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Para Entender a Saúde no Brasil 1

Para entender a
saúde no Brasil 2
2 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra
Para Entender a Saúde no Brasil 3

Maria Cristina Sanches Amorim


Eduardo Bueno da Fonseca Perillo
(organizadores)

Para entender a
saúde no Brasil 2

2008

LCTE Editora
4 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra
Para Entender a Saúde no Brasil 5

Apresentação

Em 2006 publicamos o primeiro volume da coletânea “Para entender


a saúde no Brasil”, quando já nos comprometíamos a organizar o segundo
volume; além da nossa promessa, a qualidade dos autores e a diversidade das
visões de mundo apresentadas agradaram os leitores. Para nossa satisfação,
recebemos muitos comentários favoráveis e os exemplares foram rapidamente
distribuídos pelo Brasil, fato que, somado à continuidade de nossas atividades
de pesquisa em gestão e economia da saúde na PUC-SP, nos levou à publicação
do presente volume.
No primeiro volume, partimos da experiência do curso de pós-gradua-
ção lato senso em Economia e Gestão da Saúde da PUC-SP, e os autores foram
palestrantes, professores e alunos. Em “Para entender a saúde no Brasil 2”,
contamos com um universo mais amplo, reunindo as reflexões de professores,
alunos, ex-alunos e pesquisadores da universidade que participaram das ati-
vidades promovidas pelo grupo de pesquisa e dos estudos realizados para os
setores púbico e privado, bem como as de executivos desses setores, os quais
também contribuíram com palestras, discussões, etc.
Mantivemos o princípio de reunir as mais diferentes contribuições, ad-
vindas de profissionais de organizações privadas e estatais, professores univer-
sitários e pesquisadores – nossa contribuição para superar o isolamento insti-
tucional, produzir a tão necessária troca de saberes e, sobretudo, oferecer ao
leitor visão suficientemente ampla da complexidade do setor saúde no Brasil:
características, problemas, avanços, tensões.
Os autores propiciam aos leitores compreender a complexidade do sa-
ber necessário ao gestor de saúde: as experiências inovadoras e exitosas de
gestão, os aspectos legais e institucionais, o alcance dos estudos econômicos,
os impactos da regulação governamental, os impasses entre agentes financia-
dores e fornecedores de produtos e serviços, os movimentos no setor financeiro
quando ao investimento nas organizações de saúde, as polêmicas sobre a ciên-
cia e previsibilidade. Naturalmente, o rol dos assuntos abordados não esgota
6 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

a descrição do setor saúde – a organização do Volume 3 permitirá ampliar o


espectro de discussão.
O senso comum – sustentado muitas vezes por instituições nacionais
e internacionais, e por publicações de “gurus” em administração - insiste em
afirmar que o setor saúde no Brasil (e no mundo), está em crise. Quase como
decorrência, todos os agentes envolvidos deveriam somar esforços na busca da
superação da crise, como se houvesse sempre convergência de interesses eco-
nômicos e políticos. E mais, intervenções pontuais de cunho gerencial condu-
zirão à solução dos problemas, ainda que tais arautos não tenham clareza dos
problemas reais. Ora, desde Descartes (Obra escolhida. SP: Difusão Européia,
1973), os pesquisadores bem o sabem, o senso comum é inadequado para aná-
lise da realidade que se espera transformar, pois nossos sentidos podem nos
enganar e, acrescentamos, as informações são inexoravelmente marcadas pela
intencionalidade dos agentes que a produzem, todo dado oculta e revela essa
mesma realidade, simultaneamente.
Em continuidade ao eixo escolhido no Volume 1, empenhamo-nos
em contribuir para desfazer crenças comuns entre os profissionais do setor.
Organizamos os artigos dessa coletânea objetivando mostrar o contrário do
senso comum: a saúde não está em crise, os interesses dos atores são na maio-
ria das vezes, conflitantes, e as intervenções devem ser articuladas tendo por
pressupostos as divergências e a escassez de informações sistematizadas.
A leitura dos artigos, esperamos, revelará o crescimento do setor saú-
de no Brasil, o investimento no uso de sofisticadas ferramentas de gestão e
financiamento, a heterogeneidade das organizações, a aceleração da inovação,
a aguda diversidade de interesses. Utilizando apenas parte dos argumentos e
informações presentes nos artigos, perguntamo-nos: qual a pertinência de falar
em crise da saúde quando aumenta a taxa de inovação nos processos de produ-
tos? Não fosse pela expectativa de retorno, por que as organizações privadas
se arriscariam investindo em novos produtos e processos? Como falar em crise
se o aumento dos custos das operadoras é a fonte do aumento das receitas de
prestadores de serviços de indústria de materiais e medicamentos?
Para Entender a Saúde no Brasil 7

Quanto à persistência da dificuldade de acesso a serviços, qualificá-la


de “crise da saúde” induz a perder de vista justamente as diferenças e contra-
dições, sem a assunção das quais, estaremos à mercê, na melhor das possibi-
lidades, de “soluções certas para os problemas errados” (Ian Mitroff, Tempos
difíceis, soluções inovadoras. RJ: Campus, 1999).
O recurso à análise histórica foi fundamental para entender a saúde no
Brasil, para perceber continuidades e rupturas das relações de conflito, subor-
dinação e aliança em torno dos interesses econômicos e políticos, por meio dos
quais foi se estruturando o sistema atual de saúde. Nosso artigo, com o qual
encerramos a coletânea, não porque sumarize ou represente todos os autores,
mas por oferecer a origem das características do sistema de saúde e dos dile-
mas atuais, as causas da persistência de problemas por décadas, pretende dar
ao leitor esse fio condutor.

Maria Cristina Sanches Amorim


cristina.amorim@attglobal.net

Eduardo Bueno da Fonseca Perillo


eperillo@attglobal.net
8 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra
Para Entender a Saúde no Brasil 9

Sumário

1 - Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da outra


Fábio Latuf Gandour

2 - Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas


Luiz Roberto Barradas Barata
José Dínio Vaz Mendes

3 - Planos de saúde: regulação e conseqüências não desejadas


José Cechin
Bruno Dutra Badia

4 - Os desafios para a sustentabilidade na saúde suplementar no Brasil


Maria Stella Gregori

5 - Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão - um


estudo de caso
Sandra Maria Lima de Oliveira
Claudemir Galvani

6 - Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma


análise econométrica
Sandro Leal Alves

7 - Aumento da cobertura e dos preços dos planos de saúde


Marcelo de Lima Dias

8 - Os bancos e o setor de saúde


Marcelo Cyrino

9 - Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes


Fábio Sinisgalli
10 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

10 - Composição e evolução dos índices de inflação geral e setorial no


Brasil: o que os gestores em saúde precisam saber
Caroline da Costa Moreira
Ellen Penteado da Costa
Joaquim Murilo Silveira Neto
Maria José Blanco Ferreiro
Carlos Alberto Garcia Oliva

11 - Relevância da análise econômica em saúde para o processo decisório


do governo no tratamento da doença cardiovascular
Denizar Vianna Araújo

12 - As doenças crônicas, o gerenciamento de doenças e a saturação dos


serviços de emergências
Waldemir Washington Rezende

13 - Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história


econômica para a compreensão de problemas atuais
Eduardo Bueno da Fonseca Perillo
Maria Cristina Sanches Amorim
Medicina e saúde:
o determinismo
de uma e o
1
probabilismo
da outra

FÁBIO LATUF GANDOUR


Médico, cientista-chefe, IBM Brasil.

A medicina é uma ciência ancestral. E, como


outras ciências ancestrais, flutuava em uma aura mís-
tica ao nascer. Também como em outras ciências an-
cestrais, o misticismo foi evoluindo. Em algumas, como
na alquimia, a evolução tomou um caminho torto, o da
bruxaria, antes de encontrar de novo a rota da ampliação
do conhecimento. Na medicina, a evolução do misticismo
que a cercava caminhou para a divinização. Ou por se re-
lacionar diretamente com a vida do homem ou pelos exce-
lentes resultados da manobra de marketing de Hipócrates,
criando uma mensagem tão bem sucedida que sobrevive até
hoje: “Sedare dolorem opus divinum est” – sedar a dor é obra
divina.
Hipócrates viveu entre os anos de 460 e 370 a.C.
Criar uma mensagem com tamanha longevidade é o
sonho de qualquer marqueteiro do século XXI! Há
quem levante a dúvida: Hipócrates queria se referir
a Deus ou aos deuses? Como sua máxima foi anun-
ciada na Grécia Antiga, é mais fácil ficar com a se-
12 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

gunda hipótese, sustentada inclusive pela abundância de deuses no merca-


do por ele freqüentado. Abundante a ponto de duas outras entidades místi-
cas – embora menos conhecidas – estarem bem conectadas à medicina: a
Higéya e a Panacéia.
Disso tudo, um só resultado: ao situar a prática da medicina próxima aos
atos dos deuses em uma época em que a palavra ciência talvez nem existisse,
Hipócrates conseguiu que, das áreas ancestrais do conhecimento, a medicina
fosse a mais divinizada.
De repente, mas muito depois, um bando de gente intelectualmente
agitada, eloqüente e soturna, parecida com os filósofos clássicos, mas muito
mais atrevida, começava um movimento interessante já no finalzinho do sécu-
lo XVII – o iluminismo. Ele estabelecia algumas bases teóricas para sustentar
a evolução do pensamento filosófico, intelectual e até religioso. A coisa era
tão ampla que dava ao homem uma nova dimensão de si mesmo. O guru desta
turma, um alemão chamado Immanuel Kant (1784), resumiu a novidade em
uma frase: “O Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tute-
lagem que estes mesmos se impuseram a si.” Estava pronto o cenário para o
surgimento de algo que marcaria a evolução da ciência universal para sempre:
a metodologia científica!
Ainda que criada sobre uma base de conhecimento construída por filó-
sofos, a metodologia científica separava o que era ciência do que era filosofia,
estabelecendo critérios lógicos para a condução da primeira, sem no entanto,
agredir a segunda. Tudo perfeito! Tão perfeito que praticamente todo o co-
nhecimento humano existente até então foi pacificamente revisto à luz da me-
todologia científica. São inúmeros os exemplos desta revisão, mas dois deles
precisam ser mencionados de forma explícita.
O primeiro se refere aos trabalhos de René Descartes (1596-1650).
Ainda que denominado filósofo, já no século anterior o matemático francês
havia definido princípios de interpretação lógica do conhecimento que fa-
cilmente se encaixaram nos cânones da metodologia científica do século se-
guinte, a lógica cartesiana. O segundo se refere ao físico e matemático inglês
Isaac Newton (1643-1627). Newton possuía um amplo conhecimento de física,
matemática, astronomia, filosofia e até teologia. Ele pode bem ter sido o pri-
Para Entender a Saúde no Brasil 13

meiro cientista a usar a metodologia científica tal como foi proposta a partir
dos conhecimentos gerados no Iluminismo: observando fenômenos naturais,
formulou hipóteses e saiu em busca de sua refutação ou prova, recorrendo aos
conhecimentos que possuía e criando formulações sustentadas por indiscutível
raciocínio matemático.
E onde andava a medicina a esta altura? É difícil afirmar com precisão,
mas tudo indica que por um longo tempo, a medicina continuou escondida
por trás de sua aura de divinização. Louis Pasteur (1822-1895) pode ter sido o
primeiro cientista a formular uma hipótese e testá-la à luz da metodologia cien-
tífica, revolucionando o conhecimento teórico e a atitude prática dos “deuses
da saúde” no campo das doenças infecciosas. Um detalhe curioso: Pasteur não
era médico! Era químico e microbiologista. E esta opção profissional deve ter
sido essencial para habilitá-lo a usar a metodologia científica, mesmo sabendo
que os resultados poderiam afrontar o pensamento dos deuses.
A pressão foi muita! Tanta que a medicina se entregou à metodologia
científica. Afinal, era impossível continuar sobrevivendo como ciência sem
aderir aos métodos e modelos que faziam as outras ciências progredirem e
prosperarem. Até porque estas outras ciências começaram a produzir tecnolo-
gias com grande impacto na prática médica e, aqui, uma delas: Wilhelm Conrad
Röntgen (1845-1923), um físico alemão, inventou o Raio-X e deu aos deuses
da medicina a capacidade de enxergar o que, até então, eles não viam.
Sim, a medicina se entregou à metodologia científica, mas não perdeu a
divinização ancestral que, afinal, está fortemente impressa em seu DNA. Dessa
entrega, surgiu o conceito de saúde, o qual, embora usado no singular, denota
uma noção indiscutivelmente plural. A medicina é para a pessoa, e a saúde é
para o coletivo humano ao qual as pessoas pertencem. Claro que um grupo
saudável é formado por indivíduos saudáveis. Sob o ponto de vista de prática
da medicina, esta afirmação é incontestável. No que toca a sua administração,
o confronto entre indivíduo e comunidade a qual ele pertence também é incon-
testável. E é esse aspecto que abordamos a partir de agora.
A primeira definição de saúde foi formulada pela Organização Mundial
da Saúde em 1946, em um fórum contando com a presença de 61 países repre-
sentantes. Mas só pôde ser oficializada em 1948 (WHO, 1948). A demora entre
14 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

um fato e outro deveu-se a intermináveis discussões, ainda não conclusivas,


sobre o escopo da definição: saúde é “... um estado de completo bem estar
físico, mental e social e não apenas a mera ausência de doença ou enfermi-
dade”. As principais críticas a esta definição vão desde polêmicas semânticas
relacionadas ao dimensionamento da palavra “completo” até o questionamento
objetivo da falta de contribuição prática do que está escrito aí.
No entanto, independente do desfecho destas discussões, nos parece
que a simples inclusão da palavra “social” na definição do que é saúde, faz dela
um conceito coletivo.
Saúde é, portanto, um conceito eminentemente coletivo, a ser detalhado
de forma operacional a partir da coletividade na qual se pretende aplicá-lo, e
que nasceu com a aderência da ancestral ciência da medicina aos princípios da
metodologia científica.
E agora – infelizmente só agora, mas finalmente agora! – criada essa
retrospectiva histórica sobre o quê vem de onde, podemos declarar a nossa
intenção neste texto: lançar alguma luz que possa esclarecer causas e razões.
Sem a pretensão de solucionar problemas de forma mágica, acreditamos que
o esclarecimento de causas e razões pode ser útil na formulação de processos
e políticas que, pelo menos, minimizem a dicotomia entre saúde e medicina e
coloquem uma a serviço da outra.
No caminho para aderir à metodologia científica, a prática médica en-
controu uma baia de conforto para acomodar a sua tradicional divinização:
o determinismo. Formulado originalmente como uma teoria filosófica, o de-
terminismo se vale de complexos cálculos matemáticos para sustentar uma
proposição um tanto ousada: nada acontece por acaso e tudo é determinado.
Desdobrado em várias escolas, o determinismo cria o cenário perfeito, ainda
que um tanto deformado, para a existência de entidades que determinam o que
vai acontecer. São quase deuses, que detêm o controle do universo.
Poucas áreas do conhecimento são tão determinísticas quanto a me-
dicina. Saber a arte de curar acaba por significar saber as regras de produção
do raciocínio clínico, que aumentam a partir dos resultados produzidos pela
metodologia científica e que se aperfeiçoam e se depuram com a experiência
profissional.
Para Entender a Saúde no Brasil 15

Apenas para construir um fundamento teórico mais simples que susten-


te o parágrafo anterior, vale a pena rever a definição dicionarizada de deter-
minismo. Esta definição diz que o determinismo é, “... um princípio segundo
o qual todos os fenômenos da natureza estão ligados entre si por rígidas re-
lações de causalidade e leis universais que excluem o acaso e a indetermina-
ção...” (HOUAISS, 2004). Daí: se febre, então antitérmico. Se infecção, então
antibiótico. Se apendicite, então cirurgia. Se diarréia, então hidratação e pausa
alimentar. E na medida em que a metodologia científica avança, apenas cria
novas determinações a serem seguidas pelos médicos.
Novamente, um grande salto no tempo. Agora, já estamos na época
em que a tecnologia para gerência de informação começou a se popularizar e
computadores deixaram de serem bichos-de-sete-cabeças. Logo se percebeu
que o determinismo da medicina se prestava com perfeição aos estudos sobre
o conhecimento humano e às formas com que o mesmo poderia ser represen-
tado em máquinas. Afinal, este mesmo determinismo foi o responsável por
organizar o conhecimento médico de forma muito estruturada, apresentada em
formato verbal e não em símbolos matemáticos, como acontece em outras áre-
as do conhecimento que também são determinísticas.
Lá pelos meados da década de 80, quando doença sexualmente trans-
missível ainda se chamava doença venérea e, “se gonorréia, então penicilina
benzatina”, um pesquisador de Stanford logo aproveitou o cenário favorável
construído pela forma de representação do conhecimento médico. Trata-se de
Eward Shortliffe, que publicou o livro “Rule Based Expert Systems: The Mycin
Experiments of the Stanford Heuristic Programming Project” (SHORTLIFFE;
BUCHANAN, 1984). O trabalho de Shortliffe foi o primeiro experimento
bem sucedido de construção de um sistema especialista – nome dado a esse
segmento da então promissora área de inteligência artificial. Naquela época,
dada a proliferação de uso dos computadores e sua crescente capacidade de
processamento de dados e informações, pretendia-se reproduzir artificialmente
os modelos de armazenamento e recuperação de informações que fazem parte
do conhecimento tácito e explícito (NONKA; TAKEUSHI, 1995). O objetivo
era atingir um modelo totalmente automatizado, capaz de tomar decisões não
só sensatas, mas principalmente de melhor resultado do que aquelas tomadas
pelo cérebro humano. Os resultados do esforço na criação de uma inteligência
artificial foram diversos e fogem ao escopo do presente texto.
16 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

O fato é que Shortliffe se valeu de uma das muitas formas de represen-


tação do conhecimento humano, conhecida como regras de produção, e imple-
mentou um sistema especialista dedicado ao apoio à decisão no tratamento das
doenças infecciosas. Este sistema recebeu o sugestivo nome de “Mycin” e por
longo tempo, foi o melhor aproveitamento feito do determinismo da medicina.
Tanto que conseguiu construir uma base de conhecimento representável em
formato verbal e melhor ordenada do que qualquer outra área. Um detalhe
curioso: a resposta final do “Mycin” vinha acompanhada de um coeficiente,
variando entre 0 e 1. Esse coeficiente mostrava a probabilidade estatística de
ocorrência de uma dada decisão, como resultado do tratamento probabilístico
das regras de produção que haviam convergido para a decisão final. Em outras
palavras, o coeficiente era uma medida indireta do grau de confiança que uma
dada resposta poderia ter. É um caso claro que ilustra o determinismo da medi-
cina sendo tratado de forma probabilística, como convém à saúde.
Muito antes de Shortliffe e dos computadores, John Snow (1813-1858)
deve ter percebido a conveniência deste tratamento. Médico britânico que li-
derou o uso da anestesia, dedicou-se muito à higiene como área precursora da
epidemiologia. E aí, notou que a representação dos agravos à saúde é mais efi-
caz quando apresentadas sob a forma de elementos gráficos que mostrem com
clareza a probabilidades dos fatos, como os índices de ocorrência, os percen-
tuais de surgimentos e as taxas de mortalidade. É célebre o trabalho de Snow
apresentando sobre um mapa da cidade de Londres, a ocorrência dos casos
de cólera durante a epidemia de 1854 (Mapa 1). Essa representação permitiu-
lhe ver que alguns casos se aglomeravam em classes – “clusters” – os quais
coincidiam com a área que fazia uso de água proveniente de uma mesma fonte
pública. Essa era a fonte de disseminação da doença para a população.
Conversando com os residentes da área com o apoio de um religioso
local, John Snow conseguiu adesão à idéia de fechar a fonte de água, dando iní-
cio a um pronunciado declínio nos números da epidemia. Uma ação totalmente
coletiva e apoiada por lideranças políticas de fato. Será que todos concordaram
com a atitude provocada pelo Snow? Individualmente, é muito provável que
não! Alguns indivíduos ainda não acometidos pela cólera e que se sentiam me-
nos vulneráveis, podem ter interpretado a decisão do Snow como algo que iria
contra seus interesses pessoais. Afinal, individualmente eles eram medicamente
Para Entender a Saúde no Brasil 17

saudáveis! Mas sob o ponto de vista coletivo, a maior probabilidade de melhorar


a saúde daquela população exigiu uma ação diferente da demanda individual.
“Mutatis mutandis”, é este mesmo cenário conflituoso que os deciso-
res em saúde enfrentam atualmente. Principalmente porque tanto a medicina
quando a saúde foram, ambas – uma de “obra divina” e a outra de “completo
bem estar físico, mental e social” – transformadas em um grande negócio. E
como tal, sujeitas às regras de mais-valia inerentes ao capitalismo.
Tanto o alto administrador do plano de saúde privado quanto o “gate
keeper” desse mesmo plano, como a autoridade da saúde pública em qualquer
nível, estão todos eles invariavelmente às voltas com a demanda individual
e a necessidade coletiva. Vale novamente lembrar que a demanda individual
chega por um paciente mas, de fato, foi criada por um médico, do alto da sua
divindade, a qual o paciente jamais ousará afrontar! É o médico que diz ao
paciente “se você tem isto, então precisamos fazer aquilo”. O “aquilo” é o re-
sultado da aplicação das regras de produção de seu conhecimento. E tais regras
simplesmente ignoram custos, conveniências coletivas e políticas em vigor. É
“aquilo” e ponto!
E aí se instala um conflito de interesses, de princípios, de políticas e,
sobretudo, de ações. Vocês, leitores, já devem ter experimentado tal conflito ou
como formuladores da decisão, ou como alvo impotente da decisão formulada
por alguém. Desde já, informo que estive nas duas posições e nenhuma delas
é confortável.
Os estudiosos da administração em saúde sabem que a otimização da
prestação de serviços nesta indústria requer uma modelagem com forte funda-
mento estatístico. Felizmente, cresce o número de trabalhos acadêmicos de-
dicados a utilizar conceitos estatísticos e suas formulações matemáticas para
avaliar e planejar a ação de serviços de saúde. Ainda que predominem temas
dedicados apenas a avaliação dos resultados do setor, mesmo em tais casos já
aparecem tentativas de construção de modelos de atendimento apoiados em
proposições típicas da área de estatística, mas ainda pouco usadas para plane-
jamento em saúde (PIRES, 2007).
Uma destas proposições tem a ver com o uso de instrumentos de esto-
cástica. A etimologia relaciona essa palavra com tudo que é não-determinístico,
sujeito à presença de efeitos randômicos e imprevisíveis, sujeito à evolução no
18 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

tempo e no espaço. Em um processo estocástico de um sistema, um estado não é


capaz de determinar totalmente o que acontecerá no próximo estado deste mes-
mo sistema, ainda que em um e outro estado as variáveis sejam as mesmas.
Assim, dada a sua imprevisibilidade, os sistemas estocásticos são com-
plexos e seu tratamento técnico (matemático), trabalha sempre com a possibili-
dade de insucesso. É esta teoria estocástica a que tem melhor se prestado ao pla-
nejamento de ações em saúde pública e privada. A recomendação tem um lado
irônico: usada para a saúde por seu caráter essencialmente coletivo, os exemplos
para ilustrar os processos estocásticos vem da medicina, com seu caráter es-
sencialmente individual. O exemplo mais conhecido para ilustrar a permanente
possibilidade de insucesso em sistemas estocásticos é totalmente médico: um
médico pode administrar o mesmo tratamento a vários pacientes que apresentam
os mesmos sintomas e nem todos terão a mesma reação ao tratamento, pois pa-
ciente/enfermidade/medicamento compõem um sistema estocástico.
Valendo-se agora da homofonia com a palavra estocástica, o adminis-
trador em saúde pode se beneficiar dessa ferramenta estatística para melhor
lidar com vários estoques, suas dimensões e variações no tempo e no espaço.
São os estoques de pacientes em várias fases da vida, de doenças em suas va-
riadas apresentações (epidêmicas, endêmicas, sazonais, crônicas, degenerati-
vas, etc.), de recursos humanos de cada espécie (médicos, enfermeiras, auxilia-
res técnicos, etc.), de recursos tecnológicos em cada categoria e, sobretudo, de
recursos financeiros presentes e futuros. Em resumo, o melhor entendimento
do setor saúde parece passar pela correta utilização de conhecimentos recém-
criados em outras áreas tecno-científicas que, uma vez usados corretamente,
permitirão a formulação de políticas públicas e privadas mais adequadas ao
tempo em que se vive.
A área de probabilidade & estatística, ainda que seu “ethos” seja total-
mente probabilístico, é uma das mais profícuas na produção de novos recur-
sos de planejamento em saúde, principalmente através da estocástica. Resta
lembrar, portanto e desde já, que muitas das conclusões aí formuladas, estarão
em posição diametralmente oposta ao determinismo da medicina, tal como
concluído pelo médico e comunicado ao seu paciente. A conseqüência, tão
agonizante quanto indispensável, é a permanente oposição entre as políticas de
saúde e o principal insumo da sua execução: os membros da comunidade onde
estas políticas, públicas ou privadas, serão aplicadas.
Para Entender a Saúde no Brasil 19

Mais e pior se prenuncia no horizonte: Karl Popper (1902-1994), um


filósofo alemão contemporâneo, sustentou com brilho uma série de críticas
à metodologia científica nascida a partir do Iluminismo. Um dos principais
filósofos da ciência do século XX, com grande consideração pela sociologia e
pela política, Popper fez restrições bem fundamentadas ao indutivismo da me-
todologia científica tradicional e criou a expressão “racionalismo crítico”. É a
partir de suas idéias que voltou a ser possível alimentar a questão da validade
das ações médicas quando contrapostas aos achados da Teoria da Evolução de
Charles Darwin (1809-1882). Resumidos na questão “... a medicina favorece
ou prejudica a evolução da espécie humana?”, os fundamentos teóricos de tal
polêmica estão construídos e disponíveis há tempos. Mas a auto-censura social
e religiosa impedia ampliar tal discussão.
O racionalismo crítico de Popper cria o terreno para a retomada do as-
sunto, principalmente nesse início de século, por conta de todos os avanços na
área de engenharia genética e do iminente surgimento de novas áreas como
a farmacogenética e semiogenética. Anuncia-se no horizonte uma nova dis-
cussão essencial das atividades dos profissionais de saúde em todos os níveis,
médicos em especial. A exemplo do que ocorreu após o surgimento da teoria
científica original, o conhecimento humano poderá, ou não, ser adaptado para
um novo modelo a partir do racionalismo crítico de Popper. Mesmo que em
geral nada ocorra porque não convém a uns e outros, pelo menos a aplicação da
ética aristotélica deverá ser revista para se adaptar aos novos tempos e permitir
o melhor balizamento de conflitos e resposta a questões seminais.
Prenuncia-se também, mais uma vez, um acirramento das posições do
indivíduo e da política de saúde a qual se submete a partir do estado, de seu
empregador ou de seu próprio investimento como comprador de um serviço.
Saber disso tudo pode contribuir para entender melhor a saúde no mun-
do em geral e no Brasil em particular.

Bibliografia
HOUAISS, Antonio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa – Versão
1.0.7 Instituto Antonio Houaiss – Editora Objetiva, setembro 2004.
KANT, Immanuel. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? Berlinische
Monatsschrift, Berlin:, Zwölftes Stük, dezember 1784.
20 Medicina e saúde: o determinismo de uma e o probabilismo da otra

NONAKA, I.; TAKEUCHI, H. The Knowledge Creating Company. Oxford: Oxford


University Press, 1995.
PIRES, Clarissa Côrtes. Eficiência comparada em sistemas de saúde: Um estudo para
o Brasil. Dissertação para obtenção do título de Mestre em Ciências, no curso de pós-
graduação em Engenharia, ITA, Instituto Tecnológico de Aeronáutica, 2007.
SHORTLIFFE, E. H.; BUCHANAN, B. G. Rule Based Expert Systems: The Mycin
Experiments of the Stanford Heuristic Programming Project – Stanford University
School of Medicine, Stanford, Addison-Wesley Publishing Company, 1984.
WHO. World Health Organization, International Health Conference, New York, 19-
22 June, 1946 - Official Records of the World Health Organization, 2: 100 – April,
1948. Disponível em: http://www.who.int/about/definition/en/print.html.

Mapa 1

­­
Medicamentos no
Brasil – impasses
e perspectivas
2

LUIZ ROBERTO BARRADAS BARATA


Secretário de Estado da Saúde de São Paulo,
médico sanitarista, especialista em saúde pública e
administração de serviços de saúde.

JOSÉ DÍNIO VAZ MENDES


Assessor técnico da Secretaria de Estado da
Saúde de São Paulo, médico sanitarista,
especialista em saúde pública.

Introdução
Há muitos anos a saúde pública reconhece interna-
cionalmente o acesso aos medicamentos como uma condi-
ção essencial para o efetivo direito à saúde, bem como, em
diversos encontros, a Organização Mundial de Saúde – OMS
– promoveu a reflexão sobre essa questão. Já em 1975, re-
solução da Assembléia Mundial de Saúde solicitava auxilio
aos países membros para o estabelecimento de políticas far-
macêuticas, incluindo estratégias para a seleção de medica-
mentos essenciais e a aquisição correta de medicamentos de
qualidade, baseada nas necessidades sanitárias. A primeira
lista de medicamentos essenciais foi publicada pela OMS
em 1977 (WHO, 2002).
22 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

Em 1978, na Conferência Internacional de Atenção Primária, realizada


em Alma-Ata, convocada pela OMS e pela UNICEF, o acesso aos medica-
mentos essenciais foi incluído como parte necessária da atenção primária em
saúde. Tais esforços levaram ao estabelecimento de programas da OMS para
medicamentos essenciais, à realização de conferências sobre o uso racional
dos medicamentos e ao apoio técnico para que os países adotassem políticas
farmacêuticas nacionais (WHO, 2002).
Como resultado dessas políticas, e segundo estimativas da OMS, au-
mentou bastante no mundo a população com acesso aos medicamentos es-
senciais, mas pelo menos um terço da população mundial ainda não possui
acesso adequado; em países pobres da África e Ásia, a proporção pode chegar
à metade. Permanece assim a necessidade de se buscar soluções para os sérios
problemas persistentes nessa área de atenção à saúde (WHO, 2002), a saber:
• a falta de acesso eqüitativo aos medicamentos: embora o consumo mun-
dial e o número de medicamentos disponíveis tenha aumentado nas últimas
décadas, existem grandes parcelas da população mundial que não obtêm os
medicamentos dos quais necessitam, por não estarem disponíveis ou por
serem muito caros;
• a má qualidade dos medicamentos: falta de controle e vigilância na linha
de produção e comercialização dos fármacos em muitos países, resultando
em produtos falsificados ou inadequados, com graves riscos para a saúde;
• uso irracional dos medicamentos: a aquisição dos medicamentos ou a
prescrição não é adequada às reais necessidades dos pacientes, ampliando
desnecessariamente o número, a dose e o tipo de medicamentos emprega-
dos, com aumento de custos e de riscos para a saúde da população.
Além disso, salienta a OMS, as razões da persistência de tais problemas
são complexas, sendo necessário, para compreendê-las, considerar as caracte-
rísticas do mercado farmacêutico, estudar as atitudes e comportamentos dos
governos, dos médicos (prescritores), dos consumidores e da indústria farma-
cêutica (WHO, 2002).
A dimensão do setor farmacêutico na saúde é especialmente destaca-
da em documentos da OMS, pois os altos valores envolvidos tornam o setor
Para Entender a Saúde no Brasil 23

vulnerável à corrupção e às práticas não éticas. O valor do mercado global de


medicamentos é estimado pela OMS em 500 bilhões de dólares anuais, e os va-
lores gastos com medicamentos em países não desenvolvidos podem alcançar
50% do total gasto com saúde (WHO, 2006).
Segundo a OMS, no período de 1985 a 1999, o valor mundial da produ-
ção de medicamentos cresceu quatro vezes mais rapidamente do que o produto
interno bruto global; dois terços da produção se concentram em apenas cinco
países, sendo a produção de medicamentos dominada por pequeno número de
empresas multinacionais (WHO, 2004). Tal cenário complexo permeia a situ-
ação de saúde e deve ser levado em conta especialmente pelos países dotados
de sistemas universais de saúde, tal como o Brasil, e que incluíram a garantia
de medicamentos como parte indissociável da política de saúde.
No presente trabalho apresentamos reflexões sobre a forma como a
assistência farmacêutica está se desenvolvendo no Brasil, bem como alguns
dos problemas enfrentados nesse campo pelo Sistema Único de Saúde – SUS,
particularmente no Estado de São Paulo, os quais, semelhantes aos já relacio-
nados pela OMS, também apresentam especificidades locais, exigindo para
sua solução o envolvimento de diversos setores do governo e da sociedade, de
modo que a população, brasileira e paulista, tenha suas necessidades de medi-
camentos atendidas de forma eqüitativa e sustentável.

Um breve histórico: a garantia pública de


medicamentos é realidade recente no Brasil
Antes do SUS, a assistência farmacêutica no Brasil para a população em
geral não era atribuição legal do setor público de saúde; mesmo assim, ocor-
reram iniciativas governamentais relativas ao fornecimento de medicamentos
para a população que merecem ser relacionadas:
• em 1964, antes da publicação da primeira lista de medicamentos essenciais
da OMS, foi elaborada no Brasil uma lista básica de produtos biológicos
e de matérias-primas de uso farmacêutico (Decreto nº. 53.612/1964), para
orientar as compras federais de tais produtos (BRASIL/MS, 2003);
24 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

• em 1971, foi criada a Central de Medicamentos – CEME – com o objeti-


vo principal, entre outros, de fornecer medicamentos por preços acessíveis
aos que não possuíam condições econômicas de adquiri-los no mercado
(BRASIL/MS, 2002);
• em 1975, foi homologada a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
– RENAME, contemplando os princípios da lista de medicamentos essen-
ciais da OMS (BRASIL/MS, 2002).
A CEME realizou programas para atendimento das demandas da rede
de saúde pública, porém o fornecimento sempre foi irregular, com desperdícios
e insuficiências de medicamentos, até sua desativação em 1997 (BRASIL/MS,
2002).
Contudo, apesar das dificuldades, os medicamentos eram tradicional-
mente garantidos à população pela saúde pública para algumas das doenças
endêmicas e epidêmicas, cuja importância para a saúde coletiva exigia meca-
nismos de controle epidemiológico do Ministério da Saúde, como é o caso da
tuberculose, da hanseníase, da malária, entre outras. Os medicamentos dispen-
sados pelo Ministério da Saúde para o controle dessas doenças, se por um lado
não configuram a ampla assistência farmacêutica pública, por outro trouxeram
conhecimentos fundamentais aos gestores públicos, certamente contribuindo
para o desenvolvimento de um amplo programa de assistência farmacêutica
nos dias de hoje.
O fornecimento de medicamentos pela saúde pública brasileira obedecia
a esquemas terapêuticos padronizados, alguns iniciados na década de 60, como
por exemplo, a tuberculose (RUFINO NETTO, 1999), definidos por consenso
técnico entre especialistas de cada área e utilizados por todos os serviços pú-
blicos e privados da rede de saúde do país. Tais esquemas permitiram ao país
o uso racional de medicamentos para o controle dessas doenças, evitando-se
os riscos da resistência microbiana, diferentemente do que ocorreu em outros
países que não utilizaram padronizações semelhantes.
Até a criação do SUS, como vimos, não existia o fornecimento regu-
lar de medicamentos para o tratamento de todas as demais doenças, ficando
a aquisição, na maior parte das vezes, por conta dos próprios pacientes. Tal
Para Entender a Saúde no Brasil 25

fato criava uma clara iniqüidade, pois apenas aqueles que podiam adquirir os
medicamentos com recursos próprios conseguiam tratar adequadamente suas
moléstias; além disso, produzia péssimos resultados para a saúde, seja do pon-
to de vista individual, com evolução clínica desfavorável, mesmo para aquelas
doenças para as quais já se dispunha de medicamentos eficientes, como no
caso da hipertensão arterial e da diabetes, por exemplo, seja nos perfis de saúde
da população.
A implantação do SUS resultou de um longo processo histórico e so-
cial, buscando a modificação desse quadro, intervindo nas condições de saúde
e na assistência médica prestada à população brasileira. Entre os princípios do
sistema, incluem-se a universalidade, a integralidade e a eqüidade na assis-
tência à saúde, expressando os valores escolhidos e estabelecidos por nossa
sociedade na Constituição, por considerá-los como ideais para a área da saúde.
A integralidade da assistência deve ser entendida como o conjunto de ações de
promoção, prevenção, proteção específica, diagnóstico, tratamento (incluindo
os medicamentos), e reabilitação em saúde.
Atualmente, a assistência farmacêutica constitui-se em um dos gran-
des desafios à consolidação do SUS, uma vez que o acesso da população a
medicamentos de qualidade, no momento apropriado, é uma das pedras fun-
damentais para se garantir bons resultados nos atendimentos realizados pelo
sistema e sua integralidade. Por certo, os princípios do SUS acima apontados
são objetivos que serão atingidos de forma gradual, principalmente na área de
assistência farmacêutica. São direitos a serem garantidos pelo poder público,
com a adequada estruturação de programas e práticas que permitam o acesso
universal da população aos medicamentos dos quais necessita, com segurança
e eqüidade.

Os avanços do SUS na assistência farmacêutica


O financiamento da assistência farmacêutica, tal como as demais ações
e serviços do SUS, deve ser garantido com recursos das três esferas de governo
(Federal, Estadual e Municipal), conforme o previsto na Constituição Federal
(parágrafo único do artigo 198), e nas normas subseqüentes do Ministério da
26 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

Saúde (CONASS, 2007). Além disso, as políticas traçadas pelo Ministério da


Saúde estabelecem a divisão de responsabilidades das esferas de governo no
que se refere à aquisição e distribuição, com competências complementares
para garantir os medicamentos para todos. Como resultado das políticas desen-
volvidas no SUS para o setor, temos atualmente, no Estado de São Paulo e em
todo o país, acesso à assistência farmacêutica, muito mais amplo e regular do
que existiu no passado recente do setor público de saúde.
Os dados da Pesquisa Mundial de Saúde – 2003, realizada pela
Organização Mundial de Saúde – OMS, em 71 países e coordenada no Brasil
por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, comprovaram que
87% dos brasileiros tiveram acesso aos medicamentos prescritos (FIOCRUZ,
2004). Esse índice é muito elevado e contribui sobremaneira para a melhoria
das condições de saúde de todos os brasileiros.
No SUS, a assistência farmacêutica desenvolve-se em três grandes ei-
xos programáticos: na atenção básica em saúde, com os medicamentos essen-
ciais, nos programas estratégicos de saúde, para controle de doenças, e nos me-
dicamentos excepcionais, de alto custo, para doenças específicas (CONASS,
2007).

A assistência básica ou primária em saúde


(medicamentos essenciais)
A garantia de acesso dos cidadãos aos medicamentos essenciais e ne-
cessários à assistência básica em saúde, em conjunto com a reordenação das
práticas assistenciais, seria fator de maior eficácia do nível primário de saúde,
com conseqüências benéficas extensivas aos demais níveis do sistema – aten-
ção hospitalar e especializada, principalmente com relação à qualidade de saú-
de da população.
Algumas iniciativas demonstram o avanço alcançado; em 1995,
no Estado de São Paulo, teve início o Programa Estadual de Assistência
Farmacêutica Básica – “Dose Certa”. O programa garante medicamentos pres-
critos para mais de 80% das doenças crônicas e agudas mais freqüentes atendi-
das pela rede de unidades básicas de saúde municipais em todo o estado, como
Para Entender a Saúde no Brasil 27

a hipertensão arterial, diabetes, outras doenças cardiovasculares, as infecções


e doenças respiratórias da infância, pneumonia, asma, alergias, a desidratação
infantil, as parasitoses intestinais, entre outras.
A partir de 1999, por meio da criação do Incentivo à Assistência
Farmacêutica Básica, pela Portaria do Ministério da Saúde nº. 176/1999
(CONASS, 2007), foi garantido o financiamento federal para a assistência far-
macêutica básica, prevendo também a contrapartida estadual e municipal aos
recursos federais; financiado portanto pelas três esferas de governo, o Dose
Certa recebeu no Estado de São Paulo recursos superiores a R$ 170 milhões
em 2007.
Com um rol inicial de 40 medicamentos essenciais, foi possível ampliar
o programa no final de 2007 para 67 tipos, com estimativa de distribuição
anual de mais de 1,86 bilhões de unidades farmacêuticas (definidas como com-
primidos, cápsulas, frascos, bisnagas e frasco-ampolas), ou seja, cerca de 45
unidades farmacêuticas por habitante/ano.
Um dos fatores críticos de sucesso do programa no estado de São Paulo
foi o investimento e a recuperação da Fundação do Remédio Popular – FURP,
laboratório estadual público produtor de medicamentos, permitindo a amplia-
ção do número de medicamentos distribuídos e beneficiando principalmente
os municípios pequenos, com menor capacidade de adquirir os medicamentos
no mercado.
Além do “Dose Certa”, outro exemplo do estado de São Paulo a ser des-
tacado é o Programa de Insumos para Diabetes, pactuado em 2005 entre o esta-
do e os municípios, por meio do qual a Secretaria de Estado da Saúde garante o
financiamento de 75% do valor dos insumos utilizados no controle da diabetes
(tiras, lancetas, seringas e monitores), enquanto as Secretarias Municipais de
Saúde se responsabilizam pelos 25% restantes, bem como pelo atendimento,
acompanhamento e cadastro dos pacientes em sistema informatizado criado
pelo estado. Até 2007 foram cadastrados 196 mil pacientes, recebendo mensal
e regularmente das unidades municipais de saúde, os insumos e medicamentos
necessários ao controle de sua doença.
28 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

Tais programas são exemplos bem sucedidos da ação conjunta e sinér-


gica dos gestores públicos na garantia do direito ao acesso aos medicamentos
para problemas de saúde prioritários da população1.

