaços
heterotópicos, são espaços abertos a experimentação, que podem contestar espaços reais e se
referir a situações de prática de liberdade, ou de guerra. Foucault descreve esses espaços como
espaços que podem conter outros espaços. Como espaços que se localizam nos espaços sociais
cotidianos, mas exercem funções diferentes e muitas vezes opostas a estes, deslocalizando-os.
Inês de Araujo 267
cas do homem não se limitam à utilidade que possam ter, mas engajam-se cons-
tantemente na criação de valores improdutivos, de qualidades insubordináveis, de
processos de despesa livre.
Apropriando-se criticamente da “linguagem-cinema”, de uma das mer-
cadorias culturais mais bem-sucedidas do século XX, o artista intervém num dos
sistemas normativos e cognitivos da imagem mais poderosos dos nossos tempos.
Basta lembrar, por exemplo, o quanto as relações entre palavra e imagem nos
fazem esquecê-las como palavras e imagens. Com base nos efeitos das aparên-
cias de códigos extremamente hierarquizados, “naturalmente” nos reconhecemos.
Com base na diferença, os quasi-cinema acionam um contradispositivo, não mais
nos identificamos. Seu gesto mostra uma outra imagem, devolve movimento as
imagens. Sua violência está em não se investir na representação das imagens em
movimento. Mas em modificar-lhes o entorno, provocar um deslocamento do sen-
tido, romper com a homogeneidade do seu discurso.
O contradispositivo em questão se funda nas razões do corpo. Rebaixan-
do-se à ordem dos sentidos, desclassifica a “constância idealizante” dos discursos
acabados, contrapõe ao “super-visual” da “IMAGEM” imagens do seu uso. Extrai
das imagens um lado avesso, reduzindo-as a uma máscara, “quasi-cinema”, “não
representativa”, “não narrativa”, mostra apenas a identidade das relações nelas
instituídas. Fragmentando um dispositivo narrativo da cultura de massa, a violên-
cia de seu gesto faz violência às relações entre discurso e imagem. Não se trata
de acabar com o cinema – o que está em jogo não deixa de ser da ordem da esté-
tica –, mas fazer surgir nele uma ocasião experimental, insubordinada, livre, não
condicionada, outra qualidade de experiência. Introduzindo a desordem na ordem
da linguagem-cinema, no quasi-cinema intensificam-se as condições residuais,
dispersivas, desviantes, simultâneas, fragmentares do mundo das coisas.
Nesse espelho refratário não deixa de se de refletir uma face menos ide-
ologicamente eficaz das imagens. Na CC3, as fileiras de cocaína que mascaram
maquiando a figura na capa do livro fotografado, certamente a força da proibição,
exercem grande força de atração revelando, para além da dicotomia entre a per-
cepção háptica e ótica, a aproximação entre o impulso do olhar e a compulsão en-
torpecente. Entre reflexos e rebatimentos, as imagens no bloco-experiência CC3
não passam de uma entre as ambivalências implícitas do conjunto. Este também
sugere outros desvios e opacidades, entre instituição artística e cultura de mas-
sa, entre as asperezas das relações de consumo e a crueza das imagens, entre as
paixões individuais e os rituais coletivos, o ilimitado no cosmos e o limite na
comunidade.
268 DO EXPERIMENTAL INFORME AO QUASI-CINEMA...
Referências
118 Uma versão deste artigo foi apresentada no seminário “Cultura, trabalho e natureza na
globalização” (Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, setembro de 2008).
272 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA
projetos não colocaram o planeta em risco, assim como tem feito a produção ca-
pitalista que, agora, se quer sustentável.
As “inovações que exigem grande esforço de imaginação”, do qual de-
pende a preservação e o pretendido desenvolvimento da região amazônica – os
termos são do ministro – não podem ser realizadas de modo unilateral, sem con-
siderar os pontos de vista dos povos que não ocupam propriamente a floresta,
mas que constituem um sistema com o ambiente. E em que consiste “formar um
sistema” com isso que chamamos de natureza? Tal relação complexa e particular
com a paisagem, que marca os pensamentos e práticas indígenas, é distinta de
nossas noções de “meio ambiente” ou de “natureza”. Os pensamentos ameríndios
não concebem a natureza como uma esfera exterior à agência humana, passível,
portanto, de ser submetida aos seus caprichos e necessidades produtivas, tal como
ocorre ao longo da história da modernidade ocidental.
Para os pensamentos da floresta, humano não é algo restrito ao que consi-
deramos como “humano” (o Homo sapiens sapiens), mas sim uma qualidade sub-
jetiva distribuída por toda a paisagem. É essa distribuição de subjetividades pela
“paisagem” (na falta de um termo melhor) que constitui aquilo que o professor
Viveiros de Castro (2002) e a professora Tânia Stolze Lima (1996) chamaram de
“perspectivismo”, e que o antropólogo francês Philippe Descola (2005) considera
como “animismo”. Tal distribuição torna o que tratamos por “paisagem” ou “na-
tureza” um horizonte permeado de equilíbrios, tensões e limites próprios, e não
uma tabula rasa inerte e passiva, incondicionalmente submetida à ação da cultura
ou da civilização. Vou tentar explorar rapidamente esse contraste aqui.
Em sua entrevista, o ministro diz que a “Amazônia é nossa grande fron-
teira, não só em termos geográficos, mas [também] imaginários”. Convidamos
então o professor a conhecer melhor as diretrizes das imaginações da floresta,
ignoradas pela episteme que está na base de seu projeto impositivo. Convidamos
a conhecer as idéias e os intelectuais dos quais ele diz sentir falta no Brasil. A co-
meçar pelos próprios intelectuais da floresta, que existem sim por ali, por trás da
suposta “coleção de árvores” mencionada pelo ministro e por outros. Vamos ver
então como os povos da floresta têm colocado o problema do “desenvolvimento”
em seus próprios termos, lembrando que, aqui, “humano” não é uma prerroga-
tiva exclusiva à espécie humana detentora da cultura e da civilização, mas uma
qualidade subjetiva distribuída por inúmeras posições. Não custa lembrar que,
se os termos ameríndios soam “ambientalistas”, não podemos dizer que assim o
parecem por razões ideológicas ou pós-ideológicas, já que são independentes da
história moderna das idéias.
274 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA
Esta fumaça-epidemia atinge o ‘mundo inteiro’... O vento leva-a até o céu. Quan-
do chega lá, seu calor queima-o pouco a pouco e ele fura. O ‘mundo inteiro’ é
então ferido como se estivesse queimado, como um saco de plástico derretendo
no calor (Kopenawa, apud Albert 2000, p. 252).
Se isso acabar, isso que carrega a terra, isso aí que estão pegando e acabando,
se acabar o que carrega a terra , é verdade, a terra despenca mesmo. (...)
Existe um rio, um rio mesmo. E embaixo tem um lago gigante do tamanho des-
ta terra onde tudo vai se desmoronando, e as pessoas acabam, tudo acaba, as
árvores acabam, todos estes rios acabam, as sucuris todas acabam, os bichos
da terra todos acabam, os espíritos desta terra acabam, é porque fazem assim
que as pessoas acabam. É verdade, não se deve mesmo mexer nisso, mas eles
[os brancos] encontram a gordura e ela acaba, do tamanho inteiro desta terra
é esta gordura com a qual estamos acabando e que faz a terra cair, cai mesmo
(Marubo 2008, p. 152-153).
