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RESUMO
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Sobre este tema ver especialmente Seyferth (1974; 1992), Sacco dos Anjos (1995); Schneider (1999).
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Ainda que as análises sobre a dinâmica da agricultura familiar admitam como válida
as alusões ao ethos de colono como traço recorrente em amplas zonas do Brasil meridional,
não há como fechar os olhos ante o leque de transformações impostas no bojo da revolução
verde. Mais além das mudanças estritas nos processos de produção com a introdução
progressiva dos insumos modernos, ergue-se como decisivo o impacto do que a literatura
consagrou como sendo o processo de mercantilização do espaço rural (MARSDEN, 1990).
Em resumidas contas, podemos defini-lo como sendo a frenética busca por converter
mercadorias quaisquer em valores de uso por parte de muitos grupos domésticos enquanto
estratégia de resistência à própria desaparição, incluindo o recurso à pluriatividade2. Mas não
se trata aqui, como assevera Graziano da Silva (1997, p.62),
[...] de um processo de proletarização que resulta da decadência da propriedade
familiar, mas sim como uma etapa da diferenciação social e econômica das famílias
agrícolas, que já não conseguem se reproduzir apenas nos espaços agrícolas do novo
mundo rural que está sendo construído a partir de uma valorização de bens não
tangíveis antes ignorados, como a paisagem, o lazer, os ritos dos cotidianos agrícola
e pecuário.
É exatamente nesta dimensão que se insere o objeto deste trabalho. Diante de um
quadro de mudanças estruturais tão profundas, cabe indagar; qual a real dimensão do
autoconsumo no marco do processo de reprodução social das unidades familiares de
produção? Até onde é possível imaginar que a tradição da autoprovisão, tão cara ao
mencionado ethos de colono é preservada no contexto do processo de mercantilização e do
conjunto de mudanças que incidiram no meio rural do Brasil meridional, com ênfase no peso
da especialização e do produtivismo "a ultranza" ? Ou ainda, que critérios seriam os mais
adequados para aferir o peso correspondente às culturas e criações de subsistência na
formação da renda familiar? São estas, em síntese, as grandes questões que orientaram a
pesquisa que trazemos a público. Se a primeira secção deste artigo explicitou o problema de
pesquisa, a segunda tem por objetivo descrever o marco teórico-metodológico e as definições
utilizadas na análise dos dados. A terceira secção apresenta uma descrição sucinta do universo
empírico da pesquisa, destacando aspectos de interesse para este estudo, ao passo que na
quarta secção dedicamo-nos à apresentação e discussão dos dados. A quinta e última parte
reúne as conclusões do trabalho.
No início de 2001 o CNPq lança a chamada para projetos de ciência e tecnologia para
Agricultura Familiar. Nesta Chamada-edital previa-se a apresentação de projetos para
Pesquisa e Desenvolvimento em cinco áreas temáticas, sendo uma delas denominada
“Atividades Rurais Não-Agrícolas, Multifuncionalidade e Desenvolvimento Local”. É nesse
contexto que se insere o projeto intitulado: "Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e
Pluriatividade: a emergência de uma nova ruralidade no Rio Grande do Sul". Em linhas
gerais, é possível resumir como grande objetivo a realização de um estudo comparativo em
quatro grandes zonas da geografia gaúcha que, ao serem investigadas, fossem reveladoras dos
processos subjacentes à dinâmica da agricultura familiar no Sul do Brasil. Mas a grande
questão a que nos propomos resolver não se restringia a um estudo da unidade familiar de per
si, senão revelar os traços do contexto em que esta se acha inserida com a mirada posta nas
possibilidades que o entorno oferece enquanto espaço de viabilização dos processos de
reprodução social da agricultura familiar gaúcha.
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Sobre este tema ver a propósito: Campanhola et al (2000); Del Grossi (1999); Schneider e Navarro (2000);
Sacco dos Anjos (2003).
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para entender como as transformações mais amplas acabam por interferir nos processos que
ocorrem no seio da unidade familiar, especialmente no que tange ao objeto deste trabalho,
qual seja, a esfera do autoconsumo como dimensão transcendental do processo de reprodução
da agricultura familiar.
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Inúmeras são as causas apontadas para tal, como a extinção do regime escravocrata em distintos países, a
desorganização produzida pelos freqüentes conflitos bélicos, a exemplo das grandes revoluções, a concorrência
dos países do Prata, etc.
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Companhia de Estrada de Ferro Alemã (WENZEL, 1997, p. 67).
5
Sociedade de Agricultores Riograndenses (WENZEL, 1997, p.68).
6
Ramo católico da Companhia de Estrada de Ferro Alemã (WENZEL, 1997, p.68).
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Tabela 1 - Distribuição porcentual dos estabelecimentos que possuem horta e pomar nos
quatro estudos de caso.
Tabela 3 - Distribuição dos entrevistados segundo o valor anual médio atribuído aos
produtos do autoconsumo.
Tabela 5 - Autoconsumo médio líquido anual, Renda total média anual e participação
porcentual respectiva na Renda Total segundo estratos de renda no município de
Morro Redondo, RS.
Estrato de Autoconsumo médio líquido (R$) Renda Total média (R$) % AM/RT
renda * AM RT
Tabela 6 - Autoconsumo médio líquido anual, Renda total média anual e participação
porcentual respectiva na Renda Total segundo estratos de renda no município de
Salvador das Missões.