Os programas estratégicos de saúde


Os programas estratégicos do Ministério da Saúde incluem os medica-
mentos para tuberculose, hanseníase, leishmaniose, endemias focais, cólera e
DST – AIDS, entre outras. Esses programas, destinados ao controle das epi-
demias e endemias, são aqueles com maior tradição na saúde pública como
vimos anteriormente. Os medicamentos são financiados pelo ministério e dis-
tribuídos pelas unidades de referência em cada região, sob gestão municipal.
Cabem às secretarias estaduais de saúde o levantamento de necessidades, o
encaminhamento das solicitações para o Ministério da Saúde e a avaliação dos
programas desenvolvidos nos estados.
A padronização dos medicamentos oferecidos pelo SUS é feita por
especialistas do ministério, universidades e consultores de organismos inter-
nacionais, como a Organização Pan-americana de Saúde – OPAS, e a OMS,
dessa forma permitindo ao sistema oferecer o remédio mais adequado para as
necessidades dos pacientes.
O programa de assistência farmacêutica aos portadores de HIV, último
programa do gênero a ser implantado pelo SUS no Brasil, recebeu em 2003
o Prêmio Gates de Saúde Global, oferecido pela Fundação Bill & Melinda
Gates, por ser considerado um modelo de programa para tratamento da AIDS,
ao combinar medidas preventivas com o acesso aos medicamentos anti-retro-
virais (GATES, 2003), sendo considerado pela OMS o mais avançado progra-
ma de tratamento da AIDS realizado em países em desenvolvimento no mundo
(WHO, “Treatment works”, 2004).
Os programas de assistência farmacêutica para doenças como a tuber-
culose e a hanseníase seguem no Brasil padrões internacionais estabelecidos
pela OMS, e têm-se mostrado eficientes no controle dessas enfermidades.


1
Mais informações sobre os programas de assistência farmacêutica em São Paulo disponíveis em,
<http://portal.saude.sp.gov.br/content/assistencia_farmaceutica.mmp>.
Para Entender a Saúde no Brasil 29

O Programa de Medicamentos de Alto Custo


O Programa de Medicamentos de Alto Custo atende as doenças conside-
radas de caráter individual, as quais, a despeito de atingirem número limitado
de pessoas, requerem tratamento longo ou até permanente com medicamentos
de custos em geral elevados, por essa razão não podem ser adquiridos pelos
próprios pacientes. O programa garante o fornecimento de mais de 250 tipos
de medicamentos para doenças como a esclerose múltipla, doença de Gaucher,
doença de Parkinson, fibrose cística, artrite reumatóide, entre outras.
Em 2003 o programa atendia aproximadamente 55 mil pacientes ca-
dastrados no estado de São Paulo, ampliando em 2006 sua clientela para 380
mil pacientes, com gastos estimados ao redor de R$ 840 milhões, divididos
entre os governos federal e estadual, um custo aproximado de R$ 2.200,00
por paciente/ano. A dispensação desses medicamentos obedece a protocolos
técnicos, definidos e padronizados pelo Ministério da Saúde, válidos em todo
o território nacional2.

O encarecimento da assistência farmacêutica


Considerando-se os programas em desenvolvimento, é inegável a me-
lhora do acesso da população aos medicamentos no SUS; entretanto, persistem
problemas a discutir com toda a sociedade, se desejamos o aperfeiçoamento da
assistência farmacêutica no Brasil. Conforme visto na introdução, a assistência
farmacêutica tem sofrido incrementos de custos em todo o mundo, bem como no
Brasil, tornando-se cada vez mais um pesado ônus financeiro para o SUS. Entre
nós, embora tal fato decorra em parte da inclusão de grande número de pacientes
anteriormente não atendidos pelo setor público, outros fatores devem ser objeto
de reflexão, como estes pontuados a seguir.


2
Informações adicionais e protocolos disponíveis no sítio do Ministério da Saúde <http:\\portal.saude.gov.
br/saude>, no ítem de assistência farmacêutica, “Programas e Projetos, Medicamentos Excepcionais”.
30 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

A “medicalização” e o complexo industrial farmacêutico


Desde a segunda metade do século passado, não foram poucos os pro-
fessores e médicos da área de saúde pública no Brasil a alertar para o aumento
excessivo do uso de medicamentos em nossa sociedade, seja por aquisição di-
reta da população (automedicação), ou por prescrições médicas exageradas, o
que poderia trazer conseqüências deletérias para a saúde individual e coletiva.
A OMS tem alertado freqüentemente para a questão do uso irracional
de medicamentos, entre os quais a “polimedicação”, isto é, o uso de muitos
medicamentos por paciente, a automedicação, o uso inapropriado de antimi-
crobianos, prescrições em desacordo com as indicações clínicas reconhecidas
cientificamente, não apenas pelo desperdício envolvido, mas principalmente
pelo impacto negativo desta situação na saúde dos pacientes (WHO, 2006).
Tal prática persiste até hoje e adquiriu determinantes mais complexos,
principalmente no contexto do SUS, que tem como princípio constitucional a
universalização do direito à saúde, nele incluído a garantia do fornecimento de
medicamentos à população.
Devemos reconhecer que nos últimos anos, com o desenvolvimento de
novos fármacos, o avanço terapêutico tem produzido ganhos inegáveis para o
tratamento de diversas doenças, mas um grande complicador na área de me-
dicamentos é o enorme complexo industrial farmacêutico existente. Como
empresas de caráter multinacional, com monopólios e domínios de patente,
possuem grande poder no estabelecimento de preços e na indução do consumo,
pela atuação direta junto aos médicos e pacientes.
O assunto é abordado por Angell (2007), ao tratar da agressiva atuação
da indústria farmacêutica nos Estados Unidos; suas ações incluem a aplicação
de elevados recursos em marketing direto ao consumidor, patrocínio de gru-
pos de defesa de pacientes (os quais, a título de aumentar a conscientização
do público em relação a uma doença, são na verdade meios de promoção de
medicamentos das empresas), ações para influenciar os médicos por meio de
representantes de vendas, presentes, amostras grátis, financiamento de encon-
tros e congressos médicos, “informação educativa” dirigida para estimular o
Para Entender a Saúde no Brasil 31

uso desnecessário de medicamentos “de imitação” (modificações de drogas já


existentes, sem vantagens reais para o tratamento), ou novos medicamentos,
bem mais caros, porém sem comprovação de superioridade com relação aos
medicamentos genéricos já utilizados, pagamento de “consultorias” para par-
ticipação em “pesquisas médicas” relativas aos medicamentos, não dotados de
adequado desenho científico ou o controle ético dos resultados.
No Brasil, as empresas dessa área também realizam ações semelhantes;
frente a um mercado cada vez mais controlado nos países desenvolvidos, en-
contraram um verdadeiro “filão de ouro” no país. Utilizando-se dos preceitos
constitucionais da universalidade e integralidade de atendimento, buscam al-
cançar seus objetivos de ampliar a venda de medicamentos para a população.
Essas empresas realizam intensas campanhas publicitárias junto aos médicos e
as associações de pacientes com determinadas moléstias, apresentando “novos
e milagrosos” medicamentos, muitas vezes sem registro no país, induzindo sua
prescrição pelos profissionais, resultando na exigência dos pacientes para seu
fornecimento pelo setor público, utilizando-se, por vezes, a via judicial.
Ocorre que muitas das novas formulações, embora possuam efeitos não
comprovadamente superiores aos dos medicamentos já existentes no mercado,
têm preços significativamente superiores, configurando uma relação de custo/
efetividade extremamente prejudicial ao sistema de saúde.
Por exemplo, Angell cita o ensaio clínico denominado ensaio de trata-
mento anti-hipertensivo e redutor de lipídios para evitar ataques cardíacos (em
inglês ALLHAT – “Antihypertensive and Lipid Lowering Treatment to Prevent
Heart Attack Trial”), realizado nos Estados Unidos pelo Instituto Nacional do
Coração, Pulmão e Sangue (parte dos NIH – “National Institutes of Health”),
comparando quatro tipos de drogas para tratamento de hipertensão arterial: um
bloqueador dos canais de cálcio, um bloqueador alfa-adrenérgico, um inibidor
de enzima conversora de angiotensina e um diurético genérico, o mais antigo
e barato medicamento entre os quatro. Para grande surpresa de todos, esse
último mostrou-se igualmente eficaz para reduzir a pressão e até melhor para
evitar algumas complicações da doença (ANGELL, 2007).
Além disso, diversos estudos demonstram a desigualdade da propagan-
da de medicamentos realizada em diferentes países, não se respeitando as re-
32 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

comendações da Organização Mundial de Saúde para esse tipo de propaganda,


em especial em países como o Brasil, tanto nos anúncios para o público em
geral, como naqueles destinados aos médicos. Há omissão de informações im-
portantes, referentes às contra-indicações, efeitos colaterais e reações adver-
sas, além de utilização de argumentos exagerados e imprecisos para apregoar
as vantagens do produto (PIZOL; SILVA; SHENKEL, 1998. BARROS, 2000.
BARROS; JOANY, 2002).
O papel do médico nessa questão é central; ao receber forte influência
das propagandas farmacêuticas, de forma acrítica e massificante, os profissionais
muitas vezes receitam os medicamentos de marca, mesmo com normas legais e
orientações para que as prescrições utilizem os medicamentos pelos seus princí-
pios ativos (genéricos).
A influência do complexo industrial também atinge os pesquisadores
médicos no Brasil; ao receberem recursos das indústrias farmacêuticas para a
realização de pesquisas, por vezes, infelizmente, embora com lacunas no dese-
nho metodológico, concluem apressadamente sobre a suposta superioridade de
determinados medicamentos, por sua vez tornados “imprescindíveis” para a te-
rapia de certas doenças, mesmo quando em países desenvolvidos, com grande
tradição na área de pesquisas médicas, tais medicamentos ainda se encontrem
sob avaliação. Os pacientes são vítimas desse processo; tendo sua esperança de
cura estimulada por propagandas enganosas, sem a contrapartida da avaliação
mais criteriosa dos riscos e reais benefícios por seu médico, não poderiam dei-
xar de desejar os medicamentos, inclusive processando judicialmente o SUS
para garantir seu fornecimento.

O uso de medicamentos não traz apenas bons resultados


É preciso salientar que o uso indiscriminado de medicamentos não cau-
sa apenas problemas financeiros para as famílias e para o SUS. Questões como
o desenvolvimento de resistências bacterianas e de outros microorganismos
aos antibióticos e antimicrobianos, que hoje preocupam autoridades sanitárias
em todos os países, resultaram do uso indevido e abusivo desses medicamen-
tos (WHO, 2005). Arrais (2002), citando Helper e Strand (1990), refere que
Para Entender a Saúde no Brasil 33

em 1987 foram notificados nos Estados Unidos cerca de 12 mil mortes e 15


mil hospitalizações por reações adversas por medicamentos. Nos últimos anos,
contituíram-se em nosso país sistemas de farmacovigilância em diversos ser-
viços hospitalares, para melhorar o conhecimento dessa realidade, certamente
presente em nosso meio.
Um exemplo dramático deu-se com a talidomida. Medicamento utili-
zado como sedativo, ansiolítico e anti-emético, também eficaz no tratamento
de sintomas presentes na gestação, foi utilizado no Brasil, tal como na Europa,
com as conseqüências conhecidas por todos: entre 1958 e 1962, foi observado,
principalmente na Alemanha e Inglaterra, mas também em outras partes do
mundo, inclusive no Brasil, o nascimento de milhares de crianças com gra-
ves deformidades congênitas, caracterizadas pelo encurtamento dos ossos lon-
gos dos membros superiores e/ou inferiores, com ausência total ou parcial das
mãos, pés e/ou dos dedos (focomelia) (OLIVEIRA; BERMUDEZ, SOUZA,
1999).
Seu uso foi suspenso para grávidas, mantendo-se atualmente apenas
para algumas reações no tratamento da hanseníase, com todos os cuidados no
sentido de verificar o estado gestacional das pacientes. Nos Estados Unidos,
onde a talidomida não chegou a ser licenciada para comercialização em razão
de exigências adicionais sobre segurança no uso de novos fármacos, impostas
pela agência regulatória americana, o Food and Drug Administration (FDA),
esta saiu fortalecida do episódio, passando a assumir a coordenação de to-
das as atividades relativas à política de regulação de medicamentos naquele
país, a partir da emenda Kefauver-Harris de outubro de 1962 (OLIVEIRA;
BERMUDEZ; SOUZA, 1999).
O mesmo pode ser lembrado para o medicamento rofecoxibe (nome
comercial –Vioxx); utilizado até há pouco em inflamações crônicas e artrites,
foi retirado do mercado pelo próprio fabricante após comprovação de efei-
tos cardiovasculares indesejáveis e graves em diversos pacientes (MERCK
SHARP; DOHME, 2004).
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo iniciou, em 1998, um
sistema de farmacovigilância no estado visando obter conhecimentos sobre os
efeitos adversos dos medicamentos sobre a saúde da população. No período
34 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

de janeiro de 2005 a março de 2006, o Núcleo de Farmacovigilância recebeu


aproximadamente 9000 notificações de suspeitas de reação adversa a medica-
mentos (CVS, 2006).
Mais recentemente, tivemos o caso do medicamento lumiracoxibe
(nome comercial – Prexige), outro antiinflamatório com cerca de 300 noti-
ficações de suspeitas de reações adversas graves pelo sistema de farmacovigi-
lância do SUS/SP. Por esse motivo, foi considerado um medicamento que exi-
ge cuidados especiais para sua prescrição, conforme atesta o alerta terapêutico
publicado pelo Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado da Saúde
(CVS, 2007). Nesse caso específico, estudos internacionais indicaram que o
novo medicamento não possuía vantagens terapêuticas significativas quando
comparado com outros medicamentos tradicionalmente utilizados em inflama-
ções (RDTC, 2006. NICE, 2007).
Medicamentos são drogas, nunca é demais lembrar; se usados em dosa-
gens inadequadas ou prescritos equivocada ou açodadamente, podem produzir
um efeito danoso, muitas vezes fatal para os pacientes. Portanto, é fundamental
que os gestores de saúde do SUS cuidem de sempre bem observar essa realida-
de, não se deixando levar por pesquisas apressadas, interesses comerciais e de
mercado, modismos sem fundamentação científica adequada, garantindo assim
o objetivo maior da saúde pública, qual seja, preservar e garantir a qualidade
de vida da coletividade.

Medicamentos não substituem bons hábitos de vida


Uma das formas de procurar reduzir a “medicalização” na sociedade, é
a busca de práticas e ações de promoção e proteção da saúde, capazes de limi-
tar e reduzir o consumo de medicamentos. Exemplos: sabe-se que meia hora
de atividade física diária, acompanhada de orientação nutricional adequada,
melhora o peso, previne distúrbios metabólicos de açúcares e gorduras, reduz
os riscos de doenças vasculares, baixa a pressão arterial, previne a osteoporose,
diminui os casos de depressão, entre outros efeitos, substituindo assim, com
benefícios para a saúde, a utilização de muitos medicamentos para doenças
atualmente comuns, como a hipertensão arterial, a obesidade, o diabetes, a
osteoporose, a depressão, etc.
Angell (2007) cita pesquisa realizada pelos NIH – “National Institutes
of Health” comparando o uso de placebo, do medicamento metformina (hipo-
Para Entender a Saúde no Brasil 35

glicemiante), e um programa de exercícios e dieta. Embora o medicamento te-


nha apresentado melhor resultado que o placebo na redução do surgimento de
diabetes, foi o programa de exercícios que conseguiu os melhores resultados
na prevenção da doença. Porém, como observa a autora, tanto os pacientes (por
força das propagandas), como os médicos (por força da falta de tempo para
realizar atividades educativas), tendem a preferir os medicamentos.
Trata-se de um processo lento, de mudança de valores, atitudes e hábi-
tos de vida, porém capaz de produzir resultados em muitos países. O próprio
médico precisa valorizar esse conhecimento, evitando a substituição de orien-
tação e mudança de hábitos pela receita de medicamentos; embora mais rápida,
é prática muitas vezes desnecessária e perniciosa para o paciente.

O desenvolvimento de protocolos e normas


de utilização para os medicamentos
Em vários países desenvolvidos com sistemas universais de saúde, há
preocupação com a metodologia de avaliação e comparação de novas tecno-
logias, inclusive medicamentos, envolvendo quesitos como segurança, eficá-
cia, possibilidade e indicação do uso, uso em saúde pública, custos e medi-
das de resultados, reflexos econômicos e éticos, entre outros. Como exem-
plo, no Reino Unido o “National Institute for Health and Clinical Excellence
(NICE)”, ligada ao “National Health Service (NHS)”, desenvolve os protoco-
los dos procedimentos intervencionistas e avaliações tecnológicas dos fárma-
cos. Na Espanha, existe a COHTA, agência pública ligada ao Serviço de Saúde
Catalã; no Canadá, o trabalho é realizado pela “Canadian Coordinating Office
for Health Technology Assessment (CCOHTA)”, financiada por governos nos
três níveis e tendo por foco a utilização de evidências e efetividade clínica e
econômica.
Apesar de possuírem recursos para a área de saúde muito mais elevados
do que o Brasil, nesses países permanece a preocupação com a avaliação tec-
nológica e a incorporação de novas técnicas e medicamentos no sistema. Em
todos prevalece a clara noção da inexistência de “bondade gratuita” no setor
público: a garantia de determinado benefício impedirá o acesso da população
a outros. Assim, o uso racional e o financiamento dos medicamentos não é
uma questão de interesse apenas nacional, o aumento exagerado dos custos
de novas tecnologias na atenção médica, em especial dos medicamentos, tem
36 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

gerado discussões sobre o tema em diversos países, desenvolvidos ou em de-


senvolvimento.
Propostas no âmbito da farmacoeconomia, da farmacoepidemiologia
e/ou da farmacovigilância têm sido desenvolvidas no sentido de conhecer a
dimensão, as causas e os efeitos do uso dos medicamentos, reduzir os ris-
cos para os pacientes, adequar os gastos e obter a melhor efetividade no uso
dos medicamentos, garantindo maior eqüidade em sua distribuição pelos sis-
temas públicos (COÊLHO, 1998. MADRID; VELÁSQUEZ; FEFER, 1998.
VELÁSQUEZ, 1999. ABAJO, 2001).
A prática de registros limitados para novos medicamentos, enquanto
estão sendo avaliados por centros universitários e científicos, tem sido utiliza-
da por alguns países. Para se garantir o registro definitivo são exigidos estudos
comprovando a eficácia dos medicamentos – deve ficar clara a superioridade
de um novo medicamento em relação ao utilizado até então, para se autorizar
um novo registro, saber, simplesmente, que a nova droga funciona para tal
doença, não é condição suficiente.
Outras iniciativas, no sentido de desenvolver protocolos e normas de
utilização de medicamentos, têm sido tomadas em São Paulo em questões de
interesse para o estado, complementando os protocolos para medicamentos
excepcionais já disponibilizados pelo Ministério da Saúde. Em 2007 foram
elaboradas e publicadas normas técnicas disciplinando o uso de palivizumabe
para a prevenção da infecção pelo vírus sincicial respiratório – VSR (Resolução
da Secretaria de Estado da Saúde – RSS nº.. 249/2007), o protocolo de trata-
mento para doença pulmonar obstrutiva crônica – DPOC (RSS nº.. 278/2007),
a inclusão do aripiprazol na relação de medicamentos para tratamento da es-
quizofrenia, no âmbito do estado de São Paulo (RSS nº.. 295/2007), o proto-
colo clínico que regulamenta as indicações de medicamentos relacionados à
prevenção da sintomatologia e ao tratamento da hipertensão arterial pulmonar
– HAP (RSS nº. 321/2007)3.


3
Normas diponíveis em <http:\\portal.saude.sp.gov.br/>, no ítem de assitência farmacêutica.
Para Entender a Saúde no Brasil 37

Buscando o aperfeiçoamento desse trabalho, a Secretaria de Estado


da Saúde estabeleceu parceria em 2007 com a Associação Médica Brasileira
(AMB) e com a Associação Paulista de Medicina (APM) para criar protocolos
clínicos de conduta médica para diversas doenças, como diabetes, hipertensão
arterial, patologias psiquiátricas e outras que forem prioritárias para o SUS. O
objetivo dos protocolos é reunir todas as informações essenciais sobre cada
doença, baseadas em pesquisas e evidências clínicas, padronizando a tomada
de decisão quanto à prescrição de medicamentos e a realização de exames de
diagnóstico.
Portanto, quanto ao consumo dos medicamentos, é preciso convencer
a todos os interessados, população, médicos e autoridades judiciais, da impor-
tância de desenvolver e respeitar os protocolos de utilização dos fármacos, ela-
borados pelo Ministério da Saúde, com a participação das associações médicas
e centros universitários reconhecidos.
Evitando-se desperdícios de recursos públicos, ocasionados por pres-
crições inadequadas e sem embasamento técnico-científico. A história da saúde
pública no país tem demonstrado a importância dos protocolos, como no caso
da tuberculose, da AIDS, da malária e outras, já citados.
É sempre bom lembrar que o negócio da indústria farmacêutica é ven-
der remédios, principalmente se forem os mais caros e lucrativos, mesmo que
não tenham resultados comprovadamente superiores ou fiquem sem uso nos
armários dos pacientes, enquanto o do SUS é tratar os pacientes de forma mais
eficiente, para que os recursos existentes possam atender às necessidades de
medicamentos de todos. São objetivos muito diferentes.

Como continuar a desenvolver a assistência farmacêutica


no SUS?
A intensificação no uso de genéricos, a avaliação técnica dos novos
fármacos, o estabelecimento de protocolos para os medicamentos de alto custo
e a farmacovigilância são ferramentas imprescindíveis em nosso meio, se de-
sejamos garantir a universalidade, a integralidade, a eqüidade, a racionalidade
e a segurança, na assistência farmacêutica no SUS.
38 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

A questão das sentenças judiciais para fornecimento de medicamentos


também precisa ser objeto de reflexão. Alguns trabalhos sobre esse tema têm
apontado aspectos negativos na concessão de medicamentos por via judicial:
desconsideração da divisão de responsabilidade tripartite de organização do
sistema, aquisição de medicamentos não registrados pela Agência de Vigilância
Sanitária – ANVISA do Ministério da Saúde – MS, despreocupação das instân-
cias condutoras e julgadoras das ações com as questões relativas ao uso racio-
nal dos medicamentos e os possíveis danos oriundos da má indicação e do mau
uso, descumprimento de protocolos clínicos pelos médicos prescritores, pre-
juízo à eqüidade na distribuição de medicamentos, entre outros (MESSEDER;
OSORIO-DE-CASTRO; LUIZA, 2005. VIEIRA; ZUCHI, 2007).
Entretanto, não se pretende aqui atribuir culpa ao Poder Judiciário pela
“judicialização” da política de assistência farmacêutica no SUS, uma vez que
o resultado do julgamento das ações propostas decorre de interpretações e
aplicações legítimas da lei brasileira. Trata-se antes de procurar esclarecer as
autoridades que buscam a aplicação justa da lei, os motivos pelos quais é ne-
cessária a aplicação de mecanismos de planejamento e de avaliação, para que
os gestores de saúde possam fornecer os fármacos de forma mais adequada,
eqüitativa e segura à população. Os medicamentos fornecidos pela Secretaria
de Estado da Saúde, tal como por outros órgãos do SUS, devem possuir regis-
tro na ANVISA/MS e devem ser distribuídos segundo indicações e protocolos
clínicos e diretrizes terapêuticas.
Em geral as ações judiciais demandam a concessão de medicamen-
tos não constantes do rol dos medicamentos padronizados pelo Ministério da
Saúde, tratando-se habitualmente da prescrição, por médicos ou serviços de
saúde, de medicamentos de marca muitas vezes ainda não aprovados em outros
países e alguns, sequer registrados na ANVISA.
Nesses casos, a secretaria procura avaliar a necessidade do medica-
mento, ou seja, as indicações clínicas, a existência de alternativas com efeito
semelhante e custo mais baixo. A experiência permite concluir que, na maior
parte dos casos, pode-se substituir o fármaco indicado por outro medicamento
padronizado. Mesmo quando existe a necessidade de concessão por via admi-
Para Entender a Saúde no Brasil 39

nistrativa, por não existir equivalente padronizado, a secretaria entende existir


a necessidade de receita ou avaliação de órgão público do SUS.
Tanto no caso de prescrições de medicamentos pelo nome comercial (ape-
sar das normas indicativas do uso pelo princípio ativo), como naquelas que não ob-
servam os protocolos desenvolvidos e aceitos pelo sistema, a Secretaria de Estado
da Saúde vê a necessidade de revisões técnicas e éticas, nas quais o profissional,
após a adequada orientação, deve ter justificativas técnicas cabíveis para a atitude
de não seguir os protocolos.
Fique claro que não se trata de reduzir os gastos do sistema com os medi-
camentos, mas sim de utilizá-los de forma mais racional, permitindo a ampliação
da cobertura e da variedade de medicamentos fornecidos para a população. Urge,
portanto a discussão sobre o uso racional dos medicamentos e o estabelecimen-
to de mecanismos e acordos entre os gestores de saúde do SUS, o Ministério
Público e o Poder Judiciário, para que as solicitações de medicamentos feitas
pela via judicial possam ser previamente analisadas e avaliadas tecnicamente,
por grupos técnicos respeitados pelas instâncias envolvidas, subsidiando de for-
ma mais adequada, as decisões judiciais.
Experiência nesse sentido foi desenvolvida na região de Ribeirão Preto,
entre o Ministério Público, representantes do Hospital Universitário e do
Departamento Regional da Secretaria de Estado da Saúde, com análise téc-
nica prévia de solicitações de medicamentos, facilitando e fornecendo impor-
tantes informações para subsidiar as decisões judiciais quanto à adequação
das prescrições médicas, de forma a racionalizar as condutas medicamentosas.
Reconhece-se ainda a necessidade de novas regulamentações legais que de-
talhem aspectos da execução da assistência farmacêutica pelo SUS, estabe-
lecendo legalmente o papel dos gestores na adoção formal de medicamentos
pelo sistema e na aprovação de protocolos, tornando a distribuição pública de
medicamentos mais justa e eqüitativa.
Por outro lado, tal como a maioria dos governos desenvolvidos, o Brasil
deveria estudar melhor a prática atual de propaganda dos produtos farmacêuti-
cos para o público em geral e para a classe médica em particular, objetivando
aperfeiçoar sua regulamentação e limitação, quando for o caso.
40 Medicamentos no Brasil – impasses e perspectivas

Conclusões
Toda política de Estado de caráter social tem implementação gradativa (o
SUS é de 1988), e exige aumento de recursos, os quais sempre serão finitos, com
aplicação eqüitativa (seguindo o adágio “mais para quem tem menos”). Na as-
sistência farmacêutica também é preciso buscar eficiência no setor público, para
atender mais e melhor. Contudo, a integralidade nessa área de atenção não pode
ser entendida como a obrigação, pelo SUS, de dar todo e qualquer medicamento
solicitado, para qualquer doença, sem obedecer à norma de utilização.
Como a experiência nacional e internacional tem demonstrado, garantir
medicamentos para todos exige o estabelecimento de um rol de medicamentos
essenciais e de alto custo, a definição de normas técnicas (protocolos) com
embasamento científico para utilização racional dos fármacos, a opção por me-
dicamentos genéricos e mais baratos, sempre que não houver comprovação
científica da superioridade de novos medicamentos de marca, muito mais dis-
pendiosos para o sistema.
Os gestores do SUS precisam unir esforços e buscar o auxílio de todos
os interessados (Poderes Legislativo, Judiciário e representantes da sociedade
civil) para criar mecanismos mais eficientes, ágeis e justos para a distribuição
de medicamentos, buscando soluções factíveis e economicamente sustentáveis
para o aperfeiçoamento da assistência farmacêutica no Brasil.

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Planos de saúde:
regulação e
conseqüências
4
não desejadas

JOSÉ CECHIN
Superintendente executivo do Instituto de Estudos
de Saúde Suplementar, ex-ministro da
Previdência e Assistência Social.

BRUNO DUTRA BADIA


Mestre em Economia pelo Cedeplar (UFMG), e
consultor do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar.

Introdução
Desde 1999, os planos e seguros de saúde no
Brasil são regulados pelas normas expostas na Lei 9.656.
Em 2000, a Lei 9.961 criou a Agência Nacional de Saúde
Suplementar, a qual passou a ser o principal órgão responsá-
vel pela regulação da indústria da saúde suplementar.
Antes das referidas leis não havia regulação específi-
ca da indústria – exceto para as seguradoras, submetidas às
normas da Susep, levando constantes queixas dos benefici-
ários dos planos no País, dado, aparentemente, nem sempre
serem os contratos regidos por regras claras. Sem dúvidas,
essa insatisfação foi um dos motivos que levaram à pro-
posta e posterior aprovação da regulação.
44 Planos de saúde: regulação e conseqüências não desejadas

Outros motivos que levaram à regulação da saúde suplementar foram as


falhas de mercado, isto é, desvios das suposições essenciais ao funcionamen-
to eficiente de mercados perfeitamente competitivos. Mercados de atenção à
saúde e mercados seguradores sabidamente apresentam algumas dessas falhas.
Mais especificamente, assimetrias de informação. Um médico, por exemplo,
sabe mais das condições de saúde e tratamento adequado a um seu paciente do
que o próprio paciente. Demandantes de planos de saúde possuem mais infor-
mação sobre seus estados de saúde, hábitos de vida, etc., do que as operadoras.
De fato, a lista de exemplos é extensa.
Diante destas (e outras) falhas de mercado, é natural que propostas de
regulação venham à tona. Geralmente, o argumento a sustentar tais propostas é
o potencial ganho de eficiência a partir da regulação visando a correção dessas
falhas. A seguir, argumenta-se que nem sempre é esse o caso.

Conseqüências não planejadas da regulação


Ao menos desde Adam Smith, à ação humana (ou de agentes econômi-
cos), são creditadas conseqüências não planejadas. O exemplo clássico parte
do próprio autor, ao constatar que em uma sociedade aparentemente caótica,
com elevado número de indivíduos, cada qual agindo em seu próprio interesse,
as relações de troca resultam em um ambiente harmonioso. A harmonia origi-
nada pela ação desorganizada dos membros da sociedade se deve, no dizer de
Adam Smith, à mão invisível do mercado.
Naquele exemplo, a conseqüência não planejada da ação individual (a
ação fundamentada no próprio interesse), resulta em ambiente favorável a to-
dos os membros da sociedade. Evidentemente, nem todas as conseqüências não
planejadas possuem tal propriedade. Por exemplo, um governo pode planejar
diminuir a desigualdade de renda via programas de transferência. No entanto,
ao adotar programa dessa natureza e garantir renda mínima aos cidadãos, um
mecanismo de incentivo perverso é implementado: beneficiários do programa
são desestimulados a procurar emprego e, provavelmente, a capacitarem-se
para tanto. Uma vez que a renda deixa de ser transferida, os indivíduos benefi-
ciários do programa voltam à condição inicial de pobreza. Por isso, critérios de
condicionalidade, como estar matriculado em instituição de ensino, por exem-
plo, são de extrema importância para o sucesso desses programas.
Para Entender a Saúde no Brasil 45

A regulação do mercado de saúde suplementar teve como uma de suas


principais finalidades, como já observado, atender ao desejo dos consumidores
por regras mais claras em sua relação contratual com as operadoras de pla-
nos e seguros de saúde. O estabelecimento de tais regras poderia levar a uma
ampliação da demanda por planos de saúde, o que, finalmente, desafogaria o
“gargalo” do SUS.
Uma das medidas da regulação foi estabelecer a variação das mensali-
dades de acordo com faixas etárias. Como regra geral, estabeleceu-se que da
última faixa etária pudesse ser cobrada uma mensalidade no máximo seis ve-
zes superior à cobrada da primeira faixa etária (posteriormente definiu-se que
a variação entre a 1ª e a 7ª faixa etária deveria ser igual à variação entre a 7ª e a
10ª faixa etária)4. O objetivo da regra foi o estabelecimento de subsídio cruza-
do entre os grupos etários de menor e maior risco, isto é, dos mais jovens para
os mais idosos. Esse é o princípio da solidariedade intergeracional. No entanto,
a regra encareceu o plano para os mais jovens, os quais passaram a optar por
não tê-lo ou a adiar sua adesão ao plano. De fato, Maia et. al. (2007)5, mostram
que um dos efeitos da regulação foi a redução da probabilidade de indivíduos
de faixas etárias mais jovens comprarem planos, enquanto indivíduos de gru-
pos etários com idades maiores tiveram essa probabilidade aumentada (Tabela
1), mantendo relativamente estável a taxa de cobertura total.
Na Tabela 1, observa-se que a probabilidade média de ter plano de saú-
de elevou-se em maior medida entre os indivíduos com 70 ou mais anos. Para
os indivíduos com idades entre 50 e 69 anos, os números mostram que a pro-
babilidade estimada manteve-se constante. Além disso, destaca-se na Tabela 1
o fato de a probabilidade média ter caído para os indivíduos entre 30 e 49 anos.
Tais indivíduos compõem boa parte da população em idade ativa e, portanto,
constituem a base do esquema de solidariedade entre as gerações.

4
Um Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional propõe que a diferença máxima seja de
quatro e não mais seis vezes. Evidentemente, o efeito adverso, mostrado a seguir, será agravado no
caso da aprovação do projeto.
5
MAIA, A. C.; ANDRADE, M. V.; RIBEIRO, M. M.; BRITO, R. J. A. Estudo Sobre a Regulação do
Setor Brasileiro de Planos de Saúde. SEAE/MF. Documento de Trabalho n° 37. 2007.
46 Planos de saúde: regulação e conseqüências não desejadas

No caso dos indivíduos com idade entre 18 e 29 anos, o efeito não é


claro, provavelmente pelo fato de misturar pessoas já ingressas no mercado de
trabalho e, portanto, com capacidade de pagarem pelo próprio plano, e outras
que ainda se enquadram como dependentes nos planos.

Tabela 1 – Probabilidade média da demanda


por planos de saúde segundo grupo etário.

  Probabilidade média de ter plano* Probabilidade média de ter plano**


Grupos etários 1998 2003 1998 2003
0 a 17 anos 0,214 0,194 0,066 0,067
19 a 29 anos 0,227 0,223 0,074 0,078
30 a 39 anos 0,290 0,263 0,103 0,095
40 a 49 anos 0,310 0,294 0,124 0,118
50 a 59 anos 0,296 0,301 0,145 0,147
60 a 69 anos 0,283 0,282 0,145 0,149
70 e mais anos 0,259 0,294 0,131 0,165
*Qualquer tipo de contratação – individual ou coletiva.
**Exclusivamente planos individuais.

Fonte: MAIA, et. al. (2007), com base em dados das PNADs de 1998 e 2003.

O problema reside justamente no fato de o financiamento da saúde suple-


mentar ser baseado em regime de solidariedade intergeracional. Sabidamente,
o avanço da idade vem acompanhado da elevação do gasto em saúde, seja pelo
aumento da demanda de tratamento de doenças crônicas, seja pela maior preo-
cupação com ações preventivas. A relação de custos da primeira para a última
faixa etária é bem superior a seis vezes. Dessa forma, a transição demográfica,
aumentando a proporção de idosos na população, o retardamento da entra-
da dos jovens nos planos e o envelhecimento das carteiras das OPS, podem
implicar sua insustentabilidade financeira e, no limite, deixar a população de
beneficiários, principalmente os idosos, sem cobertura. Certamente não é essa
a intenção da regulação, a qual, pelo contrário, objetiva dar maior segurança
aos consumidores de planos e seguros de saúde.
Para Entender a Saúde no Brasil 47

Em certa medida, isso explica o direcionamento do mercado para os


planos coletivos (Gráfico 1). Nesse caso, os riscos associados ao envelheci-
mento acelerado das carteiras são minimizados. Como o reajuste de prêmios
dos planos coletivos baseia-se na livre negociação entre as partes, erros atua-
riais e custos imprevistos no contrato original (incorporação tecnológica, por
exemplo), podem ser corrigidos e cobertos. As empresas especializadas em
coberturas de risco optaram por evitar os riscos da regulação – muito mais
incertos – dos planos individuais.

Gráfico 1 – Beneficiários, por tipo de contratação e total – dez/00-mar/08

Fonte: Caderno de Informação – ANS: junho 2008.

Vale destacar, no entanto, a existência de projetos de lei objetivando


alterar as regras atuais que ditam a relação dos aposentados com os planos
coletivos, regida pelo artigo 31 da Lei 9.656. Em grandes linhas, os projetos
prevêem a manutenção de aposentados nos planos mesmo que não tenham
contribuído por tempo mínimo. Assim a massa de participantes de planos de
empresas tenderia ao envelhecimento acentuado, talvez mais do que o envelhe-
cimento populacional. Necessariamente, os custos de tais planos aumentariam
muito, onerando a empresa ou o conjunto dos participantes, seja por instituição
48 Planos de saúde: regulação e conseqüências não desejadas

ou incremento de participação no pagamento das mensalidades, seja por rede-


finição da rede de atendimento ou exclusão de dependentes.
Os efeitos destes projetos são evidentes, como atesta o exemplo da
General Motors. Essa empresa vem sistematicamente perdendo participação
no mercado, pois os benefícios estendidos aos aposentados encarecem os pre-
ços de seus automóveis, os quais assim perdem competitividade6.

Propostas
Não é objetivo da regulação deixar os idosos sem cobertura, muito me-
nos limitar a capacidade de crescimento do setor pela estagnação dos planos
individuais ou retardar a entrada de jovens no sistema suplementar. É, portan-
to, de extrema importância a formulação de propostas capazes de solucionar
esse problema.
Uma sugestão seria rever a regra que estabelece a relação de seis vezes
entre os preços cobrados da primeira e da última faixa etária. A relação de men-
salidades deveria manter proximidade com a relação de riscos entre essas duas
faixas etárias extremas. O aumento dessa proporção permitiria preços mais
acessíveis aos jovens e pessoas em idade ativa, possibilitando o crescimento
da população coberta pelas OPS com importantes efeitos positivos de escala e
diluição do risco.
Contudo, a elevação da proporção entre as faixas etárias extremas en-
careceria ainda mais o preço para os idosos, agravando um problema já grave.
Essa situação poderia ser contornada pelo desenvolvimento de produtos que
permitissem a formação de poupança-saúde. Produtos com poupança-saúde
não substituiriam os atuais, mas seriam ofertados como mais uma opção.
Seriam atrativos para aqueles (mais jovens), que ainda tivessem tempo sufi-
ciente para acumular reservas para custear o plano na idade avançada.


6
Segundo a Revista Exame (27/04/2005), a GM gastou cerca de US$ 5,3 bilhões em 2003 com plano
de saúde para 1,1 milhão de funcionários, aposentados e dependentes. O montante representava 5%
de todas as suas vendas no mercado norte-americano.
Para Entender a Saúde no Brasil 49

No Gráfico 2, apresenta-se uma simulação para o montante acumulado


por um indivíduo até os 60 anos de idade, capitalizando uma parte da mensali-
dade, a uma taxa de juros de 4% a.a.7
Note-se que, a partir dos 60 anos, o indivíduo passa a despender os
recursos acumulados para financiar as mensalidades mais altas do plano. Em
uma simulação com pequeno adicional sobre o custo do risco, o volume de
capital acumulado seria suficiente para a manutenção dessa cobertura até os 78
anos. Dado que a taxa de juros utilizada é relativamente baixa e que, no Brasil,
um indivíduo aos 60 anos espera viver até os 80 anos, o potencial da poupança-
saúde como alternativa viável é evidente.
Uma forma de se desenvolver esse novo tipo de produtos seria desenhar
incentivos fiscais que levassem os mais jovens a poupar a diferença entre o
menor preço (posterior ao aumento da razão atualmente vigente), e o preço
antigo.

Gráfico 2 – Simulação do montante acumulado ao longo do ciclo de vida

7
No exercício foram utilizados dados referentes a 7,5 milhões de vidas de um conjunto de OPS.
50 Planos de saúde: regulação e conseqüências não desejadas

Nesse caso, não haveria redução nem aumento de mensalidade, mas


parte dela cobriria o risco corrente, enquanto a outra parte seria acumulada e
capitalizada em nome do beneficiário. Observe-se que a proposta não implica
o fim do mutualismo; pelo contrário, este continuaria sendo a base do sistema
– o risco continuaria sendo coberto mutuamente em cada faixa etária. Dessa
forma, o subsídio intergeracional seria convertido em transferência intertem-
poral de cada indivíduo. O montante acumulado ao longo dos anos de vida
ativa serviria para o pagamento das maiores mensalidades do plano na idade
avançada.
Que fique bem claro: os recursos acumulados pelos produtos poupança-
saúde não se destinariam para o financiamento integral das despesas individu-
ais com saúde na última faixa etária. A grande incerteza sobre o montante de
despesas médicas na idade avançada exigiria de cada beneficiário o acúmulo
de vultosos recursos em sua conta de poupança-saúde – os quais ainda assim
poderiam ser insuficientes para umas poucas pessoas. Para a grande maioria,
no entanto, os gastos seriam menores e esses beneficiários chegariam ao fim da
vida com saldos altos nessas contas. O esquema seria socialmente ineficiente.
Por isso, os recursos acumulados se destinariam a custear as mensalidades
mais altas dos planos para os idosos.
Os produtos deveriam ser desenhados de forma a estimular a maior
responsabilização dos indivíduos por sua saúde, induzindo-os à adoção de há-
bitos saudáveis de vida e à utilização não perdulária dos recursos da assistência
médico-hospitalar. As contas de poupança-saúde americanas (Health Savings
Accounts), são exemplos desse tipo de produto. Trata-se de plano com franquia
que, se não utilizada no ano, deve ser poupada em contas de aplicação com in-
centivos tributários. Planos com franquia têm mensalidades bastante menores
do que os planos sem franquia, sendo, portanto acessíveis a maiores parcelas
da população. Atuam no mesmo sentido, mecanismos permitindo a discrimina-
ção de riscos por hábitos de vida – menor prêmio permitiria acumular frações
maiores das mensalidades.
Para Entender a Saúde no Brasil 51

Conclusão
No texto discutem-se aspectos da regulação do mercado de planos e se-
guros de saúde no que diz respeito às possíveis conseqüências não planejadas
(e não desejadas), da regulação.
Mostra-se que ações não embasadas em cuidadoso planejamento prévio
podem resultar em situações nas quais o beneficio social extraído da regra é
nulo ou mesmo negativo.
Particularmente, observa-se que o subsídio cruzado objetivado com o
estabelecimento de uma diferença máxima entre as mensalidades cobradas en-
tre a primeira e última faixa etária de reajuste para os planos e seguros de saú-
de, pode, de fato, reduzir a propensão dos mais jovens em aderir a tais planos.
No limite, o efeito desse comportamento pode ser bastante adverso, dado o
regime de repartição simples no qual se baseia a saúde suplementar do País. O
problema é reforçado pelo acelerado processo de envelhecimento populacional
experimentado no Brasil.
Como alternativa, propõe-se a criação de produtos de poupança-saúde.
O aumento da proporção entre as mensalidades das faixas etárias extremas
permitiria reduzir as mensalidades para todas as faixas etárias, exceto a dos
mais idosos, estimulando a adesão a planos dessas faixas etárias. A redução das
mensalidades poderia ser acumulada na forma de poupança-saúde capitalizada
a ser utilizada para financiar o prêmio mais elevado da última faixa etária.
52 Planos de saúde: regulação e conseqüências não desejadas

Bibliografia
MAIA, A. C.; ANDRADE, M. V.; RIBEIRO, M. M.; BRITO, R. J. A. Estudo Sobre
a Regulação do Setor Brasileiro de Planos de Saúde. SEAE/MF. Documento de
Trabalho n° 37. 2007.
Revista Exame, 27/04/2005.
Os desafios para
a sustentabilidade
na saúde
4
suplementar
no Brasil

MARIA STELLA GREGORI


Advogada, mestre em Direito pela PUC/SP, professora
assistente mestre de Direito do Consumidor e Direitos
Humanos da PUC/SP, foi diretora da Agência Nacional
de Saúde Suplementar – ANS.

