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Fonética histórica

Introdução

As chamadas leis fonéticas, proclamadas pelos linguistas da escola Neo-Gramática do


século XIX, são mudanças regulares que se observam na evolução de todas as línguas,
motivadas pela configuração fonética das palavras. Não sendo, como se julgava inicialmente,
maciças e inobserváveis, acabam, aos poucos, por afectar a quase totalidade do léxico de
cada língua em determinada secção de tempo. São eventos históricos, sujeitos às mesmas
contingências regionais, políticas, culturais e sociais dos outros eventos que atingem a vida de
uma comunidade, o que significa que têm uma actuação limitada a um passo da história
daquela mesma comunidade. Na evolução do latim falado no início do Império para o falado
na România Ocidental (Norte de Itália, Gália, Récia e Hispânia) e desse para o romance
galego-português, verificaram-se consideráveis mudanças regulares, determinadas pelo
contexto fonético e que são, resumidamente, estas:

Símbolos

1. A mudança ocorrida entre duas formas separadas pelo tempo indica-se inscrevendo entre
elas o parêntese angular >.

2. As formas latinas, para imediato reconhecimento, escrevem-se em caracteres maiúsculos.

3. Quando uma vogal acentuada latina é longa, a sua notação vem seguida do sinal : e,
quando é breve, não é assinalada.

4. Recorre-se aos parênteses rectos para incluir, no seu interior, uma letra, ou letras que
interessa considerar pelo seu valor fonético. Se estiver em causa o seu valor fonológico, ou
seja, a entidade abstracta a que correspondem no sistema de uma língua, já se recorre às
barras oblíquas.

5. O hífen no final de uma forma latina indica que naquela posição esteve uma desinência
(normalmente -mpara os substantivos e adjectivos, -t para as formas verbais) que caiu muito
cedo em latim vulgar e da qual não guardam memória as línguas românicas.

Exemplificação: AMA:RE>amar PIRA->pera

À esquerda dos parênteses angulares estão as formas latinas e à sua direita as formas
portuguesas resultantes. No primeiro caso, a palavra latina tem [a] longo na sílaba tónica e, no
segundo, um [i] breve. Estas vogais, na mente dos falantes são, respectivamente, /a:/ e /i/, ao
passo que nas suas bocas são [a:] e [i].

Assimilação

Por assimilação, entende-se a modificação de um som por influência do som vizinho que com
ele passa a partilhar traços articulatórios (i.e. torna-o foneticamente parecido ou igual a ele).
Esta é uma mudança sintagmática, assim chamada por ocorrer entre elementos de uma cadeia
sintagmática (sons articulados sucessivamente na pronúncia das palavras). A assimilação de
um som pode verificar-se por influência do som anterior (será uma assimilação progressiva), do
som seguinte (uma assimilação regressiva), por influência simultânea dos sons anterior e
seguinte (assimilação dupla) e por influência de um som não contíguo (assimilação à
distância). Os contextos fonéticos (i.e. palavras concretas onde ocorrem as mudanças
fonéticas) mais propícios à assimilação são os nasais, os anteriores e os intervocálicos.

Contextos nasais: - Uma vogal vizinha de [m] e [n], sons que são consoantes nasais, tem
tendência para deixar de ser vogal oral e passar a ser vogal nasal. Isto ocorre universalmente
na história das línguas e, no caso do português, verificou-se na passagem do latim hispânico
para o romance galego-português (séculos VI-VII), talvez por influência das línguas celtas que
na Península se chegaram a falar. As vogais que antecediam o [n] passaram a ser vogais
nasais (ex: PONTE->p[õ]te, LU:NA->l[ũ]a, NON>n[o~]), pelo que se diz que foram nasalisadas
por assimilação regressiva. Na época nossa contemporânea, observam-se nasalizações, já de
sentido progressivo, sempre que os falantes pronunciam, na primeira sílaba da forma muito,
um ditongo nasal e, na primeira sílaba de mesa, uma vogal nasal (esta última nasalização
progressiva apenas ocorre dialectalmente, mas a primeira é geral em português europeu,
brasileiro e africano, pelo que deve ser bastante antiga, mas não anterior ao século XVI, já que
Camões rimava muito com fruito).