A passagem possui termos que, mais uma vez, nos mostram como até
mesmo o dinheiro é apreendido a partir de critérios próprios (os critérios dos
pensamentos ameríndios), que passam despercebidos aos olhares desavisados. O
dinheiro faz com que os Xikrin assumam posição de sujeitos, possui imensa e
arriscada potência transformativa. Pode, no limite, fazer com que os Xikrin dei-
xem de se reconhecer como parentes. O que tudo isso quer dizer? “O dinheiro”,
segue Gordon, “pode fazer com que todos virem branco rapidamente, que todos
sejam pequenos xamãs” (ibidem). Sim, pois o xamanismo implica um processo de
alteração, de assunção de um outro ponto de vista ou subjetividade (cf. Viveiros
de Castro, 2002) – a dos brancos, no caso. O dinheiro, continua, “permite que os
Xikrin transitem em vários mundos e vejam com a pele de branco e de Mebên-
gôkre” (idem).
Ao assim fazerem – de modo análogo ao xamã que se jaguariza e, desta
forma, passa a possuir o conhecimento e os hábitos corporais das onças ou jagua-
278 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA
Andrello nota bem como os corpos dos indígenas atuais, que atravessa-
ram a catequização sistemática dos salesianos e outras formas de imposição da
cultura única, “diferem em alguns aspectos dos de seus antepassados, uma con-
sequência ligada principalmente ao crescente uso da comida dos brancos” (An-
drello, 2006, p. 60). Por conta disso, “a capacidade de memória e a inteligência,
atributos igualmente associados ao corpo, também vêm diminuindo com o passar
dos anos, e isso é atribuído especificamente ao abandono do uso do alucinógeno
caapi (Banisteriopsis caapi)” (idem). Como consequência, os jovens de hoje em
dia são mais “tristes e desanimados” do que os de outrora, uma vez que “os nomes
pessoais não são atribuídos com o mesmo zelo” (idem). O nome-alma, uma vez
Pedro de Niemeyer Cesarino 279
bem colocado, garante certas capacidades à pessoa tais como robustez e alegria,
coisa que parece faltar atualmente aos jovens.
A situação é bastante análoga ao caso marubo – seus jovens permanecem
muitas vezes em um limbo entre o modus vivendi dos antigos e dos brancos das
cidades, tornando-se melancólicos e, muito frequentemente, doentes. A situação
se generaliza para diversos povos indígenas e, em alguns deles, têm como limite
o suicídio, tal como entre os Guarani. Vale citar uma última passagem de Davi
Kopenawa sobre o problema entre os yanomami:
Por isso, quando meu pensamento está triste, às vezes me pergunto se, no futuro,
ainda haverá xamãs. Talvez não. Nesse caso, nossos filhos estarão tão confusos
que deixarão de ver os espíritos e de escutar seus cantos. Sem xamãs, viverão
desprotegidos e perderão o juízo. Passarão seu tempo a vagar entre os brancos.
(...) Por isso, nos esforçamos sem trégua para convencer nossos filhos e genros
a inalar yãkoana e fazer dançar os espíritos como faziam os nossos antigos.
Assim as palavras dos xapiripë [espíritos] jamais se perderão (Kopenawa 2006,
p. 21).
Dizer que a observação é posta a serviço de práticas não significa que se redu-
za a elas. Tão pouco discutido quanto os que vigoram em outras sociedades é,
na nossa, o pressuposto da racionalidade econômica. Credita-se assim o saber
tradicional ao simples apetite de comida. Mas as populações pesquisam e espe-
culam sobre a natureza muito além do que seria necessário ou racional do ponto
de vista econômico. Há um ‘excesso’ de conhecimentos somente justificado pelo
mero prazer de saber, pelo gosto do detalhe e pela tentativa de ordenar o mundo
de forma intelectualmente satisfatória. Dentre os apetites, o apetite do saber é
dos mais poderosos (2002, p. 13).
Essa apresentação tentou ser um convite para aqueles que, tal como o
professor Mangabeira Unger, têm se furtado a colocar os povos da floresta na
posição de interlocutores possíveis. Não é apenas a incompreensão de seus graves
280 CULTURAS MÚLTIPLAS VERSUS MONOCULTURA
dilemas sociais que está em jogo, mas também a chance de tomar decisões sen-
satas para o futuro da floresta e de seus povos – decisões que, aliás, deveriam ter
sido tomadas décadas atrás (para não dizer séculos), se o que se almeja são mesmo
as ditas “ações a longo prazo”.
Referências
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nia política da natureza (Yanomami)”. In: B. Albert & A.Ramos (orgs.). Pacificando
o Branco (Cosmologias do contato no norte-amazônico). São Paulo: Editora Unesp/
Imprensa Oficial/ IRD, p. 239-277, 2000.
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Floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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São Paulo: Editora da UNESP/ NuTI/ ISA, 2006.
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lo, 26 de abril de 2008, página 3, 2008.
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B.Ricardo & F.Ricardo (orgs). Povos Indígenas no Brasil. São Paulo, Instituto Socio-
ambiental: 21-23, 2006.
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Azougue, Edição Especial, p. 152-156, 2008.
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Aliás, 15 de junho de 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo,
Cosac & Naify, 2002.
119 Agradeço aos meus amigos Delcides Marques (PPGAS/Unicamp), Eduardo Dullo (PP-
GAS/Museu Nacional) e Gabriel Pugliese (PPGAS/USP), pois cada um a seu modo vem contri-
buindo com discussões de pontos centrais de minha pesquisa e apresentando pontos centrais de
suas pesquisas para que eu possa discuti-los. Agradeço imensamente a minha orientadora, Ana
Lúcia Pastore Schritzmeyer, pelas discussões, pelo apoio e pela confiança. Devo mencionar que
este trabalho vem sendo construído com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP), pela concessão de bolsa de estudos.
284 “FAXINA” E “PILOTAGEM”
120 Utilizamos o predicativo “de guerra” para caracterizar tais relações como bélicas. Não a
usamos no sentido que Deleuze e Guattari atribuem à “máquina de guerra” (2005).
121 Biondi (2007) apresentou uma importante contribuição sobre as negociações entre presos
e a administração prisional.
122 Os “faxinas” e “pilotos” são presos que concentram em si a capacidade política de in-
termediar as relações entre presos e destes com a administração prisional. Por vezes ocupam
cargos, como o de faxineiro, disponibilizados pela administração das prisões para a população
prisional; tais cargos possibilitam uma maior circulação no interior das construções prisionais,
servindo, assim, como ocupações estratégicas para o exercício político destes homens.
Adalton José Marques 285
por sua vez, diante de um poder específico que incide sobre seus corpos, produ-
zem táticas, seja para “ditar as condições” para o cumprimento de suas penas
– para o espanto de Veja –, seja para “quebrar cadeia” e “bater de frente com a
polícia” – estes sim, pilares da política do PCC frente à prisão128. Mesmo diante de
seu fracasso, a prisão retoma, sob novas vestimentas, as mesmas táticas que usou
outrora para “represar” as táticas-delinquentes. O rodopio não para. Como afirma
a própria reportagem de Veja, a segunda onda de ataques pretendia impedir a
transferência dos “líderes da facção” para a então recém-inaugurada penitenciária
de segurança máxima de Catanduvas (prisão do governo federal).