O presente artigo objetiva abordar su-


cintamente a mudança de paradigma trazido pela
Constituição Federal de 1988 para o ordenamen-
to jurídico das questões da saúde e da proteção do con-
sumidor. Tendo como escopo a prestação privada da
assistência à saúde, analisa brevemente o cenário em que o
Brasil se encontra nesse quesito e quais são os desafios ne-
cessários para sua efetiva implementação, visando alcançar
a tão almejada qualidade da assistência à saúde com foco no
consumidor. Levando em conta a transparência, os valores e
princípios éticos, demonstra ser fundamental o diálogo en-
tre todos os atores envolvidos no setor de saúde e, conse-
quentemente, o assumir de novas responsabilidades para a
sustentabilidade da saúde privada.
54 Os desafios para a sustentabilidade na saúde suplementar no Brasil

No Brasil, a partir da Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988,


ocorreram transformações significativas no ordenamento jurídico, inauguran-
do-se uma nova era ao recolocar a sociedade brasileira no plano democrático.
A institucionalização dos direitos humanos, consagrando-se as garantias e os
direitos fundamentais e a proteção de setores vulneráveis da sociedade brasi-
leira, vêm asseverar os valores da dignidade da pessoa humana como impera-
tivo de justiça social.
Conhecida como “Constituição Cidadã”, a Constituição Federal de
1988 tem como princípio maior a dignidade da pessoa humana, postulado que
norteia a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos ao indivíduo
e à coletividade. Para fazer valer a dignidade da pessoa humana, pressupõe-se
um piso vital mínimo, pelo qual devem restar assegurados os direitos sociais,
previstos no art. 6º da CF/88, entre os quais o direito à saúde, e o meio ambien-
te ecologicamente equilibrado para as atuais e futuras gerações, como nos diz
o art. 225, da CF/88.
No campo da saúde, a Constituição mostra-se um documento bastan-
te moderno e arrrojado, de largo alcance social, ao conferir nova dimensão
aos sistemas públicos de proteção social. A saúde tomou parte da definição de
seguridade social, em seu art. 194, CF/88, como “um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegu-
rar os direitos relativos á saúde, à previdência e à assistência social”.
Saúde é, pois, um direito social básico, fundada nos princípios da uni-
versalidade, equidade e integralidade. Segundo o art. 196, CF/88 saúde é di-
reito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econô-
micas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recu-
peração. Nesse sentido, a política estatal na área de saúde deve proporcionar
o acesso a todos, propiciando a redução de desigualdades e não podendo criar
quaisquer distinções.
A Constituição trata as ações e serviços de saúde com o enfoque do
bem-estar social, definindo claramente que o sistema que adotou envolve tan-
to a participação do setor público como da iniciativa privada na assistência à
Para Entender a Saúde no Brasil 55

saúde. A prestação dos serviços pode se dar diretamente pelo Estado ou por
intermédio da iniciativa privada, conforme o art. 199, CF/88, não havendo,
portanto, monopólio estatal nesse setor. No entanto, dada a sua relevância pú-
blica, as ações e serviços de saúde devem ser regulamentados, fiscalizados e
controlados pelo poder público.
O sistema de saúde brasileiro se caracteriza por seu hibridismo, sendo
marcante a interação entre os serviços públicos e a oferta privada na conforma-
ção da prestação de serviços de assistência à saúde, dando origem a dois sub-
sistemas. De um lado está o subsistema público, que incorpora a rede própria
e a conveniada/contratada ao Sistema Único de Saúde – SUS e, de outro, está
o subsistema privado que agrupa a rede privada de serviços de assistência à
saúde e a cobertura de risco pelas operadoras de planos de assistência à saúde.
Esse modelo deve levar em conta que a questão da saúde não pode ser vista
isoladamente, mas associada a políticas públicas de saneamento, alimentação,
transporte, ambiental, emprego e lazer.
A saúde pública no Brasil é prestada por meio do SUS, consolidada na
CF/88, normatizada pelas leis 8.080, de 19.09.1990 – Lei Orgânica da Saúde,
e 8.142, de 28.12.1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na ges-
tão do SUS e o sistema de transferência de recursos financeiros, capitaneado
pelo Ministério da Saúde.
O sistema privado de saúde, também é garantido pela Constituição de
1988, quando o art. 199 autoriza expressamente que a assistência à saúde é
livre à iniciativa privada. Esse sistema engloba a prestação direta dos serviços
por profissionais e estabelecimentos de saúde ou pela intermediação dos servi-
ços, mediante a cobertura dos riscos da assistência à saúde pelas operadoras de
planos de assistência à saúde.
O marco regulatório de saúde privado, também chamado supletivo ou
suplementar, dá-se com a entrada da Lei 9.656, de 03.06.1998, e das medidas
provisórias que sucessivamente a alteraram. Hoje vigora a Medida Provisória
2.117-44, de 24.08.2001, que dispõe sobre os planos privados de assistência à
saúde, a qual aguarda, até hoje, deliberação do Congresso Nacional. Antes, a
normatização desse setor só existia para o seguro-saúde e, mesmo assim, ape-
nas nos aspectos econômico-financeiros dessa atividade.
56 Os desafios para a sustentabilidade na saúde suplementar no Brasil

A partir de 2000, esse setor passou a se submeter à Agência Nacional


de Saúde Suplementar – ANS, agência reguladora vinculada ao Ministério da
Saúde, incumbida de fiscalizar, regulamentar e monitorar o mercado de saúde
suplementar, no intuito de inibir práticas lesivas ao consumidor, e estimular
comportamentos que reduzam os conflitos e promovam a estabilidade do se-
tor.
Em relação à proteção do consumidor, nossa Constituição foi inovadora
e também bastante moderna ao alçá-la como garantia de linhagem constitu-
cional. O direito do consumidor foi tratado em nossa Carta Maior em vários
de seus dispositivos, destacando-se primeiramente como item da cesta de di-
reitos individuais e coletivos, conforme expressa o art. 5º, XXXII da CF/88,
ao determinar o dever do Estado brasileiro de promover, na forma da Lei, a
defesa do consumidor. Nesse sentido, o art. 48 das Disposições Transitórias
dita, pontualmente, a elaboração do Código de Defesa do Consumidor. A defe-
sa do consumidor também foi elevada à categoria de princípio informador da
ordem econômica brasileira, por força do mandamento inscrito no art. 170, V
da CF/88.
O Código de Defesa do Consumidor – CDC, materializado na Lei 8.078,
de 11.09.1990, e regulamentado pelo Decreto 2.181, de 20.03.1997, é o pri-
meiro regramento do mercado de consumo no direito brasileiro, estabelecendo
normas de proteção e defesa do consumidor. O CDC criou um microsistema
próprio por colocar-se, no ordenamento, como lei principiológica, isto é, a ela
devem subordinar-se todas as leis específicas quando tratarem de questões ati-
nentes às relações de consumo.
Os princípios fundamentais reitores das relações de consumo, os quais
devem orientar todo o sistema jurídico, estão dispostos nos primeiros sete arti-
gos do CDC, e alguns merecem ser destacados no presente estudo: a vulnerabi-
lidade do consumidor, a boa-fé objetiva, a transparência e a informação.
O CDC reconhece a vulnerabilidade do consumidor pela convicção de
ser ele o elo mais fraco da relação jurídico-contratual, pois é o fornecedor
quem detém o conhecimento técnico do produto ou serviço colocado no mer-
cado de consumo.
Para Entender a Saúde no Brasil 57

A harmonia dos interesses dos participantes das relações de consumo


também integra a principiologia, sempre com base na boa-fé objetiva, na equi-
dade e no equilíbrio. Cabe esclarecer que a boa-fé trazida pelo CDC possui
acepção diversa da clássica, de natureza subjetiva, tratada como um estado de
consciência individual de agir de modo a não prejudicar a outra parte. A boa-
fé objetiva denota a conduta social, observando os valores éticos, de lealdade,
honestidade, probidade. Esse princípio, em comunhão com o da equidade e o
equilíbrio são os princípios fundamentais das relações jurídicas de consumo.
O princípio da transparência traduz-se na imposição ao fornecedor do
dever de ofertar e apresentar produtos e serviços, assegurando informações
corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa.
Vinculados à transparência nas relações de consumo, está o principio da
informação ao consumidor, sobre seus direitos e deveres, bem como sobre o pro-
duto ou serviço, no tocante à suas características, composição, qualidade, preço
e riscos apresentados, relatórios com dados mensurados e analisados, na medida
em que a informação correta permite ao consumidor contratar com segurança.
A matéria regulada pelo CDC é a relação de consumo, assim entendida
a relação jurídica existente entre dois sujeitos: o consumidor8 e o fornecedor9,
tendo por objeto a aquisição de produtos10 ou utilização de serviços11. Esses
requisitos devem necessariamente coexistir para se aplicar o CDC. Se alguns
destes requisitos não se enquadrarem, não há relação de consumo e não se
aplica o CDC.
Retomando à temática da saúde, vê-se que a relação jurídica de consu-
mo nos serviços de assistência à saúde entre o consumidor, aqui configurado
como os titulares de planos de saúde, os seus dependentes, os agregados, os
beneficiários, os usuários, ou seja, todos os que utilizam ou adquirem serviços
de saúde como destinatários finais ou equiparados, e o fornecedor, o qual pode
ser operadora de planos de assistência à saúde, hospitais, clínicas, laborató-
rios ou médicos, todos aqueles que prestam serviços de assistência à saúde no
8
Arts. 2º; 2º parágrafo único; 17 e 29.
9
Art. 3º CDC.
10
Art. 3º § 1º CDC.
11
Art. 3º § 2º CDC.
58 Os desafios para a sustentabilidade na saúde suplementar no Brasil

mercado de consumo, está amparada pelo CDC. Portanto, os consumidores


dos serviços de assistência à saúde têm o direito de ver reconhecidos todos os
direitos e princípios assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor.
No tocante à saúde e a proteção do consumidor, o Brasil conta com
arcabouço jurídico avançado no que diz respeito ao sistema de leis. No en-
tanto, há um gap enorme em relação a sua implementação e à garantia de sua
aplicação.
No que se refere especificamente a prestação da assistência privada à
saúde, verifica-se que ela está em crise, situação não exclusiva de nosso país,
por se tratar de uma atividade bastante complexa. Nesse sentido, é necessário
invocar qual é o objetivo almejado para a adequada e eficaz prestação da assis-
tência à saúde, ou seja, a sua sustentabilidade.
A pedra de toque na prestação dos serviços de assistência à saúde é uma
busca constante em compor o equilíbrio econômico e a justiça social, o que
significa dizer, em outras palavras, o equilíbrio e a harmonia na relação entre
todos os atores envolvidos: as operadoras, os prestadores, os consumidores e
o governo. A prestação de assistência à saúde visa à melhoria da qualidade da
saúde dos cidadãos, isto é, dos consumidores e dos usuários12, e o controle dos
seus custos.
Para se atingir esse objetivo, é recomendável atingir-se minimamente
um consenso entre todos esses atores, partindo-se da premissa básica do que se
entende por valor na assistência à saúde. É importante uma definição comum
de valor.
Como não temos definido um conceito de valor na assistência à saúde,
recorremos primeiramente a Michael Porter e Elizabeth Teisberg (2007).

12
O termo “usuário” é apropriado para definir àquele que faz uso do serviço público uti universi,
quando a remuneração do serviço dá-se por meio de tributos. Serviço público é todo àquele serviço
prestado pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes.
Para Entender a Saúde no Brasil 59

Durante a realização de estudo sobre a saúde nos EUA, os autores for-


mularam a hipótese de a crise da saúde naquele país dever-se a falhas na forma
de competição, pois, objetivando a minimização de custos, esta acontece pela
via de restrições de coberturas, procedimentos, limitação de serviços, gerando
baixa qualidade e tratamento insuficiente, não agregando valor para o paciente.
Segundo os autores, nessa competição de soma zero, só um ganha, todos os
demais envolvidos perdem.
Para aprimorar a qualidade e reduzir os custos, Porter e Teisberg pro-
põem um novo modelo competitivo, a competição de soma positiva, centrada
na figura do paciente, baseada em valor e focada em resultados. Segundo os
autores norte-americanos, valor na assistência à saúde é o resultado obtido na
qualidade de vida por dólar gasto, considerada a condição de saúde do pacien-
te, ou seja, a competição deve ser integrada em toda a linha de cuidado, desde o
monitoramento e prevenção, passando pelo tratamento, estendendo-se até a re-
abilitação e acompanhamento do paciente. Dessa forma, as informações sobre
o paciente vão sendo acumuladas e compartilhadas, podendo seus resultados
ser mensurados, analisados e relatados.
Esse novo modelo, onde todos os envolvidos podem se beneficiar, pos-
sibilita um controle sobre os custos e uma melhor qualidade da saúde dos ci-
dadãos.
O estudo de Porter e Teisberg é inovador ao sugerir uma série de estra-
tégias possíveis para a crise dos serviços de saúde, as quais podem implicar
o aprimoramento da qualidade da atenção, aliada à redução de custos. Nesse
sentido, ele poderá nos auxiliar como ponto de partida para construirmos o
significado de valor na assistência à saúde para o nosso sistema.
Sem embargo, como precisamos criar nosso próprio conceito sobre va-
lor, sugerimos alguns pontos que podem ser incorporados nessa importante
discussão.
Em primeiro lugar deve-se ter como paradigma o princípio constitu-
cional maior, que é a dignidade da pessoa humana como imperativo de justiça
social, pois saúde é uma atividade onde o valor social se sobrepõe ao econô-
mico.
60 Os desafios para a sustentabilidade na saúde suplementar no Brasil

Em seguida, devemos incorporar a ética como valor indispensável,


levando-se em conta a competência e excelência na atenção; a responsabili-
dade social, como postura permanente sobre os valores do ser humano, tais
como lealdade, honestidade, probidade; o desenvolvimento sustentável, que
deve conciliar o desenvolvimento econômico com as necessidades sociais e a
preservação ambiental.
É necessário desenvolver e incentivar mecanismos de educação do con-
sumidor, para assegurar-lhe seu direito de escolha, dado que informações pres-
tadas adequadamente geram boas escolhas.
Os fornecedores devem dispor seus produtos e serviços no mercado de
consumo com qualidade, e respeitar o Código de Defesa do Consumidor e a
legislação específica.
Como já se disse, o Brasil também se encontra em situação semelhante
aos demais países quando o assunto tratado refere-se à saúde. Segundo dados
da ANS, o sistema privado de saúde conta com cerca de 46 milhões de consu-
midores, ao passo que os demais 75% da população brasileira são atendidos
somente pelo SUS.
Os principais problemas para o agravamento da crise da saúde refe-
rem-se, principalmente, ao envelhecimento da população, somado à redução
da renda observada nas faixas etária mais elevadas. Isso quer dizer que há
uma expectativa positiva de vida mais longa, pois, segundo dados do IBGE de
2007, a idade média de vida do brasileiro passou a ser de 72,4 anos; no entanto,
o aumento da população idosa frente aos jovens gera aumento da necessidade
de recursos para o financiamento do sistema.
Os custos assistenciais estão subindo rapidamente em função da verti-
ginosa incorporação de novas tecnologias, mas é necessário levar-se em conta
que os recursos são finitos. Por outro lado, as informações não são comparti-
lhadas entre todos os prestadores de assistência e os seus consumidores, sendo
freqüentes os conflitos entre os atores do setor. Os consumidores preocupam-
se com o quanto vão gastar e também com a qualidade de seu atendimento;
já os fornecedores focalizam o quanto vão ganhar, e para isso minimizam os
seus custos com restrições de serviços. A partir desses conflitos originam-se as
muitas demandas que acabam sendo dirimidas pelo Poder Judiciário.
Para Entender a Saúde no Brasil 61

Em contrapartida, deve-se reconhecer avanços para o sistema privado


de saúde, principalmente aqueles trazidos pelo marco regulatório, traduzidos,
entre outros, nas regras institucionais, assistenciais e econômico-finaceiras,
bem como a criação de uma agência reguladora para regular e fiscalizar o mer-
cado de saúde suplementar.
Sem dúvida, tanto o consumidor como o fornecedor estão mais cons-
cientes e seletivos em relação aos seus direitos e deveres; isso se deve ao cres-
cimento e fortalecimento das entidades civis e órgãos públicos de defesa do
consumidor, à criação de ouvidorias, à implementação de serviços de aten-
dimento ao cliente, entre outras alternativas de estreitamento dos canais de
comunicação entre fornecedor e consumidor.
No campo da saúde suplementar, há uma cobertura maciça dos meios
de comunicação sobre temas afins. Há também, mas ainda incipiente, a possi-
bilidade da participação da sociedade no processo de regulação, notadamen-
te por intermédio de consultas públicas e audiências públicas. O Ministério
Público e o poder judiciário também se aparelharam para atender aos anseios
dos consumidores que forem lesados, pois estes, caso não consigam resolver
seus problemas diretamente com o fornecedor, irão buscar a solução pelos ca-
nais públicos disponíveis. Daí resulta a importância de os prestadores de as-
sistência à saúde buscarem resolver prontamente os problemas surgidos com
seus consumidores.
Assim, na tentativa de se alcançar a almejada qualidade da atenção à
saúde, deve-se levar em conta algumas alternativas determinantes para esse
desafio de transformações. Em questões ligadas à saúde, o foco primeiro é o
consumidor ser considerado pelo fornecedor como parceiro e aliado, jamais
devendo ser tratado como adversário.
Na sociedade pós-moderna em que vivemos, é prioritária a necessida-
de de manter-se aberto o diálogo entre todos os atores envolvidos, o que dá a
importância da ampliação do debate. O diálogo é a principal ferramenta para
a construção de práticas jurídicas e sociais adequadas, levando-se em conta a
transparência, os valores e os princípios éticos. É necessário que as informa-
ções devam ser sempre objetivas, isto é, claras, transparentes, com resultados
mensurados por meio de relatórios.
62 Os desafios para a sustentabilidade na saúde suplementar no Brasil

Os fornecedores na área da atenção à saúde devem investir em ações


de promoção à saúde e prevenção de doenças, pois iniciativas nesse sentido
agregam valor social de qualidade de vida ao econômico da redução de custos.
Lembramos, a propósito, que já existem, por iniciativa da Agência Nacional de
Saúde Suplementar, ações regulatórias de indução ao mercado, inclusive com
um programa positivo de política de qualificação da saúde suplementar, tendo
foco principalmente em promoção à saúde e informação ao consumidor.
Mas isso não basta, é preciso desenvolver mecanismos de mobilidade
com portabilidade de carência, para que o consumidor tenha a possibilidade de
trocar de operadoras sem a necessidade do cumprimento de novas carências,
pois essa prática contribuirá para se estimular a concorrência. Também é muito
importante a criação de índice econômico próprio para o setor, justamente para
minimizar os problemas oriundos principalmente dos reajustes de mensalida-
des dos consumidores.
Para tanto, é fundamental que essa discussão seja levada ao Congresso
Nacional para aperfeiçoar o marco regulatório, isto é, convertendo em lei a
Medida Provisória 2.177/01. Para a construção de um novo modelo brasileiro
de saúde, com valor específico para a qualidade da assistência à saúde, é pri-
mordial unir em um propósito comum todos os atores do setor-saúde em uma
relação de confiança, focada especialmente no consumidor.
A nova perspectiva da assistência à saúde deve ser a produção de saú-
de. Nesse sentido, podem ser atribuídas novas responsabilidades para todos os
atores da saúde, tais como:
1) incentivar as operadoras de planos de assistência à saúde para que atuem
como gestoras de saúde, pela via da promoção, prevenção e recuperação da
saúde de seus consumidores;
2) estimular os profissionais de saúde e prestadores de serviços a uma atenção
integral ao consumidor;
3) desenvolver nos consumidores a consciência sanitária para a prevenção de
doenças e promoção da saúde via cuidados com sua saúde, assumindo o
gerenciamento da própria saúde não só pelo estilo de vida e consumo sau-
dáveis, reunindo informações sobre resultados, como também pelo envol-
Para Entender a Saúde no Brasil 63

vimento no processo de melhoria de qualidade dos serviços disponibiliza-


dos;
4) articulação entre o Ministério da Saúde e a ANS, órgãos governamentais
executivos e reguladores qualificados, eficientes para dirigir e regular o se-
tor que objetiva produzir saúde.
Essas considerações preliminares nos permitem concluir que o Brasil
conta com mecanismos jurídicos adequados. No entanto, para a sua efetiva im-
plementação e conseqüente construção de um setor-saúde de qualidade, equi-
librado e justo, faz-se necessária uma mudança de paradigma que inclui o en-
volvimento com a participação de todos os atores do setor. Essa mudança deve
ter como ponto de partida o foco da atenção centrada no consumidor, o qual
deve ser visto como parceiro e aliado das operadoras de planos de assistência à
saúde, da rede assistencial, dos profissionais de saúde e do poder público, pois
é o consumidor a fonte de sustentabilidade de qualquer fornecedor e também
da economia como um todo.
Inegavelmente, por tratar-se de um mercado com características pró-
prias, a prestação de serviço nesse campo é diferenciada; mais do que tudo, por
que o serviço nele operado afeta um bem constitucionalmente indisponível, a
vida, a qual só pode caminhar pelos trilhos da saúde.
64 Os desafios para a sustentabilidade na saúde suplementar no Brasil

Bibliografia
BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. http://www.ans.gov.br.
_______. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Regulação
& Saúde: estrutura, evolução e perspectivas da assistência médica suplementar. Rio
de Janeiro: ANS, 2002.
GREGORI, Maria Stella. Planos de Saúde: a ótica da proteção do consumidor. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MARQUES, Claudia Lima; LOPES, José Reinaldo Lima; PFEIFFER, Roberto
Augusto Castellanos (coord.). Saúde e Responsabilidade: seguros e planos de
assistência privada à saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
PORTER, Michael; TEISBERG, Elizabeth. Repensando a Saúde: estratégias para
melhorar a qualidade e reduzir os custos. Porto Alegre: Bookman, 2007.
Planos privados de
assistência à saúde:
plano coletivo
5
por adesão – um
estudo de caso

SANDRA MARIA LIMA DE OLIVEIRA


Psicóloga, diretora da Géia Consultoria
e Corretora de Seguros.

CLAUDEMIR GALVANI
Economista, professor do Departamento de Economia da
PUC-SP, diretor da Metha Consultoria Empresarial.

Legislação
A Constituição da República Federativa do Brasil
assegura, no Título VIII – “Da Ordem Social” – o direito
à saúde. Essa garantia constitucional tem como objetivos o
bem estar e a justiça social, traduzindo-se na redução do ris-
co de doenças e outros agravos, bem como o acesso universal
e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção
e recuperação da saúde. Embora o direito à saúde seja um
dever do Estado, a Constituição permite à iniciativa privada
a prestação de serviços de assistência à saúde.
66 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

Sob a forma de planos de assistência médica, os serviços privados de


assistência à saúde surgiram no Brasil em meados da década de 60 e, mais re-
centemente, na década de 70, ocorreu a sedimentação dos chamados seguros-
saúde. Nesse período, os consumidores encontravam na legislação civil e nas
conciliações o encaminhamento dos problemas advindos das relações contra-
tuais, os quais já se apresentavam sob a forma de contratos de adesão.
No início dos anos 90, com o Código de Defesa do Consumidor (Lei
Federal nº. 8.078/90), os consumidores passaram a ter à disposição um novo
mecanismo de proteção e defesa de seus interesses, principalmente no tocan-
te à forma e apresentação dos contratos, rescisões unilaterais, abrangência e
estipulações de cláusulas e reajustes. Abrangendo as relações de consumo em
todas as esferas, após a nova lei passou a existir respaldo satisfatório ao con-
sumidor. Na esfera civil, definiu as responsabilidades e os mecanismos para a
reparação de danos causados; na esfera administrativa, definiu os mecanismos
para o poder público atuar nas relações de consumo e, na esfera penal, estabe-
leu novos tipos de crimes e as respectivas punições.
Todavia, em função principalmente dos abusos praticados, da falta de
legislação específica e da relevância da matéria, afetando direta ou indireta-
mente a saúde, a qualidade de vida e, portanto, a própria existência da popu-
lação, a sociedade passou a pleitear e exigir regulamentação específica para o
setor.
O Governo do Estado de São Paulo, pioneiramente, sancionou em
12/04/97 a Lei Estadual nº. 9.495, obrigando as operandoras atuando no estado
ao atendimento de todas as doenças relacionadas na Classificação Internacional
de Doenças. No âmbito federal, após vários anos de estudos, análises, suges-
tões, discussões e intensa participação, inclusive da Fundação de Proteção e
Defesa do Consumidor – Procon-SP, foi sancionada a Lei nº. 9.656 de 03/06/98,
dispondo sobre planos privados de assistência à saúde.
Essa lei foi elaborada a partir de inúmeras discussões entre entidades
de defesa do consumidor, representantes dos planos de seguro saúde, corpora-
ções médicas e órgãos governamentais do setor. Contudo, não foi sancionada
isoladamente, trazendo consigo uma Medida Provisória, negociada entre re-
presentantes do Congresso Nacional e a Presidência da República, gerando,
porém certa instabilidade, pois governantes passam e as intenções mudam. No
Para Entender a Saúde no Brasil 67

caso da Lei nº. 9656/98, ocorreram várias alterações em seu texto por meio de
sucessivas reedições da Medida Provisória nº. 1.665, de 4 de junho de 1998.
Os contratos de prestação de serviços de saúde são de longa duração,
tendo como finalidade a transferência onerosa e contratual de riscos e garantias
de uma possível necessidade de assistência médica e hospitalar, nesse mis-
ter envolvendo, durante anos, prestador de serviço e consumidor. Nesse tipo
de contrato incidem tanto a Lei nº. 9.656/98 como o Código de Defesa do
Consumidor (Lei nº. 8.078/90), prevalecendo o diploma legal mais favorável
ao consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi criado pela Constituinte
com o intuito de estabelecer limites ao legislador, impedindo-lhe a criação de
normas cujo conteúdo restrinja ou anule qualquer direito do consumidor. O
CDC possui um campo de incidência abrangente e difuso, permeando todas as
relações de consumo, seja no direito público ou privado, contratual ou extra-
contratual, material ou processual. É uma lei específica, compreendendo todos
os princípios cardeais do Direito do Consumidor, seus conceitos fundamentais
e suas normas e cláusulas gerais para a sua aplicação e interpretação.
Podemos afirmar que não há antinomia entre o Código de Defesa do
Consumidor e a Lei nº. 9.656/98. O CDC representa a ordem pública cons-
titucional, não regulando contratos específicos, mas elaborando normas de
conduta gerais e estabelecendo princípios a serem obedecidos em toda rela-
ção de consumo; é uma lei de função social, gozando de uma potestade de
índole constitucional, pertencendo à categoria dos direitos humanos. A Lei nº.
9656/98 é especial, trazendo normas específicas referentes à relação de consu-
mo existente entre fornecedores de serviços de saúde e consumidor. Dessa for-
ma, são hierarquicamente diferentes, visto não ter a Lei nº. 9.656/98 o poder de
suprimir ou anular qualquer direito trazido ao consumidor pelo CDC. Assim,
nos contratos de prestação de serviços de saúde, as cláusulas que porventura
venham infringir os princípios trazidos pelo Código de Defesa do Consumidor,
devem ser consideradas abusivas e, conseqüentemente, desconsideradas do
pacto contratual.
Nos contratos firmados antes da vigência da Lei nº. 9.656/98, somente
se aplicam as normas trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor e pela
68 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

anterior legislação especial dos seguros. Pelo CDC temos a aplicação de cláu-
sulas gerais de boa-fé, transparência, informação, normas visando o equilíbrio
contratual com a proteção da parte vulnerável na relação de consumo; a Lei
nº. 9.656/98 veio consolidar o que já era considerado abusivo pelo CDC. Dessa
forma, o espírito do intérprete deve ser guiado pelo artigo 7º do CDC, o qual
autoriza a aplicação de leis e tratados visando dar maior proteção ao consumi-
dor. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada em 2000 pela
Lei nº. 9.961, tem por finalidade institucional promover a defesa do interesse
público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais,
inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, e contribuir
para o desenvolvimento das ações de saúde no País.

Tipos de planos privados de assistência à saúde existente


no Brasil
Existem atualmente no Brasil quatro tipos de planos supletivos de as-
sistência à saúde: autogestão, cooperativa médica, medicina de grupo e seguro-
saúde. Descrevemos a seguir algumas características de cada segmento, forne-
cendo informações para permitir conhecê-los individualmente.
Os planos de autogestão têm como principal característica a adminis-
tração própria; empresas públicas ou privadas assumem a condição de opera-
dora e administram o seu próprio plano de saúde, sem fins lucrativos e direcio-
nado aos seus colaboradores. Conhecidos pela assistência integral à saúde de
seus usuários, utilizam basicamente serviços credenciados, operando também
com o ressarcimento de despesas, quando o beneficiário utiliza-se de serviços
não credenciados.
As cooperativas médicas são caracterizadas de acordo com o siste-
ma universal de cooperativas, do qual os médicos cooperados participam por
meio do sistema de cotas. Trabalham geralmente no sistema de pré-pagamento,
oferecendo também contratos por administração; utilizam serviços próprios e
credenciados, geralmente não operando com ressarcimento de despesas.
A medicina de grupo é caracterizada pela prestação de serviços com
foco na utilização de serviços próprios para os planos básicos, operando tam-
Para Entender a Saúde no Brasil 69

bém com rede de serviços credenciados para planos diferenciados; em alguns


casos, utiliza o ressarcimento de despesas. Na maioria dos planos desse tipo,
utiliza-se o sistema de pré-pagamento, oferecendo planos individuais e empre-
sariais.
Por último, o seguro saúde tem como principal característica o reem-
bolso de despesas aos usuários, não obstante a regulamentação dos planos de
saúde permitir a esse segmento o credenciamento de profissionais e entidades
de saúde para a prestação dos serviços, desde que não se configure a extinção
da característica de reembolso.

Categorias dos planos de saúde privados


As operadoras oferecem duas categorias de planos: coletivo e individu-
al/familiar. O coletivo é oferecido sob dois modelos distintos; o empresarial,
usualmente destinado a pequenas, médias e grandes empresas, e outro por ade-
são, destinado a parcerias com sindicatos e associações. Os planos individuais/
familiares são aqueles oferecidos para a livre adesão das pessoas físicas, com
ou sem grupo familiar. Em geral possuem valores das mensalidades maiores do
que as demais categorias de planos, devido ao risco centralizado e à impossi-
bilidade de reajuste por sinistralidade, conforme determina a Lei nº. 9.656/98.
Dessa forma, sobre essa modalidade de plano incidem apenas os reajustes por
faixa etária e anual, conforme índice determinado pela ANS, na maioria das
vezes superando os índices que medem a inflação geral.
Já os planos coletivos são contratos firmados entre pessoas jurídicas e
as operadoras, destinados aos grupos determinados de pessoas, podendo prever
ou não a inclusão de dependentes; além disso, possuem algumas regras dife-
renciadas dos contratos individuais/familiares, como por exemplo, as formas
de aumento de mensalidade e de rescisão contratual. Há duas formas de planos
coletivos; os planos coletivos empresariais e os por adesão.
Os primeiros são aqueles nos quais a adesão do beneficiário ao plano
é automática e obrigatória. Existem planos para pequenas empresas, a partir
de duas vidas, com existência ou não de carências, inclusive para os casos
de preexistência. Os valores das mensalidades decrescem com o aumento do
70 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

número de vidas e, no caso de empresas de médio e grande porte, a partir de


50 ou 99 vidas, dependendo da operadora, ocorre isenção de carências e ajuste
dos custos ao número de vidas e faixas etárias. O reajuste anual é aplicado por
faixa etária, com base em índice determinado pela ANS para cada operadora,
de acordo com a planilha de custos apresentada e aprovada. Há também o
reajuste por sinistralidade, caso o resultado financeiro seja deficitário em rela-
ção ao limite técnico contratado (despesas superiores à receita), dessa forma
aplicando-se um fator para reequilíbrio do contrato.
A segunda forma de planos coletivos é por adesão opcional e espontâ-
nea ao plano, possuindo características de plano empresarial, no que se refere
às carências e reajustes, e de plano individual, no aspecto comercial. Nesse
caso, uma entidade representativa de classe pode oferecer aos seus associados
um plano de saúde com custos menores, além de condições de benefícios e
carências melhores do que as do mercado.
A seguir apresentamos as principais características dessa modalidade
de plano.

Plano coletivo por adesão


O contrato coletivo por adesão possibilita ao associado custos e carên-
cias menores do que os contratos de pessoa física ou de pequenas empresas. A
meta é atingir um número de vidas suficiente para que a arrecadação mensal de
valores das mensalidades possa ser superior aos gastos com os atendimentos e
hospitalares do grupo assistido. Para tanto, é fixado um limite técnico varian-
do de 70% a 80% da receita, dependendo da operadora. A diferença para os
100% arrecadados reverterá para os gastos administrativos, reserva técnica e o
lucro das operadoras. O conceito do coletivo, utilizado para os demais seguros
como de automóvel, vida, etc., emprega-se também para a saúde: todos pagam
e o valor arrecadado será destinado ao pagamento daqueles que utilizaram os
serviços no período. Portanto, quanto maior a quantidade de vidas (usuários
inscritos entre titulares e dependentes), melhor ajustado o equilíbrio entre as
faixas etárias e o sexo dos beneficiários no contrato, melhor será o resultado.
Para Entender a Saúde no Brasil 71

A redução dos valores das mensalidades para os contratos coletivos por


adesão permite o acesso de mais pessoas a hospitais, clínicas e prestadores
de serviços médicos. Também permite ao usuário programar o atendimento
de acordo com sua necessidade e tempo disponível para realizar consultas,
exames ou mesmo cirurgias, sem a preocupação de ter que aguardar na fila
de atendimento. Uma vantagem significativa dessa modalidade é permitir à
associação/sindicato a fidelização do associado, oferecendo a ele e sua famí-
lia o acesso a um plano de saúde com menor custo. Uma outra vantagem é a
possibilidade do associado manter o plano de saúde mesmo que se desligue da
empresa/entidade na qual trabalhe, pois, independentemente do vínculo traba-
lhista, ele manterá o vínculo associativo com a entidade que o representa.
Há também desvantagens nessa modalidade, pois tratando-se de um
plano de saúde por adesão, com venda efetuada individualmente, existem ris-
cos que poderão distorcer o custo atuarial inicialmente proposto. Elencamos a
seguir algumas delas.
A formatação do produto a ser oferecido para comercialização deve
estar de acordo com o perfil da categoria a ser atendida, no preço, na abran-
gência da rede e nos benefícios contratados. Explicando melhor, não é, e não
pode ser, um produto de “prateleira”, assim chamados os produtos prontos das
operadoras. Geralmente o beneficio é direcionado para os titulares (associados
à entidade de classe), e aos seus dependentes diretos (cônjuge, filhos limitados
à maioridade). Experiências anteriores, nas quais se permitiu a inclusão de
agregados (pais, sogros, tios, etc.), resultaram em aumento da sinistralidade e
fracasso na contenção dos custos, inviabilizando diversos contratos, inclusive
para o beneficiário titular, devido aos constantes reajustes em busca de equilí-
brio entre receita e despesas. Dessa forma, a solução aparentemente encontra-
da pelas operadoras foi a exclusão de agregados para as futuras adesões. No
entanto, entendemos que a condição de viabilidade encontra-se na alteração da
visão das operadoras quanto ao atendimento, hoje voltado para as doenças já
instaladas, e não para a medicina preventiva.
Outro risco dessa modalidade é a pulverização geográfica da população
assistida; sindicatos/associações possuem associados dispersos no estado ou no
país, exigindo um forte investimento na divulgação das vantagens do produto,
72 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

por meio da parceria estabelecida entre o sindicato/associação e a operadora,


para se atingir o maior número possível de associados e estes possam fazer sua
opção. Mesmo assim, a ação demanda tempo, podendo ocorrer baixa adesão
ao plano e inviabilizando sua contratação, pois os valores das mensalidades
foram inicialmente calculadas para um universo mais amplo de associados,
dessa forma distorcendo o cálculo atuarial inicial.
Para se alcançar resultados favoráveis dentro do conceito de coletivo,
é preciso que o número de usuários da entidade inscritos no plano, dentro do
quadro associativo, seja significativo. Portanto, é necessário o conhecimento
de todas as etapas de contratação, divulgação e comercialização, de forma a
garantir a adesão necessária para sua manutenção. Apesar de não ser o único
fator da viabilização do plano, esse é um dos mais expressivos.
Outra dificuldade é a eventual distorção nas faixas etárias conveniadas,
dado os custos iniciais serem baseados no universo de associados da entidade.
Prevalecendo as faixas etárias mais elevadas, e por conta dos riscos inerentes a
esse avanço, encontraremos distorções de custos de acordo com a faixa etária/
sexo dos associados aderentes ao plano de saúde. Como citado anteriormente,
o associado poderá ou não optar pelo beneficio oferecido pela associação/sin-
dicato; se os optantes pertencerem ao grupo de idade mais avançada ou ao de
mulheres na faixa etária entre 20 a 35 anos, período no qual ocorre o maior vo-
lume de partos, poderá haver distorção dos valores inicialmente propostos. Tal
fato pode repetir-se nas adesões futuras, obrigando a recomposição dos custos,
provocando reajustes de preços por distorção da massa e desequilibro entre
receita e despesas, principalmente se houver também baixa adesão ao plano.
Outro sério problema é a falta de critério na comercialização do plano
de saúde, quanto às questões contratuais (critério da utilização das carências,
compra com isenção, aceitação de risco, etc.), ou quanto à má gestão, ou fal-
ta de gestão, nos casos de doenças crônicas e faixa etária alta. As regras de
comercialização e, consequentemente, de divulgação periódica, precisam ser
revistas de modo a garantir o aumento do grupo, considerando uma faixa etária
capaz de suportar seus gastos, devendo existir equilíbrio no perfil etário.
Para Entender a Saúde no Brasil 73

O controle de gastos/receitas e a gestão de casos crônicos são funda-


mentais para manter o equilíbrio financeiro do contrato, sendo assim necessá-
rio unir o controle de gastos com a qualidade de vida; o controle de despesas
deve voltar-se para a contenção de gastos desnecessários, sem comprometer a
qualidade e eficiência no atendimento ao usuário.
A maioria dos contratos coletivos por adesão firmados após 1999 estão
direcionados aos titulares e seus dependentes diretos, por conta do insucesso
obtido nos contratos antigos, nos quais predominava a extensão dos benefícios
para os agregados dos titulares, incluindo os pais e sogros, usuários com mais
idade e fator de risco mais alto. Em tais contratos, e na vigência desse perfil,
nossa experiência revela que a viabilidade depende da visão da operadora e da
forma como são tratados os usuários em suas necessidades de atendimento,
não somente após a instalação da doença, mas antes, atuando séria e fortemen-
te na prevenção.
Como exemplo da situação citada, apresentamos um caso real, por nós
administrado, com tal característica. Em 2005, o plano apresentava um núme-
ro elevado de pessoas com idade igual ou superior a 59 anos (58%), diversos
usuários com problemas a exigir tratamento prolongado e de alto custo, com
tendência de gastos superiores à receita.
Com a finalidade de trazer pessoas mais jovens, para equilibrar finan-
ceiramente o contrato, e conforme as novas normas da ANS implantadas em
janeiro de 2004, ainda em 2005 ocorreu a ampliação das faixas etárias de sete
para dez, tornando-se mais atraentes os custos para as faixas etárias mais jo-
vens, sendo ainda alterada a elegibilidade para adesão de titulares e depen-
dentes diretos: cônjuge e filhos solteiros, acrescentando-se netos e irmãos sol-
teiros, como agregados mais jovens. O formato permanece vigente, trazendo
resultados bastante positivos, dado não ter sido necessário aplicar nenhum re-
ajuste por sinistro, sendo, portanto, seguro e interessante do ponto de vista de
valores para o associado.
A gestão eficiente de contratos, implantando medidas como as descritas,
deve ser aplicada, mesmo preventivamente, sempre que a análise da utilização,
chamada “gerenciamento de risco”, constatar alteração financeira negativa no
74 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

médio prazo. Trata-se de fator prioritário para garantir que o benefício contra-
tado pela associação/sindicato permaneça com o objetivo inicial, isto é, ofere-
cer aos seus associados e familiares a melhor condição de saúde do mercado.
Chamamos a atenção para a condição do fechamento para as adesões
de agregados idosos, cuja implementação não foi definitiva; em nosso entendi-
mento, deve existir controle com responsabilidade para atender a essas pessoas.
Desta forma, além de garantir a entrada de pessoas mais jovens, é necessário
desenvolver trabalhos junto às operadoras para garantir rede de prestadores,
forma de atendimento e acompanhamento diferenciados, sem riscos para o
contrato. É imprescindível que a gestão de saúde tenha como premissa básica
a manutenção da qualidade do benefício, caso contrário essa gestão assume o
caráter de gestão financeira do plano, nem sempre benéfica no longo prazo.
Sob qualquer ponto de vista, o grupo usuário do benefício nada mais é
do que um coletivo de pessoas, cada uma com uma condição singular de saúde
e de vida; a junção dessas pessoas reflete-se na saúde do grupo de adesão ou da
empresa. Isso posto, considerar que o tratamento do grupo deva seguir regras
e idéias há muito debatidas na medicina, é um simples passo; portanto o início
do processo deve ser o diagnóstico correto para garantir a eficácia do tratamen-
to – um grupo mais saudável e feliz com um resultado financeiro adequado e
socialmente responsável.
Inicialmente estratificamos as pessoas e seus respectivos diagnósticos,
permitindo-nos formar grupos mais homogêneos, passíveis de serem benefi-
ciados do melhor foco das diferentes práticas de prevenção e promoção da
saúde. Essa questão vem sendo muito debatida, com avanço significativo no
estabelecimento de regras e práticas de gestão, mas há que se avançar sobre o
foco dessas práticas e a avaliação criteriosa de seus resultados, não obstante ser
inegável a necessidade de sua implementação.
Caracteristicamente, até 5% do grupo é responsável por até 40% do
custo em determinado período; em nossa experiência, tal concentração de cus-
to independe do tamanho do grupo aderente ao plano e do perfil de população.
Essa parcela, em sua maioria, constitui-se de pessoas portadoras de doenças
crônicas, com internações freqüentes e por longos períodos, e/ou pessoas sub-
Para Entender a Saúde no Brasil 75

metidas a cirurgias de grande porte. Independentemente de seu tamanho, o


grupo pode ser inviabilizado pela minoria, se esta estiver contida no subgrupo
de risco com internações freqüentes e crônicas.
Estudo de caso: plano de saúde por adesão da APEOESP – Sindicato
dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo
A APEOESP é um dos maiores sindicatos de trabalhadores da América
Latina, com mais de 150.000 afiliados, distiribuídos por todos os municípios
do estado de São Paulo; vários planos de saúde cobrem a categoria, porém o de
maior número de vidas cobertas, é o por adesão, descrito a seguir.
Objetivo
O presente estudo de caso tem como objetivo avaliar os principais diag-
nósticos dos usuários no plano de saúde por adesão da APEOESP, gerido por
uma empresa de consultoria especializada, tendo por base uma pesquisa espe-
cífica, com dados do próprio plano13.