Contextos anteriores ou palatais: - Outras assimilações podem dar-se junto de vogal


anterior, tradicionalmente chamada palatal [i] ou [e], ou junto de semivogal anterior, ou palatal,
[j]. Estas mudanças chamam-se palatalizações e podem também ser regressivas ou
progressivas. Em latim vulgar, a língua falada no Império Romano do Ocidente entre os
séculos III a.C. e V d.C., ter-se-á iniciado, no século I da era Cristã, uma palatalização
regressiva que afectou as consoantes não contínuas, [-cont], tradicionalmente chamadas
oclusivas, [k] e [t], antes de som anterior. Nos contextos [ke], [ki], [kj] e [tj] as consoantes
evoluíram para uma sequência com iode (a semivogal anterior) [tj] e mais tarde, só na România
Ocidental, para a africada dental [ts], forma antepassada daquelas consoantes que hoje em
português se escrevem <c, ç,> ou então <z> (este último num contexto especial, intervocálico,
que possibilitou a evolução [ts]> [dz]). Assim, temos CENTU->[tj]ento>[ts]ento>cento,
FACERE>fa[tj]ere>fa[ts]er>fa[dz]er>fazer, CISTA->[tj]esta>[ts]esta>cesta, FACIE-
>fa[tj]e>fa[ts]e>face. Mais antiga, foi a evolução de [tj]: FORTIA->for[ts]a>força.

Outras palatalizações regressivas, desencadeadas no latim vulgar da mesma época pela


presença da semivogal anterior [j], afectaram consoantes contínuas (ou fricativas), líquidas e
nasais:

CASEU->queijo, VINEA->vinha, FILIU->filho.

Mais tardias, foram as palatalizações regressivas típicas do romance galego-português,


ocorridas pelo século VI, que modificaram a articulação das consoantes não contínuas, ou
oclusivas, [p], [k] e [t], antes da líquida [l]; esta evoluiu para a semivogal anterior [j] e, a partir
daí, palatalizou em africada [tS] a consoante precedente, a qual, a seu tempo, simplificou na
consoante contínua anterior [S], sempre escrita com <ch>:
PLORA:R(E)>[tS]orar>chorar,CLAMA:R(E)>[tS]amar> chamar, FLAGRA:R(E)>[tS]eirar>cheirar.

Mas este tipo de assimilação também pode ser progressivo, o que se vê igualmente no latim,
mas já só na Hispânia, pelo que terá ocorrido mais adentro da era Cristã: CAPSA-
>ca[j]sa>caixa, COXA- ou seja ['koksa]>co[i]sa>coixa>coxa, ACUC(U)LA->agu[j]la>agulha.

Contextos intervocálicos: - Aqui já se observa a assimilação dupla. Por assimilição dupla


entende-se aquele tipo de influência simultânea que as vogais exercem sobre uma consoante
que ocorra entre elas na cadeia sintagmática. Este contexto, chamado intervocálico e
simbolizado VCV (vogal+consoante+vogal), é extremamente debilitante para a consoante, a
qual ora é fricatizada, se for uma consoante oclusiva (segundo uma terminologia mais
moderna, passa de não contínua a contínua), ora é sonorizada se for surda (passa de não
vozeada a vozeada), ora, se for já de si mais instável (uma contínua, uma líquida ou uma
nasal), pode deixar totalmente de ser articulada (fenómeno que tem o nome de assimilação
total). Esta é a tendência universal da mudança e, em galego-português, pelo século VII,
ocorreu uma assimilação dupla que muito caracteriza esta língua medieval de origem latina
(este romance). Com efeito, só em galego-português é que o [l] simples intervocálico latino
deixou de ser articulado e só em galego-português (e gascão) é que o [n] simples, no mesmo
contexto, deixou também de ser articulado:

PALA->paa>pá, DOLO:RE->door>dor, BONU->bõo>bom, ANELLU->ãelo>elo

(Repare-se que a assimilação dupla de [n] simples intervocálico foi precedida de uma
assimilação regressiva, em que a mesma consoante nasalizou a vogal anterior; note-se
também que o [l_G] de anelainda persiste porque tem origem numa líquida latina geminada [ll])

Outras assimilações duplas, anteriores a estas, afectaram consoantes do latim vulgar a partir
do início da era Cristã, mas raramente culminaram no respectivo desaparecimento porque
foram travadas por factores sistemáticos, neste caso, fonológicos (ver Fonologia Histórica do
Português). Entre os séculos I e V d. C., uma assimilação dupla provocou, na România
Ocidental, aquilo a que tradicionalmente se chama sonorização, ou seja, vozeamento das
consoantes não vozeadas intervocálicas. As vozeadas intervocálicas também foram atingidas
por este processo de assimilação dupla, tendo começado por passar a consoantes contínuas, e
acabando duas delas por deixarem de ser articuladas. Da mesma forma, as geminadas
sofreram simplificação. O português conservou o resultado deste latim vulgar já evoluído:

APICULA->abelha MUTU->mudo LACU->lago

FABA->fava NU:DA->nua STRI:GA->estria

CIPPU->cepo GUTTA->gota PECCA:RE>pecar

ABBA:TE>abade ADDUCERE>aduzerarc

O facto de o mesmo tipo de assimilação ter ocorrido entre vogal e consoante líquida /r/ conduz
a uma reflexão sobre o estatuto particular das consoantes líquidas que, em certos aspectos, se
aproximam dos segmentos vocálicos. Exemplos: PATRE->padre, MA:TRE->madre,
LACRIMA>lágrima.

Dissimilação

Por dissimilação entende-se a modificação de um som por influência de um som vizinho,


articulatoriamente próximo que, com ele, e por sua influência, deixa de partilhar traços
articulatórios (i.e. torna-se foneticamente diferente). Esta é também, tal como a assimilação;
uma mudança sintagmática, que envolve elementos da mesma cadeia sintagmática (i.e. sons
da mesma palavra), mas é muito menos regular, ocorrendo apenas esporadicamente, pelo que
é difícil também calcular uma data precisa para a sua ocorrência.

Os sons que preferentemente sofrem dissimilação são os vocálicos, orais e nasais, e os


consonânticos que constituam líquidas ou nasais.

Dissimilação entre vogais:

LOCUSTA->lagosta ROTUNDA->redonda

VENTA:NA->ventãa>venta CAMPA:NA->campãa>campa

Dissimilação entre consoantes:

MEMORA:RE>nembrar>lembrar ANIMA->alma LOCA:LE->logar>lugar

Metátese

Tal como a dissimilação, a metátese, que é a transposição de sons dentro de uma mesma
cadeia sintagmática, é irregular, de difícil datação e muito frequentemente envolve consoantes
líquidas, aquelas que menos estabilidade têm. Também pode envolver semivogais postónicas
que, por metátese, passam a ocorrer junto da vogal tónica. O padrão silábico parece aqui
funcionar como um rastilho para este tipo de mudança.

Metátese de semivogais: O latim vulgar sofreu em época bastante recuada, uma vez que a
generalidade das línguas românicas a testemunha, a metátese de semivogal anterior nos
sufixos -A:RIU>airo, -A:RIA>aira. Em português, as formas herdeiras desses sufixos revelam
ainda uma assimilação para -eiro, -eira, que deverá ter ocorrido em latim hispânico, já que em
castelhano as formas paralelas são -ero, -era.

DIA:RIA->jeira PRIMA:RIU->primeiro

Metátese de consoantes: Como se disse, são sobretudo as consoantes líquidas [l] e [r] que
sofrem o processo da metátese. É uma tendência universal que pode testemunhar-se pelo
destino de uma forma latina ARBORE-, a qual em português não deu origem a metátese
(árvore), mas em italiano e castelhano provocou duas diferentes soluções de metátese
envolvendo as mesmas consoantes, respectivamente, alberoit e árbolcast. Para exemplificar
metáteses com líquidas portuguesas, podem observar-se as formas FLO:RE->frolmedieval ou
TENEBRAS>teevras>trevas

Epêntese

Este é um fenómeno contrário ao da assimilação total, uma vez que consiste na adição de sons
no interior da cadeia sintagmática. Tutelado pela estrutura da sílaba, que tende frequentemente
para o padrão universal CV (consoante+vogal), o fenómeno da epêntese consonântica
reestruturou notoriamente as sílabas do português medieval que continham o hiato (encontro
de duas vogais) -i~o, -i~a e que, a partir dos séculos XIV-XV, passaram a terminar em -inho, -
inha, com epêntese da consoante nasal [J]:

VI:NU->vi~o>vinho GALLI:NA->gali~a>galinha

Quando diz respeito à inserção de vogais, a epêntese tem o nome mais particular de anaptixe,
e observa-se frequentemente no português do Brasil, que reestruturou sílabas com grupos
consonânticos, sílabas CCV, em sucessões de sílabas obedecendo ao padrão universal CVCV:

opção>opição ritmo>ritimo pneu>pineu~peneu

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ATENÇÃO - Para o valor das convenções fonéticas, consulte

http://www.phon.ucl.ac.uk/home/sampa/x-sampa.htm

http://www.phon.ucl.ac.uk/home/sampa/portug.htm

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