Passemos aos dados. Neles se entrevê, como exposto acima, que as táti-
cas da prisão para docilizar e tornar úteis os corpos dos prisioneiros não são postas
em prática sem se defrontarem com contra-táticas elaboradas por esses próprios
prisioneiros. Iniciaremos com um relato que nos foi contado por um participante
ativo de uma rebelião promovida pelo PCC no Dakar III de Pinheiros, por volta de
maio de 2005. O segundo relato é sobre a última rebelião ocorrida na Penitenci-
ária José Parada Neto (Guarulhos), em outubro de 2005. Penitenciárias estas que
compõem o pequeno grupo de prisões que não estão sobre o domínio do PCC.
Enfim, encerraremos a exposição dos dados com relatos dispersos de presos que
experienciaram o encarceramento antes da fundação do PCC, ou em cadeias que
ainda não haviam sido dominadas pelo PCC, no final da década de 90.
O primeiro relato foi-nos contado por um ex-presidiário que participou
ativamente do evento descrito. Por volta de abril e maio de 2005, após sucessivas
rebeliões recentes, os presos do Dakar III de Pinheiros – cadeia peculiarmente
considerada “tomada” pelo PCC, já que nela não se admite a entrada rotineira de
policiais militares129, passaram a receber comida azeda da administração prisio-
nal. À esta tática administrativa os “pilotos”130 do “raio” conhecido por abrigar
os “irmãos”131 e os “primos leais”132 do PCC responderam com nova rebelião,
Esse outro personagem, que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado, é
o delinqüente” (Foucault, 2004: p. 210).
128 Tratamos dessas táticas do PCC em outra ocasião (Marques, 2006: especialmente o capí-
tulo 3).
129 Apenas operações policiais promovidas por divisões especiais como o GATE – Grupo de
Ações Táticas Especiais são capazes de quebrar, à força é claro, essa imposição política do PCC.
130 Nesse contexto os “pilotos” são, geralmente, pertencentes ao PCC.
131 Presos filiados ao PCC.
132 Presos que apesar de não pertencerem ao PCC permanecem no convívio com os “irmãos”,
respeitando e compartilhando suas regras.
Adalton José Marques 287
133 “(...) os presos “comuns” cavando túneis, quebrando paredes, serrando grades etc; os pre-
sos da “cela dos evangélicos” rezando alto para ocultar o barulho das colheres, ferros e serras
que os presos “comuns” utilizam para “quebrar cadeia”; e, os “irmãos” em liberdade captando
recursos para libertarem seus pares presos” (Marques, 2006, p. 49).
134 “Uma cara” quer dizer “bastante tempo”.
288 “FAXINA” E “PILOTAGEM”
funcionários com os quais conversamos sobre este evento disse-nos: “aqui é real-
mente uma cadeia mais tranqüila, mas ela pode virar a qualquer momento, porque
não são quatro, cinco, seis ou sete agentes prisionais que vão segurar trezentos e
cinqüenta homens de um raio prontos para se rebelarem”.
Enfim, não é raro escutarmos de presos e de ex-presidiários que estive-
ram em prisões paulistas nas décadas de 70, 80 e 90 (o relato mais antigo é de
um interlocutor preso em 1976) que as primeiras rebeliões de que participaram
foram motivadas para reivindicar o fim dos maus tratos por eles sofridos. Não é
raro também a afirmação de que o PCC surge exatamente para desempenhar uma
representação na negociação com a administração prisional e uma intermediação
nos litígios entre presos, funções que os antigos “faxinas” – em meio a inúmeras
“facções” emergentes – já não conseguiam mais desempenhar. O primeiro exer-
cício é conhecido como “guerra com os polícias” e o segundo é conhecido como
“paz entre os ladrões”. O interessante é que essas afirmações não são apenas pro-
venientes de presos antigos que aderiram ao PCC e que, portanto, poderiam estar
enviesados politicamente. Até presos antigos que hoje estão na PJPN reconhecem
esse papel desempenhado pelo PCC; suas críticas são dirigidas à alguns “pilotos”
que teriam aproveitado o poder de pertencer ao “Partido” para tirar proveito em
suas guerras particulares e em extorsões de presos primários (conduta, aliás, criti-
cada pelos próprios membros do PCC).
Podemos falar ainda de inúmeras micro-negociações entre presos e admi-
nistração prisional que, a despeito de parecerem insignificantes diante das grandes
negociações travadas durante as rebeliões, promovem verdadeiras reorganizações
no seio da prisão. Um de nossos interlocutores, “faxina” em diferentes prisões, de
meados da década de 80 até meados da década de 90 (quando obteve sua liberda-
de), disse ter negociado diretamente com um diretor da COESP (Coordenadoria
dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado de São Paulo) a autorização da
instalação de uma cela exclusiva para evangélicos na Penitenciária de Samaritá
(São Vicente) e a elaboração de um calendário de cultos promovidos por visitan-
tes de diferentes denominações evangélicas. Um outro disse estar presente no
pavilhão 7 do extinto Carandiru, em 1995, quando os “faxinas” desativaram uma
ala inteira de evangélicos ao descobrirem que existiam celulares naquelas celas, e
mandaram a maioria de seus ocupantes para o pavilhão 5 (“seguro”)136. Os exem-
plos são abundantes.
136 Há um consenso entre nossos interlocutores de que o preso evangélico não pode utilizar
qualquer contravenção – como drogas, celulares, bebidas etc – durante sua permanência na
prisão. Fala-se, comumente, de um “proceder para os evangélicos”.
290 “FAXINA” E “PILOTAGEM”
Referências
137 Não cremos que se trata de um poder disciplinar ou de controle, compreendidos por Fou-
cault (2004) e Deleuze (1992), respectivamente, a partir de diferentes dados históricos.
138 Faca.
LUGAR COMUM Nº25-26, pp. 291-309
Jean Tible
Contextos
Econômico, Político
A partir dos anos 30, com a industrialização do Brasil, São Paulo vai se
tornando, em detrimento do Rio de Janeiro, o principal pólo econômico do país
e da América Latina, passando a produzir tecidos, sapatos, móveis, materiais de
construção, peças de locomotiva e material ferroviário. Ao mesmo tempo, com
uma crescente intervenção do Estado na economia, são criadas várias estatais da
indústria pesada, tais como a Companhia Vale do Rio Doce, Petrobrás e Compa-
nhia Siderúrgica Nacional. Ocorre uma progressiva diversificação e indústria de
bens de capital, tais como máquinas, tratores, geradores.
Nos anos 50 tem início a indústria de autopeças, a partir da implantação
das indústrias automotivas, baseada no tripé desenvolvimentista do governo JK:
Estado, empresas nacionais e capital internacional. Esta década assinala uma forte
mudança na classe operária, que cresce numericamente e se diversifica, ao mesmo
292 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70
Resistências
Como se organizaram as diversas resistências à ditadura no final dos anos
60 e início dos anos 70? No plano sindical, formaram-se chapas de oposição para
disputar as eleições dos sindicatos com uma série de reivindicações: contra o arro-
cho salarial, pela estabilidade do emprego, contra a estrutura sindical e defesa da
organização de comissões de fábrica democraticamente eleitas. Tais mobilizações
ocorriam e revelavam uma articulação com militantes católicos, notadamente a
JOC (Juventude Operária Católica) e a ACO (Ação Católica Operária).