Método
Nossa base de dados de atendimentos vincula-se a informações diag-
nósticas, parte das quais (3%), são informações inválidas, não permitindo uma
classificação conforme a Décima Revisão da Classificação Internacional de
Doenças, (CID-10), porém não inviabilizando o estudo. O CID-10 é hierarqui-
zado, sendo seu primeiro nível a Lista de Categorias de Três Caracteres ou os
21 capítulos (Anexo 1), por sua vez dividindo-se em grupos contendo as doen-
ças e os critérios para sua classificação, conforme, o exemplo abaixo.
Avaliamos todos os atendimentos realizados no período de janeiro a ou-
tubro de 2006, segundo a data de referência. Inicialmente avaliamos o número
de usuários em cada capítulo do CID-10, baseando-se o estudo no cálculo da
prevalência das doenças no período analisado. A prevalência indica o número
de pessoas que apresentam determinada doença, incluindo os casos novos e os
já existentes; avaliamos também a prevalência por sexo e idade.

13
“Gestão de Saúde”, de Rildo Pinho da Silva.
76 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

Os usuários observados apresentaram frequentemente diferentes diag-


nósticos dentro do mesmo grupo, ou seja, um mesmo usuário foi classificado
como portador de hipertensão essencial (I10) e portador de doença cardíaca
hipertensiva (I11), enquanto essa última pode ser dividida em doença cardíaca
hipertensiva com (I11.0), e/ou sem (I11.9) insuficiência cardíaca.
A classificação mostrou a evolução esperada da doença hipertensiva,
contudo a quantificação dos usuários foi dificultada por essa repetição, bem
como o cálculo de prevalência.
Dessa forma optou-se por uma análise horizontal, calculando-se a pre-
valência em capítulos e grupos, complementada por uma análise vertical, ava-
liando-se os principais diagnósticos e diagnósticos associados para um mesmo
usuário, calculando-se também a prevalência de complicações dentro do gru-
po.

Exemplo de hierarquização da Classificação


Internacional de Doenças – 10ª Revisão

Capítulo IX Doenças do aparelho circulatório (I00-I99)


I10-I15 Doenças hipertensivas
I10 Hipertensão essencial (primária)
I11 Doença cardíaca hipertensiva
I12 Doença renal hipertensiva
I13 Doença cardíaca e renal hipertensiva
I15 Hipertensão secundária
I11 Doença cardíaca hipertensiva
Inclui:
qualquer afecção em I50 – I51.4-.9 devida à hipertensão
I11.0 Doença cardíaca hipertensiva com insuficiência cardíaca (conges-
tiva)
Para Entender a Saúde no Brasil 77

Insuficiência cardíaca hipertensiva

I11.9 Doença cardíaca hipertensiva sem insuficiência cardíaca (conges-


tiva)
Doença cardíaca hipertensiva SOE

Grupo avaliado
No período de janeiro a outubro de 2006 o grupo possuía 22.578 vidas,
sendo 70% do sexo feminino. A idade média dos homens era de 48 anos, e das
mulheres 53 anos; a dos titulares era de 56 anos e a dos cônjuges, de 59 anos,
sendo 58% do grupo composto por titulares. Pai, mãe e agregados correspon-
diam a 19%.
Abaixo mostramos a distribuição do grupo por tipo de contratante.

Gráfico 1 – Distribuição do grupo

Fonte: elaboração própria.

A idade média do grupo é 52 anos (desvio de 19 anos), com a pirâmide


etária conforme pirâmide (dados de setembro de 2006):
78 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

Gráfico 2 – Pirâmide etária

Fonte: elaboração própria.

Análise de diagnósticos horizontal

Análise por capítulos – proporção de usuários


O quadro abaixo indica a proporção de usuários em cada um dos capí-
tulos do CID 10 e indica os grupos mais importantes de doenças nos usuários,
a saber: aparelho geniturinário (12%), aparelho circulatório (11%), doenças
osteomusculares (11%), doenças do olho e anexos (10%), doenças endócrinas
e metabólicas (9%) e aparelho respiratório (8%).
Como mencionado, cada usuário pode ser classificado em mais de um
capítulo, observando-se no estudo, em média, quatro doenças classificáveis
em capítulos diferentes para cada usuário. Em princípio, os capítulos listados
indicam prevalência de doenças de grupos diferentes, ou de outro modo, co-
morbidades, o que é esperado em grupos idosos. Essa informação tem forte
impacto sobre o tipo de assistência demandada pelo grupo, posto ser necessária
uma visão sistêmica do usuário, alinhada com o conceito de gestor por nós
preconizado.
Para Entender a Saúde no Brasil 79

O CID-10 tem dois capítulos, o Capítulo XVIII “Sintomas, sinais e


achados anormais de exames clínicos e de laboratório, não classificados em
outra parte” (R00-R99), e o Capítulo XXI, “Fatores que influenciam o estado
de saúde e o contato com os serviços de saúde” (Z00-Z99), nos quais são alo-
cados diagnósticos não classificáveis em outra parte. Contudo, a maioria dos
usuários classificados nesses grupos também o são nos demais, ou seja, pode-
mos afirmar que os usuários estão bem clas-sificados. O mesmo ocorre com o
grupo que não foi possível classificar no CID 10.

Tabela 1 – Proporção de usuários classificados em capítulos do cid-1014

CAPÍTULO DO CID USUÁRIOS %


XIV. DOENCAS DO APARELHO GENITURINÁRIO 11.007 12%
IX. DOENÇAS DO APARELHO CIRCULATÓRIO 10.960 11%
XIII. DOENÇAS SIST OSTEOMUSCULAR E TECIDO CONJUNTI 10.063 11%
VII. DOENÇAS DO OLHO E ANEXOS 9.152 10%
IV. DOENÇAS ENDOCRINAS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS 8.203 9%
X. DOENÇAS DO APARELHO RESPIRATÓRIO 8.091 8%
XII. DOENÇAS DA PELE E DO TECIDO SUBCUTÂNEO 5.928 6%
XI. DOENÇAS DO APARELHO DIGESTIVO 4.877 5%
XIX. LESÕES, ENVEN E ALGUMAS OUTR CONSEQ DE CAUSAS 3.974 4%
I. ALGUMAS DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS 3.939 4%
SEM CLASSIFICAÇÃO 3.874 4%
II. NEOPLASIAS 3.635 4%
V. TRANSTORNOS MENTAIS E COMPORTAMENTAIS 3.585 4%
VIII. DOENÇAS DO OUVIDO E DA APÓFISE MASTÓIDE 3.396 4%
VI. DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO 2.790 3%
III. DOENÇAS DO SANGUE E ORG HEMO E ALG TRANS IMU 1.198 1%
XVII. MALFORMAÇÕES CONGÊNITAS DEFOR E ANOM
270 0%
CROMOSS
XV. GRAVIDEZ PARTO E PUERPÉRIO 240 0%
XX. CAUSAS EXTERNAS DE MORBIDADE E MORTALIDADE 196 0%
XVI. ALGUMAS AFECÇÕES ORIGINADAS NO PERÍODO PERINA 47 0%

14
Proporção de Usuários Classificados por capítulos CID 10 – indica a proporção de usuários que
foram classificados no respectivo CID. Caso ele seja classificado em mais de um CID no período
analisado, ele foi contado mais de uma vez.
80 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

Análise por capítulos – prevalência15


Dos usuários, 49% possuem alguma doença do aparelho circulatório (a
mais comum é hipertensão arterial essencial), e do aparelho geniturinário (trans-
torno da menopausa e perimenopausa); 41% dos usuários têm alguma doença
do olho e anexos (transtornos da refração e da acomodação), e 45% do sistema
osteomuscular (dorsalgia).
A prevalência de doenças é maior nos titulares, exceto para grupos espe-
cíficos. Assim os cônjuges têm prevalência igual para doenças do aparelho cir-
culatório, pai e mãe têm maior prevalência de doenças do aparelho circulatório
(73%) e, filhos, alta prevalência de doenças do aparelho respiratório (60%).
Esses dados reforçam a importância do grupo doenças do aparelho cir-
culatório entre os diversos tipos de contratantes. Outro ponto interessante a
ser analisado é a menor prevalência de doenças no grupo filhos, mais jovens,
e a concentração no grupo aparelho circulatório para pais e mães, mais idosos,
permitindo vislumbrar uma perspectiva para o futuro do grupo. Essa perspec-
tiva mantém a importância do acompanhamento multidisciplinar do grupo, em
vista da prevalência de diversos tipos de doenças, na maioria das vezes não
conectadas entre si.

Tabela 2 – Prevalência de doenças por capítulo

TITU- CÔN- FILHO PAI AGRE-


CATEGORIAS GRUPO
LAR JUGE (A) MÃE GADO
SEM CLASSIFICAÇÃO 17% 18% 16% 12% 19% 16%
I. ALGUMAS DOENÇAS
17% 18% 14% 26% 15% 16%
INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS
II. NEOPLASIAS 16% 19% 15% 6% 17% 9%
III. DOENÇAS DO SANGUE E ORG
5% 6% 3% 7% 7% 4%
HEMO E ALG TRANS IMU
IV. DOENÇAS ENDOCRINAS
36% 42% 32% 17% 39% 24%
NUTRICIONAIS E METABÓLICAS
IX. DOENÇAS DO APARELHO
49% 53% 53% 10% 73% 27%
CIRCULATÓRIO

15
A análise por capítulos do CID – prevalência, indica o número de usuários classificados no respectivo
capítulo do CID, dividido pelo total de usuários analisados no período. Nesse quadro os usuários são
contados apenas uma vez.
Para Entender a Saúde no Brasil 81

TITU- CÔN- FILHO PAI AGRE-


CATEGORIAS GRUPO
LAR JUGE (A) MÃE GADO
V. TRANSTORNOS MENTAIS E
16% 19% 11% 8% 14% 12%
COMPORTAMENTAIS
VI. DOENÇAS DO SISTEMA
12% 14% 9% 7% 18% 8%
NERVOSO
VII. DOENÇAS DO OLHO E
41% 44% 41% 29% 43% 28%
ANEXOS
VIII. DOENÇAS DO OUVIDO E DA
15% 16% 14% 17% 18% 9%
APÓFISE MASTÓIDE
X. DOENÇAS DO APARELHO
36% 34% 29% 60% 35% 33%
RESPIRATÓRIO
XI. DOENÇAS DO APARELHO
22% 23% 20% 15% 24% 17%
DIGESTIVO
XII. DOENÇAS DA PELE E DO
26% 28% 20% 29% 23% 23%
TECIDO SUBCUTÂNEO
XIII. DOENÇAS SIST
OSTEOMUSCULAR E TECIDO 45% 52% 38% 19% 52% 27%
CONJUNTI
XIV. DOENÇAS DO APARELHO
49% 58% 40% 21% 43% 35%
GENITURINÁRIO
XIX. LESÕES, ENVEN E ALGUMAS
18% 18% 15% 20% 21% 16%
OUTR CONSEQ DE CAUSAS
XV. GRAVIDEZ PARTO E
1% 1% 0% 1% 0% 2%
PUERPÉRIO
XVI. ALGUMAS AFECÇÕES
ORIGINADAS NO PERÍODO 0% 0% 0% 1% 0% 0%
PERINA
XVII. MALFORMAÇÕES
CONGÊNITAS DEFOR E ANOM 1% 1% 1% 3% 1% 1%
CROMOSS
XVIII. SINT SINAIS ACHADOS
44% 46% 38% 41% 49% 35%
ANOR DE EXA CLIC E LAB
XX. CAUSAS EXTERNAS DE
1% 1% 1% 1% 1% 1%
MORBIDADE E MORTALIDADE
XXI. FAT QUE INFL O EST DE SAU
51% 56% 39% 42% 49% 40%
E O CONTATO C/ OS SE
Distribuição do grupo segundo grupos
57% 15% 8% 8% 11%
de titularidade
82 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

Análise por capítulos – prevalência segundo sexo


O sexo feminino apresenta maior prevalência de doenças em todos os
capítulos.
Essas diferenças são maiores nas doenças do aparelho geniturinário, os-
teomuscular e endócrinas e metabólicas. São menores no aparelho circulatório,
doenças do olho e aparelho respiratório.

Tabela 3 – Prevalência de doenças por capítulo e sexo

CATEGORIAS GRUPO FEM. MASC.

XIV. DOENÇAS DO APARELHO GENITURINÁRIO 49% 57% 31%

IX. DOENÇAS DO APARELHO CIRCULATÓRIO 49% 51% 44%

XIII. DOENÇAS SIST OSTEOMUSCULAR E TECIDO


45% 50% 32%
CONJUNTI

VII. DOENÇAS DO OLHO E ANEXOS 41% 42% 36%

IV. DOENÇAS ENDOCRINAS NUTRICIONAIS E


36% 41% 26%
METABÓLICAS

X. DOENÇAS DO APARELHO RESPIRATÓRIO 36% 36% 35%

XII. DOENÇAS DA PELE E DO TECIDO SUBCUTÂNEO 26% 29% 20%

XI. DOENÇAS DO APARELHO DIGESTIVO 22% 23% 19%

XIX. LESÕES, ENVEN E ALGUMAS OUTR CONSEQ DE


18% 18% 17%
CAUSAS

I. ALGUMAS DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS 17% 18% 16%

II. NEOPLASIAS 16% 18% 13%

V. TRANSTORNOS MENTAIS E COMPORTAMENTAIS 16% 18% 10%

VIII. DOENÇAS DO OUVIDO E DA APÓFISE MASTÓIDE 15% 15% 14%

VI. DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO 12% 14% 9%


Para Entender a Saúde no Brasil 83

Tabela 4 – Análise por capítulos – idade média

Idade
Categorias do CID Desvio
Média

XIV. DOENÇAS DO APARELHO GENITURINÁRIO 54 16

IX. DOENÇAS DO APARELHO CIRCULATÓRIO 60 15

XIII. DOENÇAS SIST OSTEOMUSCULAR E TECIDO CONJUNTI 57 16

VII. DOENÇAS DO OLHO E ANEXOS 55 18

IV. DOENÇAS ENDOCRINAS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS 55 16

X. DOENÇAS DO APARELHO RESPIRATÓRIO 48 22

XII. DOENÇAS DA PELE E DO TECIDO SUBCUTÂNEO 51 19

XI. DOENÇAS DO APARELHO DIGESTIVO 54 18

XIX. LESOES, ENVELHECIMENTO E ALGUMAS OUTR CONSEQ DE


53 21
CAUSAS.

I. ALGUMAS DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS 49 21

II. NEOPLASIAS 57 16

V. TRANSTORNOS MENTAIS E COMPORTAMENTAIS 53 16

VIII. DOENÇAS DO OUVIDO E DA APÓFISE MASTÓIDE 54 21

VI. DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO 56 18

A idade média dos usuários com diagnóstico de doenças do aparelho


circulatório é maior do que a dos demais grupos. Para as outras categorias, a
idade média está em torno dos 55 anos de idade, lembrando que a idade média
do grupo é de 51 anos.

Análise de diagnósticos vertical

Doenças do aparelho circulatório


As doenças do aparelho circulatório constituem importante capítulo de-
vido à alta prevalência e seu impacto na evolução a longo prazo na saúde do
grupo, fato reforçado pelo principal diagnóstico nesse capítulo, a hipertensão
arterial essencial. A hipertensão também é o principal diagnóstico no grupo,
são 7.170 usuários ou uma prevalência de 32%, dos quais 1.403 (20%), tam-
84 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

bém têm o diagnóstico de doença isquêmica do coração (angina e/ou infarto do


miocárdio), e 253 (3,5%), diagnóstico de doenças cérebro vasculares, enquan-
to 934 (13%), apresentam também diagnóstico de diabetes mellitus.
Esses usuários, hipertensos e com diabetes mellitus, são classificados
como risco cardiovascular alto de acordo com as V Diretrizes Brasileiras de
Hipertensão da Sociedade Brasileira de Cardiologia, assim como aqueles 1.403
que apresentam doença isquêmica do coração. O total de diabéticos é de 1.932,
com uma prevalência de 8,5%. No Brasil a prevalência entre pessoas de 30 a
69 anos é de 7,60% (Indicadores e Dados Básicos – 2005 – DataSUS).
A obesidade apresentou-se em 726 usuários hipertensos (10%); é sabi-
do que a obesidade é um fator de risco para o desenvolvimento de hipertensão
arterial e o seu tipo (abdominal), um fator de risco para doença cardiovascular.
Por sua vez, a hipertensão é um fator de risco para morte por acidente vascular
cerebral (explica 40% de todas as mortes), e para doença coronariana (25%
das mortes).
Segundo a Sociedade Brasileira de Hipertensão, é de 30% a prevalência
de hipertensos em funcionários públicos no estado de São Paulo (SHIRASSU,
et al., 2001), considerando-se a pressão sistólica maior ou igual a 140 e/ou a
diástolica maior ou igual a 90 mmHg.
As doenças cardiovasculares foram responsáveis por 32% dos óbitos
no Brasil em 2004 e 10% das internações do SUS no período de 07/2000 a
06/2001.
Em nosso levantamento temos apenas o diagnóstico e não os níveis
pressóricos, o que nos impede de avaliar a prevalência de grupos de risco car-
diovascular muito alto. Contudo, a associação de fatores de risco importantes
como diabetes e comprometimento em órgãos mostra a necessidade de atuação
sobre esse grupo. As diretrizes recomendam a atuação de um grupo multipro-
fissional formado por médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionista, profis-
sionais de educação física, fisioterapeutas entre outros.
Para Entender a Saúde no Brasil 85

Doenças do aparelho aeniturinário


Os transtornos da menopausa e da perimenopausa estão classificados
no capítulo de doenças do aparelho geniturinário. Nesse diagnóstico foram
classificadas 3.482 mulheres (22% de incidência – mulheres). As associações
mais importantes são com hipertensão arterial 1.558 (45%), e diabetes mellitus
332 (9%). A associação entre menopausa e osteoporose foi verificada em 203
casos (6%).
O climatério se instala ao redor dos 50 anos (Febrasgo), período no qual
ocorrem significativas alterações tanto físicas como psíquicas na mulher. Os
sinais, sintomas e doenças associadas são muito variados, tais como fogachos,
insônia, crises de irritabilidade, ansiedade, incontinência urinária, cistites, des-
lipidemias, diabetes, osteoporose, obesidade e depressão, entre outras.
Considerando-se o climatério como inevitável, o perfil do grupo e a
ampla gama de alterações o tornam importante para avaliação e acompanha-
mento, focalizando especialmente a prevenção primária e a eleição para outros
grupos de prevenção secundária (hipertensos e diabéticos).

Transtornos do humor e neuróticos


Nesse grupo estão classificados entre outros, o stress e a depressão.
Foram diagnosticados nesses subgrupos 3.188 usuários (14%), dos
quais 1.208 (38%), também têm hipertensão arterial associada, e 768 (24%),
têm menopausa associada. Uma importante associação desse grupo é com as
dorsopatias (M54 dorsalgia, entre outros), com 2.940 casos diagnosticados
(92%), e com artropatias (artroses entre outros) com 2.952 (93% dos casos).
O diagnóstico nesse grupo é difícil, tratando-se de grandes demandadores de
serviços de saúde sem o atendimento de qualidade requerido, enquanto a pre-
valência aumenta com a idade, havendo uma associação importante com o
climatério.
86 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

Tabela 5 - Análises de diagnósticos usuários com mais de 80 anos

CATEGORIA GRUPO %

IX. DOENÇAS DO APARELHO CIRCULATÓRIO 1106 76%

XIII. DOENÇAS SIST OSTEOMUSCULAR E TECIDO CONJUNTI 689 47%

VII. DOENÇAS DO OLHO E ANEXOS 622 43%

XIV. DOENÇAS DO APARELHO GENITURINÁRIO 557 38%

X. DOENÇAS DO APARELHO RESPIRATÓRIO 533 37%

IV. DOENÇAS ENDOCRINAS NUTRICIONAIS E METABÓLICAS 505 35%

XIX. LESÕES, ENVELHECIMENTO E ALGUMAS OUTR CONSEQ DE CAUSAS 368 25%

XI. DOENÇAS DO APARELHO DIGESTIVO 349 24%

XII. DOENÇAS DA PELE E DO TECIDO SUBCUTÂNEO 332 23%

VI. DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO 321 22%

VIII. DOENÇAS DO OUVIDO E DA APÓFISE MASTÓIDE 316 22%

São 1.451 usuários – 6% do total de usuários.


A incidência de doenças é semelhante ao grupo “pai e mãe”. Também
nesse grupo a maior incidência é a hipertensão arterial (48%), seguido de dor-
salgia (19%), e distúrbios da refração (22%).

Conclusão
Os mecanismos de regulação e controle dos custos assistenciais tra-
duzem os avanços tecnológicos e exigências do mercado consumidor do be-
nefício assistencial, fornecendo instrumentos seguros e eficazes na busca da
excelência de gestão dos índices de sinistralidade.
O caso apresentado retrata de maneira bastante didática as incidências
de variáveis que provocam distorções nos mecanismos de gestão de sinistros,
resultando em altos índices de sinistralidade, e exemplifica as medidas corre-
tivas para restabelecimento do “status quo ante” de utilização em patamares
razoáveis e suportáveis aos agentes operadores da medicina supletiva.
Para Entender a Saúde no Brasil 87

Assim, os planos coletivos por adesão figuram como alternativa às exi-


gências do mercado, o qual vê os planos individuais e familiares distantes da
realidade sócio-econômica da população na busca por atendimentos mais ba-
ratos do que os particulares, porém com qualidade superior ao sistema público
médico-hospitalar. Essa alternativa deve ser preservada e aperfeiçoada na di-
reção da melhor adequação às exigências do mercado consumidor, bem como
da atratividade pelos resultados financeiros obtidos pelos agentes operadores
da medicina supletiva, alimentadores do setor com o fomento da cadeia produ-
tiva, capaz de gerar retornos financeiros e postos de trabalho, certamente cum-
pridores de sua função social, desencadeando desenvolvimento sustentável e
qualidade de vida.
A simples análise dos dados apresentados nos levar a concluir pela
viabilidade da assistência médica supletiva, desde que seus mecanismos de
regulação e controle sejam motivados por medidas técnicas. A prestação de
serviços assistenciais pode ser ministrada com padrões de qualidade de forma
a atender às necessidades do tomador desses serviços, garantindo de forma
inequívoca o respeito à dignidade humana e o acesso à tecnologia de ponta
a todos os usuários do sistema, materializados por meio de produtos capazes
de preencher as expectativas, necessidades e funcionalidades exigidas pelo
público-alvo. Nesse mix de produtos figuram os planos coletivos por adesão,
os quais certamente preencherão a lacuna existente entre os planos coletivos
empresariais e os planos individuais e familiares.
A relação entre as práticas e as necessidades de saúde consiste na busca
dos seus significados econômicos, políticos e ideológicos; é enorme a comple-
xidade do tema, pois envolve desde o cuidado com indivíduo até o sistema na-
cional de saúde. Com a diminuição da oferta de planos individuais, a elevação
dos custos dos mesmos, e o crescimento do cuidado social das entidades, existe
uma grande oportunidade de se gerenciar saúde de forma responsável e abran-
gente, pela via dos planos coletivos por adesão, unindo o conceito de qualidade
ao de humanização no atendimento, sem a perda do controle financeiro.
88 Planos privados de assistência à saúde: plano coletivo por adesão – um estudo de caso

Anexo I

Lista de categorias de três caracteres


Capítulo I Algumas doenças infecciosas e parasitárias (A00-B99).
Capítulo II Neoplasias [tumores] (C00-D48).
Capítulo III Doenças do sangue e dos órgãos hematopoéticos e alguns transtornos
imunitários (D50-D89).
Capítulo IV Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas (E00-E90).
Capítulo V Transtornos mentais e comportamentais (F00-F99).
Capítulo VI Doenças do sistema nervoso (G00-G99).
Capítulo VII Doenças do olho e anexos (H00-H59).
Capítulo VIII Doenças do ouvido e da apófise mastóide (H60-H95).
Capítulo IX Doenças do aparelho circulatório (I00-I99).
Capítulo X Doenças do aparelho respiratório (J00-J99).
Capítulo XI Doenças do aparelho digestivo (K00-K93).
Capítulo XII Doenças da pele e do tecido subcutâneo (L00-L99).
Capítulo XIII Doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo (M00-M99).
Capítulo XIV Doenças do aparelho geniturinário (N00-N99).
Capítulo XV Gravidez, parto e puerpério (O00-O99).
Capítulo XVI Algumas afecções originadas no período perinatal (P00-P96).
Capítulo XVII Malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas
(Q00-Q99).
Capítulo XVIII Sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de labora-
tório, não classificados em outra parte (R00-R99).
Capítulo XIX Lesões, envenenamento e algumas outras conseqüências de causas ex-
ternas (S00-T98).
Capítulo XX Causas externas de morbidade e de mortalidade (V01-Y98).
Capítulo XXI Fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços
de saúde (Z00-Z99).
Concentração
e verticalização
no setor de saúde
6
suplementar:
uma análise
econométrica

Sandro Leal Alves


Economista, mestre em economia, professor do Instituto
de Ciências Econômicas e Gestão da Universidade Santa
Úrsula, vencedor do
Prêmio SEAE/MF de Regulação Econômica de 2007, ge-
rente-técnico da Federação Nacional de Saúde Suplementar
(Fenasaúde).

Introdução
O mercado de saúde suplementar brasileiro comple-
ta dez anos desde a implementação do seu marco regulatório
com a edição da Lei nº. 9.656 em 1998. Entre algumas das
principais novidades trazidas pela nova legislação, destacam-
se: a) proibição da rescisão unilateral dos contratos por parte
das operadoras; b) controle governamental dos reajustes de
preços dos planos de saúde individuais; c) proibição de se-
leção de risco por doença ou lesão pré-existente; d) regula-
mentação das coberturas mínimas obrigatórias; e) controle
atuarial de preços de venda dos planos; f) regras de entra-
90 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

da, operação e saída de operadoras; g) preços limitados pela regra de faixas


etárias; e h) regulamentação dos períodos de carência.
Procurou-se regular o mercado a fim de aumentar a rede de proteção
aos consumidores desses planos, principalmente os individuais, por meio da
regulação e fiscalização das atividades das operadoras, bem como pelo dese-
nho dos contratos oferecidos após a regulamentação. De forma bem resumida,
a regulamentação do setor procurou conciliar a garantia assistencial, através
do aumento e da padronização das coberturas obrigatórias, com a garantia da
prestação continuada dos serviços, mediante a regulação da solvência das ope-
radoras.
Se por um lado o mercado se profissionalizou e passou a oferecer pro-
dutos e serviços com maiores coberturas, garantindo o risco financeiro inerente
à operação, por outro as regras elevaram os custos para as operadoras que pas-
saram a ter que atender a diversos requerimentos regulatórios.
Diante da elevação dos custos advindos com a regulação deu-se início a
um processo esperado de reestruturação do mercado com tendência à consoli-
dação e concentração, por um lado, e à verticalização, por outro.
O novo marco regulatório do setor modificou o ambiente institucio-
nal onde historicamente se estabeleceu uma estrutura de oferta extremamente
diversificada em relação às formas de atuação, naturezas jurídicas, nichos de
mercado e relacionamento com a rede prestadora de serviços.
Como em todos os processos regulatórios, a criação de barreiras à en-
trada e à operação fez com que os novos entrantes, não comprometidos com a
prestação dos serviços, não efetuassem a entrada, e com que empresas sem a
qualificação necessária saíssem do setor, reduzindo o número efetivo de com-
petidores.
A redução do número de competidores, de quase 3.000 antes da re-
gulação para cerca de 1.500 operadoras, atualmente, vem produzindo intenso
debate sob os efeitos de uma concentração sobre o bem-estar da sociedade.
Neste cenário, três estratégias não excludentes vêm sendo adotadas
pelas operadoras a fim de suportarem os custos do setor e garantir a própria
Para Entender a Saúde no Brasil 91

sobrevivência. A primeira delas é o crescimento orgânico, baseado em novas


vendas e exploração de novos mercados, principalmente entre as pequenas e
médias empresas. A segunda estratégia é a consolidação horizontal mediante a
aquisição ou fusão com os concorrentes e a terceira é o denominado processo
de verticalização das operações, aquisição de rede de prestadores de serviços
médico-hospilares pelas operadoras.
O crescimento orgânico é extremamente dependente do ambiente eco-
nômico, principalmente do crescimento da renda e do emprego, variáveis de-
terminadas pela conjuntura macroeconômica, portanto. Já a horizontalização e
a verticalização são eminentemente estratégias empresarias, incentivadas pelo
ambiente regulatório.
O objetivo desse estudo é compreender até que ponto essas duas últi-
mas estratégias vão perdurar e se existem fundamentos econômicos para a sua
expansão.
Para cumprir com nosso objetivo, procuramos abordar inicialmente con-
ceitos econômicos importantes relativos tanto à concentração, e seus possíveis
impactos, quanto à verticalização. Posteriormente, propomos modelos econo-
métricos para tentar medir a existência de economias de escala que justifiquem
a concentração bem como o impacto da verticalização sobre a sinistralidade e
rentabilidade das operadoras. Por fim, apresentamos nossas conclusões.

Soluções de Mercado: concentração e verticalização


O impacto da regulação sobre o setor acelera a busca por soluções no
próprio mercado. Existem obviamente soluções de descontinuidade, ou seja,
empresas que, diante do cenário atual e das expectativas formadas para o fu-
turo, trazem a valor presente os seus custos e benefícios e optam pela saída
voluntária do mercado. Outras soluções extra-mercado também atuam para
retirar as empresas do setor como é o caso das liquidações extrajudiciais.
No entanto, a continuidade das operações vem exigindo cada vez mais
criatividade e empreendedorismo para alterar rumos e seguir adiante pois a in-
flação médica é crescente, as demandas sociais também e por que não dizer as
92 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

legislativas e regulatórias também o são. Apenas os reajustes autorizados pela


ANS não crescem na mesma taxa.
É natural, esperada e salutar que a dinâmica do mercado continue a ex-
plorar alternativas viáveis de sustentabilidade econômica e financeira. Afinal,
são 49 milhões de consumidores de planos de saúde no Brasil, 39,9 milhões
destes são beneficiários de planos médico-hospital enquanto 9,4 de planos ex-
clusivamente odontológicos, de um setor que movimentou R$ 47 bilhões em
2007 e retornou à sociedade R$ 37 bilhões em despesas assistenciais16.

Concentração
Em primeiro lugar é importante que se diga que concentração de mer-
cado não é sinônimo de cartelização. Pode parecer óbvio, mas estes dois con-
ceitos vêm sendo utilizados de forma pouco rigorosa pela grande maioria dos
analistas da saúde suplementar. Por concentração de mercado entende-se que
existam poucos ofertantes do produto ou serviço, o que pode ser medido por
diversos indicadores. A cartelização é algo completamente diferente, esta sim,
danosa per si à concorrência, já que, neste caso, as empresas que operam no
mercado combinam estratégias de preço e/ou região de atuação para maximi-
zarem seus lucros. As empresas cartelizadas agem conjuntamente, como se
fossem um grande monopólio.
Um mercado concentrado é uma condição necessária para o surgimento
de operações cartelizadas, mas não é suficiente, pois, em um ambiente compe-
titivo, essa prática seria pouco ou nada lucrativa. Separemos, portanto, esses
dois conceitos, pois, além de serem distintos, suscitam discussões apaixonadas
– que, ao partirem de bases equivocadas, produzem conclusões ainda mais
equivocadas. Afirmações do tipo “O mercado de saúde suplementar é carte-
lizado” ou então “O governo precisa fazer algo para acabar com os cartéis”
vêm sendo tratadas com pouca fundamentação econômica.

16
Fonte: Caderno de Informações da Saúde Suplementar – ANS/Dez-2007.
Para Entender a Saúde no Brasil 93

Os indicadores de concentração econômica fornecem um importante


auxílio para a análise da estrutura da oferta do mercado, mas para fazerem al-
gum sentido econômico podem prescindir, como recomenda qualquer manual
de economia antitruste, de uma análise prévia do mercado relevante. Sem o
cumprimento dessa premissa metodológica, o indicador de concentração perde
completamente o seu sentido.
Apenas como exemplo, considere um indicador do tipo C4 (Razão de
Concentração), que calcula a participação de mercado das quatro maiores em-
presas conjuntamente. O Índice C4, calculado para o mercado brasileiro em
2006, é de 12%, segundo o Atlas Econômico-Financeiro da Saúde Suplementar.
O que fica implícito nesse cálculo é que o mercado relevante considerado para
a análise foi todo o território nacional (dimensão geográfica do mercado), onde
competem cerca de 1.700 operadoras de planos de saúde. Ainda neste exem-
plo, o cálculo pressupõe que o produto oferecido por essas empresas seja, sob
o ponto de vista do consumidor, um substituto próximo. Pergunta-se: um plano
de saúde com suas diferentes possibilidades de cobertura, preços, qualidade da
rede solvência, dentre outros, poderia ser considerado único?
Obviamente, a realidade deste mercado é muito mais complexa, pois os
produtos são altamente diversificados, ainda que a regulamentação padronize
a cobertura mínima e que as 1.700 empresas não estejam competindo de fato
entre si. Assumir essa hipótese é considerar que uma operadora de autogestão
localizada no Acre possa competir com uma seguradora especializada em saú-
de localizada em São Paulo, o que não faz muito sentido.
Antes, portanto, de medir qualquer indicador de concentração (HHI,
C4, etc.), temos primeiro que definir o mercado relevante do qual estamos
tratando. Será o de planos individuais? Planos coletivos para PMEs? É preciso
olhar para o lado da demanda e perguntar: Que tipo de produto quero oferecer
aos meus funcionários? Nacional? Municipal? Regional? Só hospitalar? Só
ambulatorial? Qual a qualidade da rede que desejo oferecer? Primeiro Nível
com acreditação, inclusive? Ou uma rede com qualidade inferior? A partir des-
ta reposta, e do agrupamento de produtos e empresas, pode-se analisar o nú-
mero de operadoras que oferecem tal produto e então partir para o cálculo dos
indicadores. Esta discussão deveria anteceder os cálculos dos indicadores, pois
só há concentração no nível dos mercados relevantes, por definição.
94 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

Supondo que os indicadores de concentração estivessem sendo utili-


zados corretamente e apontassem no sentido da concentração do mercado de
saúde suplementar, cabem as seguintes perguntas: Qual é o resultado deste
processo para o bem-estar? Existe alguma razão, que não apenas dogmática,
para coibir o processo de fusões e aquisições? Há que se recorrer novamente
à literatura.
A concentração não é um problema per si. Ela só é ruim se as empresas
não competem entre si. Muitos mercados funcionam bem com poucas empre-
sas, desde que exista rivalidade entre elas na busca por consumidores. E mais,
se as barreiras à entrada forem baixas (o que não é caso da saúde suplementar,
em função da própria regulamentação), a própria possibilidade de entrada de
um concorrente já funciona como um antídoto eficaz contra o abuso de posição
dominante por parte de um eventual monopolista. Diversos autores da área do
antitruste defendem essa posição17.
É importante destacar que a concentração pode ser altamente benéfica,
seja por questões de eficiência (ganho de economias de escala e de escopo),
seja por conta de problemas financeiros (Failing Firm Theory). Nesse caso,
além dos benefícios advindos dos ganhos de escala, as fusões/aquisições adi-
cionam capital ao mercado. Como suportar a crescente regulamentação sem
capital?
De fato, o número de operadoras vem se reduzindo neste setor, seja pela
retirada forçada pelo próprio órgão regulador, seja pela saída voluntária ou pe-
los processos de fusões e aquisições. A Lei nº. 9.656/98 e as regulamentações
da ANS quer se concorde ou não com elas, foram os grandes responsáveis pela
nova estrutura do mercado, segundo a qual as obrigações e custos se elevaram.
Trata-se de um claro trade-off. Ou se deseja um mercado com menos operado-
ras, porém com maior grau de qualificação e que ofereçam maiores coberturas
e garantias ao consumidor, como é hoje, ou se deseja um mercado com cober-
turas reduzidas e com muitas operadoras, mas com menor qualificação, como
era antes da lei.

17
Veja, por exemplo, BAUMOL, William J., PANZAR, John C., and WILLIG, Robert D. (1982).
Para Entender a Saúde no Brasil 95

Gráfico1 – Operadoras em atividade no mercado

Fonte: Fenasaúde.

A figura 1 a seguir ilustra o trade-off intrínseco ao processo de regula-


ção que se estabeleceu no sistema de saúde suplementar.

Figura 1 – Trade-off da regulação


96 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

É preciso ter claro que nem toda a concentração econômica é preju-


dicial para o consumidor. Se por exemplo uma empresa ganha market-share
através da inovação ou de melhores práticas assistenciais, essa concentração
terá representado ganhos para os consumidores. Mas se por outro lado a con-
centração de mercado foi obtida através de conluio entre as empresas, o con-
sumidor será necessariamente penalizado sob a forma de preços mais elevados
ou serviços de qualidade inferior.
Neste caso, uma preocupação fundamental do setor público deve ser
a de assegurar que o ambiente institucional promova a concorrência entre os
agentes, seja coibindo práticas nocivas, ou permitindo a entrada de novos com-
petidores. Muitas vezes o excesso de regulamentação pode ser o principal fator
de inibição da concorrência tal como ocorre em ambientes muito burocratiza-
dos.
A legislação brasileira de defesa da concorrência (Lei 8.884/94), assim
como as próprias agências reguladoras, criadas na década de 90, é recente se
avaliada em um processo histórico. A própria cultura da concorrência parece
não ter sido totalmente absorvida pela sociedade devido ao ambiente de eleva-
da proteção existente no país até recentemente. A cultura regulatória da mesma
forma ainda conserva o viés de controle da atividade econômica durante tan-
to tempo exercido no país, principalmente por tratar-se de um bem meritório
como é a saúde. Uma migração institucional para um ambiente concorrencial
em um mercado regulado parece ser o grande desafio para os órgãos compe-
tentes.