Estrato de Autoconsumo médio líquido (R$) Renda Total média (R$) % AM/RT
renda* AM RT
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Tal como esclarecemos na secção 2.1, autoconsumo líquido representa o autoconsumo deduzido das despesas
ou gastos para produzir estes mesmos bens.
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Segundo dados do O índice de Gini de Três Palmeiras é o mais elevado entre os quatro municípios estudados,
ainda que se houvesse reduzido entre 1991 e 2000, passando de 0,67 para 0,59 respectivamente.
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Em linhas gerais, o que podemos constatar é que conforme passamos para estratos de
renda mais elevados declina naturalmente o peso do autoconsumo em relação à renda total
média anual dos estabelecimentos. Este quadro decorre do fato de que vai sendo diluída sua
respectiva importância, mesmo que em termos absolutos o valor do autoconsumo tenha se
elevado consideravelmente. Esta situação é muito clara no caso de Veranópolis, em que o
autoconsumo anual médio do estrato de renda mais elevado (D) é mais do que três vezes
superior ao do subgrupo de menor renda total (A). Entretanto, se para o primeiro a
participação do autoconsumo é de 66,51%, para o segundo ela chega a 12,11%, ou seja,
bastante alta mesmo no caso de explorações que possuem uma renda total anual que supera os
vinte mil reais.
Tabela 7 - Autoconsumo médio líquido anual, Renda total média anual e participação
porcentual respectiva na Renda Total segundo estratos de renda no município de
Três Palmeiras.
Tabela 8 - Autoconsumo médio líquido anual, Renda total média anual e participação
porcentual respectiva na Renda Total segundo estratos de renda no município de
Veranópolis.
Estes dados confirmam o que vimos in situ ao visitar tais propriedades, saltando aos
olhos a importância que a colonização italiana da Serra Gaúcha atribui à geração dos
alimentos no próprio estabelecimento, posição esta alicerçada não somente do ponto de vista
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da preservação dos costumes, mas também por considerarem que são muito mais saudáveis os
produtos por eles gerados que os adquiridos nos mercados locais. Em Morro Redondo, a
situação é exatamente oposta na medida em que são muito próximos os valores do
autoconsumo nas propriedades de menores e com maiores rendas totais anuais. Não somente
as hortas são mais escassas, mas sobretudo a criação de pequenos animais para o consumo
familiar.
Outra questão que nos pareceu interessante explorar sob a ótica do autoconsumo reside
na questão da disponibilidade de terra para os cultivos e criações. Ainda que estejamos diante
de explorações familiares, cuja lógica de funcionamento é a reprodução social de seus
membros, mais do que quaisquer outros objetivos, a realidade revelou novamente algumas
discrepâncias entre as áreas estudadas. No caso de Morro Redondo inexiste a influência da
maior ou menor disponibilidade de terra na dimensão do autoconsumo líquido, ao passo que
em Salvador das Missões os valores do autoconsumo crescem até o estrato C (entre 20 e 30
hectares). A partir daí declina sua dimensão provavelmente por tratarem-se de explorações de
maior densidade econômica onde a intensidade das relações econômicas pode estar
acompanhada de uma tendência à compra de produtos industrializados ou artigos adquiridos
em outras propriedades. Novamente destaca-se a situação de Veranópolis onde há uma maior
aproximação entre os valores do autoconsumo nos diferentes tipos de propriedades rurais. Nos
estabelecimentos mais de 40 hectares o valor do autoconsumo líquido é aproximadamente
76% superior aos que apenas possuem até 10 hectares.
Tabela 9 - Produto autoconsumo médio anual líquido (R$) segundo estratos de área total*
(ha).
5. CONCLUSÕES
Ainda que não exatamente por razões acadêmicas, o tema do autoconsumo vem sendo
revisitado na perspectiva do aperfeiçoamento do processo de intervenção estatal em termos do
combate à insegurança alimentar e nutricional no país e simultaneamente aplacar as mazelas
de um modelo de desenvolvimento apoiado na exclusão social. Do ponto de vista da
agricultura e do mundo rural esta questão aparece claramente evidenciada no rápido resgate
que fizemos na primeira secção deste artigo. Na retórica do Estado desenvolvimentista da era
Vargas e das transformações subseqüentes os agricultores foram duramente penalizados por
produzirem a farinha e relegados a serem meros produtores de cereais. Em nome da falácia de
defesa do consumidor foram fechadas agroindústrias que geravam empregos e oportunidades,
como pequenas cantinas, fábricas de conservas vegetais, embutidos e produtos defumados,
assim com atafonas de farinha, etc., os quais hoje alguns governos estaduais tentam resgatar a
custa de programas específicos, como no caso do conhecido "Sabor Gaúcho".
Simultaneamente foi sendo paulatinamente esvaziado um dos esteios da tradição
camponesa do Brasil meridional, qual seja o que chamamos de mito da "autonomia
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6. REFERÊNCIAS
WENZEL, E.G. Memória e Identidade Teuto-brasileira em Cerro Largo, Rio Grande do Sul.
São Paulo: USP, 1997. (Tese de Doutorado apresentada junto ao Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP)
WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec, 1995.