Naquele contexto, a chapa de oposição venceria a eleição em Osasco,
tendo como cabeça de chapa José Ibrahim, membro da comissão de fábrica da
COBRASMA, além de ser militante de uma organização de esquerda clandesti-
na. O mesmo ocorreu em Contagem (Minas Gerais), onde a chapa de oposição
saiu vitoriosa, sendo, no entanto, obrigada a travar uma dura batalha na Justiça
do Trabalho, sofrendo intervenção do Ministério do Trabalho e a destituição do
presidente eleito e de três membros da diretoria, antes de tomar posse.
Jean Tible 293
e das punições, das exigências de maior produção, do aumento do ritmo das má-
quinas, do controle das atividades cotidianos (existência e duração da pausa para
o cafezinho, possibilidade ou não de circular na empresa, idas ao banheiro), foi
construída a proposta de um contra-código operário: “inscrevem-se necessidades
de controle operário quanto ao ritmo de trabalho, à capacidade de produção, à
mobilidade na fábrica (...) que são atribuições das chefias”. Tal busca do “‘contro-
le operário’ sobre o ocupante do cargo acabou pondo em xeque o próprio cargo,
seu conteúdo e atribuições” (Maroni, 1982, p. 108).
Os dois movimentos que estamos tratando surgiram da prática das lutas
sociais; são processos de múltiplas formas de luta contra a opressão e a exploração
capitalistas, nas quais os trabalhadores descobrem-se como classe, transformada
em consciência de classe. De acordo com Marco Aurélio Garcia,
periferia por melhorias no transporte, por mais escolas, creches, contra a elevação
do custo de vida, culminando com as maciças votações no MDB em novembro
de 74, e pequenas greves de seção em várias fábricas (Sader, 1988). Assim, vários
esboços de organização operária começaram a eclodir.
tantes ligados ao PCB e PCdoB retiraram seu apoio às mobilizações do ABC por
temer pelo processo de redemocratização, existiram divergências importantes no
que toca ao papel do sindicato, às comissões de fábrica e à relação entre estas e
o sindicato.
Sempre houve reticências por parte de São Bernardo e seus dirigentes
em relação às comissões de fábrica e o temor de “paralelismo sindical”, como se
pode ver nas teses defendidas no II Congresso (1976). Vários autores destacam,
além disto, o excessivo apreço de São Bernardo pelo sindicato e a estrutura a ele
atrelada. Marco Aurélio Garcia (1982) interroga a este respeito se “não teria sido
oportuno, por exemplo, aproveitar a intervenção do Ministério do Trabalho no
sindicato para romper de vez com esta estrutura atrelada, criar um sindicato livre,
convocando os trabalhadores de todo o país a fazer o mesmo”. Ao que agrega
Amneris Maroni (1982):
ora defendiam delegados sindicais eleitos nas fábricas para fazer a ponte en-
tre a fábrica e o sindicato, ora defendiam as eleições das comissões de fábrica
ligadas organicamente e subordinadas aos sindicatos. Exemplo disso é que em
várias comissões de fábrica o sindicato indica um diretor para fazer parte da
comissão (p. 37).
Por outro lado, foram feitas muitas acusações de que o alto nível político
e ideológico da Oposição, suas bandeiras socialistas, de luta de classes, de enfren-
tamento com patrões, tê-la-ia feito desprezar as eleições do Sindicato, sendo esta
uma das causas de sua derrota. Tal posicionamento tê-la-ia transformado em uma
vanguarda distanciada das bases, contribuindo para a derrota de seus objetivos
imediatos, qual seja, ganhar as eleições sindicais. São Bernardo, por sua vez, não
possuía tanta elaboração ideológica, mas muita combatividade, muito espírito de
luta e organização.
Para nós, não faz sentido estabelecer uma polarização entre as duas ex-
periências de modo sectário. Nem São Bernardo constituiu apenas um sindicato
304 LUTAS OPERÁRIAS EM SÃO PAULO E NO ABC NOS ANOS 70
em São Bernardo, nos anos 1976 a 1980, tive o privilégio de ver e participar
ativamente de uma experiência sindical que também me marcou profundamente.
Em vez de milhares de empresas dispersas, com poucos sócios como em São
Paulo, a maioria dos operários de São Bernardo e Diadema estava concentra-
da nas grandes montadores automobilísticas e grandes fábricas de autopeças.
Uma classe operária jovem, trabalhando em empresas modernas, que ofereciam
transporte, alimentação, convênios médicos, tudo para ter uma mão-de-obra
preparada para produzir lucros cada vez maiores. Joaquinzão e seu sindicalis-
mo pelego e assistencialista não teriam nenhuma condição de sobrevivência em
São Bernardo. (...) Essa diferença sobre o papel dos sindicatos, das Comissões
de Fábrica, da autonomia da luta operária em relação ao aparelho sindical, que
poderia levar a uma troca de experiências muito rica, acabou resultando numa
desconfiança mútua, que trouxe prejuízos tanto para a Oposição quanto para os
dirigentes de São Bernardo. Enquanto a Oposição via no sindicalismo de São
Bernardo uma luta puramente economicista, que acabava reforçando a estrutu-
ra sindical vigente, os militantes e dirigentes de São Bernardo viam no trabalho
da Oposição de São Paulo um perigo do ‘sindicalismo paralelo’. Claro que nem
um nem outro estavam certos nessa visão (p. 28).
As lutas, em movimento
Comissões de fábrica
Um dos eixos das práticas e lutas dos operários é a organização em
comissões de fábrica. A pioneira neste período foi a já citada comissão da CO-
BRASMA, em Osasco. Trata-se de um processo de organização dos trabalhadores
em seu local de trabalho, inspirado na Comuna de Paris, nos Soviet da Revolução
Russa e nos Conselhos Operários de Turim na década de 20 e 70.
É importante frisar que a CLT não contempla nenhuma forma de organi-
zação no local de trabalho. Em geral, essas comissões têm início com pequenas
reivindicações: almoço ruim, ausência de bebedouro, autoritarismo patronal, rit-
mo de produção. Forma-se um grupo de fábrica com quatro ou cinco membros.
Depois, reuniões inter-fábricas. No decorrer dos anos 70 e 80, com as milhares
de greves pelo país, mais de cento e vinte comissões de fábrica foram formadas
(Bombardi, 2006).
Um dos melhores exemplos é o da comissão da Asama, fábrica de cons-
trução de máquinas, com operários altamente qualificados. A comissão já existia,
porém seguia as normas ditadas pela empresa. Em fevereiro de 82 uma chuva
inundou a fábrica, deixando-a parada por três dias. A diretoria da fábrica exigiu
compensação dos dias parados, ao que os trabalhadores responderam com um
boicote liderado pelo grupo de fábrica; a empresa acabou cedendo, havendo pos-
teriormente uma nova comissão, com nova concepção – apesar da violenta pres-
Jean Tible 307
Referências
2. Real da Violência
A sociedade burguesa toma inúmeras precauções contra a violência. E a
educação é orientada para atenuar de tal modo nossas tendências à violência que
somos naturalmente levados a pensar que todo ato de violência é uma manifesta-
ção de regressão à barbárie. A história do homem foi sempre violenta; viver em
sociedade foi sempre um viver violento; a violência, sempre presente, aparece em
suas várias faces. Nosso tempo está marcado pela violência, onipresente e multi-
forme nas suas variadas e distintas manifestações (Cerqueira Filho, 1983, p. 171).
314 NAS PELES DA CEBOLA OU DA “SEGUNDA NATUREZA” EM EXCESSO
140 Cf. Santner, E. A Alemanha de Schreber: uma História Secreta da Modernidade, 1997,
p. 23.