Verticalização
Muitas operadoras procuram melhorar o gerenciamento e controle de
seus custos mediante a aquisição de redes próprias de atendimento médico-hos-
pitalar. O objetivo é sair de um sistema de pagamento do tipo fee-for-service
que remunera o prestador pelo volume de produção incentivando muitas vezes a
superutilização dos recursos e serviços. A teoria econômica trata esse problema
pela identificação de fontes de ineficiências associadas às assimetrias informa-
cionais que permeiam toda a rede de contratos deste setor e na busca de soluções
Para Entender a Saúde no Brasil 97

para eliminar, ou ao menos reduzir, estas distorções. Especificamente, estamos


falando da possibilidade de indução de demanda pela oferta que surge quando o
prestador de serviços vale-se de sua informação superior para exceder na quan-
tidade de procedimentos requeridos. Uma boa revisão da literatura é encontrada
em Zweifel e Manning (2000), e Cutler e Zeckhauser (2000).
No mercado de saúde suplementar, o conflito de interesses pode ser
visualizado na relação entre as operadoras e os prestadores de serviços. Esse
conflito surge essencialmente pelo fato de que aquilo que representa custo para
as operadoras (por exemplo, as despesas médico-hospitalares) representa recei-
ta para os médicos ou hospitais e vice-versa. Analogamente, o que representa
custo para os beneficiários (as mensalidades) representa receita para as opera-
doras. Portanto, o conflito de interesses materializa-se nas relações contratuais
das operadoras com seus provedores e beneficiários na medida em que as ações
estratégicas que governam estes contratos possuem sentidos opostos.
Dependendo da forma de remuneração estabelecida entre esses dois
agentes (operadora e prestador) e da própria quantidade de prestadores com-
petindo uma maior utilização de serviços pode estar sendo incentivada. Nesse
caso, os agentes possuem incentivos opostos, o que leva a constante oposição
de objetivos. Para a operadora, quanto menor for a utilização, maior a sua re-
muneração. Para o prestador, quanto maior for a utilização, maior o retorno. A
assimetria de informação está presente, pois a operadora não monitora a ação
do prestador de forma completa, ainda que invista recursos em auditorias mé-
dicas a fim de reduzir esse efeito.
Casos intermediários são aqueles onde existe certa coincidência de in-
teresses entre prestadores e operadoras. Como exemplos podemos citar os me-
canismos de compartilhamento de risco como o capitation e os pacotes, carac-
terizados por sistemas de pagamentos fixos, per capita (o profissional recebe
antecipadamente uma determinada quantia por cada paciente que compõe sua
rede, independente do tratamento que será realizado).
O caso mais extremo é o da integração entre a operadora de planos e
os prestadores de serviços em uma única organização, responsável, portanto
tanto pelas funções de administração do risco financeiro quanto da prestação
98 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

do serviço assistencial. Existem diversos casos de integração “para trás” onde,


por exemplo, um hospital adquire ou institui uma operadora de planos de saúde
e de integração “para frente” onde uma operadora adquire ou institui um hos-
pital. Exemplos do primeiro caso são as operadoras de planos da modalidade
filantrópica que já dispõe de rede hospitalar própria e também operam planos
de saúde. Algumas operadoras de medicinas de grupo optaram pela prestação
direta dos serviços juntamente com as atividades de operação de planos de saú-
de. O termo verticalização caracteriza o processo de integração das atividades
de gerenciamento de planos de saúde e prestação direta de serviços médicos
em uma única unidade empresarial, independentemente da direção (se para
frente ou para trás) e de quem detenha o controle decisório.
Em relação ao processo de verticalização, a literatura econômica sugere
a existência de trade-off entre os ganhos oriundos do melhor monitoramento
e melhor alinhamento de incentivos proporcionados pela verticalização e as
deseconomias de escopo que surgem quando há perda de especialização nas
atividades.
Os ganhos da verticalização podem ser visualizados no melhor geren-
ciamento dos riscos e custos que permite. Os programas de prevenção de doen-
ças e promoção da saúde da população assistida podem ser melhor delineados
por uma estrutura integrada na medida em que a própria operadora detém o
controle da logística de utilização dos serviços. Não impede, contudo, que o
conflito de interesse desapareça, mas é possível atenua-los a partir de um me-
lhor alinhamento de incentivos.
Já as economias de escopo ocorrem quando o custo da produção con-
junta de mais de um bem ou serviço é menor do que o custo da produção de
cada um deles de forma separada. O trade-off da verticalização surge quando
ocorrem deseconomias de escopo, ou seja, quando o custo de produção das ati-
vidades integradas é superior ao custo das atividades separadas. Neste caso, é
mais eficiente para a operadora se especializar na atividade de gestora de plano
de saúde e o hospital se especializar na prestação de serviços médicos.
Na próxima seção estudaremos importantes questões relacionadas à
concentração do mercado, especificamente a existência de economias de es-
Para Entender a Saúde no Brasil 99

cala na administração de planos de saúde, e os ganhos da verticalização em


termos de redução da sinistralidade das operadoras.

Modelos econométricos
Para verificar a presença de economias de escala na administração de
planos de saúde, que se comprovado implica que existem ganhos de eficiência
econômica oriundos do processo de concentração, procuramos estimar funções
de custo médio controlando para algumas variáveis que também possam in-
fluenciar a variável explicada. Utilizamos como variáveis explicativas a receita
das operadoras, o tamanho, o efeito conjunto do tamanho sobre a receita, o
market-share e uma característica institucional que é a finalidade lucrativa das
empresas18. Estimamos quatro formas funcionais para o relacionamento dessas
variáveis: linear, recíproca, recíproca logarítima e logarítima. Estimamos os
modelos com as seguintes formas funcionais:
1) Linear: Cme = β0 + β1 Rec + β2 T + β3 (T*Rec) + β4 ms + β5 F + µ;
2) Recíproca: Cme = β0 + β1 (1/Rec) + β2 T + β3 (T*(1/Rec)) + β4 ms + β5 F+ µ;
3) Recíproca Logarítima: Cme = β0 + β1 (1/lnRec) + β2 T + β3 (T*(1/lnRec)) +
β4 ms + β5 F+ µ;
4) Logarítima: Cme = β0 + β1 ln Rec + β2 T + β3 (T*lnRec) + β4 ms + β5 F+ µ.
Onde:
• Cme é o custo administrativo médio = despesas administrativas / receita;
• Rec é a receita anual = contraprestações efetivas / prêmios ganhos de ope-
rações c/ planos de saúde;

18
As operadoras classificadas nas modalidades de cooperativas médicas, autogestão e filantropias são
entidades sem fins lucrativos enquanto que as seguradoras especializadas e as medicinas de grupo
são entidades com fins lucrativos. Como se sabe o novo código civil alterou essas denominações para
empresas com ou sem finalidade econômica. Sem querer adentrar nas repercussões tributárias de
cada modalidade, o que procuramos aqui é testar se as empresas antigamente classificadas como sem
fins lucrativos e que possuem menores sistemas internos de governança e incentivos para utilizarem
de forma mais eficiente os recursos.
100 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

• T é variável dummy que representa o tamanho onde T = 1 se Rec> R$ 45,7


milhões, inclusive, e T=0 caso contrário. Adotamos o oitavo percentil da
distribuição da receita como ponto de corte;
• T*Rec é o termo de interação a fim de detectar se o ângulo da função de
custo médio difere entre operadoras pequenas e grandes19;
• Ms é o market-share em relação ao faturamento anual da amostra;
• F é a variável dummy para finalidade lucrativa; F = 1 se a operadora possui
fins lucrativos e 0 caso contrário;
• µ é o termo de erro estocástico;
• βi´s são os coeficientes estimados.
Para verificarmos o impacto da verticalização sobre a sinistralidade e
sobre o custo médio das operadoras estimamos os seguintes modelos:
• Sinp = β0 + β1 Alv + β2 B + β3 Cam + β4 End + β5 F + β6 Gv + β7 Idss +
β8 Ms+ β9 Prom + µ;
• Roe = β0 + β1 Alv + β2 B + β3 Cam + β4 Cme + β5 End + β6 F+ β7 GV +
β8Idss + β9 Ms + β10 Prom+ β11 Sinp + µ.
Onde:
• SINp é a sinistralidade pura (sinistros pagos / prêmio emitido);
• Alv é o grau de alavancagem = prêmio anual / patrimônio líquido;
• B é o número de beneficiários;
• Cam é o custo assistencial médio = eventos indenizados / número de bene-
ficiários;
• End é o índice de endividamento = (passivo circulante + passivo exigível a
longo prazo) / patrimônio líquido;
• F é a variável dummy para finalidade lucrativa; F = 1 se a operadora possui
fins lucrativos e 0 caso contrário;

19
Seja um modelo interativo dado por Y = β1+β2X2 + β3X3 + β4(X2X3) + ε. Sem o termo interativo,
o impacto de X2 em Y é dado por β2. No entanto, com o termo interativo o impacto de X2 será de
β2+β4X3. Então o efeito de X2 em Y depende da variável X3. Se β4 for positivo, o efeito de X2
em Y aumenta quando X3 aumenta. A esse respeito ver Pindyck, RobertoS and Rubinfeld, Daniel L
(1998).
Para Entender a Saúde no Brasil 101

• GV é o índice construído para medir o grau de verticalização das ope-


rações (imóveis de uso próprio – Hospitalares e Odontológicos / Ativo
Permanente);
• IDSS é o índice de desempenho em saúde suplementar, uma espécie de in-
dicador de qualidade das operadoras, calculado e divulgado pela ANS em
seu programa de qualificação20;
• Ms é o market-share em relação ao faturamento anual da amostra;
• Prom é a variável dummy utilizada para as operadoras que possuem pro-
gramas de promoção da saúde ou prevenção de doenças segundo os termos
da Resolução Normativa da ANS nº. 94/200521 e aprovados segundo a
Instrução Normativa DIPRO/ANS nº. 10/200522. Prom = 1 se a operadora
possui o programa aprovado pela ANS e Prom = 0 caso contrário;
• ROE é a rentabilidade sobre o patrimônio líquido (return on equity).

Base de dados e resultados


Utilizamos as demonstrações contábeis referentes ao exercício de 2007
e disponibilizadas no site da ANS. Realizamos, portanto, uma análise em
cross-section. Das 1.285 empresas que operam no setor, estavam disponíveis
os dados de apenas 1.051. A amostra de operadoras analisadas neste estudo é
formada por 602 operadoras de planos de assistência à saúde que atuam no

20
O IDSS é o resultado final das pontuações obtidas em 39 indicadores distribuídos entre as dimensões
de atenção à saúde, estrutura e operação, situação econômico-financeira e satisfação dos beneficiá-
rios, que contribuem para o cômputo geral do IDSS cujos pesos são respectivamente de 50%, 10%,
30% e 10%. As empresas são classificadas em 4 (quatro) intervalos de notas: (0-0,24), (0,25-0,49),
(0,50-0,74) e (0,75-1,00). Quanto mais próximo de um, melhor é o desempenho da operadora na área
de saúde suplementar. Analogamente, quanto menor for a nota obtida, pior é o desempenho, segundo
a metodologia adotada. Para efeito de nosso estudo, utilizamos a variável IDSS transformada em
uma seqüência numérica de 1 a 4 a fim de denotar a posição da operadora no ranking. Maiores infor-
mações sobre o IDSS estão disponíveis no documento “Qualificação da Saúde Suplementar: Nova
perspectiva no processo de regulação. Setembro de 2007”. Disponível no site: www.ans.gov.br.
21
Esta norma estabelece os critérios para o diferimento da cobertura com ativos garantidores da provi-
são de risco condicionada à adoção, pelas operadoras de planos de assistência à saúde, de programas
de promoção à saúde e prevenção de doenças de seus beneficiários.
22
Estabelece procedimentos de apresentação e critérios para avaliação dos programas de promoção à
saúde e prevenção de doenças, propostos pelas operadoras de planos privados de assistência suple-
mentar à saúde, citados na RN nº. 94
102 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

segmento médico-hospitalar e que apresentaram patrimônio líquido positivo


no exercício de 2007.
Retiramos, portanto, da amostra as operadoras de planos exclusiva-
mente odontológicos por entender que a estrutura de risco odontológico difere
do risco médico e tratam-se, a bem da verdade, de mercados completamente
distintos ainda que estejam sujeitos ao mesmo escopo regulatório, em grande
parte23.

Tabela 1 – Amostra por modalidade da operadora e número de beneficiários

Modalidade Operadoras % Beneficiários %


Autogestão 65 10,8 1.861.377 6,6
Cooperativa Médica 248 41,2 10.258.274 36,3
Filantropia 54 9,0 991.698 3,5
Medicina de Grupo 223 37,0 10.074.915 35,6
Seguradora Especializada 12 2,0 5.080.183 18
Total 602 100,0 28.266.447 100,0

Fonte: elaboração própria.

Concentração

Tabela 2 – Resultados das regressões de economias


de escala na administração de planos de saúde

Recíproca
  Linear Recíproca Logarítima
Logarítima
Variáveis Coef. Prob. Coef. Prob. Coef. Prob. Coef. Prob.
Intercepto 1.259.421 0.0000 0.743882 0.0000 -7.714.003 0.0000 1.015.518 0.0000
Rec -3.90E-08 0.0000 91012.39 0.0000 1.338.103 0.0000 -0.591748 0.0000
T -1.017.922 0.0002 -0.434090 0.3227 7.444.865 0.1565 -9.168.876 0.719
T*Rec 3.91E-08 0.0000 -2811196. 0.9325 -1.228.710 0.2028 0.555020 0.0457

23
Além da estrutura de risco, os segmentos médico-hospitalar e odontológico diferem na formação
dos custos, na regulação dos preços e na própria motivação da demanda. Para maiores informações
sobre o segmento odontológico, ver COVRE, E; ALVES, S. L. (2003) “Planos Odontológicos: Uma
Abordagem Econômica no Contexto Regulatório”, ANS. Disponível em: www.ans.gov.br.
Para Entender a Saúde no Brasil 103

Recíproca
  Linear Recíproca Logarítima
Logarítima
Variáveis Coef. Prob. Coef. Prob. Coef. Prob. Coef. Prob.
Ms -0.007361 0.9805 -0.038865 0.8305 0.062114 0.7652 0.065120 0.7540
F -0.177839 0.3276 0.220964 0.2167 -0.474895 0.0074 -0.432041 0.0154

Fonte: elaboração própria.

O ajustamento das equações medido pelo R2 foi baixo (Linear (4,1%),


recíproca (7,2%), recíproca logarítima (13,2%), logarítima (10,1%)), o que
significa dizer que uma pequena parcela da variância do custo administrativo
médio é explicada pelas regressões estimadas e outras variáveis deveriam en-
trar no modelo.
No entanto, a variável de nosso interesse (Rec) se apresenta significati-
va em todos os modelos e com o sinal esperado, ou seja, negativo nas formas
linear e logarítima e positivo nas formas recíproca e recíproca logarítima, in-
dicando a presença de economias de escala na administração dos planos de
saúde. Outro resultado importante é que a variável interativa T*Rec é signifi-
cativa e possui o sinal positivo nas regressões lineares indicando que o efeito
da variável Rec é tão maior quanto maior for a variável T. Ou seja, a economia
de escala é ainda maior para as grandes empresas do setor.
A variável T possui coeficiente negativo indicando que as grandes em-
presas possuem menores custos administrativos médios e apresenta-se signi-
ficativa apenas na regressão linear. Já o market-share não foi significativo em
nenhum dos modelos enquanto que a variável F foi significativa no modelo
recíproco logarítimo e no modelo logarítimo.indicando que possuir fins lucra-
tivos reduz o custo administrativo médio como esperado.

Verticalização
A Tabela 3 abaixo apresenta os resultados da equação utilizada para
estimar o efeito da verticalização sobre a sinistralidade pura. O grau de ajuste
foi muito baixo (R2=2%). Ainda assim, as variáveis Alv, End e IDSS aparecem
significativas. Nossa variável de interesse (GV) não foi significativa para ex-
104 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

plicar a sinistralidade. De fato, a sinistralidade depende de diversas variáveis


não observadas como o mecanismo de precificação dos contratos, o percentual
de contratos individuais no total da carteira, o poder de barganha junto aos
estipulantes (que de certa forma procuramos aproximar pela variável Ms) e,
principalmente, o perfil de risco assistencial da carteira. Sem essas informa-
ções realmente fica difícil estimar essa variável.

Tabela 3 – Resultados do impacto da verticalização na sinistralidade pura

Coef. Erro P. Estatística t Prob.


Intercepto 62.92139 8.351877 7.533802 0.0000
Alv -0.346286 0.138606 -2.498337 0.0127
B 2.07E-05 2.58E-05 0.800948 0.4235
Cam -7.32E-08 3.36E-06 -0.021812 0.9826
End 1.171093 0.491139 2.384442 0.0174
F 0.733147 4.550170 0.161125 0.8720
Gv -9.343744 6.846469 -1.364754 0.1728
Idss 6.184389 2.988435 2.069440 0.0389
Ms -5.634395 7.406197 -0.760768 0.4471
Prom -0.894849 6.186945 -0.144635 0.8850
R-2 0.021924 Média de Sinp 77.78130

Fonte: elaboração própria.

Entretanto, a equação da rentabilidade apresentou elevado grau de ajuste


(R2=92%). Nossa variável de análise, o grau de verticalização, apresenta signi-
ficância estatística com 90% de probabilidade, porém seu sinal negativo indica
que quanto maior a verticalização, menor a rentabilidade das operadoras.

Tabela 4 – Resultado do impacto da verticalização sobre a rentabilidade

Coef. Erro P. Estatística t Prob.


Intercepto 88.20907 35.24878 2.502472 0.0126
Alv -7.466360 0.560224 -13.32745 0.0000
B 3.61E-05 0.000104 0.347518 0.7283
Cam 3.24E-05 6.75E-05 0.480656 0.6309
Para Entender a Saúde no Brasil 105

Coef. Erro P. Estatística t Prob.


Cme -0.000133 0.000207 -0.642744 0.5206
End 2.498860 1.984185 1.259389 0.2084
F 17.77313 18.32997 0.969621 0.3326
GV -50.35147 27.57061 -1.826273 0.0683
Idss -7.464763 12.06457 -0.618734 0.5363
Ms 32.16518 29.79234 1.079646 0.2807
Prom 103.3257 24.88345 4.152389 0.0000
SINP -0.066551 0.166817 -0.398945 0.6901
R-2 0.924273 Média de ROE -9.868153

Conclusão
Diante da elevação dos custos advindos com a regulação do setor de saú-
de suplementar ocorrida em 1998 com a edição da Lei 9.656 e a partir de 2000
com as resoluções da ANS era de se esperar o início de um processo de consoli-
dação e concentração do mercado, por um lado, e de verticalização, por outro.
O que procuramos fazer neste trabalho foi verificar se esses movimentos
são apenas movimentos de curto prazo motivados pelo próprio processo compe-
titivo ou se existem fundamentos econômicos que justificam essas tendências.
Para isso nos concentramos em estimar regressões para verificar por
um lado a presença de economias de escala neste setor, o que justificaria a sua
concentração, e por outro se o movimento de verticalização reduz os índices
de sinistralidade e melhora o resultado das empresas, medido pelo índice de
rentabilidade do patrimônio líquido.
Nossa análise econométrica mostrou que, a partir dos dados observa-
dos de 602 operadoras de planos de saúde do setor médico-hospitalar no ano
de 2007, foi possível identificar a presença de economias de escala na admi-
nistração de planos de saúde. E mais, essas economias são ainda maiores nas
empresas muito grandes. Como em qualquer estudo de economia de escala
é importante que se ressalte que o que aparenta ser economia de escala pode
na realidade ser a denominada eficiência-X. Em outras palavras, grandes em-
presas têm melhor capacidade gerencial e administrativa, o que se reflete em
menores custos. De toda forma este é um resultado que mostra a necessidade
de escala para suportar os elevados e crescentes custos regulatórios.
106 Concentração e verticalização no setor de saúde suplementar: uma análise econométrica

Já a verticalização, entendida como a aquisição de rede de prestado-


res de serviços por operadoras, não apresentou qualquer relação com o índice
de sinistralidade a partir da regressão estimada. Por outro lado, esta variável
apresenta-se atuando negativamente sobre o indicador de rentabilidade do pa-
trimônio líquido, corroborando resultados anteriores24.
Da mesma forma, este resultado merece cautela, pois o impacto da ver-
ticalização pode levar alguns anos para se refletir nos balanços financeiros das
empresas até que o investimento das aquisições seja auferido. Novos estudos
com séries de tempo devem ser feitos a fim de avaliar o impacto no tempo.

Bibliografia
ALVES, S.L. Verticalização e alinhamento de incentivos na saúde suplementar:
Uma análise a partir dos resultados econômico-financeiros. Rio de Janeiro: Revista
Cadernos de Seguro, Ano XXVII, 141: 15-21, março 2007.
BAUMOL, William J.; PANZAR, John C.; WILLIG, Robert D. Contestable Markets
and the Theory of Industry Structure. New York: Harcourt Brace Jovanovich, Inc.
1982.
BLAIR, Roger D.; JACKSON, Jerry R.; VOGEL, Ronaldo J. Economies of Scale
in the Administration of Health Insurance. Cambridge: Review of Economics and
Statistics, 5(2): 185-189, may 1975.
COVRE, E.; ALVES, S. L. Planos Odontológicos: Uma abordagem econômica no
contexto regulatório. Disponível em: www.ans.gov.br, ANS, 2003.
CUTLER, D.; ZECKHAUSER, R. The Anatomy of Health Insurance, in Handbook of
Health Economics. North-Holland: Elsevier Science BVM, 2000, pp. 563-643.
PINDYCK, Robert S.; RUBINFELD, Daniel L. Econometric Models and Economic
Forecasts, 4th edition, New York, McGraw-Hill International Editions, 1998.
ZWEIFEL, P.; MANNING, W.G. Moral Hazard and Consumers Incentives in Health
Care, in Handbook of Health Economics, LOCAL: Culyer and Newhouse ed., 2000,
pp.409-459.

24
ALVES, S. L. (2007).
Aumento da
cobertura e dos
preços dos planos
7
de saúde

Marcelo de Lima Dias


Administrador de empresas, executivo de
empresas de consultoria, administração e operadora
de planos de saúde, ex-vice presidente da Comissão de
Qualidade de Vida da ANEFAC –
Associação Nacional dos Executivos de Finanças,
Administração e Contabilidade.

Na última década, nossa empresa foi adquirida


por um grupo internacional e, por questões de regras de
negócio e política corporativa, tornou-se necessário encer-
rar as atividades de um ambulatório médico interno, o qual
prestava atendimento assistencial gratuito aos funcionários
para consultas médicas. Para a realização de exames com-
plementares, um laboratório particular contratado praticava
uma tabela reduzida, com bons descontos, pagando o pacien-
te apenas uma parcela do valor, descontado de seu salário
em nossa folha de pagamento. Enfim, não possuíamos um
convênio médico particular; havia uma clara percepção de
todos que esse ambulatório, juntamente com o laboratório,
prestava um bom serviço aos nossos funcionários e nin-
guém precisava se sacrificar, despendendo horas produ-
108 Aumento da cobertura e dos preços dos planos de saúde

tivas de trabalho em longas filas do serviço público de saúde, que aumentariam


substantivamente o nosso índice de absenteísmo.
Quando a decisão foi tomada e o ambulatório encerrado, procuramos
uma clínica externa para dar continuidade ao serviço. Fomos então confron-
tados com uma nova necessidade, a contratação somente poderia ser efetuada
por meio de uma operadora de plano de saúde, devidamente matriculada na
Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, seguindo toda a legislação de
planos de saúde em vigor e sua completa e vasta cobertura. Resultado: o valor
dessa contratação não cabia mais em nosso orçamento.
Em que pese o todo benefício proporcionado pela Lei 9.656/98 e a cria-
ção da ANS, cujo principal objetivo é o de disciplinar as regras do jogo nes-
se mercado, protegendo os interesses do consumidor, entre outros, este relato
revela o lado impiedoso da legislação ao não mais permitir a flexibilização
da contratação das coberturas. Atualmente só se podem contratar planos com
cobertura ambulatorial ou hospitalar, ambos com ou sem obstetrícia e odonto-
logia. No caso daquela empresa localizada no interior de São Paulo, o preço
da nova assistência médica contribuiria para reduzir os seus resultados, provo-
cando uma nova discussão entre seus executivos, muito bem intencionados, e
os novos investidores e controladores.
Tenho visto ultimamente muita gente com enorme interesse em partici-
par de discussões sobre o benefício plano de saúde oferecido pelas empresas
aos seus funcionários e dependentes, mas o tempo e a atitude demonstram que
o foco, sem nenhuma dúvida, está sobre o volume de dinheiro envolvido no
tema. Há quem aposte todos os seus honorários numa futura e eventual redu-
ção de gastos para recebê-los. Contudo, constatamos que o universo desses
consultores já vem se reduzindo, pois muitos deles já não acreditam mais em
“milagres”.
Não podemos negar que os serviços de saúde promoveram uma real
expansão de nossa economia, puxada pela introdução de novos equipamentos,
tecnologias, profissionais treinados e formados para lidar com os novos produ-
tos e soluções. Investimentos foram realizados por clínicas médicas, hospitais,
laboratórios e operadoras, compreendendo muitos financiamentos por parte de
Para Entender a Saúde no Brasil 109

bancos, empresas de leasing, captação de recursos junto à Bolsa de Valores de


São Paulo – Bovespa, etc. Não podemos também deixar de citar a indústria
farmacêutica, os fabricantes de próteses, órteses, etc., os quais, igualmente,
ajudaram a impulsionar o crescimento da nossa economia no setor, oferecendo
novas oportunidades para diagnosticar e dar tratamento para recuperação e
reabilitação de pacientes.
Do ponto de vista prático, vejo que uma grande parte do problema ainda
persiste, pois continuamos cometendo o erro de chamar de seguro saúde ou
plano de saúde algo que pode ser melhor encarado como produto ou serviço
de consumo.
“Seguro é um contrato que adquirimos de uma seguradora para algo
que não desejamos e não planejamos usar segundo a nossa própria vontade. O
sinistro é um evento aleatório, indesejável e involuntário.”
Logo, percebemos a diferença conceitual entre um sinistro do tipo uma
colisão de automóvel, uma morte acidental, um incêndio, uma queda de aero-
nave, contra a realização de uma consulta médica, um exame laboratorial, etc.
Por outro lado, uma internação ou um atendimento de pronto socorro já podem
ser configurados como um indesejável sinistro.
A população atual de nosso país é muito melhor esclarecida, tem acesso
às revistas, jornais, internet, etc. Com isso, o consumo na busca da prevenção é
perfeitamente legítimo e de fato vem aumentando bastante. O que precisamos
ainda melhorar é a forma de orientação, bem como o modelo de custeio, obje-
tivando aperfeiçoar o consumo de serviços de saúde e evitar o desperdício.
A busca pelo equilíbrio econômico e financeiro dos contratos tem pro-
vocado as mais diversas discussões e desgastes entre consumidor, operadora
de planos e prestadores de serviços médicos. Parece que ninguém está real-
mente satisfeito.
No caso dos planos coletivos empresariais, responsáveis por mais de
70% dos negócios realizados em saúde suplementar, esse comportamento de
consumo deixa de lado muitas vezes quem efetivamente patrocina o plano e
paga a conta. Médicos e usuários decidem livremente quais procedimentos
serão realizados, sua freqüência de repetição, local, etc., desconhecendo com-
110 Aumento da cobertura e dos preços dos planos de saúde

pletamente, na maioria das vezes, o custo e o preço daquela prescrição e tra-


tamento.
Inevitavelmente o custo dessa utilização, tecnicamente chamada de si-
nistros, será lançado a débito do contrato ou apólice de sua empresa, refletindo
em um aumento do índice de sinistralidade, repercutindo, por sua vez, em uma
proposta de aumento e recomposição de prêmio, aporte extraordinário, etc.,
isso quando não é automaticamente repassado e cobrado do cliente, como já
previsto e pactuado em alguns contratos.
Uma das soluções que o mercado busca praticar para obter um me-
lhor comportamento e objetivando racionalizar essa demanda, tem sido a in-
trodução de fatores moderadores, tais como a cobrança de co-participação em
consultas médicas e exames complementares de qualquer natureza. E não po-
demos cometer o equívoco de deixar de cobrar a co-participação em exames
classificados de complexos, como é o exemplo da ressonância magnética, um
exame cada vez mais requisitado pelos médicos.
“Um médico revelou que, sob pressão de seu paciente e com receio de
perder o cliente para um outro colega, resolveu finalmente pedir o exame de
ressonância para o usuário do convênio, pois este insistia e argumentava ter
ouvido uma história de um amigo, seu colega de futebol, que já fizera várias
vezes o procedimento, sem nenhum sofrimento, dor ou desconforto para exa-
minar detalhadamente o seu joelho, que apresentava os mesmos sintomas.”
Não podemos deixar de mencionar uma constatação muito interessante:
o Brasil está progredindo muito na saúde bucal, evoluindo, quem sabe, para
deixar de ser um país de desdentados, conforme afirmava um ex-presidente da
república.
Dados oficiais do setor, publicados pela ANS, apresentam uma formali-
zação do crescimento de usuários com acesso à saúde supletiva, sobretudo na
cobertura odontológica. Em 2000, do total de 34,8 milhões de beneficiários,
pouco mais de 8%, ou seja, 2,9 milhões, contavam com contratos de cober-
tura odontológica. Atualmente, esse grupo já atingiu 18% ou 8,3 milhões do
total de 46,2 milhões de beneficiários. Os números revelam um crescimento
fantástico de 186% ante 19% na cobertura médica; há estudos projetando uma
Para Entender a Saúde no Brasil 111

tendência de crescimento desse grupo, o qual deverá ultrapassar a casa dos 10


milhões de beneficiários em 2008.
O crescimento setorial permitiu uma forte expansão e progresso de
empresas operadoras especializadas em odontologia, atraindo inclusive novos
investidores, mediante processos de abertura de capital e venda de ações ao pú-
blico na Bovespa. Contudo, dentro do atual cenário econômico e dependência
da expansão e comercialização de contratos coletivos empresariais, a assistên-
cia médica não consegue enxergar com o mesmo otimismo o seu horizonte de
crescimento, de apenas 19% nos últimos sete anos.
Os empregadores patrocinadores de planos de saúde aos seus emprega-
dos se vêem cada vez mais preocupados com o aumento de custos da assistên-
cia médica e o ônus das responsabilidades sociais transferidas pelo governo via
seus três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, os quais polemicamente
continuam cobrando pelos eventuais tratamentos prestados pelo SUS aos usu-
ários segurados da previdência, elaborando projetos de lei direcionando aos
empregadores a obrigação de manter ex-empregados em suas apólices e, pelo
último, expedição de liminares determinando que procedimentos, apesar de
não terem sido contratados, sejam imediatamente suportados pelas operadoras,
as quais dificilmente conseguirão o ressarcimento dos prejuízos após o julga-
mento de mérito das ações.
Por conta das dificuldades e complexidades, um grande número de can-
celamentos de registros de operadoras de planos de saúde segue sendo registra-
do pela ANS desde 2002, especialmente devido às novas regras, necessidade de
capital integralizado e patrimônio líquido suficiente para cobertura de margem
de solvência, etc. Confirma-se a tendência de concentração de negócios nas
mãos de grandes e fortes empresas operando no mercado da saúde, registran-
do-se um crescente número de fusões, aquisições e aberturas de capital, não só
de operadoras de planos de saúde, mas igualmente de prestadores de serviços.
Os sinais emitidos pela ANS por meio de normas e resoluções nos fa-
zem supor que o setor será forte e rigorosamente regulado também do ponto
de vista financeiro, tal como ocorre, por exemplo, com o mercado segurador
pela SUSEP, e no sistema financeiro pelo Banco Central, tendo em vista que o
112 Aumento da cobertura e dos preços dos planos de saúde

movimento econômico em saúde suplementar deve superar R$ 45 bilhões EM


2008.
Concluindo, fica registrado o desafio à sociedade civil, em parceria com
o governo, continuar na difícil busca de um modelo de solução econômica
viável de assistência médica de longo prazo, destinado às pessoas físicas não
vinculadas a nenhum empregador que oferece o benefício, como é o caso de
inúmeros autônomos, micro e pequenos empresários, profissionais liberais,
entre outros, os quais atualmente dispõem de um reduzido número de opções
oferecidas pelo mercado, bem como uma solução diferenciada para os aposen-
tados, que justamente quando perdem parte de seu poder aquisitivo, mais vão
necessitar de cuidados médicos e hospitalares inerentes à evolução da faixa
etária.
Os bancos e o
setor de saúde 8
Marcelo Cyrino
Contador, pós-graduado em Contabilidade
Gerencial e Controladoria, ex-diretor de Nichos de
Mercado dos
bancos BCN, Bradesco e Safra, diretor financeiro do
Hospital São Lucas S.A., de Ribeirão Preto, SP.

Comecei minha jornada pelo setor de saúde


em 1993, ao assumir a gestão financeira da Federação
das UNIMEDs do Estado de São Paulo, congregan-
do os interesses das mais de 60 cooperativas singula-
res associadas. Naquela época, as cooperativas não eram
chamadas de operadoras, não havia regulamentação e,
sendo cooperativas, eram fiscalizadas pelo Ministério da
Agricultura. As seguradoras eram reguladas pela SUSEP,
enquanto as empresas de medicina de grupo eram fiscali-
zadas apenas pelos órgãos normais, como INSS, Receita
Federal, etc. Dessa forma, havia uma grande discrepância na
tributação de cada segmento de planos de saúde.
Relacionamento com os prestadores de serviços,
hospitais, clínicas, laboratórios e médicos também era
conflituoso. Discutia-se muito a implementação da tabela
AMB 92, cirurgias por videolaparoscopia, implantes de
114 Os bancos e o setor de saúde

endopróteses, os stents (geradores de discussões entre cirurgiões cardiovascu-


lares e hemodinamicistas), entre outras situações.
Neste mercado estavam inseridos os bancos. Na maioria deles, não ha-
via especialização para entendimento do funcionamento do setor, dificultando
a obtenção de crédito e levando ao encarecimento das operações, porque não
entendiam os riscos de fato inerentes ao setor. Além disso, os demonstrativos
contábeis eram pouco estruturados. Para muitos bancos, operar crédito no setor
de saúde significava perda certa, por isso não atuavam. O Banco Real, o Banco
Nacional e depois o Banco Bandeirantes, na minha opinião, foram os que bus-
caram aprofundar o conhecimento e com isso conseguiram deter uma grande
carteira de clientes ligados ao setor de saúde.
Em 1997 fui convidado pelo Banco BCN para desenvolver a área de
atendimento ao setor, com o objetivo de ampliar a carteira de clientes – pos-
suíam uma experiência muito interessante no setor de saúde e desejavam am-
pliá-la. A partir daí passei a conviver com o outro lado da mesa, ao invés de
comprar serviços bancários, passei a vendê-los. E para isso precisei buscar
conhecimento sobre a atuação dos hospitais, clínicas e laboratórios.
Desvendou-se um mercado maravilhoso, de inúmeras oportunidades de
negócios.
Em uma jornada de mais de dez anos de atuação em bancos, atendendo
empresas do setor de saúde, conheci mais de 800 hospitais em todo o Brasil.
Vi de tudo; de hospitais atendendo ao SUS, que de tão limpos e estruturados
poderíamos “comer no chão”, até hospitais privados sem a mínima condição de
funcionamento. Com alguns casos, ilustrarei a percepção que os bancos possuem
ou deveriam possuir quando analisam crédito de empresas ligadas ao setor de
saúde, e que os bancos são parceiros com interesse no sucesso de seus clientes.

Fatores subjetivos da análise de crédito


Em Aracaju, visitando um hospital filantrópico, a gestora, uma freira,
disse: “Meu filho, precisamos desse empréstimo para manter o hospital fun-
cionando, pode ficar tranqüilo que vamos pagar”. Ela me convenceu. E pa-
Para Entender a Saúde no Brasil 115

garam mesmo. Sem atrasar uma parcela. Apesar das dificuldades enfrentadas
pelo hospital, percebi a seriedade da gestão, compromissada com os objetivos
da instituição.
Nessa jornada, aprendi que os números não significam muito se mal
interpretados, as informações subjetivas são muitas vezes mais importantes na
hora da decisão do crédito. Quem está na gestão, como é o comportamento dos
funcionários, se estão sorrindo para os pacientes, se são atenciosos; limpeza,
salas de espera, condições dos equipamentos, roupa de cama, mesa do gestor
financeiro e do pessoal administrativo. Tudo isso procuro observar em minhas
visitas. É uma percepção real. Não quero dizer que os números não tenham
sua importância, pois, em qualquer processo de gestão, é imprescindível saber
como a empresa está, para onde vai e para onde deseja ir. A contabilidade deve
ser orientadora, uma cultura ainda presente, justifica a existência da contabili-
dade apenas para finalidades fiscais. Todas essas informações formam o con-
junto que levo em consideração na análise de crédito.

Custos
Em um projeto ou em uma instituição já em operação há vários anos,
um fator importante na atualidade, quando o preço é definido pelo mercado,
diz respeito ao controle e conhecimento de seus custos. Visitando um hospital
na região do ABC paulista, foi-me demonstrado seu sistema de custos: tinham
tudo apontado. Custo por leito, por utilização de equipamentos, por departa-
mento, centro cirúrgico, bem como a receita gerada. Um por um. Com essas
informações, o hospital demonstrava ótima saúde financeira e tinha parâmetros
para negociar com as operadoras. Mas não foi isso o constatado nas mais de
800 visitas: infelizmente, menos de 5% dos hospitais possuem sistema de cus-
tos implementado e funcionando. Os demais cobram pelo histórico das tabelas
corrigidas por índices de inflação, ou, em momentos de congelamento de pre-
ços, criando-se procedimentos ou taxando-se procedimentos simples, como a
aplicação de injeção por uma enfermeira, ou o transporte de um paciente para
a realização de um exame. Alguns vão pela direção do vento. Vi isso várias
vezes.
116 Os bancos e o setor de saúde

Hoje, um gestor precisa ter conhecimento de seus custos para argumentar


com os principais clientes, as operadoras, quanto à necessidade de reajuste de sua
tabela ou não. Isso representará cada vez mais um fator de sobrevivência das ins-
tituições de saúde.
Importante crescimento e concentração ocorre atualmente na área de
diagnósticos do setor de saúde; temos como exemplo o DASA – Diagnósticos
da Amédica S/A, formado inicialmente pelo laboratório Delboni Auriemo,
com a injeção de capital de um fundo de private equity. Adquiriu mais de uma
dezena de laboratórios em várias regiões do país e foi a primeira empresa do
setor de saúde na América Latina a ter ações listadas em bolsa, o que foi pos-
sível porque conhecem o custo da operação.
A frase “quem não gerencia pelo custo, policia pelo caixa”, ouvida do
professor Affonso José de Mattos, resume a gestão financeira realizada sem
um sistema de custos – pelo caixa, o gestor perceberá que o negócio não está
bem e, como o giro é intenso com ingresso diário de recursos, disfarça a falta
de geração de caixa real.

Planejamento dos investimentos


Em São Paulo conheci o projeto do Hospital Villa-Lobos; além da preo-
cupação arquitetônica, houve o cuidado de pesquisar se o local escolhido seria
o melhor para se instalar, qual o potencial de público, acesso a transportes
coletivos, médicos para compor o corpo clínico, pensaram em tudo. Inclusive,
iniciativa essencial em qualquer projeto do gênero, conversaram com as ope-
radoras de planos de saúde.
Testemunhei muitos projetos entrarem em operação antes de obter o
credenciamento dos planos. Vários morreram com os sonhos, outros estão de-
ficitários e à mercê das tabelas impostas quando ficaram em situação desfavo-
rável; uma minoria está bem.
Outro erro comum, observado em vários projetos, foi a falta de pre-
visão para o capital de giro, do volume de recursos necessários para iniciar a
operação. Começam a atender, pagam salários, material e medicamentos, ma-
Para Entender a Saúde no Brasil 117

nutenção, entre outros desembolsos e depois cobram as operadoras de saúde,


as quais, dependendo da negociação têm de 30 a 60 dias para pagamento. No
meio tempo, acabam recorrendo a bancos. Nos projetos, o capital de giro deve
ser considerado como a aquisição de um equipamento.
Para investimentos em ativos imobilizados, com retorno no longo pra-
zo, deve-se buscar linhas de crédito compatíveis, mas é freqüente no setor
de saúde a realização desses investimentos com o capital de giro. Tal atitude
provoca a alavancagem por meio de empréstimos de curto prazo, mais caros,
inviabilizando ou retardando o tempo de retorno dos investimentos.
O planejamento adequado dos investimentos é fator primordial para
seu sucesso. O gestor precisa preocupar-se em conhecer o que será agregado
em termos de valor para o negócio, qual receita irá gerar e o tempo de retorno
desses investimentos.

Criatividade na captação de recursos


Além das linhas normais de longo prazo, BNDES, FINAME e opera-
ções de mútuo para a viabilização de projetos, conheci formas criativas e ou-
sadas de captação de recursos. Em Serra, ES, o VAH – Vitória Apart Hospital,
inovou ao adaptar o sistema de apart-hotel. O investidor adquiriu um aparta-
mento no hospital, um leito, recebendo mensalmente um percentual do valor
investido como aluguel.
Outro modelo inovador foi o do Hospital da Criança, do Grupo Nossa
Senhora de Lourdes, em São Paulo. Lançou um fundo imobiliário, transferin-
do o patrimônio para o fundo, o qual remunera os investidores com o valor do
aluguel do imóvel. Inteligente, pois o negócio do grupo é operar hospital e não
ser uma imobiliária. Essa experiência levou o grupo a lançar mais um fundo
com total sucesso de vendas, proporcionando a modernização e expansão de
sua estrutura. Essas formas, apesar de inteligentes, exigiram muita coragem,
pois os investidores ainda não enxergavam outras opções de rentabilizar seus
recursos. Hoje se tornou uma alternativa interessante para diversificação de
investimentos.
118 Os bancos e o setor de saúde

No momento, o mercado está aquecido para uma outra modalidade de


captação, o IPO, sigla da expressão em inglês Initial Public Offering, ou seja,
a oferta pública inicial, significando a abertura do capital de uma empresa no
mercado acionário, com o lançamento de suas ações em bolsa. O DASA, a
Medial e a Amil entre outras, lançaram seus papéis e conseguiram alavancar
grandes volumes para aplicar na estruturação, verticalização dos serviços mé-
dicos e aquisições.

O banco é um parceiro e sócio temporário


Em outra passagem, dessa vez em Minas Gerais, o gestor de um im-
portante cliente começou a descarregar sua raiva de banco em mim: que ban-
co era chupim da sociedade, roubavam os clientes, comparáveis a um câncer.
Ouvi tudo calado e aprendi que ouvir vale muito. Não havia como contra-
argumentar naquele momento, mas com o tempo, o cliente percebeu que o
banco era seu parceiro; assim como sua instituição, o banco era um prestador
de serviços, sendo o dinheiro seu principal produto. Assim como ele cobrava
pelos atendimentos, o banco cobrava pelo tempo no qual o dinheiro estava em
suas mãos, gerando melhores condições de atendimento aos pacientes. Nossa
parceria durou muitos anos.
Essa passagem deixa bem caracterizada a posição dos bancos ao con-
ceder um empréstimo. O fluxo é: banco empresta o recurso, o cliente o utiliza
da forma necessária, gerando-lhe a riqueza, e retorna ao banco para ser então
emprestado a outro cliente. Os bancos são fomentadores dos negócios e têm
interesse no sucesso do cliente para que o fluxo seja contínuo. Durante esse pe-
ríodo, os bancos devem ser considerados sócios temporários das instituições,
pois aceitam o risco na certeza de que receberão de volta os valores liberados;
tal como os sócios efetivos desejam lucro, os bancos precisam receber sua
remuneração.
Para Entender a Saúde no Brasil 119

Desafios
Vivenciamos uma transformação do sistema de saúde privado iniciada
com a regulamentação dos planos por meio da Lei 9.656/98 e com a criação
da agência reguladora, a ANS. Essas mudanças forçaram a necessidade de in-
vestir na profissionalização dos gestores, gerando ainda um forte movimento
de concentração de operadoras, reduzindo a concorrência por meio de fusões
e aquisições. Por sua vez, a verticalização dos serviços hospitalares é uma
realidade, reduzindo o poder de negociação dos prestadores de determinados
serviços.
De outro lado, os hospitais estão reagindo, com a criação de redes como
a do São Luiz, em São Paulo, e da Rede ALFA, no Nordeste, visando obten-
ção de ganho de escala e uma relação mais equilibrada com as operadoras; a
criação da ANAHP – Associação Nacional dos Hospitais Privados – buscando
padronizar indicadores e compras, também é um forte indicativo da tendência
de união dos hospitais.
O setor ainda enfrenta vários desafios: a implementação em todo o
país da CBHPM – Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos
Médicos; a implementação pela ANS da PEONA – Provisão para Eventos
Ocorridos e Não Avisados, e do cálculo da margem de solvência das opera-
doras. Esses desafios estão gerando importantes alterações na forma de gestão
das operadoras e prestadores. Em alguns momentos as contas não fecharão,
mas acredito no surgimento de soluções criativas.
Nos últimos anos o sistema financeiro também vem se concentrando,
vários bancos com especialização no atendimento ao setor de saúde foram in-
corporados, algumas estruturas foram mantidas, outras desativadas, mas em
alguns bancos foram criadas. O mais importante é saber que a experiência dos
bancos atuantes no setor é positiva, com o amadurecimento das relações e o
entendimento da viabilidade do setor de saúde privado, em franca expansão e
gerando uma infinidade de oportunidades de negócios.
120 Os bancos e o setor de saúde
Estratégias de
desenvolvimento
do Grupo
9
Nossa Senhora
de Lourdes

FÁBIO SINISGALLI
Diretor geral, Grupo Nossa Senhora de Lourdes.

Capital que vem do tijolo


Entre os grandes obstáculos a serem vencidos pelas
pequenas e médias empresas no terreno das finanças, está o
acesso ao capital para custear investimentos necessários ao
seu crescimento. Por esse motivo, o Grupo Nossa Senhora
de Lourdes optou por uma operação financeira recentemente
autorizada no Brasil, na modalidade de vendas no varejo, o
fundo de investimento imobiliário. A venda de um ativo fixo,
seguida de sua locação dos novos proprietários, tem sido a
maneira pela qual o Grupo NSL capta recursos financeiros
sem abrir mão da composição acionária da empresa.
Por que manter os imóveis imobilizados no patri-
mônio, ao invés de investir seu valor em atividades que
garantam maior rentabilidade para a empresa em fase de
expansão? Esse foi o paradigma quebrado no início de
122 Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

2000, ao concluirmos que poderíamos abrir mão da posse dos imóveis, tra-
zendo novos investidores para o Grupo, ao mesmo tempo direcionando os re-
cursos financeiros obtidos para o nosso negócio. A posse de imóveis sempre
conferiu uma sensação de garantia e segurança, tanto para os acionistas quanto
para os fornecedores de uma empresa, porém entendemos que o fomento de
seus negócios é o que a mantém sadia e lucrativa. Para tanto, é muitas vezes
necessário que ela cresça e expanda sua área física, de forma a atender uma
demanda maior e gerar melhor ganho em escala.
Por outro lado, o Grupo NSL é controlado pela holding Sinisgalli
Administração e Participações S/A, um grupo familiar composto por médicos
e administradores desejosos de manterem-se no controle do negócio, portanto
ainda não dispostos a abrir o seu capital. Essa alternativa, de abertura de ca-
pital, tem sido outra forma de trazer investidores para o desenvolvimento das
empresas, e que muito tem crescido em nosso mercado.
Dentre as formas de abertura de capital, pesquisando várias possibilida-
des para a captação de recursos financeiros, vimos que mais cedo ou mais tarde
a família precisaria acompanhar as eventuais chamadas financeiras para fazer
frente ao desenvolvimento por vir, e caso não o pudéssemos fazer, perderíamos
ao longo do tempo nossa posição acionária e, conseqüentemente, o controle da
empresa. Escolhendo os fundos de investimentos imobiliários e isolando os
imóveis aos investidores, manteríamos a composição acionária da empresa e
garantiríamos a seqüência da gestão.
Necessitamos investir no negócio, não em tijolos, dessa maneira di-
recionando nossos recursos financeiros para o que sabemos fazer melhor, ou
seja, “promover a saúde das pessoas”, a missão do Grupo NSL. Todos sabem
o quanto é custosa a saúde com qualidade no Brasil; complexas estruturas físi-
cas, tecnologia em constante renovação, recursos humanos altamente especia-
lizados e estruturas de gestão cada vez mais avançadas são requisitos básicos
a serem atendidos por uma empresa de saúde que pretenda estabelecer-se em
mercado altamente competitivo como é o brasileiro, exigindo cada vez mais
competência, segurança e eficácia com alto grau de qualidade. Dessa forma, o
Grupo NSL tem conseguido projetar-se nesse mercado, e por meio dos fundos
de investimentos imobiliários, fazer expansões com mais agilidade; essa tem
sido uma das estratégias de seu desenvolvimento.
Para Entender a Saúde no Brasil 123

Apresentação do Grupo NSL


Para se falar das estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora
de Lourdes devemos apresentá-lo e retroagir em sua história. O Grupo NSL é
formado por dez empresas coligadas na área de saúde, sociedades anônimas
independentes cuja empresa matriz é o Hospital Nossa Senhora de Lourdes.
Fundado há 50 anos, ele tem participação acionária em todas as suas nove co-
ligadas, funcionado, assim, como uma holding para o Grupo. Seu conselho di-
retor tem por finalidade definir as diretrizes do Grupo e possui onze membros,
entre eles pelo menos um diretor de cada empresa representada. O Hospital
da Criança, fundado em 1998 com todas as especialidades pediátricas, foi
projetado e inspirado em modelos de hospitais pediátricos norte-americanos,
e além de sua especialização, tecnologia de ponta e estrutura física voltada
às necessidades das crianças, conta também com programas de humanização,
que diferenciam os serviços prestados. Saúde Medicol, com cerca de 40 mil
vidas, é o plano de saúde do Grupo NSL, responsável por aproximadamente
20% do volume dos atendimentos. A Hospclean é uma lavanderia hospitalar
fundada em 1993, com o objetivo de oferecer serviços tanto para as unidades
hospitalares do Grupo, como também para diversos outros hospitais e clínicas
do estado de São Paulo. O Grupo NSL conta ainda com o Centro de Medicina
Integrada, um ambulatório médico com cerca de 150 mil atendimentos por
ano, além de um Centro de Diagnóstico, o qual também realiza anualmente
em torno de 150 mil exames de imagem. Para completar os serviços de diag-
nóstico e tratamento, conta ainda com a Lithocenter e a Angiodinâmica, em-
presas voltadas, respectivamente, para o atendimento de litotripsia extracor-
pórea e cineangiocoronariografía. Abrindo seu portfólio de produtos, o Grupo
NSL inaugurou, no fim da década de 90, a Interlar Home Care, tornando
também possível a prestação de serviços nos domicílios dos seus clientes, en-
quanto na área da educação em saúde criou o Núcleo de Desenvolvimento
Profissional, uma escola de técnicos de enfermagem que oferece ainda outros
cursos técnicos.
Hoje, o Grupo possui 1.500 colaboradores e 2.325 médicos cadastra-
dos no corpo clínico, contando ainda com serviços terceirizados para aten-
der os seus 340 leitos, 71 deles em UTIs. As dez empresas coligadas ocupam
124 Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

cerca de 20 mil m² de área de terreno, com 34 mil m² de área construída,


projetando-se uma expansão para 66 mil m². O Grupo NSL é um completo
centro de referência hospitalar situado na zona sul de São Paulo, no bairro
do Jabaquara, com atendimento regional, possuindo alguns serviços, como o
Hospital da Criança, considerados como referências nacionais. Possui um cor-
po clínico aberto de alta classificação, colaboradores envolvidos em um pro-
grama contínuo de qualidade, com seus dois hospitais certificados no Nível III
pela Organização Nacional de Acreditação, (ONA), além de estar inserido na
Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP).
Todas as empresas do Grupo são sociedades anônimas com fins lucrati-
vos, não obstante estarem fortemente ligadas a programas de responsabilidade
sócio-ambiental, os quais, com a participação de empresas parceiras, realizam
cerca de 25 projetos voltados à atenção social, saúde e educação da comunidade
que as cercam. Atendimento humanizado, tecnologia de ponta são alguns dos
outros destaques que têm projetado o Grupo NSL, há 50 anos no mercado.
Nos últimos quinze anos, com a implementação de estratégias de de-
senvolvimento, a criação de empresas coligadas e a introdução dos fundos de
investimentos imobiliários, a receita do Grupo NSL, em milhões de dólares,
cresceu cerca de dez vezes, conforme pode ser observado no Gráfico 1:

Gráfico 1 – Grupo NSL – Evolução das receitas (em milhões US$)


Para Entender a Saúde no Brasil 125

O Gráfico 2 mostra a composição e distribuição dessas receitas; em


primeiro lugar, está o Hospital Nossa Senhora de Lourdes, seguindo-se o plano
de saúde (Saúde Medicol), depois o Hospital da Criança, e assim sucessiva-
mente.

Gráfico 2 – Composição e distribuição de receitas

Estratégias de desenvolvimento do grupo NSL


Para se entender todo esse crescimento, é necessário fazer uma retros-
pectiva das estratégias de desenvolvimento do Grupo NSL, desde a sua fun-
dação. Dividimos os 50 anos de existência do Grupo em três fases. Durante
a primeira fase, da fundação até 1990, o desenvolvimento ocorreu de forma
orgânica e regional; na segunda fase, de 1990 a 2000, deu-se a estruturação das
empresas coligadas, seguindo-se a terceira fase, de 2000 em diante, na qual
consideramos os fundos de investimentos imobiliários como a opção estratégi-
ca de desenvolvimento.

Primeira fase – desenvolvimento orgânico e regional


Na primeira fase, desde a fundação em 1958, o Hospital Nossa Senhora
de Lourdes inaugurou três prédios, em 1968, 1974 e 1978. A ocupação desses
prédios deu-se pelo atendimento regional e a sua estruturação foi feita com
recursos próprios e financiamentos bancários, como a operação 63, em 1972, e
o Fundo de Assistência Social (FAS), em 1975. Nessa época, o Hospital Nossa
126 Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

Senhora de Lourdes consolidou-se na região como um centro de referência em


assistência hospitalar; por tratar-se de uma região carente de serviços assisten-
ciais, a demanda local impulsionou o seu crescimento. No fim da década de
80, o HNSL já possuía uma demanda de ampliação de seus serviços prestados,
desenvolvimento da tecnologia e expansão de sua área física. No entanto, com
as dificuldades de obtenção de financiamentos no mercado financeiro e a insu-
ficiência de recursos financeiros próprios, optou-se pela captação de recursos a
partir da inclusão de novos sócios, criando-se assim o modelo de estruturação
das empresas coligadas.

Segunda fase – estruturação das empresas coligadas


Na segunda fase foram criadas várias sociedades anônimas indepen-
dentes, nas quais o Hospital Nossa Senhora de Lourdes participa do capital
acionário, dessa forma indicando um dos seus diretores executivos na nova so-
ciedade. A estrutura organizacional de cada empresa coligada é independente,
prestando sempre contas à holding HNSL. Esse modelo de estruturação de em-
presas coligadas trouxe vários benefícios ao Grupo NSL; além do crescimento
e do desenvolvimento tecnológico, o incremento de novas especialidades para
o corpo clínico trouxe a possibilidade dos médicos tornarem-se sócios, dessa
forma também participando dos resultados das empresas.
Tal arranjo organizacional permitiu o rápido crescimento dos serviços,
pois os médicos, antes apenas prestadores de serviços em outras instituições,
tornaram-se sócios de seus próprios negócios; dessa forma, atraídos pelas boas
perspectivas profissionais, vários grupos médicos de renome vieram associar-
se ao Grupo NSL.
Por outro lado, a gestão independente em cada uma das empresas coli-
gadas, porém contando com a sinergia do Grupo para a otimização de recursos
e ganhos de produtividade, traduziu-se em grande benefício. Essa fase foi de
fundamental importância para consolidar a imagem do Grupo NSL perante o
meio médico e as operadoras de planos de saúde, testemunhas da expansão e
do crescimento das empresas, sempre pautados pela qualidade dos serviços
prestados e pela atenção dedicada aos clientes.
Para Entender a Saúde no Brasil 127

Terceira fase – estruturação dos fundos de investimentos imobiliários


No início da década de 2000, o Grupo NSL via-se novamente diante
da necessidade da construção de novos prédios, da ampliação do parque tec-
nológico e do desenvolvimento de novos produtos. A solução encontrada para
esse desafio foi desenvolver a estratégia de captação de recursos por meio dos
fundos de investimentos imobiliários (FII). A decisão de escolher o FII emba-
sou-se em ser esta a opção mais rápida de captação de recursos financeiros e,
principalmente, pela estratégia de não perder o controle acionário, pois, como
anteriormente citado, os investimentos são em seu ativo fixo, não interferindo
na composição acionária da empresa. Além disso, o FII contava com menores
níveis de exigência e burocracia, além de taxas e custos bem mais baixos do
que os praticados no mercado financeiro.

Análise do cenário interno


O Grupo NSL objetivava, além da expansão da área física e a amplia-
ção do seu parque tecnológico, a liquidação de endividamento bancário que
comprometia o desenvolvimento dos negócios; as altas taxas de juros vigentes
consumiam todo o resultado da empresa, e havia também grande dificuldade
na obtenção de linhas de financiamentos de longo prazo, sem burocracia. O
Hospital Nossa Senhora de Lourdes possuía então despesas financeiras ele-
vadas em conseqüência do endividamento bancário, gerando um resultado lí-
quido muito baixo; mesmo assim, o Ebtida25 já era bom, podendo melhorar
ainda mais, pois tínhamos uma demanda reprimida de clientes e, portanto, a
necessidade de crescimento.
O volume de atendimento do Grupo NSL sempre foi muito bom, por
estar localizado em uma região de alta demanda demográfica e ser um com-
pleto centro de referência na localidade. Sempre que abria suas portas para
novos serviços, esses praticamente lotavam em pouco tempo, sendo constante
a necessidade de expansão.

25
Ebtida: sigla em inglês para lucros antes dos juros, impostos, depreciação e amortização, “lajida” em
português.
128 Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

Ao mesmo tempo, procurávamos melhorar a percepção das partes in-


teressadas; nossos colaboradores contavam com a perspectiva de melhorar o
plano de desenvolvimento, os médicos maiores atratividades pela ampliação
de serviços, os fornecedores com mais facilidades de parcerias, os acionistas
desejavam assegurar a rentabilidade e os clientes ampliar o portfólio de servi-
ços com alta qualidade.

Análise do cenário externo


Nos Brasil, os investidores tradicionais em fundos imobiliários eram os
antigos investidores em “flats”, mercado que tornou-se saturado com o correr
dos anos. Os FII os viriam substituir com vantagens apreciáveis, trazendo ao
investidor muitos benefícios: rentabilidade atrativa, segurança garantida pelo
próprio imóvel, manutenção do prédio por parte do locatário e contrato de lo-
cação por 40 anos.
Quando um investidor imobiliário compra um apartamento ou um “flat”,
ele necessita investir na manutenção desse imóvel, além de precisar procurar
novo inquilino cada vez que o imóvel se desocupa, o que não ocorre com o FII.
Além disso, caso necessitasse de recursos, o investidor teria que vender o imó-
vel para fazer capital. Na modalidade de FII, ele pode se desfazer apenas da
quantidade das cotas que representam as suas necessidades, podendo vendê-
las e recomprá-las quando quiser, pois são comercializadas por intermédio da
Bolsa de Valores. O conjunto representava um mercado altamente promissor
para esse produto, e dessa forma, concluímos que a melhor opção para o Grupo
naquele momento era a captação de recursos por meio dos fundos de investi-
mentos imobiliários.
O processo do FII é simples e complexo ao mesmo tempo. Apesar de
ser necessário o cumprimento de uma série de exigências, desde a sua con-
cepção, passando por toda a parte burocrática, como elaboração de prospec-
tos, contratos, aprovação junto à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e
vendas, o processo também é simples do ponto de vista de prazos e captação
dos recursos financeiros no mercado. Vamos entender um pouco mais como
funciona e quais os seus impactos para a instituição.
Para Entender a Saúde no Brasil 129

O que é fundo imobiliário


Os fundos imobiliários são formados por grupos de investidores com
o objetivo de aplicar recursos no desenvolvimento de empreendimentos imo-
biliários ou em imóveis prontos, com segurança. Do patrimônio de um fundo
podem participar um ou mais imóveis, parte de imóveis ou direitos a eles re-
lativos. Uma das várias formas de remuneração é por meio de taxa de locação
mensal, ou seja, pode-se fazer um fundo imobiliário de parte de um imóvel
ou de seu todo, e vender apenas a parte necessária para levantar os recursos
financeiros necessários. Outra vantagem, as cotas alienadas podem ser recom-
pradas, caso estejam disponíveis, e se essa for a estratégia da empresa. No caso
do Grupo NSL, decidimos colocar os imóveis integralmente, e não é nossa
perspectiva recomprá-los, uma vez que decidimos crescer por esse caminho e
desenvolver novos projetos.

Fundo de investimento imobiliário do


Hospital da Criança
O Grupo NSL lançou, no ano de 2000, o Fundo de Investimento
Imobiliário do Hospital da Criança, com uma captação de 20 milhões de reais
que durou quase dois anos para sua conclusão. Naquele momento, era um dos
primeiros FII de varejo no Brasil, por essa razão um produto não muito co-
nhecido no mercado, assim como o próprio Grupo, que estava se abrindo pela
primeira vez para investidores financeiros.
Foram necessários muito trabalho e muitos esforços de marketing para
conseguir concluir a captação de recursos no prazo estipulado pela CVM, e
assim também alcançar o objetivo do Hospital da Criança, recuperar os in-
vestimentos na construção do prédio, custeado por financiamentos bancários.
Assim, com a captação do FII do Hospital da Criança, liquidamos os financia-
mentos e zeramos a conta para nascer um novo hospital.
Com o sucesso da primeira iniciativa do FII do Hospital da Criança, o
Hospital Nossa Senhora de Lourdes lançou, em 2006, sua expansão por meio
do FII Nossa Senhora de Lourdes, com captação prevista em 88 milhões de
reais. Vamos conhecer as etapas de desenvolvimento desse processo.
130 Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

Etapas do processo do FII Nossa Senhora de Lourdes

Primeira etapa
Na primeira etapa é feita a avaliação econômica do Hospital, executada
por auditor independente e baseada na metodologia de fluxo de caixa descon-
tado. No caso do HNSL foi definido o valor de 88 milhões de reais.

Segunda etapa
Na segunda etapa é constituído o fundo de investimentos imobiliários,
com a finalidade de aplicar recursos em empreendimentos imobiliários, com a
elaboração de contratos, prospectos e material para aprovação junto à CVM.
Nesse momento, o Hospital transfere o seu imóvel ao FII Nossa Senhora de
Lourdes e permanece dono de suas cotas. Uma vez transferido o imóvel, é ela-
borado o contrato de locação entre o Hospital e o Fundo por tempo determina-
do (20 anos, renováveis pelo mesmo período), com cláusula de reajuste anual
pelo IGPM. O valor da locação é estabelecido no ato da constituição do fundo.
No caso do HNSL foi de 1,3% sobre o valor original do fundo, 88 milhões de
reais.

Terceira etapa
Na terceira etapa, após aprovação da CVM, o fundo coloca as cotas à
venda no mercado, por intermédio da Bolsa de Valores, transferindo para o
hospital os recursos assim obtidos.
A operação de venda das cotas foi estruturada em três séries ou tran-
ches; a primeira tranche, de 30 milhões de reais, lançada em 11/10/2006, foi
vendida em 25 horas. A segunda tranche, de 30 milhões de reais, lançada em
10/01/2007, foi vendida em 15 dias, com ágio de 5,4 milhões de reais. A tercei-
ra tranche, de 28 milhões de reais está sendo comercializada após a conclusão
das obras de expansão do Hospital, terminadas no primeiro semestre de 2008.
Foi uma surpresa para todos a rapidez de como entraram, em apenas
um dia, os 30 milhões de reais da primeira tranche do FII Nossa Senhora de
Lourdes, comparado com a demora de quase dois anos dos 20 milhões de reais
Para Entender a Saúde no Brasil 131

do FII do Hospital da Criança, demonstrando que nossa estratégia estava no


caminho certo. A resposta muito satisfatória dos investidores traduziu, assim,
a segurança que o Grupo representava, pois ninguém coloca seu dinheiro em
uma instituição na qual não confia, por mais atrativa que seja a rentabilidade.
A mesma percepção tivemos com a segunda tranche, comercializada
três meses depois da primeira, em janeiro de 2007. O primeiro mês do ano
é tradicionalmente desaquecido para investimentos financeiros, mas mesmo
assim foi totalmente vendida em duas semanas, com ágio de 18%, elevando
nossa captação de 30 para 35 milhões de reais. A terceira tranche está sendo
vendida com a conclusão das obras, e acompanhando as negociações do mer-
cado secundário na Bolsa de Valores, vemos que estas estão sendo realizadas
com cerca de 50% de ágio. Isso significa que nossa captação prevista de 88
milhões de reais será aumentada em quase 30% de ágio, contribuindo para a
redução da taxa de locação, pois o aluguel é pago sobre o valor original e não
sobre o montante de ágio. Veja na tabela 1, que demonstra nossa previsão de
redução da taxa de locação mensal, com a expectativa de reduzir a locação de
1,3% para cerca de 1% sobre o valor captado.

Fundo imobiliário (valores em milhões de R$)


Tranche Valor 1.0 Taxa Ágio Valor Total Taxa Média
I 30 1,3% 0 30 1,30%
II 30 1,3% 5,4 35,4 1,10%
III 28 1,3% 14 42 0,87%
Total 88 1,3% 19,4 107,4 1,07%

Resultados alcançados
Com essa estratégia de captação de recursos por meio do FII, o Grupo
NSL conseguiu a redução de suas despesas financeiras, conforme demonstrado
no gráfico 3, além disso, houve a injeção de 65 milhões de reais para elimina-
ção do endividamento bancário e ampliação do HNSL com taxas menores do
que as taxas bancárias.
132 Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

Gráfico 3 – Estratégias de redução de despesas financeiras (milhões R$ – % receitas)

Estratégias de redução de despesas financeiras


Com tudo isso, conseguimos inaugurar o novo prédio em 2008, dobran-
do a capacidade instalada e trazendo novas tecnologias ao Grupo. Com a dupli-
cação da capacidade instalada, o Hospital Nossa Senhora de Lourdes ampliará
suas receitas, assim reduzindo proporcionalmente os custos financeiros, inclu-
sive a locação do imóvel, gerando dessa forma resultados significativamente
melhores, conforme demonstrado no gráfico 4.
Para Entender a Saúde no Brasil 133

Gráfico 4 – Grupo NSL – Projeção de receitas


líquidas e EBTIDA para os próximos anos

Impacto geral – Partes interessadas


A estratégia adotada impactou diretamente nas partes interessadas; veja
a tabela 2:

Tabela 2 – Impactos das estratégias

Percepção positiva de que o Grupo está em fase de crescimento, com possibilidade


Colaboradores
de desenvolvimento para todos.
Melhora da capacidade de negociação do hospital em função da ampliação de suas
Fornecedores
instalações e conseqüente aumento de volume.
Assegura maior rentabilidade e sustentabilidade por meio do crescimento e desen-
Acionistas
volvimento do Grupo NSL.
Possibilidade de incremento de novas especializações e tecnologias, além da parti-
Médicos
cipação nos resultados.
Boa remuneração atrelada a um produto sólido e seguro, com grande tradição no
Investidores
mercado.
Expansão e melhoria das instalações e hotelaria, garantindo a alta qualidade dos
Clientes
serviços prestados.
134 Estratégias de desenvolvimento do Grupo Nossa Senhora de Lourdes

Metas de ampliação e plano diretor


Pretendemos continuar a expansão e desenvolvimento dos nossos ne-
gócios. Após o término da expansão do Hospital Nossa Senhora de Lourdes,
com término previsto para o 2° semestre de 2008 e 23 mil m² de área cons-
truída, iniciaremos a ampliação do Hospital da Criança, pois este encontra-se
com ocupação saturada e faz-se premente a expansão do número de leitos para
atender a demanda que está à sua porta. Pretendemos aumentar em 50% sua
área construída e sua capacidade instalada.
O Centro de Diagnósticos também ganhará um anexo, no qual preten-
demos implantar outros serviços de diagnóstico, assim como serviços de apoio
ao Grupo NSL, tais como estacionamento, restaurantes, auditórios e salas para
promoção da saúde das pessoas. O Centro de Medicina Integrada, nosso am-
bulatório, também possui plano de expansão para dobrar a capacidade instala-
da; ao todo, pretendemos ampliar os atuais 32.800m² de área construída para
69.600 m².
Desenvolvemos um Plano Diretor no qual estão projetadas as expan-
sões dos prédios do Hospital da Criança, do Centro de Medicina Integrada, do
Centro de Diagnóstico, além da expansão do próprio Hospital Nossa Senhora
de Lourdes, objetivo que será tornado possível com a captação dos recursos
por meio dos fundos de investimentos imobiliários. Sabemos que hoje o Grupo
Nossa Senhora de Lourdes está bem situado no mercado de investimentos imo-
biliários, com alta credibilidade por parte dos investidores, e dois produtos
já conhecidos na área imobiliária, tornando as novas operações passíveis da
mesma agilidade e sucesso das anteriores. Essas foram as estratégias definidas
pelo Grupo NSL e que nos possibilitaram chegar até aqui; sabemos, porém,
que novas oportunidades podem surgir em novos cenários, e o importante é es-
tarmos atentos para aproveitá-las no momento certo e da maneira correta para
continuarmos atingindo os nossos objetivos.
Composição e
evolução dos
índices de
10
inflação geral
esetorial no
Brasil: o que os
gestores em saúde
precisam saber

CAROLINE DA COSTA MOREIRA


ELLEN PENTEADO DA COSTA
JOAQUIM MURILO SILVEIRA NETO
MARIA JOSÉ BLANCO FERREIRO
Pós-graduandos do MBA em Economia e Gestão em Saúde do
CPES – Centro Paulista de Economia da Saúde.

CARLOS ALBERTO GARCIA OLIVA


Docente do CPES – Centro Paulista de Economia da Saúde; Médico
Doutor do GRIDES – Grupo Interdepartamental
de Economia da Saúde – UNIFESP.

Evolução dos gastos e dos


custos do setor saúde
Ao se analisar o gasto com saúde em vários países
do mundo (ver Tabela 1), tanto em valores nominais como
em porcentagem do produto interno bruto (PIB), fica evi-
dente a tendência altista do mesmo (WORD..., 2005.
TOWER, 2008. ORGANIZATION..., 2007). Esse cres-
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
136 o que os gestores em saúde precisam saber

cimento dos gastos tem sido tema de inúmeros estudos que procuram explicar
as possíveis causas para essa trajetória. Freqüentemente, citam-se como causas
desse aumento a inovação tecnológica, o acesso de um número crescente de
pessoas aos serviços e sistemas de saúde, o envelhecimento populacional e
uma inflação no setor saúde (ver Tabela 2), maior do que as aferidas pelos
Índices de Preços ao Consumidor (IPCs) ou pelos índices gerais de preços
(IGPs) (ZUCCHI; NERO; MALIK, 2000. MARUJO, 2006).

Tabela 1 – Evolução dos gastos per capita em saúde, em dez


países desenvolvidos selecionados, de 1960 a 2004

  Gasto anual per capita (em dólares)


Países 1960 (1)
1990(1) 1995(1) 2004(2)
Bélgica 53 1.248 1.747 3.133
Dinamarca 66 1.364 1.848 2.780
Alemanha 68 1.279 2.339 3.171
Japão 26 1.082 1.741 2.293
Noruega 42 1.365 1.814 4.080
Espanha 14 815 1.168 2.099
Suécia 89 1.492 1.728 2.828
Suíça 81 1.760 2.547 4.011
Reino Unido 74 955 1.347 2.560
Estados Unidos da América 149 2.799 3.925 6.096
Média 66 1.416 2.020 3.305
Organization for Economic Co-operation and Development (OECD). Health Data 98:
(1) =

a comparative analysis of twenty-nine countries. OECD, 1998.


(2) =
WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Health Statistics – 2007.

Fonte: elaboração própria.

O envelhecimento populacional sempre é mencionado como causa de


aumento dos custos no setor saúde, alegando-se que a população idosa de-
manda um gasto mais elevado do que os jovens e os adultos, sendo esse gasto
significativamente maior nos últimos anos de vida de um indivíduo. Foram
encontrados na literatura relatos divergentes; o gasto per capita na população
idosa cresce mais lentamente do que é observado no restante da população.
Para Entender a Saúde no Brasil 137

O fator etário explicaria apenas 6% do gasto crescente em saúde (MARUJO,


2006a. REIS, 2006. AGÊNCIA NACIONAL; CARVALHO, 2007).

Tabela 2 – Inflação Médica (%) versus Índice de Preços ao Consumidor (2002-2004)

Índice de Preços Diferença em relação


Países Inflação Médica
ao Consumidor * ao IPC

Alemanha 14,00 3,64 10,36


Brasil 43,61 31,55 12,07
Canadá 42,38 6,95 35,43
Espanha 19,38 9,06 10,32
Estados Unidos 48,11 7,79 40,32
França (1) 13,96 4,14 9,81
Holanda 29,18 11,82 17,36
Itália 8,64 7,19 1,44
Reino Unido (2) 10,35 2,72 7,63
Suíça 24,00 1,30 22,69
* Índice de Preços ao Consumidor divulgado pelo Fundo Monetário Internacional
=

(1) =
Acumulada de 2003 a 2004
(2) =
Acumulada de 2002 a 2003

Fonte: elaboração própria.

A análise da concentração dos gastos em saúde nos países participantes


da OECD, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, no
ano de 2005, mostra que mais da metade dos gastos em saúde concentram-se
nas atividades curativas e de reabilitação (ORGANIZATION, 2007).
No Brasil, assim como nos demais países, o gasto com saúde é cres-
cente. Em dezembro de 2005, o Ministério da Saúde criou uma comissão para
elaboração da Política Nacional de Gestão Tecnológica. Essa comissão visa
orientar os formuladores e gestores do sistema de saúde nas decisões sobre o
conjunto de atividades relacionadas com os processos de avaliação, incorpora-
ção, utilização, difusão e retirada de tecnologias do sistema de saúde, uma das
causas apontadas como origem da inflação dos serviços médicos.
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
138 o que os gestores em saúde precisam saber

O Brasil não faz uma avaliação criteriosa para a incorporação de novas


tecnologias em saúde, muitas vezes desconsiderando o contexto local, as con-
dições de instalações dos recursos disponíveis e os custos de funcionamento e
manutenção da nova tecnologia incorporada. Além disso, existe desigualdade
na distribuição dos recursos tecnológicos nas diversas regiões do país. Em geral,
as tecnologias incorporadas no país não apresentam estudos consistentes, prin-
cipalmente no que diz respeito à análise econômica (AGÊNCIA NACIONAL;
CARVALHO, 2007. KANAMURA; VIANA, 2007. MAGALHÃES, 2001.
MARUJO, 2006b).
Pesquisa recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
mostrou que a expectativa de vida da população brasileira atingiu 72,35 anos. A
maior longevidade se deve à queda da mortalidade infantil e melhora das condi-
ções de vida da população, com acesso a serviços de saúde, saneamento, habita-
ção e educação. A proporção de pessoas com mais de 80 anos na população vem
aumentando significativamente (ver figura 1) (IBGE, 2008).

Gráfico 01 – Projeção da população com 80 anos ou mais,


de ambos os sexos, de 1980 até 2050 no Brasil

Fonte: Fonte: IBGE, 2008.


Para Entender a Saúde no Brasil 139

No SUS, a pressão sobre o aumento das despesas é justificada por suas


características de gratuidade e universalidade, pela maior demanda sobre o
sistema e, também, em função do envelhecimento da população. O aumento
dos custos da assistência à saúde também contribui para pressionar os gastos
com assistência ambulatorial e hospitalar, observando-se, em relação aos gas-
tos exclusivamente hospitalares, um crescimento de 13% para 22,4% do total,
nos últimos 10 anos (BRASIL, M.S., 2008).
Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que o Brasil está
entre os dez países do continente americano com maiores gastos em saúde.
Desse total, 45% foram oriundos de fontes públicas e os outros 55% de fontes
privadas (VASCONCELLOS, 1998; WORLD HEALTH, 2007).
Ainda que atualmente viva-se um período de relativa estabilidade in-
flacionária, é necessário, cada vez mais, que os gestores possuam informações
precisas e atualizadas sobre o comportamento dos preços praticados em sua
organização, facilitando assim, o processo de tomada de decisão.
As organizações da área da saúde, em grande parte, não possuem a ca-
racterística de estabelecer índices próprios para acompanhar o comportamento
dos preços praticados em suas instituições. Inicialmente, esse aspecto pode pa-
recer irrelevante, mas em um momento de gastos crescentes, as organizações
necessitam do maior número de informações possível para estabelecer uma
visão crítica do seu ambiente. Muitos hospitais e clínicas quando se defrontam
com os compradores de serviços para renegociações de tabelas de preços, não
têm o exato conhecimento da variação dos preços e baseiam-se em indicadores
externos, os quais nem sempre refletem com precisão o que acontece em suas
organizações.
Os objetivos principais desse estudo foram: a) revisar as metodologias
de cálculo dos principais índices de preços (gerais e ao consumidor) emprega-
dos no mercado brasileiro, assim como os seus componentes do setor saúde,
quando disponíveis; b) evolução anual dos valores percentuais de cada um
dos índices estudados, no período de 2003 a 2007; c) comparar os valores
cumulativos dos índices globais de preços com os verificados no setor saúde,
para o período estudado. Tudo isso, visando permitir que os gestores em saúde
possam melhor entender os mecanismos de formação de cada um dos índices
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
140 o que os gestores em saúde precisam saber

disponíveis para o cálculo da inflação geral e neste setor e os reflexos de sua


utilização como parâmetro nas negociações.

Inflação e índices de preços


Inflação pode ser conceituada como o aumento contínuo no nível geral
de preços, ocasionando uma perda do poder aquisitivo da moeda. Sob a ótica
do consumidor, corresponderia ao valor que deveria ser acrescido à sua renda
para mantê-lo em um mesmo nível de satisfação, com os preços variando em
dois instantes no tempo. Assim, os índices de inflação tentam medir o quan-
to variam esses preços, para baixo ou para cima (VASCONCELLOS, 1998;
WORLD HEALTH, 2007).
Classicamente, a inflação pode ser provocada pelo excesso de demanda
(inflação de demanda) ou por elevações de custos (inflação de custos). A pri-
meira está associada ao excesso de demanda agregada, em relação à produção
disponível de bens e serviços. Esse tipo de inflação ocorre em períodos de
maior utilização da capacidade produtiva da economia. Já a inflação de cus-
to é definida como o processo inflacionário gerado pela elevação dos custos
de produção. É, pois, uma inflação tipicamente de oferta, na qual o nível de
demanda permanece o mesmo, porém os custos de certos insumos importan-
tes aumentam e são repassados aos preços dos produtos (VASCONCELLOS,
1998; WORLD HEALTH, 2007. SANDRONI, 1999).
Os índices de preços são números calculados visando aferir os preços
de determinadas “cestas” de bens, produtos e/ou serviços. Podem se referir aos
preços ao consumidor, ao produtor (preços no atacado), a custos de produção,
preços de exportação e importação, dentre outros. Suas variações, entre dois
instantes no tempo, são utilizadas para as diversas medidas de inflação existen-
tes no mercado brasileiro (BANCO CENTRAL, 2006).
Há uma série de parâmetros metodológicos em cada uma das medidas
de inflação, destacando-se os seguintes:
• região geográfica e tipo de população coberta pela pesquisa;
• período e intervalo da aferição;
Para Entender a Saúde no Brasil 141

• tipo e abrangência da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) empre-


gada para identificar a composição e a proporção dos itens da “cesta” de
consumo da população selecionada;
• metodologia do cálculo matemático e;
• definição das fontes de coleta de preços.
Os IPs são calculados a partir da comparação dos números-índice de
dois ou mais períodos distintos. O número-índice depende da escolha da amos-
tra, do período base e do método de cálculo. Na escolha da amostra, o consu-
midor padrão é definido através de cortes de renda e a “cesta” de compras a
partir das POFs. Os marcos dos períodos base coincidem com mudanças es-
truturais, seja na metodologia de cálculo, seja na mudança da POF ou por fato
marcante na economia. O início do Plano Real é, atualmente, o período-base
mais utilizado (BANCO CENTRAL, 2006).
Como, na prática, as “cestas” de compras diferem entre as pessoas, se-
gundo seus gostos e preferências individuais, não há um IP que retrate de for-
ma exata nossa inflação. No Brasil, os IPs foram construídos com finalidades
diversas. O primeiro deles surgiu em 1939 (Índice de Preços ao Consumidor da
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo –
IPC-FIPE). Em 1944, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) iniciou a divulgação
do Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), que foi, entre
janeiro de 1960 e outubro de 1985, a medida oficial de inflação. Trata-se de um
índice híbrido, que analisa preços no atacado e no varejo, o que configura uma
prática rara no mundo, uma vez que os índices de preços costumam referir-se
a preços ao consumidor ou a preços ao produtor. A partir de 1985 os índices
oficiais de inflação adotados pelo Governo Brasileiro passaram a ser os do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – (BANCO CENTRAL,
2006; RIZZIERI, 2006).
Com o crescimento inflacionário a partir da segunda metade da década
de 70, gerou-se a necessidade de estabelecimento de regras para correção de
ativos financeiros, câmbio, salários e contratos em geral, estimulando o desen-
volvimento e divulgação de diferentes IPs. Muitos deles surgiram e ganharam
relevância desde então. A grande aceleração inflacionária, a partir de 1983,
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
142 o que os gestores em saúde precisam saber

tornou a questão da medida da inflação mais complexa. Os diversos planos


heterodoxos de estabilização econômica geralmente eram acompanhados de
revisão das regras de indexação e por mudanças nas metodologias das medidas
de inflação. A necessidade do mercado em contar com um IP divulgado no úl-
timo dia do mês para correção de contratos referentes a operações financeiras e
correção de balanços, motivou a criação de IPs que aferem períodos diferentes
do que do primeiro ao último dia de cada mês.
O Plano Real, em julho de 1994, promoveu uma ampla desindexação da
economia, contribuindo para que a discussão sobre as várias medidas de infla-
ção perdesse importância relativa. A partir de 1999, com o estabelecimento do
câmbio flutuante e com a adoção do regime de metas para a inflação, o Banco
Central, na condução da política monetária, passou a necessitar do máximo
de informações sobre a inflação corrente, a tendência e as expectativas para
as várias medidas de inflação. A depreciação cambial continuada, a sua vez,
produziu um descasamento dos diversos IPs.
Apesar da grande variedade de IPs calculados no país, os principais são
os apurados pelas seguintes instituições: Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) e Fundação Getúlio Vargas (FGV) com IPs e IGPs de abran-
gência nacional, além da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE)
e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos
(DIEESE) com IPs pesquisados no município de São Paulo (IBGE, 2008;
RIZZIERI, 2006, DEPTO. INTERSINDICAL, 2008; FGV, 2008; BRASIL/
M.P.O.G., 2005).
Para Entender a Saúde no Brasil 143

Índices de preços selecionados

Tabela 3 – Quadro 1 – Índices de Preços selecionados, segundo instituições responsáveis

Instituição Índices Sigla

Índice Geral de Preços – Disponibilidade interna IGP-DI

Índice Geral de Preços do Mercado IGP-M


Fundação Getúlio Vargas (FGV)
Índice de Preços ao Consumidor – Brasil IPC-Br

Índice de Preços ao Consumidor da Terceira


IPC- 3I
Idade

Índice de Preços ao Consumidor Amplo IPCA

Índice de Preços ao Consumidor Amplo – Saúde


IPCA-Saúde
e cuidados pessoais
Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) Índice Nacional de Preços ao Consumidor INPC

Índice Nacional de Preços ao Consumidor –


INPC-Saúde
Saúde e cuidados pessoais

Fundação Instituto de Pesquisas Índice de Preços ao Consumidor IPC-FIPE


Econômicas – Universidade de São
Paulo (FIPE) Índice de Preços ao Consumidor-Saúde IPC-FIPE Saúde

Departamento Intersindical de Índice de Custo de Vida ICV-DIEESE


Estatística e Estudos Sócio-
Econômicos (DIEESE) Índice de Custo de Vida-Saúde ICV-DIEESE Saúde

Fonte: elaboração própria.


Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
144 o que os gestores em saúde precisam saber

Índices da Fundação Getúlio Vargas –


Principais aspectos metodológicos
IGP-DI
Foi instituído em 1944, com a finalidade de medir o comportamento
de preços em geral da economia brasileira. É um índice que tenta refletir as
variações mensais de preços pesquisados do dia 01 ao último dia do mês cor-
rente. Ele é formado pelo Índice de Preços ao Atacado (IPA), Índice de Preços
ao Consumidor (IPC) e Índice Nacional do Custo da Construção (INCC), com
pesos de 60%, 30% e 10% respectivamente. O IGP-DI apura nacionalmente
e para toda a população as variações de preços de matérias-primas agrícolas e
industriais no atacado (IPA), de bens e serviços finais no consumo (IPC), de
custos da construção civil (INCC). É usado para reajustes de tarifas públicas,
contratos de aluguel e planos e seguros de saúde (nos contratos mais antigos).
Disponibilidade Interna é a consideração das variações de preços que afetam
diretamente as atividades econômicas localizadas no território brasileiro. Não
se considera as variações de preços dos produtos exportados que é considerado
somente no caso da variação no aspecto de Oferta Global.