João C. Galvão Jr. 315
lei, portanto, há um certo fora-da-lei, um certo real da violência que coincide com
o próprio ato de instauração da lei: a verdade última sobre o império da lei é uma
usurpação, e todo o pensamento político filosófico clássico depende de desmentir
esse violento ato de fundação. Žižek esclarece:
a violência ilegítima através da qual a lei se sustenta deve ser escondida a qual-
quer preço, pois essa ocultação é a condição positiva do funcionamento da lei:
ela funciona na medida em que seus sujeitos são enganados, na medida em que
vivenciam a autoridade da lei como ‘autêntica e eterna’, passando-lhes desper-
cebida ‘a verdade sobre a usurpação’ (1992).
O ato mais decisivo, entretanto, que o poder supremo pratica (...) é a instituição
da lei, a declaração imperativa do que figura em geral como permitido e justo a
seus olhos, e do que figura como proibido, injusto: depois de haver instituído a
lei, ele trata a violência e os atos caprichosos por parte dos indivíduos ou grupos
inteiros como delitos contra a lei, como uma rebeldia contra o próprio poder
supremo. (...) “Justo” e “injusto”, por conseguinte, só existem depois da insti-
tuição da lei. (...) Falar em justo ou injusto em si é perfeitamente sem sentido (A
genealogia da moral, s/d).
...violência como “meio puro”, isto é, como figura de uma paradoxal “media-
lidade sem fins”: isto é, um meio que, permanecendo como tal, é considerado
independentemente dos fins que persegue (...) É pura a violência que não se
encontra numa relação de meio quanto a um fim, mas se mantém em relação com
sua própria medialidade (Agamben, 2004, p. 95-96).
3. “Instante” ou “Tempo-de-agora”
Nesta leitura, atento à secularização e ao mesmo tempo à ruptura, a von-
tade de potência politizada ou “potência política”141 quer a eterna repetição do
instante (perdido historicamente); é no “instante” (Nietzsche) que se faz a rup-
tura histórica pelas forças ativas, afirmando seus direitos políticos pela potência
política na vontade de dar efetividade aos “direito(s) achado(s) na rua” (Roberto
Lyra Filho); esses direitos não são achados numa realidade dialética: têm de ser
“achados na violência” (J.C Galvão). Este sentido do instante é uma possibilidade
de liberdade; este instante traz consigo: potência, força, violência, ruptura; este
instante é o “tempo-de-agora” (Jetztzeit) benjaminiano, autêntico instante que in-
terrompe o contínuo da história (Löwy, 2005, p. 15). Por isso Proust vai em busca
do tempo perdido, repetindo um instante que deveria ter acontecido, redescobrin-
do o tempo perdido, possibilitando a descoberta do tempo pela arte, um “tempo
puro” significando uma razão suficiente (o tempo a priori que não necessita do
movimento empírico ou do excesso de razão), uma razão suficiente rompendo
com o contínuo histórico – que Benjamin denominou “violência pura” –, pondo
em suspenso o movimento dialético. A essência do tempo é ser puro, ou seja, não
ter excesso de razão, para que o “homem de ação” (Nietzsche, 2005, p. 76) possa
romper com o contínuo histórico no instante que a violência pura proporciona;
esse rompimento ou ruptura é feita pela “potência política”, redescobrindo um
tempo eternamente vivido no instante “a-histórico” (ibidem, p. 74), vivendo eter-
namente nos segundos da ação; há instantes em que “de repente o tempo pára e o
presente torna-se eternidade” (Dostoievski); só uma vez ou outra surge um “ho-
mem de exceção” (Buarque de Holanda), que possa criar um verdadeiro estado
de exceção; e tem de ser forte o bastante para resistir e, apesar de tudo, criar. O
aqui e agora – “instante” ou “tempo-de-agora” – visto numa perspectiva político
filosófica é o rompimento com a história oficial dos dominantes e conquistadores;
só em instantes de forte tensão os homens encontram-se frente à frente com as
forças subterrâneas que desmantelam sínteses:
... esses “instantes” representam o que há de mais importante e (...) todo o resto
se anula diante de sua força (Buarque de Holanda, 1996, p. 239).
É preciso que se tenha de estabelecer o próprio direito, à força: antes disto, não
se faz uso algum [da dialética] (Nietzsche, 2000, p. 23).
320 NAS PELES DA CEBOLA OU DA “SEGUNDA NATUREZA” EM EXCESSO
4. Conclusão
Interpretar positivamente a violência pura benjaminiana (1921) numa
perspectiva histórica, ou seja, junto com o verdadeiro estado de exceção benjami-
niano (1940) é tarefa de todo intelectual comprometido com as forças destrutivas
da “segunda natureza em excesso”, exatamente para que se possa descascar e
comer essa cebola. É importante não tratar esta violência como ‘inferior’ ou como
fenômeno próprio da história do fascismo. Esta violência é a única forma dos su-
balternos “poderem afrontar a arrogância, a impunidade e o saqueamento corsário
do Estado realizado pelas elites políticas, industriais e financeiras do país, que es-
tão mal acostumadas a serem protegidas pelo Estado à custa da predação daqueles
grupos” (Birman, 2003, p. 284-285).
A estratificação social e política não coloca outra opção a esses mesmos
grupos subalternos, numa sociedade secular hierarquicamente dividida em clas-
ses, além de pegar em armas, assaltar, assassinar. Estes grupos marginalizados
movimentam dialeticamente o direito na prática, exercendo uma forma de contra-
poder face aos dispositivos instituídos pelo poder, mostrando que o ato violento
é um legítimo direito político e está bem longe do conceito de barbárie. Como
enfatizou Adorno (1995), a tentativa de superar a barbárie é primordial para a
sobrevivência da humanidade (p. 155-168). Mas é preciso ficar atento ao discurso
João C. Galvão Jr. 321
oficial que tenta a cada dia, principalmente, através da mídia, confundir as massas
e misturar os conceitos de violência e barbárie. A violência pode ser um sintoma
de barbárie, mas não necessariamente. Diz Adorno:
Referências
a chave para entender os limites do grau de Giuseppe Cocco (2002), em artigo publicado
desenvolvimento global a que chegamos, na revista Lugar Comum, afirma que, (...) “o
Luca Casarini: Depois do período movimento novo que se afirmou em Gênova
dos grandes conflitos iniciado em Seattle, é irreversivelmente globalista (e não mais
passando por Gênova, pode-se dizer que um antiglobalização)” (p. 68)147. E aí, o próprio
primeiro ciclo de lutas globais tenha chegado autor destaca algo que é muito interessante
ao fim? no processo de constituição de espaços demo-
Naomi Klein: Penso que estamos cráticos: enquanto, por exemplo, na cidade de
diante da conclusão de um primeiro ciclo, mas Porto Alegre houve um importante apoio ins-
isto não significa que o movimento tenha aca- titucional local e regional, por outro lado, na
bado. É parte de seu desenvolvimento exau- cidade de Gênova, os territórios constituintes
rir-se e abrir uma nova fase. Acabou o tempo do movimento sofreram o curto-circuito de um
em que se podia estar, simplesmente, do lado enfrentamento direto (violento) com a gestão
de fora das cúpulas, sob o sol, a gritar slogans. constituída do espaço e do tempo no Império
Hoje é necessário coligar-se com as questões (Cocco, op. cit., p. 67). No documentário Sur-
verdadeiras, com as lutas quotidianas, dia plus, durante todo o tempo aparecem cortes
após dia, contra as injustiças. Por exemplo, de imagens que demonstram as condições de
em Sevilha, na ocasião da contra-cúpula (mo- consumo nas cidades e para as pessoas (em-
vimento de resistência à cúpula oficial, n.t.) presários, mas principalmente trabalhadores,
européia sobre os imigrantes, um grupo de inclusive a indústria do entretenimento). E,
cinqüenta trabalhadores imigrados ocupou esta é uma das questões-chave para entender
a universidade depois de terem perdido seus este momento que seguimos vivendo, e que,
contratos temporários de trabalho. Sevilha e a alguns já denominaram muito bem, como a
Espanha estavam em greve e houve um nível era da Baixa Globalização ou da Guerra Glo-
considerável de auto-organização. Isto muda bal Permanente, à grosso modo, ainda é possí-
bastante a percepção e mesmo, creio, a cober- vel falar em desenvolvimento sustentável sem
tura da mídia: porque era fácil demais fazer ao menos mencionar a necessidade de discutir
a paródia das contra-cúpulas. Há uma ten- um consumo sustentável global?
dência, em geral, onde se vê muita gente do Dito de outro modo e, retomando
movimento transferindo-se de um summit a a entrevista concedida por Naomi Klein para
outro, pensando participar de uma espécie de Luca Casarini, este lhe pergunta pontualmen-
“revolução em miniatura”, cujo único objeti- te sobre a perspectiva do movimento dos mo-
vo é trazer mais pessoas para as ruas. E assim, vimentos, assim:
todas as nossas ações tornam-se simbólicas, Luca Casarini: Dissemos que o pri-
enquanto a realidade da qual falamos torna-se meiro ciclo de lutas globais centrava-se nas
cada vez pior. cúpulas e na economia capitalista. Parece que
É interessante, trazer para este de- este segundo ciclo é centrado na guerra glo-
bate um outro autor que pode esclarecer a
natureza da opressão consumista neoliberal e 147 Giuseppe Cocco, cientista político, doutor
a característica do movimento surgido desde em história social pela Universidade de Paris, é
Seattle, passando por Gênova, Florença e por professor titular da Universidade Federal do Rio
que não também, por Porto Alegre, através de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com
das três edições do Fórum Social Mundial. Antonio Negri, o livro “Glob(AL): Biopoder e
Luta em uma América Latina Globalizada”.
328 CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho
bal permanente. Qual é a discussão sobre este zza148 nos apresenta este conceito como uma
tema nos Estados Unidos e no Canadá, depois das categorias mais atraentes da teoria literá-
do 11 de setembro? ria das últimas décadas do século 20. Ou seja,
Naomi Klein: É análoga a que está Bakhtin ao tomar a palavra de empréstimo da
em curso na Europa: estamos falando das co- arte musical, isto é, o efeito obtido pela so-
nexões entre militarismo e economia. Temos breposição de várias linhas melódicas inde-
as novas cercas e esta é a violência: não po- pendentes mas, harmonicamente relacionadas
dem pensar, deste modo, excluir tanta gente nos abre a possibilidade de uma nova leitura
do bem-estar, sem prever uma estratégia si- do réquiem global que temos vivido. Segundo
multânea de contenção. E esta estratégia assu- Cristovão Tezza (op. cit.),
me muitas faces: o arame farpado que circun-
da as fábricas no México e nas Filipinas, para Para uma filosofia do ato, escrita no
manter as organizações sindicais à distância, início da década de 1920 e publicada
com guardas armados, significa a militari- apenas mais de sessenta anos depois,
encontramos um Bakhtin fundamen-
zação do modelo econômico. Pensamos nos
talmente filósofo, esboçando o projeto
arames farpados nas fronteiras, que servem
de uma filosofia moral que suplantas-
para manter os imigrantes fora da fortaleza- se o que ele chamava de cisão “irre-
Europa. Depois do 11 de setembro, contaram parável” entre o mundo da cultura
que uma conspiração havia acabado com e do pensamento e o mundo da vida
o período de paz e de bem-estar: creio que concreta. Para o jovem Bakhtin, su-
este argumento desabou junto com as Torres perar esse abismo significa que o meu
Gêmeas. Não há mais separação entre uma ato de cognição deve ser também a
discussão sobre guerra; devemos ligar estes minha ação, com toda a responsabi-
temas, porque mostram a violência intrínseca lidade concreta dos meus gestos e da
deste modelo econômico. minha vida.
Portanto, no documentário Surplus
e na Edição da Revista Glob(A.L.), existe um Para um maior aprofundamen-
tema transversal que abrange não somente to sobre este tema, que na verdade contém
a questão do consumismo, mas também o duas situações contemporâneas (globalização
processo de globalização conservadora que e consumismo) e que estão, grosso modo,
é fase e, ao mesmo tempo, uma das faces do atravessadas por um intenso processo de co-
desenvolvimento do capitalismo contemporâ- municação e semiotização da vida, deve-se
neo. Dito de outro modo, para pensar a lógica
deste sistema que muitas vezes beira às raias 148 Cristovão Tezza é escritor, autor dos roman-
da esquizofrenia, deve-se fazer um exercício ces O fotógrafo e Breve espaço entre cor e som-
de polifonia e para tanto, não como escapar bra (Rocco), entre outros, é professor de língua
portuguesa na Universidade Federal do Paraná e
da sobreposição de textos e imagens, por ser
doutor em literatura brasileira na USP com a tese
esta também a sua lógica interna. Em ensaio
Entre a prosa e a poesia – Bakhtin e o formalis-
publicado e apresentado, sobre o autor russo mo russo (Rocco). O ensaio citado resume parte
Mikhail Bakhtin (1895-1975) e o livro deste do texto A polifonia como uma categoria ética,
sobre Dostoiévski (literato russo), publicado apresentado no X Congresso Internacional sobre
pela primeira vez em 1929, Cristóvão Te- Mikhail Bakhtin, em Gdánsk, Polônia, julho de
2001. http://revistacult.uol.com.br/especial_po-
lifonia.htm.
CONSUMISMO E GLOBALIZAÇÃO / João Batista de Almeida Sobrinho 329
contrário do que defendem Hardt e Negri, açada como agora. Porém, é exatamente este
afirma que, com base em tais mudanças, o im- o ponto mais frágil da sua argumentação no
perialismo não estaria chegando ao seu fim, livro. Os atuais movimentos de resistência são
mas sim assumindo uma feição diferente. vistos com grande pessimismo pelo autor, que
Citando eventos ocorridos nos EUA afirma que são movimentos que se alimentam
como a grande competição econômica, fraudes de revolta contra certas condições, mas, por
e corrupção política, escândalos, rumores de serem fragmentados e deixarem de lado a “fi-
assassinatos tramados na Casa Branca, tragé- nalidade do domínio do aparelho do Estado”,
dias de Oklahoma e Columbine, etc., Harvey permanecem com alvos e objetivos difusos.