IGP-M
O que difere o IGP-M/FGV do IGP-DI/FGV é que as suas variações
de preços referem-se ao período compreendido entre o dia vinte e um do mês
anterior até o dia vinte do mês de referência, enquanto o IGP-DI/FGV refere-se
a período do primeiro ao último dia do mês em referência.

IPC-Br e IPC-3I
A cesta básica dos IPC’s da FGV é constituída por produtos que são
pesquisados em 2500 estabelecimentos, totalizando aproximadamente 180.000
mil cotações mensais. A sistemática de coleta de preços do IPC é decendial e
compreende dois segmentos de pesquisa: no primeiro, levantam-se preços de
produtos que representam os grupamentos alimentação no domicílio, artigos
de limpeza e higiene, além do setor serviços. Essa tarefa é realizada por donas
de casa, especialmente treinadas para este fim. Trata-se de um trabalho que
se repete, sistematicamente, a cada dez dias, nos mesmos estabelecimentos,
conforme calendário prévio; no segundo segmento, pesquisam-se os demais
Para Entender a Saúde no Brasil 145

grupos de bens e serviços constitutivos da cesta básica. Essa tarefa é realizada


por funcionários do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), através de uma
única consulta mensal aos estabelecimentos informantes, estrategicamente dis-
tribuídos nos três decêndios.
A “cesta” básica de produtos e a participação dos grupos de itens são
definidas pelas Pesquisas sobre Orçamentos Familiares realizadas pelo IBRE
da FGV. A mais recente foi realizada em 2002/2003. Conhecida, através dela,
a composição dos orçamentos das famílias urbanas de 12 capitais brasileiras,
com rendimento entre 1 e 33 salários mínimos, fez-se a atualização da estrutu-
ra do IPC-Br a partir de janeiro de 2004. A partir daí, e também baseada nessa
POF, a FGV passa a divulgar o IPC- 3I. Os pesos dos grupos e subgrupos utili-
zados para o IPC-Br e para o IPC- 3I podem ser vistos na tabela 4.

Tabela 4 – Pesos dos principais grupos da POF- 2002/2003 da FGV

Grupos Subgrupos IPC-Br IPC-3I


Alimentação 27,49 30,23
Habitação 31,84 33,00
Vestuário 5,40 3,68
Serviços de Saúde 3,70 6,81
Saúde e Produtos médico-Odontológicos 2,60 4,91
Cuidados Saúde 6,30 11,72
Pessoais Cuidados Pessoais 4,06 3,31
Total 10,36 15,03
Educação 5,76 1,86
Recreação 2,56 1,99
Transportes 11,72 7,85

Fonte: elaboração própria.

A FGV não disponibiliza, para consulta pública, os índices mensais de


inflação no Grupo de Saúde e Cuidados Pessoais, motivo pelo qual o mesmo
não foi incluído nos índices estudados nesse capítulo.
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
146 o que os gestores em saúde precisam saber

Índices do IBGE – Principais aspectos metodológicos


Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA e
Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC

O Sistema Nacional de Preços ao Consumidor – SNIPC do IBGE efetua


a produção contínua e sistemática de índices de preços ao consumidor, tendo
como unidades de coleta estabelecimentos comerciais e de prestação de servi-
ços, concessionárias de serviços públicos e domicílios (para levantamento de
aluguel e condomínio). O período de coleta do INPC e do IPCA estende-se,
em geral, do dia 01 a 30 do mês de referência. A população-objetivo do INPC
abrange as famílias com rendimentos mensais compreendidos entre 1 e 8 salá-
rios-mínimos, cujo chefe é assalariado em sua ocupação principal e residente
nas áreas urbanas das regiões; a do IPCA abrange as famílias com rendimentos
mensais compreendidos entre 1 e 40 salários-mínimos, qualquer que seja a
fonte de rendimentos, e residentes nas áreas urbanas das regiões.
O IPCA é utilizado pelo Governo como índice oficial de inflação no
acompanhamento das metas de inflação. A periodicidade é mensal e a abran-
gência geográfica inclui as regiões metropolitanas de Belém, Fortaleza,
Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto
Alegre e Brasília, além do município de Goiânia. A “cesta” básica de produ-
tos e a participação dos grupos de itens são definidas pelas Pesquisas sobre
Orçamentos Familiares realizadas pelo IBGE, (ver tabela 5).
Para Entender a Saúde no Brasil 147

Tabela 5 – Estrutura de ponderação das POFs-IBGE de 2003 e 2006


do setor “Saúde e Cuidados Pessoais” para cálculo do IPCA

Itens 2003 2006


1. Saúde e Cuidados Pessoais  10,51 10,62
1.1 Produtos Farmacêuticos e Óticos  3,39 3,42
1.1.1 Produtos Farmacêuticos  2,97 2,99
1.1.2 Produtos Óticos 0,41 0,43
1.2 Serviços de Saúde 4,56 4,81
1.2.1 Serviços Médicos e Dentários  1,32 1,26
1.2.2 Serviços Laboratoriais e Hospitalares  0,48 0,45
1.2.3 Plano de Saúde  2,76 3,1
1.3 Cuidados Pessoais 2,56 2,39

Fonte: elaboração própria.

Na faixa de renda do INPC, o % de gastos com saúde e cuidados pes-


soais foi de 7,56%. Tanto o IPCA como o INPC disponibilizam publicamente
os índices de inflação de Saúde e Cuidados pessoais, empregados ambos neste
estudo.

Índices da FIPE

IPC-FIPE e IPC-FIPE Saúde


É o mais tradicional indicador de evolução de custo de vida das famílias
paulistanas. Reflete o custo de vida das famílias com renda de 1 a 20 salários
mínimos. O IPC-FIPE toma como base para sua cesta de produtos e serviços
com preços checados uma POF própria (ver tabelas 6 e 7). O cálculo do índi-
ce apura uma média geométrica dos relativos de preços entre dois períodos,
ponderado pela participação do gasto de cada item no consumo total. Uma
vantagem da forma de cálculo do índice é a possibilidade de se incorporar
o chamado “efeito substituição”, ou seja, a metodologia utilizada permite a
substituição do consumo de bens e serviços que tiveram aumento relativo de
preços por aqueles que ficaram relativamente mais baratos, captando, portanto,
o citado efeito substituição.
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
148 o que os gestores em saúde precisam saber

Tabela 6 – Ponderação dos Grupos que compõe o IPC-FIPE

Itens %
Habitação 33,0
Alimentação 23,0
Transportes 16,0
Despesas Pessoais 12,0
Saúde 7,0
Vestuário 5,0
Educação 4,0

Fonte: elaboração própria.

Tabela7 – Ponderação dos Subgrupos que compõe o IPC-FIPE Saúde

Subgrupos %
Contrato de Assistência Médica 43,0
Remédios e Produtos Farmacêuticos 36,0
Serviços Médicos e Laboratoriais 17,0
Aparelhos Corretivos 4,0

Fonte: elaboração própria.

Índices do DIEESE

ICV-DIEESE e ICV-DIEESE Saúde


Afere a variação de preços de uma “cesta” de produtos e serviços de fa-
mílias paulistanas com renda de 1 a 30 salários mínimos. São coletados preços
de 763 bens e serviços, com cerca de 25 mil cotações mensais, do primeiro ao
último dia útil do mês. A base do índice é da Pesquisa de Orçamentos Familiares
(POF) de 1996, a primeira disponível no país desde o início do Plano Real (ver
tabela 8). No levantamento realizado apurou-se a estrutura do orçamento do-
méstico, as mudanças nos hábitos de consumo de bens e serviços e o tipo de
despesas praticado pelas famílias paulistanas, além de registrar informações
sobre renda, ocupação, educação e condições de moradia da população.
Para Entender a Saúde no Brasil 149

Tabela 8 – Gasto mensal médio por domicílio – Município de São Paulo – dezembro de
1994 a novembro de 1995 (em %), segundo grupos de gasto e extratos de renda

Itens de Consumo Total Estrato 1 Estrato 2 Estrato 3

Renda familiar/Média mensal 1.365,48 377,40 934,17 2.782,90


Alimentação 27,4 35,7 31,2 23,8
Habitação 23,5 25,5 23,8 23,0
Transporte 13,6 7,7 12,3 15,6
Saúde 8,2 6,6 6,7 9,2
Vestuário 7,9 8,8 8,4 7,4
Educação e leitura 6,9 3,3 4,1 9,0
Equipamentos domésticos 6,1 5,6 7,2 5,8
Despesas pessoais 4,0 5,4 4,4 3,4
Recreação 2,1 1,2 1,7 2,4
Despesas diversas 0,3 0,3 0,2 0,3

Fonte: DIEESE – POF 1994/95.


Nota: a preços de junho/96; deflator INPC/SP – IBGE.

As características gerais dos índices estudados neste capítulo encon-


tram-se resumidas no Anexo 1, no final deste capítulo.
Variações percentuais anuais e cumulativas dos índices de preços sele-
cionados, período 2003 a 2007
Os índices de preços estudados (gerais e ao consumidor), no cumulati-
vo dos últimos cinco anos, variaram de 29,0 a 38,3% (média de 33,1%) para a
economia como um todo e de 38,3 a 53,7% (média de 43,12%) para os Grupos
Saúde e Saúde / Cuidados pessoais. Os valores anuais e cumulativos para cada
um dos índices estudados encontra-se na tabela 9.
Quando comparamos apenas os índices que apresentam tanto o compo-
nente geral como o do Grupo Saúde ou Saúde e Cuidados Pessoais, pudemos
verificar que os valores inflacionários do setor saúde foram maiores (43,1+/-
8,4%) que os aferidos para os preços da economia em geral (32,0 +/- 2,1%),
com significância estatística (ver tabela 10). Tal achado confirma que, no Brasil,
para o período estudado, o setor de saúde e cuidados pessoais apresentou infla-
ção superior à verificada para a economia de um modo geral.
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
150 o que os gestores em saúde precisam saber

Tabela 9 – Valores percentuais anuais e cumulativos


para cada um dos índices de preços estudados

Anos analisados Acumulado


Fontes Índices
2003 2004 2005 2006 2007 2003/2007
IGP-DI 7,7 12,1 1,2 3,8 7,9 36,9
IGP-M 8,7 12,4 1,2 3,8 7,8 38,4
FGV
IPC-Br 8,9 6,3 4,9 2,1 4,6 29,7
IPC 3 – IDADE 10,1 6,6 5,1 2,3 5,0 32,4
IPCA 9,3 7,6 5,7 3,1 4,5 33,9
IPCA – Saúde e cuidados
10,0 6,9 6,2 6,0 4,5 38,
pessoais
IBGE
INPC 10,4 6,1 5,0 2,8 5,2 33,1
INPC – Saúde e cuidados
11,5 6,1 5,3 4,6 3,3 34,7
pessoais
IPC-Fipe 8,2 6,6 4,5 2,5 4,4 29,0
FIPE – USP
IPC-Fipe – Saúde 8,0 9,9 9,3 6,3 5,7 45,8
ICV – DIEESE SP 9,6 7,1 4,5 2,6 4,8 31,8
DIEESE
ICV – Saúde – DIEESE SP 15,2 16,4 6,4 4,3 3,4 53,7

Fonte: DIEESE – POF 1994/95.

Tabela 10 – Comparação pareada dos índices de inflação geral


e grupo saúde/cuidados pessoais. Período 2003 a 2007

% Inflação 2003 a 2007


Índices
Geral Saúde/Cuidados Pessoais
IPCA 33,9 38,3
INPC 33,1 34,7
IPC-Fipe 29,0 45,8
ICV – DIEESE SP 31,8 53,7
Médias 32,0 43,1
Teste t gl = 6
*p<0,05

Fonte: DIEESE – POF 1994/95.


Para Entender a Saúde no Brasil 151

Discussão e conclusões
Qualquer tentativa de se usar os índices para medir o comportamento de
preços ou custos de um setor, sofre limitações decorrentes de fatores tais como
o grande intervalo entre atualizações das Pesquisas de Orçamento Familiar
(POF), a dificuldade de comparar produtos não-homogêneos e a dificuldade de
tratamento dos produtos (MARUJO, 2006c; CATA PRETA, 2004).
Outra questão a limitar os resultados de índices de inflação é a própria
natureza dos itens abrangidos, que não englobam parte considerável dos itens
de custo de saúde. Há uma diversidade entre aqueles itens que são pagos pelo
consumidor, aqueles que são pagos pelo governo e aqueles que são pagos pelos
planos de saúde. Metodologicamente, não é apropriado empregar medidas de
aumento de preços de itens de uma classe como instrumento de mensuração de
variação de preços de outra classe de itens, a menos que exista uma correlação
muito estreita entre estes, o que a prática parece não corroborar (OCKÉ-REIS,
2006).
Como já apresentado, os gastos no setor saúde podem ser afetados por
fatores diversos, como as variações econômicas, as variações demográficas, a
incorporação de tecnologia, a característica do mercado setorial e o envelheci-
mento da população. Ademais, a facilidade na disponibilidade de informação
atual faz com que muitas vezes procedimentos diagnósticos desnecessários
sejam solicitados, assim como leva alguns pacientes a realizarem exames e/
ou terapias não totalmente reconhecidas como eficazes, buscando a cura ou
atenuação dos sintomas. (23, 24)
A inflação da saúde acumulada no período de 2003-2007 mostrou-se,
em média, 34,7% maior que seus respectivos índices de inflação geral. A alta
de preços e o aumento do uso dos serviços privados de saúde fizeram essas des-
pesas crescerem de importância dentro do orçamento das famílias que ganham
até 40 salários mínimos, vide a estrutura de ponderação das POFs de 2003 e
2006 do setor “Saúde e Cuidados Pessoais” para cálculo do IPCA.
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
152 o que os gestores em saúde precisam saber

O presente trabalho procurou identificar os principais índices de infla-


ção para servir ao gestor de saúde como uma ferramenta em suas negociações
no âmbito do mercado de saúde.
Deve haver no mercado de saúde uma conscientização de que é de fun-
damental importância a avaliação criteriosa quando uma nova tecnologia é
disponibilizada para ser adotada tanto no setor público como no privado, estu-
dando-se seus benefícios, danos e custo efetividade (BODENHEIMER, 2005.
RINHARDR; HUSSEY; ANDERSON, 1999).
Apesar da preocupação crescente com o aumento dos gastos em saúde
e da necessidade real de uma gestão de custos mais eficiente, não encontramos
estudos que esclarecessem a composição dos índices disponíveis para o cálcu-
lo de reajustes neste setor. Portanto, novos estudos devem ser realizados com
este enfoque, oferecendo suporte aos gestores de saúde em suas atividades de
análise e planejamento.

Bibliografia
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Suplementar. Rio de Janeiro, mar. 2007.
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Para Entender a Saúde no Brasil 155

Anexo 1 – Principais características dos índices de preços estudados

Compo- POFs utili- Peso Geral da Faixa de Área de abran-


Instituições Índices Coleta
nentes zadas saúde na POF renda gência

Primeiro ao
último dia
IGP-DI
do mês de
referência IPA, IPC
Não há Não há
21 do mês e INCC
anterior ao
IGP-M 1 a 33
dia 20 do mês 12 maiores
Salários Regiões
Fundação Getúlio de referência
Mínimos Metropo-
Vargas (FGV) Primeiro ao Saúde e
(SMs) no
último dia Cuidados litanas
IPC-Br IPC
do mês de Pessoais =
referência POF-FGV 10,36%
Não há
Primeiro ao 2002/2003 Saúde e
último dia Cuidados
IPC- 3I
do mês de Pessoais =
referência 15,03%

IPCA Saúde e
Cuidados
1 a 40 SMs
Instituto IPCA- Primeiro ao Pessoais =
11 maiores
Brasileiro de Saúde último dia POF-IBGE 10,62%
Não há Regiões
Geografia e do mês de 2006
INPC Saúde e Metropolitanas
Estatística (IBGE) referência
Cuidados 1 a 8 SMs
INPC-
Pessoais = 7,56
Saúde
Fundação IPC-FIPE
Instituto de
Primeiro ao
Pesquisas FIPE – São Município
último dia do Não há Saúde = 7,0% 1 a 20 SMs
Econômicas – IPC-FIPE Paulo de SP
mês ref.
Universidade de Saúde
São Paulo (FIPE)
Departamento ICV-
Intersindical DIEESE
Primeiro ao DIEESE
de Estatística Município
ICV- último dia do Não há – POF Saúde = 8,2% 1 a 30 SMs
e Estudos de SP
DIEESE mês ref. 1994/95
Socioeconômicos
Saúde
(DIEESE)
Composição e evolução dos índices de inflação geral esetorial no Brasil:
156 o que os gestores em saúde precisam saber
Relevância da
análise econômica
em saúde para
11
o processo
decisório do
governo no
tratamento
da doença
cardiovascular

DENIZAR VIANNA ARAÚJO


Professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.

O impacto da doença cardiovascular no


Brasil – problema de saúde pública
A doença cardiovascular (DCV) é responsável por
expressiva carga de morbidade e mortalidade na população
brasileira. A mortalidade pela DCV correspondeu a 32%
do total de óbitos em 2002, equivalente a 267.496 mortes
(BRASIL, 2006). Ocorreram 1.216.394 internações decor-
rentes de DCV, representando 10,3% do total das interna-
ções no Sistema Único de Saúde (SUS). Em relação ao
valor financeiro, a parcela das internações em cardiolo-
Relevância da análise econômica em saúde para o processo decisório do
158 governo no tratamento da doença cardiovascular

gia clínica e cirúrgica correspondeu a 17% do total, superando todos os outros


grupos de especialidades isoladamente (ARAUJO; FERRAZ, 2005).
Os coeficientes de mortalidade por infarto agudo do miocárdio (IAM)
nas metrópoles brasileiras, estratificados por idade, apresentam perfis de
risco diferentes de outros países (AVEZUM; PIEGAS; PEREIRA, 2005).
Aproximadamente 50% dos óbitos masculinos por doença arterial coronaria-
na ocorrem na faixa etária abaixo de 65 anos. Nos Estados Unidos, Cuba e
Inglaterra essa proporção situa-se em torno de 25% (MURRAY et al., 2002).
Essa alta mortalidade em faixas etárias mais jovens representa importante im-
pacto sócio-econômico para o Brasil, pois retira o indivíduo precocemente do
mercado de trabalho.
Alguns estados brasileiros apresentam alta mortalidade por doença is-
quêmica do coração, a despeito da oferta de leitos do SUS. A capital do estado
do Rio de Janeiro possui a maior rede hospitalar pública do país, porém o es-
tado apresenta a 2ª maior taxa de mortalidade específica por doença isquêmica
do coração no Brasil, ou seja, 68,44/100.000 habitantes (BRASIL, 2008a).
Uma hipótese para essa alta mortalidade é a falta de acesso ao tratamen-
to na fase aguda do infarto do miocárdio, principalmente o uso de medicamen-
tos do tipo trombolíticos nas primeiras horas de evolução do IAM.
O tempo decorrido entre o início da dor e a terapia trombolítica perma-
nece como um dos fatores determinantes na mortalidade do IAM, com supra-
desnivelamento do segmento-ST (FTT, 1994). Apesar do avanço nos recursos
tecnológicos e conscientização da população quanto à necessidade de aten-
dimento precoce em vigência do IAM, o tempo decorrido entre o início dos
sintomas e a instituição da terapêutica trombolítica permanece inalterado, com
mediana de 2,5 a 3 horas, em cenários favoráveis de acesso da população aos
serviços de urgência (WALLENTIN, 2000).
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), foi lançado
em setembro de 2003, como principal componente da Política Nacional de
Atenção às Urgências, do SUS (BRASILEIRO, 2007). Apesar desse esforço,
ainda não está estruturado, em âmbito nacional, um programa sistematizado
para oferecer terapia trombolítica na fase aguda do infarto do miocárdio.
Para Entender a Saúde no Brasil 159

Meta-análise conduzida por Morrison e colaboradores demonstrou que


a estratégia de infusão do trombolítico em ambiente pré-hospitalar, realizada
por médicos ou para-médicos, possibilitou a antecipação da terapia trombolí-
tica em 60 minutos, com redução global de 17% na mortalidade, quando com-
parado ao tratamento intra-hospitalar (MORRISON et al., 2000).

Formulação da política de atenção ao infarto agudo do


miocárdio no Ministério da Saúde – a contribuição
da análise econômica em saúde

Análise econômica em saúde


A análise econômica em saúde é definida como a análise das opções de
escolha na alocação dos recursos escassos destinados à área de saúde, entre
alternativas que competem pelo seu uso. Todas as formas de análise econômica
envolvem tanto inputs (uso de recursos) quanto outputs (benefícios de saúde)
das intervenções em saúde. Essas análises proporcionam a comparação entre
as alternativas e facilitam o processo de escolha do uso apropriado dos recur-
sos escassos. A figura 1 resume a estrutura da análise econômica.
Ganhos de saúde em

Figura 1 – Estrutura da análise econômica

Fonte: KOBELT, G. Health Economics: An Introduction


to Economic Evaluation. 2nd Edition. 2002, p. 26.
Relevância da análise econômica em saúde para o processo decisório do
160 governo no tratamento da doença cardiovascular

Análise de custo-efetividade
A análise de custo-efetividade (cast-effeitiveness) mensura o custo em
unidades monetárias dividido por uma unidade não monetária, chamada uni-
dade natural, por exemplo, anos de sobrevida após uma determinada inter-
venção em saúde ou redução de eventos cardiovasculares. A análise de custo-
efetividade é a melhor opção quando comparamos duas ou mais intervenções
para um mesmo desfecho em saúde. Permite estimar o custo por unidade de
efetividade. Trata-se da modalidade mais utilizada nas análises econômicas em
saúde. Uma intervenção em saúde é dita custo-efetiva se produz um benefício
clínico justificável para o seu custo.
Análise de custo-efetividade da trombólise pré-hospitalar versus intra-
hospitalar no cenário do Sistema Único de Saúde
(ARAUJO et al., 2008)

Morrison e colaboradores compilaram seis ensaios clínicos controlados


randomizados, com total de 6.434 pacientes, e demonstraram que a estratégia
de infusão do trombolítico em ambiente pré-hospitalar, realizada por médi-
cos ou para-médicos, possibilitou a antecipação da terapia trombolítica em 60
minutos [104(7) minutos no pré versus 162(16) minutos no intra; p = 0.007],
com redução global de 17% na mortalidade, quando comparado ao tratamento
intra-hospitalar (odds ratio 0.83; 95% CI, 0.70-0.98).

Métodos
Por meio da elaboração de um modelo analítico de decisão, do tipo ár-
vore de decisão, podemos avaliar e comparar os custos e a efetividade clínica
da trombólise pré-hospitalar versus intra-hospitalar em pacientes com infarto
agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento-ST, no cenário do
Sistema Único de Saúde (Figura 2).
Para Entender a Saúde no Brasil 161

Figura 2 – Árvore de decisão da trombólise pré-hospitalar


versus intra-hospitalar em pacientes com IAM

Fonte: fonte: VALE L. et al., 2004; GREAT, 1992.


Relevância da análise econômica em saúde para o processo decisório do
162 governo no tratamento da doença cardiovascular

Legenda: IAM: Infarto Agudo do Miocárdio; p: Probabilidade; PH:


Pré-Hospitalar; IH: Intra-Hospitalar; SAMU: Serviço de Atendimento Móvel
de Urgência.
As probabilidades evolutivas da árvore de decisão foram obtidas do
modelo econômico desenvolvido por Vale e colaboradores (2004), oriundos
do ensaio clínico controlado randomizado GREAT (1992), utilizado na meta-
análise realizada por Morrison e colaboradores.

Dados de probabilidade de ocorrência dos eventos


A árvore de decisão do modelo prevê que uma parcela da população
pode falecer antes do atendimento médico, tanto no ambiente pré-hospitalar,
quanto no intra-hospitalar, e que, em função da acurácia diagnóstica dos exa-
mes disponíveis para confirmação do IAM, os pacientes são diagnosticados
como verdadeiro positivo, falso positivo, verdadeiro negativo e falso negativo.
Não existem dados disponíveis na literatura comparando a acurácia do diag-
nóstico realizado em ambiente pré-hospitalar versus intra-hospitalar. Partindo-
se da premissa de que a acurácia diagnóstica no ambiente pré-hospitalar é in-
ferior à do ambiente intra-hospitalar e conhecidos os valores de resultados ver-
dadeiro e falso positivos em ambiente intra-hospitalar, foi adotado como fator
de conversão o valor de 75% para calcular esses parâmetros para o ambiente
pré-hospitalar. Os pacientes com diagnóstico verdadeiro positivo ou falso ne-
gativo também são sujeitos a reinfarto. A taxa de reinfarto em 30 dias para pa-
cientes com IAM que não receberam tratamento com trombolítico foi de 16%
(WALLENTIN et al., 2003).
Dentro desse modelo, os pacientes diagnosticados com IAM podem ser
elegíveis ou não para a terapia trombolítica. Caso recebam o trombolítico, os
pacientes são tratados com tenecteplase ou estreptoquinase, no pré e no intra-
hospitalar, respectivamente. O tenecteplase foi escolhido no pré-hospitalar por
ser o único trombolítico em bolus disponível no Brasil, condição que viabiliza
a administração fora do ambiente hospitalar. A estreptoquinase foi à opção
no intra-hospitalar pelo menor preço de aquisição no SUS. Os pacientes que
não recebem o trombolítico são tratados com os medicamentos adjuvantes e
Para Entender a Saúde no Brasil 163

terapia de suporte recomendados pelas diretrizes da Sociedade Brasileira de


Cardiologia (PIEGAS et al., 2004).
Os pacientes atendidos no ambiente pré-hospitalar são encaminhados
ao hospital para continuidade do tratamento. O tempo médio de internação é de
oito dias (tempo médio de internação por IAM no SUS em 2005), para aqueles
pacientes verdadeiros positivos, que tenham ou não recebido o trombolítico.
O paciente falso negativo retornará em momento posterior ao hospital e será
diagnosticado e tratado tardiamente com IAM.
As diretrizes sobre tratamento do infarto agudo do miocárdio foram
adotadas para estimativa dos recursos utilizados nas estratégias de tratamento
pré-hospitalar e intra-hospitalar. Os recursos foram valorados com os preços
governamentais praticados no ano 2005, no tratamento da IAM, na perspectiva
do SUS (BRASIL, 2008b).

Dados de custos utilizados no modelo


Os componentes dos custos diretos analisados no modelo foram os
custos com atendimento pré-hospitalar realizado pelo SAMU (Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência), atendimento de urgência no hospital, hospi-
talizações, exames complementares, consultas ambulatoriais de seguimento e
medicamentos de uso ambulatorial (SSEB, 2008).
A unidade de efetividade empregada no modelo foi “anos de vida sal-
vos”.
A análise custo-efetividade realizada foi estabelecida com base na razão
de custo-efetividade incremental (RCEI), calculada pela divisão da diferença
média de custos entre a trombólise pré-hospitalar versus intra-hospitalar, pela
diferença de efetividade (anos de vida salvo). A árvore de decisão e as análises
estatísticas foram conduzidas no programa TreeAge Pro Healthcare (TreeAge
Software, Inc. MA, USA, versão 2005).
Relevância da análise econômica em saúde para o processo decisório do
164 governo no tratamento da doença cardiovascular

Resultados
A análise de custo-efetividade, na comparação da trombólise pré-hos-
pitalar com tenecteplase versus intra-hospitalar com estreptoquinase, no ho-
rizonte de tempo de um ano, demonstrou minimização de custo de R$ 44,90.
Essa condição de menor custo com maior efetividade na comparação entre as
duas estratégias de tratamento é chamada dominante. A tabela 1 sumariza os
resultados encontrados na análise econômica.
Tabela 1 – Resultado da análise de custo-efetividade na comparação
da trombólise pré-hospitalar versus intra-hospitalar, no tratamento do Infarto
Agudo do Miocárdio, no horizonte de tempo de 1 e 20 anos
Horizonte de tempo de 1 ano
Expectativa de vida
Estratégia Custo RCEI
(em 1 ano)
Pré-hospitalar R$ 1.025,45 0,7696
Intra-hospitalar R$ 1.070,34 0,7661
Incremental (R$ 44,90) 0,0035 DOMINANTE
Horizonte de tempo de 20 anos
Expectativa de vida
Estratégia Custo RCEI
(em 20 anos)
Pré-hospitalar R$ 5.640,04 11,4853
Intra-hospitalar R$ 5.816,76 11,3268
Incremental (R$ 176,72) 0,1585 DOMINANTE

Fonte: elaboração própria.


RCEI = Razão de custo-efetividade incremental.
Para Entender a Saúde no Brasil 165

Conclusão
Apesar do avanço nos recursos tecnológicos e dos esforços de cons-
cientização da população quanto à necessidade de atendimento precoce em
vigência da suspeita de IAM, o tempo decorrido entre o início dos sintomas
e a instituição da terapêutica trombolítica permanece inalterado. Tal cenário é
preocupante nas principais capitais brasileiras, nas quais o deslocamento dos
pacientes com suspeita de IAM é complicado por questões logísticas, impedin-
do o acesso rápido à terapia trombolítica.
A análise de custo-efetividade ambientada para o cenário do Sistema
Único de Saúde, permitiu a comparação da estratégia de infusão do trombolíti-
co em ambiente pré-hospitalar, realizada pelo SAMU, comparado ao tratamen-
to intra-hospitalar convencional. O objetivo foi avaliar se o custo inicial com
o aparato logístico do SAMU e os custos do trombolítico em bolus proporcio-
naria redução de custos subseqüentes como necessidade de re-hospitalização
e procedimentos intervencionistas, pelo melhor manejo do IAM no ambiente
pré-hospitalar. A modelagem sugeriu que apesar da necessidade de investi-
mento inicial e a menor acurácia diagnóstica do IAM no grupo do atendimento
pré-hospitalar, o custo total da coorte hipotética de pacientes acompanhados ao
longo de um ano foi menor comparado ao tratamento no intra-hospitalar, com
ganho de 0,0035 em um ano e 0,1585 na projeção dos dados para o horizonte
de 20 anos.
A adoção da estratégia de trombólise pré-hospitalar no IAM, no cenário
do SUS, com uso do SAMU, pode reduzir a mortalidade precoce e a morbida-
de desses pacientes. O benefício de saúde da intervenção, isto é, a possibilida-
de de reperfusão precoce pode significar menor custo no médio e longo prazo,
pela redução do reinfarto e morbidade da cardiopatia isquêmica crônica.
Este é um exemplo da contribuição que a análise econômica em saúde
pode oferecer para formuladores de políticas de saúde e gestores, na difícil ta-
refa de alocar os recursos escassos, em estratégias que reduzam a mortalidade
e signifiquem melhora da qualidade de vida para a população brasileira.
Relevância da análise econômica em saúde para o processo decisório do
166 governo no tratamento da doença cardiovascular

Bibliografia
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Relevância da análise econômica em saúde para o processo decisório do
168 governo no tratamento da doença cardiovascular
As doenças
crônicas, o
gerenciamento
12
de doenças e
a saturação
dos serviços de
emergência

WALDEMIR WASHINGTON REZENDE


Médico do HC/FMUSP, diretor executivo do Instituto
Central do Hospital das Clínicas FMUSP 2003-2006,
Especialista em administração hospitalar pela
Fundação Getúlio Vargas.

A Organização Mundial de Saúde sinaliza que as


doenças crônicas corroem quase a metade dos recursos uti-
lizados nos sistemas de saúde, ocasionando a grande maio-
ria das internações nos serviços públicos e dos sinistros das
operadoras de planos de saúde.
O excesso de peso afeta dezenas de milhões de indi-
víduos, a hipertensão, o diabetes mellitus e as doenças car-
díacas apresentam crescimento exponencial nos países em
desenvolvimento, enquanto o infarto agudo do miocárdio
(IAM), mata milhões de pessoas todos os anos. Em nosso
meio prevalece a hipertensão arterial, líder inconteste no
170 As doenças crônicas, o gerenciamento de doenças e a saturação dos serviços de emergência

ranking de doenças, relacionando-se diretamente com a maioria absoluta dos


acidentes vasculares cerebrais e IAM.
Também o envelhecimento populacional incentiva a preocupação com
a prevenção, gerenciamento dos agravos e destinação de recursos financeiros
para atendimento mais precoce dessa crescente parcela da população. Os ido-
sos apresentam a maior recorrência dessas doenças crônicas, em geral com
diagnósticos múltiplos associados, necessidade de maior número de exames
complementares para diagnóstico ou seguimento e medicamentos de uso con-
tínuo. Após os 60 anos, na ausência de antecipação dos fatores de risco em
idades mais precoces, haverá inexorável predomínio dessas enfermidades, im-
plicando maior utilização dos serviços de saúde e custos crescentes.
Essa maior prevalência das doenças crônicas (hipertensão, diabetes e
doenças cardiovasculares), agrava-se diante de maus hábitos de vida e erros
alimentares, exigindo medidas profiláticas, em sistema de educação continua-
da, na tentativa de reduzir os agravos das moléstias e respectivos custos sócio-
econômicos associados.
Analisando-se as condições de saúde e fatores de risco, surgem alterna-
tivas para cuidados adicionais, aperfeiçoamento da relação médico-paciente,
incentivo ao gerenciamento dessas doenças e investimento na prevenção, ante-
cipando-se a redução de gastos com despesas futuras.
Os modelos de atendimento predominante fragmentam o acolhimen-
to ao paciente em inúmeras especialidades médicas, direcionam para exames
sofisticados e de alto custo, em detrimento da desejada anamnese e exame
físico.
O primeiro atendimento, quando realizado por um profissional con-
venientemente capacitado, pode transmitir confiança, direcionar o adequado
diagnóstico e tratamento do paciente. Essas etapas envolvem a introdução de
hábitos saudáveis relacionados à dieta e à atividade física, amplificando a efi-
ciência dos medicamentos.
A pré e pós-consulta, realizadas pela enfermagem e nutricionistas, po-
dem firmar as diretrizes para controle de obesidade, dislipidemias, diabetes e
hipertensão arterial. Em se acrescentando avaliação pela fisioterapia, haveria
Para Entender a Saúde no Brasil 171

subsídio para melhora das tensões ósteo-musculares e outras co-morbidades,


potencialmente corrigidas com mudanças de hábito e postura corporal.
Essa concepção holística do atendimento à saúde exige sólida formação
profissional, incremento de vínculo entre os profissionais e as comunidades,
estreitamento das relações inter-especialidades, padronização das condutas
embasados em evidências e olhar atento às peculiaridades individuais.
A amplificação dos cuidados e benefícios da assistência médica, farma-
cêutica e/ou nutricional decorre da maior facilidade para comunicação direta
com os pacientes. Os alertas específicos na pré e pós-consulta, avisos periódi-
cos por telefone, e-mail, cartas, rádios comunitárias, reuniões com lideres da
comunidade, grupos de apoio por doença, visitas domiciliares ou até mesmo
tele-educação, podem garantir o uso correto das medicações e induzir aos cui-
dados complementares indispensáveis relacionados aos desejados hábitos de
vida saudáveis, dieta balanceada e atividade física regular.
O acompanhamento do estado de saúde, além da melhora evidente dos
indicadores relacionados à qualidade de vida (Quality Adjusted Life Years),
pode impedir agravos indesejados e visitas inúteis, cansativas, onerando os
prontos-socorros, geralmente abarrotados.
Considerando-se o incentivo da Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS) aos programas de promoção à saúde e prevenção de doenças, torna-se
essencial o conhecimento integral dos indicadores epidemiológicos de saúde e
morbi-mortalidade das comunidades-alvo.
Os programas de combate às doenças de maior prevalência, a motivação
para mudanças de hábito de vida em programas de prevenção, gerenciamento
de doenças crônicas, promoção à saúde e qualidade de vida, podem reduzir as
despesas e, paralelamente, levar à maior adesão dos pacientes aos tratamentos
preconizados.
Entretanto, mantendo-se as condições vigentes, a preservação da vida/
luta diária contra a morte seguirá sendo realizada nos ambientes destinados aos
serviços de emergências. Nessa atmosfera inóspita, centenas de pessoas per-
passam brevemente sob pretensos cuidados médicos e transitam em romaria
frustrada a esses serviços de “portas abertas”. Poucos reconhecem ou se pre-
172 As doenças crônicas, o gerenciamento de doenças e a saturação dos serviços de emergência

ocupam com esse evidente prejuízo na eficiência dos serviços e conseqüente


desperdício de recursos, altamente qualificados, deslocados para atender casos
relativamente simples, em sua grande maioria.
Agravando essa conjuntura, esse modelo assistencial oscila entre perío-
dos de maior ou menor integração entre os gestores das unidades federais, dos
estados ou municípios respectivos. Na ausência da desejada conexão, perdem-
se os investimentos no atendimento básico à saúde, elimina-se o potencial filtro
no atendimento médico e centraliza-se o atendimento ao paciente nas unidades
dotadas de pronto-socorro (PS).
O equívoco de cultivar-se a entrada no sistema de saúde através da por-
ta do PS, ao invés de buscar atrair os paciente para as Unidades Básicas de
Saúde (UBSs), ou Ambulatórios de Especialidades, reflete-se no desperdício
de recursos financeiros, humanos e na sobrecarga indevida do sistema.
Nas unidades de emergência, como resultado dessas dificuldades, iden-
tificam-se pacientes em busca de consulta médica de rotina, a procura de orien-
tação diante de ocorrências triviais do ponto de vista do médico, solicitação de
atestado médico ou “troca de receita” e, até mesmo, para obter alimentação e
cuidados de higiene.
Passam-se os anos, trocam-se os gestores, novidades recicladas com
nomes definidos por “marqueteiros”, desenhos e fluxos decididos à distância
dos “operários” do sistema, por vezes estabelecendo objetivos reais escusos, e
nos deparamos com o PAS, o CEU e as AMAS, dentre outras iniciativas, mui-
tas vezes frustradas, apesar de bem-intencionadas.
Na prática, são escassas as transformações reais e minguam os resulta-
dos objetivos para a desejada e indispensável organização da rede. As unidades
destinadas ao atendimento básico, os serviços de pronto-atendimento descen-
tralizados e regionalizados que deveriam estabelecer o sistema de referência e
contra-referência, não “emplacam”.
Em teoria, parece consenso: deve-se garantir o funcionamento de uni-
dades descentralizadas para atendimento médico referenciado, ensejar ações de
apoio máximo para das prioridade e direcionar assistência ao paciente conforme a
complexidade dos casos, treinar equipes para atendimento pré-hospitalar, manter
Para Entender a Saúde no Brasil 173

hospitais secundários, terciários, de retaguarda e/ou de apoio, em regime de inte-


gração e colaboração, coordenados por um Plantão Controlador Metropolitano e
uma Central de Vagas Estadual.
Em outras palavras, os pacientes devem ser atraídos por uma boa equi-
pe médica em uma infra-estrutura decente, conferindo orgulho e respeito pela
comunidade que assume a proteção dos profissionais em seu local de trabalho,
construindo um longo e profícuo relacionamento.
Nessas condições, médicos e pacientes integram uma parceria e se fi-
xam nas UBSs, realizando rotinas para atendimento aos agravos, prevenção de
doenças mediante orientação quanto à dieta e atividade física, em consonância
com protocolos de conduta, previamente acordados com os hospitais univer-
sitários.
Algumas unidades de atendimento, estrategicamente posicionadas e
dotadas de capacidade resolutiva para absorver casos menos complexos, com
acesso a exames de sangue como glicemia, de urina, eletrocardiograma e exa-
me radiológico, aliados a uma assistência farmacêutica eficaz, absorveria mais
de 80% dos casos, antecipando necessidades e reduzindo o calvário da popu-
lação no pronto-socorro.
Com um pouco de boa vontade, introduzem-se os atendimentos não mé-
dicos destinados a pré e pós-consulta, intensificando as orientações relacionadas
à melhoria de hábitos alimentares, estímulos a um estilo de vida mais saudável
e associando-se algumas palavras de apoio, com certeza, ouviremos eloqüentes
elogios a essas unidades.
Quanto maior a resolutividade e proximidade com as comunidades ca-
rentes, maior a efetividade na utilização dos parcos, mas não desprezíveis,
recursos destinados à saúde. Basta associar, em equipe coesa, as especialidades
básicas: o clínico geral, o cirurgião, o ginecologista/obstetra e o pediatra, lota-
dos em ambiente com merecidas condições de trabalho, recursos mínimos para
exercerem sua arte e uma remuneração condigna.
Para construir as unidades de referência com múltiplas especialidades,
indispensáveis nas condições atuais e estado da arte da medicina, arremetam-
se os estudiosos nos indicadores de morbidade e mortalidade regionais. A am-
174 As doenças crônicas, o gerenciamento de doenças e a saturação dos serviços de emergência

plificação das equipes, direcionada pelas informações epidemiológicas deve


garantir a presença de profissionais da saúde em qualidade e quantidade pró-
ximas do ideal.
A inclusão de psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiolo-
gistas, terapeutas ocupacionais otimizariam a atuação de reumatologista, pneu-
mologista, neurologista, ortopedista e/ou das demais especialidades cadastra-
das no Conselho Federal de Medicina.
Nessas condições, inserindo profissionais qualificados nas comunida-
des, mantendo-se boas condições de trabalho, obviamente com remuneração
condigna, reconheceríamos mais de 80% dos diagnósticos possíveis, poupan-
do milhares de reais para manter os hospitais e prontos-socorros sobrecarre-
gados.
Adicionemos a racionalização das ambulâncias do SAMU (Serviço
de Atendimento Móvel de Urgência), economia com ônibus, metrô ou táxi.
Atendimento sem demora, sem trânsito, sem perda do dia de trabalho, sem
filas, sem atestado médico desnecessário, reduzindo o absenteísmo e desone-
rando a fila do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Quantas vezes, ao medicar rapidamente um paciente, evitaremos sua
demissão pelo empregador menos compreensivo e um tanto quanto impacien-
te? Poderíamos contribuir para absolver o SUS diante de sua culpa parcial no
colapso da saúde ao ocasionar agravos das doenças orgânicas e psicológicas
pelo indesejado retardo no diagnóstico e tratamento dos problemas mais pre-
valentes.
A maioria dos casos pode ser resolvida em unidades básicas ou secun-
dárias, com acomodação digna destinada à espera dos resultados de exames
diagnósticos ou à observação de resposta ao tratamento preliminar; salas para
pequenas cirurgias; mini-laboratórios e/ou convênios com redes locais, para
exames subsidiários. Nada de pernoitar em macas nos prontos-socorros.
Os hospitais secundários absorveriam as cirurgias simples: apendicec-
tomia, retirada da vesícula doente, hérniorrafias, debridamento do pé diabético,
tratamento de ferimentos superficiais, compensação de diabetes e da hiperten-
são arterial, dentre outros tratamentos de doenças mais prevalentes.
Para Entender a Saúde no Brasil 175