argumenta que, ao introduzir uma inclinação Neste sentido, as possibilidades de constru-
à violência e à oposição interna, de forma que ção de alternativas partem de um saudosismo
a sociedade aparentava estar se fragmentando do tempo em que a resistência acontecia de
e perdendo coesão com rapidez, os EUA rea- forma institucionalizada, por meio de sindi-
firmaram seu propósito nacional – de acabar catos e partidos políticos. Ainda no que se
com o terrorismo – evocando, para isso, uma refere às tendências contra-hegemônicas, o
grande solidariedade nacional direcionada à autor apresenta uma análise que aponta muito
imposição da ordem, o que se efetivou com o mais para os limites do que para as potencia-
11 de setembro. Tais eventos permitiram aos lidades abertas por essas tendências. Harvey
EUA acumular mais poder, o que, ao mesmo afirma que as lutas apresentam uma tendência
tempo, se disfarçava por detrás de um “uni- multifacetada, ao contrário, segundo ele, do
versalismo abstrato”. “estandarte homogeneizante” do conceito de
Segundo Harvey este novo imperia- multidão defendido por Negri e Hardt no livro
lismo se afirma não apenas a partir de uma Império. Trata-se, evidentemente, de uma lei-
forma de acumulação puramente econômica tura completamente deturpada de tal conceito,
– o que ele chamou de opressão via capital que aponta justamente para a multiplicidade
– mas, sobretudo, por meio de uma acumu- das lutas e/ou das formas de resistência.
lação – via expoliação – que, chamada por Os acontecimentos em curso, de cri-
Marx de primitiva, encontra-se ainda presente se financeira em escala global, corroboram a
nos dias atuais, renovando suas antigas práti- tese de que a nova ordem capitalista não pode
cas, através, por exemplo, da privatização dos ser ditada por uma única potência. O poder,
recursos e substituição da agropecuária fami- como afirmam Negri e Hardt, não tem limi-
liar pelo agro-negócio. Além disso, o novo tes para ser exercido, muito menos fronteiras
imperialismo também se afirma por meio da nacionais, como no imperialismo. Por isto, a
“coerção consentida”, tanto no plano interno, impressão que fica ao leitor – além de uma
pela sociedade norte-americana, quanto no sensação catastrófica em relação às possibili-
externo, com base na defesa dos princípios de dades de resistência a esta ordem – é que Har-
liberdade e democracia. vey parece perder o contato com a realidade.
Por outro lado, Harvey aponta que
se evidenciam cada vez mais resistências
contra essa hegemonia, como é o caso dos Marina Bueno é assistente social
movimentos anti-globalização, que se co- da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
locam contra o domínio norte americano: a e mestranda da Escola de Serviço Social da
hegemonia dos EUA nunca esteve tão ame- UFRJ.
Resumos
RESUMOS 335
Abstract: The debate surrounding racial quotas in Brazil seems far from a conclusion.
The proposal of implementing a system of quotas of vacancies in higher education
reserved for black and indian students is still very controversial. In 2006, two mani-
festos were issued: one addressed to Society and the other to National Congress, the
former against and the latter favorable to the measure. An intense debate followed
and, in 2008, another two new manifestos, once again, pro and con the establishment
of racial quotas produced a new episode, this time initiating a discussion over the
constitutionality of the measure. This paper aims to discuss the different standpoints
present in these two manifestos.
Key words: quota policies, affirmative actions, racial equality, black movement, ma-
nifestos
colocadas por esta teorização. As duas tradições são extremamente instrutivas, tanto
no que diz respeito aos seus avanços quanto aos insucessos de suas análises. A partir
do argumento que ambas estratégias críticas não se sustentam diante das novas condi-
ções da produção no pós-fordismo, o artigo conclui apresentando um breve exercício
de imaginar uma estratégia alternativa (e imanentista) de intervenção crítica/política,
que poderia ser útil tanto para abrir uma outra perspectiva quanto para emoldurar uma
resposta política diferente aos regimes de trabalho pós-fordistas.
Palavras-chave: trabalho imaterial, afetos, pós-fordismo
Abstract: Feminist theorists have long been interested in immaterial and affective
labor, even if the terms themselves are a more recent invention. Contemporary dis-
cussions of the concepts of immaterial and affective labor could be enriched by a
better understanding of these lineages. Towards that end, this paper focuses on two
pioneering feminist projects: the socialist feminist effort to add a critical account of
reproductive labor to a Marxist analysis of productive labor and Arlie Hochschild’s
addition of the emotional labors of pink collar service workers to the critical analyses
of white collar immaterial labor exemplified by the work of C.W. Mills. By focusing
on what each of these feminist interventions contributes one can better understand the
specificity of labor in the immaterial mode and the difficulties posed by its theoriza-
tion. The two traditions are instructive for both the achievements and the failures of
their analyses. Arguing that both of these critical strategies prove increasingly untena-
ble under the conditions of post-Fordist production, the paper concludes with a brief
attempt to imagine the terms of an alternative immanent strategy of critical/political
intervention, one that might serve to open another angle of vision on, and frame a
different kind of political response to, post-Fordist regimes of work.
Key words: immaterial labor, affects, post-Fordism
Abstract: The paper analyses the debate about the theorical, political and cultural
basis of human rights, stressing the transformations occurred in this concept from the
emergency of globalized world. Criticizing both essencialists and formalists ideas,
the author aims to understand human rights as a set of social, economical, normati-
ve, political and cultural processes, based on the concept of conatus, brought up by
Spinoza`s thought.
Key words: Human rights, legal formalism, moral rights, globalization, social stru-
ggles
knowledges, but from the perspective of rights as well. It goes further than a mere
declaration of collective rights, but implies a specific chapter dedicated to the rights of
the Nations and Peoples of originary indians. Indian Nations and Peoples are thus part
of the structure of constitutional rights themselves, a structuring part of the building
of the new constitution.
Key words: diversity, multiplicity, democratic participation, originary indian nations
and peoples
Abstract: In this article I will examine the use of three generational labels widely
adopted by the Brazilian press: “Digital Generation”, “Vanity Generation” and “At-
Risk Generation”. My objective is to demonstrate how media portrayals of the “new
generation” discursively celebrate youth stances and practices, which would prefigure
or synthesize an exemplarily subjective pattern tuned with assumptions and interests
of the present stage of capitalism.
Key words: Youth, Generation, Press, Subjectivity, Neoliberalism
de caso sobre o coletivo pernambucano Media Sana, que trabalha com apresentações
audiovisuais em que problematiza a relação entre mídia e cidadania; e o coletivo Poro,
sediado em Belo Horizonte, que atua, principalmente, com intervenções artísticas em
espaços públicos, visando criticar a invasão publicitária no cotidiano.
Palavras-chave: Coletivos de arte e ativismo; resistência; criatividade
Abstract: This paper discusses art and activist collectives’ actions in light of the re-
cent appreciation of creativity and affection between contemporary practices of re-
sistance. Initially, some theoretical observations are made on the critical potential of
communicative, collaborative and expressive activities based on affection and ima-
gination. Then, it problematizes the heterogeneity of the phenomenon of artistic and
activist collectives in the country. Finally, two brief case studies are presented on the
collective from Pernambuco, Media Sana, that works with audiovisual presentations
in which is questioned the relationship between media and citizenship, and Poro, ba-
sed in Belo Horizonte, which operates with artistic interventions in public spaces,
designed to criticize the advertising invasion in the day-to-day life.
Key words: Art and activism collectives, resistance, creativity
Abstract: Matteo Pasquinelli attempts to frame a missing part of the debate surroun-
ding the so called creative labor, especially on the collective dimension of value cre-
ation and on the political space of cognitive competition. Whilst the “social factory”
produces the greatest portion of value today, a scenario of an “immaterial civil war” is
introduced to show forms of conflicts within cognitive capitalism which have no clear
class composition and share the same media space.
Key words: creative industry, cognitive capitalism, immaterial labor
340 RESUMOS
Midialivristas, uni-vos!
Adriano Belisário, Gustavo Barreto, Leandro Uchoas, Ivana Bentes e
Oona Castro
Resumo: Mídia Livre. Do quê? Livre de ouvintes passivos. Livre para o exercício
da comunicação participativa. Livre do medo de arriscar. Livre para novas gestões
da propriedade intelectual. Livre do combate ao compartilhamento de informações.
Livre para transformar.
Palavras-chave: democratização da comunicação, novas tecnologias, políticas públi-
cas, redes, midiativismo
Abstract: Free media. Free from what? Free from passive listeners. Free to the exer-
cise of participative communication. Free from the fear of taking risks. Free to new
forms of managing intellectual property. Free from the combat to information sharing.
Free to transform.
Key words: democratization of communication, new technologies, public policies,
networks, mediactivism
Abstract: This paper addresses the tension surrounding the concepts of city and me-
tropolis which inaugurates both the modern urbanism and the postulate of a contem-
porary city as in Le Corbusier's work. His book Urbanism, first appeared in France, in
1925, is one of the main registers of the emergence of an urban concern with fordist
processes of industrialization. In Contemporary City and Plan Voisin, major proposals
aiming to radically transform Paris, we find the elements to rethink the (originally
conservative) meanings of this transformation, as well as the historical determinations
associated to the rising of the metropolis as a productive power.
Key words: contemporary city and metropolis, urbanism, Le Corbusier
RESUMOS 341
Abstract: Brazilian samba is, at the same time, one of the most potent artistic expres-
sions and a big “cliché” of Rio de Janeiro. Cliché of a national identity, the people,
and the Nation-State. However, before being captured and becoming impotent and
reduced to a cliché, samba is being proposed as a line of flight, or indeed, many lines
of flight, according to the different lines through which it reinvented itself throughout
the twentieth century. Samba has helped to draw the map of the city of Rio de Janeiro,
with its occupations and territorial divisions.
Key words: samba, cliché, line of flight, cultural expressions, territorial occupations
and divisions
being transformed into a work-force (estrangement). Does labor expel the artistic va-
lue? Why could this elipse extract an ‘artistic’ concern from an action oriented to the
sensible? What are the implications of these questions in contemporary arts debate?
My positioning emerges as a political struggle of the artistic praxis in its pontencial
connectivities with society. Another issue of analysis is the possibility of a simulta-
neous supression and realization of art, as it has been addressed by the Situationists
movement.
Key words: practices of art, labor, artistic operations
Abstract: Sight is a subject that is little debated as a means of control, of society's ma-
nagement and as a brake to the most essential pulsations of the human being. In José
Saramago´s Assay on the Blindness the author leads his characters to a limit situation
(borderline) in which the function of seeing means not only being able to guide, de-
cide, and judge, but also to have the sad privilege of watching the collapse of civility.
The ethical collapse and the urban calamity come in tandem. In another section of
this article, we present Aubervilliers, a city-suburb in Northern Paris, full of blocks of
social housing buildings and vestiges of chimneys, which in 2005 gained a little more
of stigma in the headlines worldwide concerning the episodes of fires and rebellions,
as a result of alarming unemployment rates amongst immigrants' descendants. This
RESUMOS 343
text deals with the possible connections between the collapsing city imagined in As-
say on Blindness and Aubevilliers. Using the French city as a background, we con-
front the fantastic order, the white blindness as Saramago names it, to the problematic
hospitality ethics raised by Emmanuel Lévinas, to whom the sense of sight is, in the
first place, the possibility of one's meeting with the face of the other, and it is in this
encounter that lies the threshold between peace and war.
Key words: city, hospitality, blindness
Abstract: This paper is composed of a set of notes drawn on the productive rela-
tionship between the multitude and the metropolis, in the range of the Empire, using
as a focal starting point the social workers struggles within the territories, that is, out-
side the factory regime. The “metropolitan strike” and/or the “generalized strike” are
presented as powerful strategies of fight which must be mobilized against the logics of
the war instaurated in the cities and against the renovating forms of exploration. It ap-
proaches theorethical and historical anticipations of this movement, dialoguing with
authors such as Rem Koolhaas, Saskia Sassen and Mike Davis, among others, and
summons us to the task of rebuilding the metropolis and the sense of the common.
Key words: Metropolis, Global Cities, Empire, War, Territories, Labor of the Multi-
tude, “Metropolitan strike”
Resumo: A proposta deste texto é fazer uma reflexão em torno da idéia da potência
das culturas híbridas e da creolização, procurando valorizar as dimensões de impre-
344 RESUMOS
Abstract: The purpose of this paper is to discuss the potency of hybrid cultures and
creolization, aiming to highlight the dimensions of unpredictability and incommensu-
rability, which are central concepts within the theorizations of philosophers and politi-
cal scientists Antonio Negri and Michael Hardt, as well as in the writings of caribbean
poet and philosopher Édouard Glissant, who develops a very original thinking around
creolization – an ever unforeseen and unpredictable miscegenation which is being
qualified here as “monstrous”. The meaning ascribed to creolization is thus that of a
resisting disruptive power which disorganizes and gives rise to the rupture of codes
and hierarchies of power, from which emerges its dimension of political monstrosity.
Key words: creolization, miscegenation, political monstrosity
Abstract: this text will present two features (Momus and monster) of poet Antonin
Artaud's work. It will suggest the construction of a monster-writing as a possible so-
lution to the battle established between the poet, his writing and the European society
misfortunes during the 20th century's first half.
Key words: Momus, monster, monster-spelling, cruelty
O corpo e o devir-monstro
Carlos Augusto Peixoto Junior
Resumo: Este artigo tem como objetivo geral discutir algumas relações entre o corpo
e o fenômeno do monstro, teratológico ou ficcional, procurando avaliar os abalos que
a figura monstruosa provoca nos modelos de apreensão da subjetividade construídos
prioritariamente a partir dos referenciais da representação e da identidade. Em termos
mais específicos, são discutidas diferentes possibilidades de subversão suscitadas pela
monstruosidade em suas relações com o corpo, tais como as que ocorrem nos campos
da ciência, da cultura, dos estudos de gênero e de uma política de subjetivação, des-
tacadas por diferentes autores do pensamento pós-metafísico contemporâneo. O que
se procura ressaltar em todas essas vertentes é que, ao afirmar sua diferença radical, a
figura do monstro abre novas vias de acesso ao devir e à singularidade.
Palavras-chave: corpo, monstro, singularidade
Abstract: This paper has as its general aim to argue about some relations between
the body and the phenomenon of the monster, teratological or fictional, trying to eva-
luate the shocks that the monstrous figure provokes in the models of apprehension
of subjectivity mainly constructed on the references of representation and identity.
In more specific terms, the paper discusses different possibilities of subversion rai-
sed by monstrosity in its relations with the body, such as the ones that occur in the
fields of science, culture, gender studies and the politics of subjectivation, detached by
different authors of contemporary post-metaphysical thought. In all these versants it
tries to emphasize that, when affirming its radical difference, the figure of the monster
opens new ways of access to becoming and singularity.
Key words: body, monster, singularity
346 RESUMOS
Abstract: This paper addresses the amerindian standpoint concerning the so-called
“nature” or “environment”. Considering the presuppositions of xamanistic and mytho-
logic thinking developed by some of the Amazonic people, as well as certain analyses
of a contemporary americanist ethnology, the purpose is to offer a critical analysis
and a counterpoint for the stereotypes underlying current discourses of development
a