O sustentáculo desse modelo é a garantia de referência e rápido di-


recionando aos serviços secundários e terciários, integrando as equipes para
atendimento dos casos mais complexos, mediante juízo crítico dos profissio-
nais envolvidos e “guidelines” pré-estabelecidos. Não poderia existir nenhum
gargalo no sistema, sob risco de perda da credibilidade e retorno ao estado de
desequilíbrio precedente.
Em mil casos atendidos por dia no PSHC, mencionando pesquisa reali-
zada pelos alunos e estagiários da Divisão de Psicologia em 2006, confirma-se:
mais de 800 lá estão pelas dificuldades na manutenção de equipes da saúde e
infra-estrutura nas UBSs. Se não existe o médico, se ocorre falta de medica-
mento, a falência e o colapso logo se anunciam.
E sobressaindo-se nesse sistema, a notoriedade e a excelência dos gran-
des hospitais são as alternativas para atenuar a ineficiência do atendimento
primário e secundário.
Reiteradamente, observamos nossos gestores deslizarem diante da mí-
dia reconhecendo os problemas, freqüentemente denunciados por essa, pelos
Conselhos Regionais de Medicina, sindicatos e, até mesmo, pelo Ministério
Público sem implementação de medidas corretivas eficazes e duradouras.
Parece mais fácil noticiar com estardalhaço a demissão da diretoria do
hospital do que fazer o “mea culpa”. Como admitir o fracasso do sistema e
olhar incólume, cenas com dezenas de macas revelando o colapso dos hospi-
tais? Onde estavam e o que fizeram os dirigentes, alguns no poder há décadas,
para evitar ou atenuar o caos nos serviços de emergências, em todo o País?
Freqüentemente observamos a demissão de médicos por sobrecarga de
trabalho ou a exoneração de gestores quando o colapso explode na mídia, fla-
grando, sem possibilidade de camuflagem, o caos diário do pronto-socorro,
abarrotado de pacientes em macas.
No exercício do cargo, freqüentei dezenas de reuniões para análise do
problema. Na prática, quase nada acontecia. A cada reunião, um novo diretor
do município. Trocava-se o gestor do estado e tudo voltava à estaca zero. Nada
de progresso. Permanecíamos reféns do sistema desordenado. Organizávamos
nossa rotina, ampliávamos as equipes, agilizávamos o atendimento e reduziam-
176 As doenças crônicas, o gerenciamento de doenças e a saturação dos serviços de emergência

se as filas, por algumas semanas. Com a notícia da redução no tempo de espera


da consulta, mais pacientes em busca do nosso PS e recomeçava o infausto
calvário. Parece não ter fim, drama insolúvel de um sistema falido, apesar de
bem intencionado.
Numa das últimas reuniões, já na iminência de finalizarmos o mandato,
demonstrei ausência de paciência, sem perda do controle. Após perceber novos
gestores do município, pedi a palavra e em discurso inflamado resumi todas as
reuniões anteriores, afirmando que, se era para começar, pela enésima vez, do
zero, tudo bem, nada a fazer. Entretanto, registrem em ata minha revolta diante
de reuniões sem se relevarem os temas discutidos anteriormente. Mesmo sem
ser o meu objetivo, o desabafo foi o estopim para explosão da revolta dos de-
mais colegas, médicos administradores, esgotados e impacientes pela inércia
do sistema. Onde estavam os desejados hospitais secundários? Quais seriam as
unidades de retaguarda? Quais hospitais receberiam os pacientes crônicos, fora
de possibilidade de tratamento, com necessidade de assistência médica básica?
E os cuidados de higiene para os doentes em estágio final de vida, sem chance
de cirurgia curativa, sem resposta à quimioterapia ou radioterapia?
Quem garante a almejada humanização do atendimento, atenuação do
sofrimento e acolhimento dos familiares? Esses doentes merecem respeito. Não
devem permanecer em macas nos corredores de nenhum hospital. Agravando
a situação, esse ambiente caótico abriga médicos clínicos, cirurgiões, especia-
listas de áreas diversas, cirurgiões dentistas, médicos residentes, enfermeiros,
auxiliares de enfermagem, nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais,
alunos da graduação de todas as categorias profissionais mencionadas e res-
pectivos pós-graduandos, aprimorandos, estagiários, colaboradores ou volun-
tários. Infelizmente, essa rotina diária massacra corações e mentes que se re-
fugiam numa frieza aparente. Todos se acostumam com essa “normalidade”.
Qual o problema em ter paciente em maca? O plantão acaba, toma-se uma
ducha e vamos para o outro emprego...
Que se utilizem primeiramente das tecnologias simples, um bom e aten-
to médico, coloque-os à disposição em Unidades Básicas de Saúde, reconhe-
çam a necessidade dos exames complementares fundamentais, direcionem-se,
ordenadamente, os pacientes a Unidades Secundárias com maior resolutivida-
Para Entender a Saúde no Brasil 177

de e sem demora para não incorrer no agravamento da moléstia. Como médico


atuante e gestor de saúde afirmo que os protocolos destinados a padronizar
condutas para diagnóstico e tratamento, refletindo a contínua e infinita busca
do padrão assistencial ideal.
O modelo centrado no paciente e nas comunidades conduzirá para a
ambicionada regionalização e hierarquização da assistência médica preconiza-
da pelo Sistema Único de Saúde (Lei Orgânica da Saúde 8.080/90).
Esse arquétipo assistencial, concebido há mais de 20 anos, exige padro-
nização das rotinas para atenção ao paciente, facilita a desejada hierarquização
e regionalização dos serviços de saúde.
O paciente deve ser beneficiário dessa conduta médica exemplar, am-
plificando a confiabilidade nas equipes, descentralizando essa consulta inicial,
sem desperdício de recursos financeiros pessoais ou do sistema de saúde e
obtendo satisfação de todos os envolvidos.
178 As doenças crônicas, o gerenciamento de doenças e a saturação dos serviços de emergência

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Formação do
complexo médico-
-hospitalar:
13
contribuições
da história
econômica para a
compreensão de
problemas atuais

Eduardo Bueno da Fonseca Perillo


Médico, mestre em administração pela PUC/SP, doutor em
história econômica pela USP.

Maria Cristina Sanches Amorim


Economista, professora titular e coordenadora do
núcleo de pesquisa em regulação econômica e
estratégias empresarias da PUC/SP.

A veces el miedo a perder los objetivos conduce a


perder la democracia: a veces el miedo a perder la democra-
cia conduce a perder los objetivos. Siempre el miedo. Es la
derrota de la razón.
(Carlos Matus, 1980)
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
180 para a compreensão de problemas atuais

Estimativas do Banco Mundial revelam que o Brasil despende hoje com


assistência à saúde, tanto em termos absolutos quanto relativos, mais do que
países de renda média comparáveis, embora obtenha resultados relativamente
menores quanto ao montante despendido. A mesma fonte declara que os hos-
pitais brasileiros respondem pelo emprego de 56% da mão de obra utilizada na
saúde, representando ainda 67% das despesas totais e 70% dos gastos públicos
com saúde, e mais de 60% deles apresentem menos de 50 leitos (LA FORGIA;
COUTTOLENC, 2008:41).
O relatório do IBGE, Economia da Saúde – Uma perspectiva macroe-
conômica 2000-200526, apontou que o Brasil despende 8% do PIB com a ru-
brica saúde, cabendo às famílias mais de 60% desse dispêndio, representando,
em 2005, 8,2% de seus gastos totais. As despesas governamentais montaram a
menos de 40% do total dos gastos com saúde, contrapondo-se a valores osci-
lando entre 70-85% nas economias desenvolvidas, exceto nos Estados Unidos
(45%). Com relação aos demais países do BRIC, os gastos brasileiros foram
superiores aos da Índia (19%) e China (39%), porém inferiores ao da Rússia
(62%). O gasto das famílias não é homogêneo; o gasto médio mensal com saú-
de da parcela da população constituída pelos 10% mais ricos é de R$ 376, con-
tra R$ 28 gastos pelos 40% mais pobres, despesa mais de treze vezes superior
e concentrada nos planos de saúde, medicamentos e atenção odontológica.
O país possui mais de 7.000 hospitais, refletindo tanto densidade de
leitos como utilização de cuidados hospitalares em níveis superiores aos ve-
rificados em economias de renda média semelhantes, mesmo possuindo uma
população mais jovem, relativamente aos demais países do BRIC, com perfil
epidemiológico que não depende tanto do emprego intensivo de hospitalização.
Como explicar que a maior parcela dos gastos estatais com saúde destine-se
aos hospitais? Antecipando parte da resposta, sabemos que a porta do pronto-
socorro tornou-se a via de acesso aos cuidados de saúde.
No Brasil, durante o período 1942/66, no contexto das modificações
econômicas e políticas ocorridas, deu-se a implantação e consolidação do com-

26
Disponível em <www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/economia_saude/economia_
saude.pdf>.
Para Entender a Saúde no Brasil 181

plexo médico-hospitalar de assistência à saúde, precursor do atual complexo


médico-industrial.
Ao acompanhar os fatos constituintes dessa fase, compreendemos que
parte significativa dos dilemas da saúde na primeira década do século XXI já
se fazia presente pelo menos desde os anos 40, pressionando os tomadores de
decisão e trazendo conseqüências para os cidadãos.
Sumarizemos parte das tensões do setor saúde em 2008: a persistente
resistência à descentralização do SUS (e lá se vão 20 anos desde sua criação!);
o clamor por mais recursos financeiros para a saúde; o contingente interminá-
vel de pessoas sem acesso aos serviços; os interesses dos vários atores – não
necessariamente compatíveis com as necessidades dos usuários do sistema e,
muitas vezes, conflitantes. O retorno à história dos serviços de saúde no Brasil
conta as origens dos problemas e ajuda, esperamos, evitar trilhar caminhos
sem saída.
Por complexo médico-hospitalar de atenção à saúde entendemos aquele
orientado pelas demandas das organizações hospitalares, expressão aqui usada
genericamente, incluindo clínicas, ambulatórios, etc., e das entidades médicas
organizadas. Forma-se uma estrutura na qual o Estado é, simultaneamente,
controlado por e controlador dos grupos privados, produtor e comprador de
serviços, entre outros papéis. O modelo mantém-se atuante na presente década,
mas cede paulatinamente espaço e poder para outro, o do complexo médico-in-
dustrial, o qual empurra para posições de menor poder os hospitais, conferindo
hegemonia à indústria de materiais, equipamentos e medicamentos.
Na passagem de um complexo para outro, em linhas gerais, não se al-
tera o papel do Estado, ainda que esse deva desenvolver outras formas de atu-
ação para lidar com novos agentes, como por exemplo, as fontes pagadoras
privadas. A passagem do modelo do complexo médico–hospitalar para o do
complexo médico-industrial é origem de muitos dos conflitos e das dificulda-
des atuais do sistema de saúde brasileiro, quando se tem em vista melhorar as
condições de vida do cidadão e seu acesso aos serviços de saúde.
Até o início do século passado, toda a atividade de atenção à saúde no
Brasil, na esfera pública ou no âmbito privado, possuía contornos de trabalho
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
182 para a compreensão de problemas atuais

artesanal, no qual o médico, o prestador direto dos serviços de atenção à saúde,


controlava o processo, possuindo ele próprio os instrumentos de seu trabalho,
que poderiam ser transportados em sua maleta de trabalho. A partir da insta-
lação do período de industrialização, nas primeiras décadas do século XX,
um novo modelo de produção de serviços de saúde passou a ser construído,
acompanhando as transformações do país. Com a industrialização e as mudan-
ças políticas surgidas com o golpe de 1930, via deposição do presidente eleito
Washington Luiz e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder (LEVINE, 1980:15),
esse novo padrão se tornará mais visível, e a rearticulação dos interesses em
torno da saúde o manterá em evolução.
Com a II Guerra Mundial já em andamento, e o alinhamento dos inte-
resses políticos e econômicos do Brasil aos dos EUA, o novo modelo de saúde
deslanchará; com a evolução da guerra e, principalmente após o seu final em
1945, será legitimado e o antigo modelo taxado de obsoleto. O novo é “moder-
no” e “científico”, e será paulatinamente adotado em todo o país, tornando-se
hegemônico. Calcado na experimentação auto-nomeada científica e na tecno-
logia, terá o hospital como o centro de atenção e integração de técnicas e equi-
pamentos, tornados crescentemente imprescindíveis para a atenção à saúde.
O modo e a razão dessa transformação, bem como a discussão dos inte-
resses envolvidos e a evolução do embate entre os diversos segmentos sociais
representados no período serão discutidos ao longo desse trabalho.

A atenção à saúde no Brasil no início dos anos 40


A população brasileira no início da década de 1940, cerca de 41 mi-
lhões de pessoas, possuía características predominantemente rurais, com ape-
nas 31,1% vivendo em cidades, na maior parte, próximas à costa; a ocupação
do interior mantinha-se barrada pelas dificuldades de transporte e a constante
ameaça de malária e febre amarela. A estrutura de atenção à saúde coletiva
mantinha as características das primeiras décadas do século XX, embora uma
das primeiras iniciativas de Vargas, em 1930, tenha sido a criação do Ministério
da Educação e Saúde Pública, MESP.
Para Entender a Saúde no Brasil 183

A nova pasta representou uma resposta parcial aos anseios do movimen-


to sanitarista da primeira república; (CASTRO SANTOS, 1985:14; LABRA,
1985:89). Se o sanitarismo ainda não obtivera um órgão de primeiro esca-
lão na estrutura de governo, devendo partilhá-lo com a educação, remover as
questões da saúde pública da alçada do Ministério da Justiça já significava um
avanço para os grupos organizados em torno da saúde.
A criação do MESP foi necessária para garantir o equilíbrio de forças
entre as facções políticas mineiras rivais e que apoiaram o golpe de 1930.
Conviviam no estado o grupo ligado ao Partido Republicano Mineiro, represen-
tante da oligarquia tradicional e liderado pelo ex-presidente Arthur Bernardes,
e o grupo identificado com os “tenentes”, ligado a Olegário Maciel, único pre-
sidente de estado não substituído pelo governo provisório por um interventor
federal (LEVINE, 1980:20; DULLES, 1967:93). Indicado por Olegário Maciel
como retribuição aos serviços prestados, assumiu a direção do MESP o ex-
deputado e ex-secretário do interior de MG Francisco Campos, golpista de
primeira hora e interlocutor com os revoltosos gaúchos (DULLES, 1967:93).
Campos herdaria a estrutura de saúde pública do primeiro período repu-
blicano, centrada no campanhismo, e faria uma administração de continuísmo.
Lembremos que, entre 1898 e 1903, vários institutos destinados à produção
de soros, vacinas e pesquisa bacteriológica foram criados no eixo Rio-São
Paulo, para fazer frente à permanente ameaça das epidemias. Em 1888 surgiu
o Instituto Pasteur do Rio de Janeiro, em 1892 os Institutos Bacteriológico e
Vacinogênico em São Paulo, em 1899 o Instituto Soroterápico em São Paulo e
o Instituto Soroterápico Federal de Manguinhos, no Rio de Janeiro, mais tarde
Instituto Oswaldo Cruz, e em 1903 o Instituto Pasteur de São Paulo (LUZ,
1982:195).
Mantinha-se presente o combate às endemias nos grandes centros e
corredores de exportação sob a coordenação do Departamento Nacional de
Saúde Pública, DNSP, resquícios dos esforços campanhistas da virada do sé-
culo (plenamente justificados, pois a ameaça da febre amarela ainda pairava
sobre a capital, e a malária vigia no interior). Crescia a lepra, enquanto a tu-
berculose mantinha-se como principal ameaça sanitária urbana (HOCHMAN,
2005:129). O DNSP, tendo Carlos Chagas como primeiro diretor, fora criado
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
184 para a compreensão de problemas atuais

em 1920 como resposta às pressões da Liga Pró-saneamento do Brasil, capi-


taneada por Belisário Penna. A liga surgira em 1918, dispondo-se a despertar
as elites políticas e intelectuais para a precária situação sanitária dos sertões,
com vistas a obter apoio para uma efetiva ação de saneamento (HOCHMAN,
1998:59-63).
Belisário Penna no DNSP, e Carlos Chagas no Instituto Oswaldo
Cruz, serão os condutores das políticas de saúde na administração Campos
(FONSECA, 2007:117), substituído em 1932 pelo médico mineiro Washington
Pires. Sua administração seria marcada pelas divergências com Penna sobre a
autonomia do DNSP e a destinação das verbas arrecadadas com o selo sani-
tário, antecipando o que ocorreria mais tarde com as disputas em torno da
Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira, CPMF. O selo sani-
tário destinava-se originalmente ao financiamento das ações de saúde pública,
mas desejava-se compartilhá-lo com atividades assistenciais e hospitalares.
O MESP passaria por reformas estruturais, com a extinção do DNSP,
substituindo-o por outro órgão que se ocuparia da saúde pública e da assistên-
cia médico-social, a Diretoria Nacional de Saúde e Assistência Médico-Social
(DNSAMS), tentativa de colocar sob a alçada de sua pasta ao menos parte da
assistência médica albergada no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
MTIC. A reforma teria vida curta; após a re-constitucionalização de 1934 to-
mou posse o novo ministro, Gustavo Capanema, e logo outra reforma estrutu-
ral seria feita.
Capanema recebeu a pasta como prêmio, ainda que tardio, por ter “cos-
turado” o acordo político quando da partilha pelos cargos federais após o golpe
de 1930, nas tratativas que resultaram na criação do MESP. Juntamente com
Francisco Campos, o primeiro ocupante da pasta, e Amaro Lunari, Capanema
fundara a Legião Liberal de Minas, os “camisas caqui”, grupo de inspiração
fascista, como outros formados pelos “tenentes”. Destinava-se a instrumenta-
lizar ações políticas para sobrepor-se aos partidos estaduais e afastar do poder
os quadros políticos tradicionais, garantindo um governo centralizado, inter-
vencionista, capaz de implementar reformas, prolongar o governo provisório e
retardar o retorno democrático (LEVINE, 1980:21; DULLES, 1967:93-6).
Para Entender a Saúde no Brasil 185

Em 1937 o MESP tem sua denominação alterada para Ministério da


Educação e Saúde, MES, e em sua nova estrutura, para cuidar da saúde públi-
ca, instala-se o Departamento Nacional de Saúde, DNS, dirigido por João de
Barros Barreto, antigo bolsista da Fundação Rockefeller. Sua missão será coor-
denar nos estados as ações dos departamentos estaduais de saúde, separando-
se estas ações das de medicina assistencial previdenciária, as quais passam a
ser organizadas em setores próprios, da saúde pública e da medicina previden-
ciária. Ambos seguirão independentes até a criação do SUS, concorrendo por
recursos e com escassas, quando existentes, áreas de comunicação.
A reforma de Capanema alinhou a instituição às propostas centraliza-
doras varguistas. Se no primeiro período republicano os estados gozavam de
grande autonomia, durante o período Vargas, e especialmente após o novo gol-
pe de outubro de 1937 e a instalação do Estado Novo, a tônica foi a centra-
lização de ações do governo, inclusive no tocante à saúde pública. Chama à
atenção, entretanto, a sobrevivência por longo tempo, das políticas e estruturas
do Estado Novo, as quais, em linhas gerais, resistiram à criação do Ministério
da Saúde em 1953, e foram acentuadas no período da ditadura militar de 1964.
Tal diretriz ainda encontra ecos no século XXI, a descentralização do SUS en-
frenta obstáculos de toda sorte. Quem não se lembra do PAS da cidade de São
Paulo, ou das atuais resistências às OSS?27.
As contraposições à descentralização não se limitam ao plano inter-
no e ao passado; o relatório Hospital Performance in Brazil. The Search for
Excellence, de 2008, patrocinado pelo Banco Mundial, critica o modelo des-
centralizado do SUS, sobretudo a autonomia – considerada excessiva – dos
municípios, apontando-a, entre outras, como uma das causas da ineficiência
(sic) do sistema de saúde brasileiro (LA FORGIA; COUTTOLENC, 2008:
xxxi-xxxiii).

27
Para ampliar o entendimento sobre as organizações sociais de saúde (OSS), ver os artigos de BAR-
RADAS BARATA e MENDES; NASCIMENTO; ABDALLA, em AMORIM e PERILLO (orgs.)
Para entender a saúde no Brasil. São Paulo: LCTE, 2006.
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
186 para a compreensão de problemas atuais

A visão centralizada e burocrática do Estado Novo resultou na criação,


em 1941, de serviços nacionais verticalizados para cuidar de patologias especí-
ficas. Lepra, tuberculose, febre amarela, peste, malária e doenças mentais pas-
saram a competir por recursos dentro do MES, construindo-se estruturas voca-
cionadas, com missões definidas por tipo de afecção: colônias, sanatórios, hos-
pitais e asilos (HOCHMAN, 2005:135). Tal estrutura convivia com outra, de
assistência médica aos trabalhadores formalmente empregados. Representava
parcela minoritária da população e fundamentalmente urbana, mediada por
caixas e institutos de aposentadoria e pensões, instalada a partir da década
de 1920 e aperfeiçoada durante o período varguista, ligada ao Ministério do
Trabalho (COHN; ELIAS, 1996:12-18).
Para atender a parcela excluída da população, restavam as estruturas de
beneficência e os poucos e precários serviços assistenciais mantidos pelas ins-
tâncias governamentais predominantemente nas cidades. Na zona rural, poucas
estruturas faziam-se presentes, com maior peso para o controle de endemias.

A Fundação Rockefeller no Brasil


Em São Paulo já fora implementada a reforma sanitária a partir de
1925, sob inspiração da Fundação Rockefeller (FR), instalando-se o Instituto
de Higiene, precursor da Faculdade de Saúde Pública, ligado à Faculdade de
Medicina de São Paulo, tendo sido construídos vários centros de saúde e ins-
tituída uma estrutura administrativa nos moldes norte-americanos. A fundação
enviara missão de reconhecimento ao Brasil em 1915, visando sondar condi-
ções favoráveis ao estabelecimento de uma cabeça de ponte, a partir da qual
pudesse expandir suas atividades para toda a América Latina, bem como en-
contrar instituições com as quais pudesse estabelecer parcerias.
Chefiava essa primeira missão Wickliffe Rose, trustee da Fundação
Rockefeller e então presidente do recém criado International Health Board
(IHB). Ex-professor de filosofia, Rose coordenara o programa implementado
no sul dos Estados Unidos pela Rockefeller Sanitary Commission, entidade
criada em 1909 para combater a ancilostomose, febre amarela e malária, e no
futuro teria importante papel na fundação das escolas de saúde pública das
universidades Johns Hopkins e Harvard. Oficialmente, a missão viera ao Brasil
Para Entender a Saúde no Brasil 187

para “identificar os centros médicos de excelência”, com vistas à implementa-


ção de programas semelhantes.
Além de Rose, compunha a missão o renomado patologista William
Henry Welch, primeiro diretor da Faculdade de Medicina da Universidade
Johns Hopkins, pioneira na adoção das recomendações do Relatório Flexner,
estudo financiado pela Fundação Carnegie a pedido da American Medical
Association, AMA, e publicado em 1910 (STARR, 1982:118-120)28.
Welch fora trustee da Carnegie Institution for Science, o primeiro di-
retor do Rockefeller Institute for Medical Research, e era membro da diretoria
científica do Eugenics Records Office (ERO), organização então dedicada a
identificar doenças hereditárias e promover sua erradicação por meio de segre-
gação, esterilização e eutanásia29. No futuro. Welch assumiria a presidência da
American Association for the Advancement of Science, da American Medical
Association e da National Academy of Science.
Mas o que teria de fato motivado a Fundação Rockefeller a selecionar o
Brasil como foco de uma das primeiras iniciativas internacionais do International
Health Board, e visitá-lo sem ser convidada, em plena vigência da I Grande
Guerra, antes mesmo do envolvimento formal dos EUA? A principal motivação
era zelar por seus interesses econômicos e políticos na América Latina, princi-
palmente no Cone Sul, a exemplo de iniciativas anteriores semelhantes.
Em fevereiro de 1818, no período anterior aos conflitos por ocasião da
independência do Brasil e à Guerra da Cisplatina, a fragata norte-americana
Congress aportou no Rio de Janeiro a caminho do Prata, trazendo a bordo os
agentes especiais Caesar A. Rodney, John Graham e Theodorick (Judge) Bland
(WRIGHT, 1978:170). Comissionado pelo presidente James Monroe, o trio
viria coletar dados sobre a situação política e econômica na América do Sul.

28
Ver PERILLO, E. B. F. Sistema de saúde no Brasil: história, estrutura e problemas, in AMORIM, M.
C. S.; PERILLO, E. B. F. (orgs.), Para entender a saúde no Brasil. São Paulo: LCTE, 2006:238-242.
29
Ver BLACK, Edwin. Guerra contra os fracos. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
188 para a compreensão de problemas atuais

O relatório de inteligência produzido por Rodney, o chefe da missão,


Reports on the Present State of the United Provinces of South America, serviria
de base para elaborar a Doutrina Monroe (apresentada em 1823, expressa-
va a recusa norte-americana em tolerar qualquer expansionismo europeu nas
Américas), garantindo sua nomeação em 1823 como ministro plenipotenciário
para as Províncias Unidas do Prata junto ao governo em Buenos Aires. Antes
disso, Graham havia sido nomeado, em 1819, ministro junto à corte do Rio de
Janeiro (WRIGHT, 1978:87).
Um discurso de Frederick T. Gates, responsável pelas atividades filan-
trópicas de Rockefeller, proferido em 1911 durante as comemorações do dé-
cimo aniversário do Rockefeller Institute for Medical Research, pode servir
como indicativo dos motivos da visita da fundação.
Na ocasião, Gates ressaltou que “os valores da pesquisa médica (...)
são os valores mais universais da terra, os mais íntimos e importantes valores
para todo ser humano vivente”. Mesclando elementos religiosos, econômicos
e ditos científicos, o Rockefeller Institute for Medical Research seria um tipo
de “seminário teológico”. A medicina, por sua vez, assumiria a função social
de contrapartida da sociedade industrial à religião, trazendo novos deveres,
preceitos morais e os valores da ciência a todas as pessoas, por intermédio
de seu apelo universal. John B. Roberts, presidente da American Academy of
Medicine, assim enunciara em 1904, ao plenário da entidade, os deveres do
médico para com o Estado:
O médico deve ensinar aos leigos que a higiene mental, ou disciplina,
é tão essencial para a vida adequada e a felicidade quanto a higiene física. (...)
A higiene corporal proporciona um espírito de tolerância religiosa e de calma
(enquanto) a higiene mental proporciona uma digestão saudável e um corpo
capaz de ganhar o seu sustento, preparando o homem tanto para esse mundo
como para o próximo (BROWN, 1979:125)30.

Tradução livre do autor. “The Doctor’s Duty to the State” The physician “should teach the laity that
30

mental hygiene, or discipline, is as essential to proper living and happiness as physical hygiene (...)
Hygiene of the body gives a spirit of religious toleration and calm (while) hygiene of the mind gives a
healthy digestion and a good income-making body and fits the man for this world as well as the next.
Para Entender a Saúde no Brasil 189

Por conta de sua universalidade e do desejo comum por saúde, a medi-


cina poderia penetrar todas as classes sociais, e a Fundação Rockefeller se dera
conta daquilo que os missionários já sabiam de longa data: a medicina pode
ser usada para converter e colonizar, e a medicina científica tornava-se a ferra-
menta ideal para integrar e unificar a nova sociedade industrial nos valores da
ciência, tecnologia e capitalismo (BROWN, 1979:122, 125-6).
Partindo dessa percepção, logo cessou o auxílio a missionários religio-
sos na China, substituído por programas de medicina científica de modelo fle-
xneriano.
Gates argumentava quanto à oportunidade que se apresentava para a
penetração das atividades filantrópicas nos campos abertos pelo trabalho mis-
sionário; este não era excludente às possibilidades comerciais, “rendendo anu-
almente mil vezes mais do que o valor despendido em missões”.
Os canais comerciais abertos pelos missionários em terras gentias eram
importantes para obter, a menores preços, produtos essenciais para o mercado
doméstico norte-americano, bem como para conquistar novos mercados para
os seus manufaturados. O grande crescimento das exportações não teria sido
possível sem a conquista comercial de terras estrangeiras sob a liderança do
empenho missionário, contribuindo para um surto de progresso para a indús-
tria e a manufatura norte-americanas (BROWN, 1974:123).
As instituições filantrópicas de Rockefeller convenceram-se de que a
combinação medicina e saúde pública seria mais eficaz do que missionários
ou uma ação militar para atingir os mesmos fins. O trabalho de médicos e en-
fermeiras serviria de cunha para a introdução de influências culturais, abrindo
o caminho para a implantação de indústrias e escolas, penetrando em locais
onde os soldados norte-americanos não conseguiriam chegar. Dessa forma, a
medicina deslocava a religião como ferramenta de ordenamento social, contri-
buindo para materializar os interesses comercias das organizações norte-ame-
ricanas na América Latina, Ásia e África (BROWN, 1979:124-6).
O número de empresas norte-americanas instaladas no Brasil crescia des-
de as últimas décadas do período imperial, refletindo, de um lado, a saturação
do mercado interno doméstico, que obrigava as empresas a buscar novos mer-
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
190 para a compreensão de problemas atuais

cados externos para manter o crescimento da produção, e de outro, a retomada


dos princípios do Destino Manifesto31. Ao tempo da visita de Rose, o Corolário
Roosevelt32, concebido em tempos da política do “big stick”33, havia sido adicio-
nado à Doutrina Monroe, tornando-a ainda mais invasiva. Pela nova doutrina, os
Estados Unidos teriam o “direito” de exercer o “poder de polícia” e intervir em
países da América Latina quando julgassem ameaçados seus interesses, política
posteriormente ampliada para além das Américas.
Nos países onde atuava, a FR buscava fomentar localmente as ativi-
dades das empresas norte-americanas, seja por meio de suporte operacional,
estudos de campo ou outros meios ao seu alcance. Em abril de 1915, Wickliffe
Rose enviou carta ao seu compatriota Percival Farquhar, magnata e empreen-
dedor, considerado o último dos robber barons, participando-lhe a possibili-
dade realizar no Brasil estudos sobre a ancilostomose, ou ainda qualquer outra
investigação que fosse de seu interesse34. O Sindicato Farquhar fundara, entre
outras, a Amazon Land Colonization Co., empresa constituída para explorar a
borracha na Amazônia (MONIZ BANDEIRA, 1973:193). A borracha assumia
relevância crucial e estratégica em tempos de guerra, daí a oferta de Rose para
garantir a salubridade aos trabalhadores nos campos de produção.
Não se tratava de simples coincidência a vinda da missão da Fundação
Rockefeller. Desde a última década do primeiro período republicano, com o
deslocamento do centro financeiro mundial de Londres para Nova York, a eco-
nomia brasileira já dependia da norte-americana quanto à obtenção de crédito
e exportação de produtos.

31
Conceito originado por ocasião da anexação do Texas aos estados da União, em 1845-1846, segundo
o qual os Estados Unidos possuíam, por direito divino, o destino manifesto (Manifest Destiny), de
espalhar-se por todo o continente americano, e a missão de nele disseminar a democracia republica-
na. Logo foi associado à Doutrina Monroe, com vistas a fundamentar ações futuras para remodelar o
mundo à imagem dos Estados Unidos (WEEKS, 1996:61).
32
Introduzido em 1905, durante o governo de Theodore Roosevelt (1901-1909). Diisponível em: http://
www.ourdocuments.gov/doc.php?flash=true&doc=56>.
33
Visitando uma feira em Minesota em setembro de 1901, Teddy Roosevelt usou pela primeira vez a
expressão que o caracterizaria: “speak softly and carry a big stick and you will go far”.
34
Documento 011 da Coleção Rockefeller, Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz.
Para Entender a Saúde no Brasil 191

Em vários setores da economia brasileira a presença das empresas nor-


te-americanas já era preponderante, entre eles os de derivados de petróleo,
pneumáticos, vagões ferroviários, frigoríficos, cinema, alimentos, implemen-
tos agrícolas, companhias aéreas, eletricidade, equipamentos de escritório, au-
tomóveis, higiene pessoal, entre outros.
Em 1906, o The National City Bank of New York, da família Rockefeller,
fornecera ao governo paulista o empréstimo de um milhão de libras que viabi-
lizara o Convênio de Taubaté35, decisivo para a manutenção dos preços do café
(MONIZ BANDEIRA, 1973:214, 220-221; SUZIGAN; SZMRECSÁNYI,
1996:267-280). A Standard Oil Company of New Jersey chegara ao Brasil em
1897. e em 1915 seriam abertas as duas primeiras agências brasileiras do City
(MONIZ BANDEIRA, 1973:185-6, 197).
A política da “dollar diplomacy”36 do governo Taft (1921-1930) con-
correria para completar o controle financeiro até o início da década de 1930.
Aponte-se também o contrato obtido por Percival Farquhar do Legislativo para
a Itabira Iron em 1928, empresa nominalmente inglesa e precursora da atual
Companhia Vale do Rio Doce, com 60% do capital controlado pelos norte-
americanos (MONIZ BANDEIRA, 1973:214)37. Ressaltem-se ainda os esfor-
ços das empresas petrolíferas dos EUA visando obter o monopólio brasileiro
de petróleo. Quanto à forte influência política, o processo já se encontrava em
marcha e estaria completo durante o período varguista, após a reunião de chan-
celeres das Américas no Rio de Janeiro em 1942.
De qualquer forma, foi auspicioso o resultado da primeira visita da
Fundação Rockefeller, e Rose programou nova missão para o ano seguinte,
entendendo que a afinidade existente entre os Estados Unidos e o Brasil, bem
como a natural liderança desse último na América do Sul, abririam as por-

35
Durante o governo Rodrigues Alves (1902-1906), foi firmado na cidade de Taubaté um acordo con-
junto entre os presidentes dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, estabelecendo
as bases de uma política de valorização do café. Para os mecanismos do acordo, ver: (FURTADO,
1984:179).
36
Dollar diplomacy refere-se à política do governo e das corporações norte-americanas, de forçar a
abertura de mercados, sobretudo na América Latina, por meio de poder econômico, diplomático e
militar.
37
Ver: (WERNECK SODRÉ, 1964:312-5) para uma discussão do contrato da Itabira Iron.
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
192 para a compreensão de problemas atuais

tas para a disseminação do modelo de cooperação com a FR no continente


(CASTRO SANTOS, 1989:105).
A nova missão compunha-se do médico Richard M. Pearce, consultor
recrutado da Universidade da Pensilvânia e futuro diretor da Medical Education
Division da FR, pelo professor e administrador escolar John A. Ferrell, en-
tão diretor associado da International Health Division, e pelo major do Corpo
Médico do Exército dos Estados Unidos Bailey Ashdford, especialista em an-
cilostomose. Viriam ao Brasil para tratar da implantação de estruturas visando
formar quadros especializados para atuar em projetos de prevenção e nas cam-
panhas de saúde pública da fundação. Como importante elemento de atração
dos futuros dirigentes das instituições locais dos países-alvo da FR, Wickliffe
Rose introduziria as “bolsas de estudo” (MARINHO, 2003:36), mas pecaria
por desconsiderar as diferenças lingüísticas e rivalidades regionais ao antever
o papel de liderança do Brasil em sua projetada conquista do continente sul-
americano.
Nesse projeto, São Paulo, não obstante possuir uma política própria
de serviços sanitários, foi escolhido como local privilegiado para a instalação
dos projetos da fundação. De um lado, a importância assumida pela economia
cafeeira levara os produtores paulistas a se preocuparem com questões rela-
cionadas com a salubridade e a retenção da mão de obra imigrante, bem como
com a sanidade das cidades e dos corredores de exportação.
De outro, a recém instalada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São
Paulo, criada no final de 1912, buscava parcerias para se viabilizar. Seu diretor,
o médico Arnaldo Vieira de Carvalho, também responsável por sua organiza-
ção e antigo diretor do Instituto Vacinogênico paulista, via com bons olhos a
aproximação com a Fundação Rockefeller, vislumbrando a possibilidade da
escola tornar-se uma Rockefeller School, conferindo-lhe legitimidade e prestí-
gio nacionais ante suas rivais do Rio de Janeiro e Salvador.
A FR julgava que os recursos aplicados no estado reverteriam em maior
impacto produtivo (FARIA, 2002:562); buscava fazer de São Paulo um mode-
lo no qual os demais estados da federação pudessem espelhar-se. Nesse afã,
foram subestimados tanto a experiência quanto o conhecimento técnico-cientí-
fico nacionais, capazes de fornecer respostas à problemática de saúde pública
Para Entender a Saúde no Brasil 193

vigente, substituídos por metodologia e técnicas norte-americanas (LABRA,


1985:376). Não foi um processo sem críticas, aventando-se até mesmo uma
“invasão americana” pela via de expedientes sanitários, ou o emprego de brasi-
leiros como “cobaias” (FARIA, 2002:572). Todavia, sanitaristas como Oswaldo
Cruz, Clementino Fraga, Adolpho Lutz, Vital Brazil e Carlos Chagas apoiaram
as ações da fundação, sendo os dois últimos por ela indicados em 1917 para
participar de uma comissão consultiva (CASTRO SANTOS, 1989:105).
Em larga medida, dadas as relações entre as grandes fundações, os in-
teresses do grande capital internacional e a própria estrutura de governo dos
EUA, pode-se afirmar que os objetivos comerciais, políticos e econômicos
foram atingidos, favorecendo-se as condições para a aplicação da Doutrina
Monroe, “a América para os norte-americanos”. Transpondo-se para o âmbito
da saúde, cuidava-se de estabelecer firmes bases para a exportação da metodo-
logia organizacional do trabalho sanitário e do ensino médico, de forma a via-
bilizar a transposição da hegemonia européia, até então notadamente francesa,
para a norte-americana.
Inicialmente a Fundação Rockefeller ocupou-se de questões relaciona-
das à saúde pública e ao ensino médico, preparando e saneando mercados, ca-
tivando corações e mentes, processo que pode ser situado desde sua fundação,
em 1913, até a década de 1930. No segundo momento, após o final da II Guerra
Mundial, tratou do desenvolvimento do ensino médico e da pesquisa científica,
visando sua adequação ao modelo do complexo médico-hospitalar. Em comum
aos dois períodos, a franca distribuição de bolsas de estudo a potenciais futuros
ocupantes de cargos de direção em seus países de origem, desde que dispos-
tos a absorver os conceitos doutrinários da fundação e a funcionar como seus
“embaixadores” e disseminadores de sua metodologia quando de seu retorno.
Na América Latina, dos cerca de 1.800 bolsistas entre 1917 e 1962, 443 eram
do Brasil (FARIA, 2007:78-79).
Durante o primeiro governo Vargas, as atividades da FR se intensifi-
cariam no norte e nordeste do país, fornecendo meios, metodologia, material
e pessoal técnico para a instalação do serviço de febre amarela, de abran-
gência nacional, em 1937, e do serviço de malária, em 1939 (HOCHMAN,
2005:138).
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
194 para a compreensão de problemas atuais

Com o prenúncio de guerra na Europa, e a ameaça aos seus interesses


políticos e econômicos na América Latina, os Estados Unidos prepararam-se
para o conflito a partir do final da década de 1930, embora o discurso oficial
fosse de distanciamento dos beligerantes. Para cuidar da recém instituída “po-
lítica de boa vizinhança”, foi em criado em 1949 o Office of the Coordinator
of Inter-American Affairs, OICAA, ligado diretamente ao National Security
Council norte-americano e coordenado por Nelson Aldrich Rockefeller, neto
do patriarca John D. Rockefeller e do senador Nelson Aldrich. O senador, “a
voz de J. P. Morgan” (DEBOUZY, 1972:137), fora um dos proponentes do
Federal Reserve Act, resultante na criação do Federal Reserve System, ou sim-
plesmente Fed, o sistema bancário central dos Estados Unidos, e tivera funda-
mental importância na incorporação pelo Congresso norte-americano, em tem-
po recorde, do General Education Board, precursor da Fundação Rockefeller.
Conseqüência direta da ação do OICAA no Brasil, foi a criação do
Serviço Especial de Saúde Pública, SESP, em função dos interesses estratégicos
dos norte-americanos no Brasil, como a produção de borracha na Amazônia, e
de manganês e mica no vale do Rio Doce, bem como o saneamento em torno
das bases aéreas a ser ocupadas no norte e nordeste do País. Subordinado di-
retamente ao Institute of Inter-American Affairs, IIAA, órgão encarregado de
implementar os acordos assumidos durante a conferência de chanceleres ame-
ricanos realizada no Rio de Janeiro no início de 1942, embora formalmente
ligado ao MES, o SESP seria custeado inicialmente por meio de um convênio
o com o governo dos Estados Unidos, renovado continuamente até 1960. Após
transferir suas atividades para o SESP, a FR retirou-se formalmente do Brasil
em 1942, mantendo porém atividades de consultoria ao governo brasileiro, e
também o controle indireto de seus interesses, via IIAA, pelas mãos do herdei-
ro da família, Nelson Rockefeller.
Todavia, o principal legado da FR não se traduziu somente nas estru-
turas aqui plantadas ou por ela fortemente influenciadas, como as faculdades
de Medicina e de Saúde Pública, em São Paulo, o Instituto Oswaldo Cruz,
no Rio de Janeiro, e o SESP, (depois Fundação SESP). A marca emblemática
de sua atuação seria a construção e disseminação de um modelo de atenção à
Para Entender a Saúde no Brasil 195

saúde que viria tornar-se hegemônico, principalmente após o final da II Guerra


Mundial, com origem nas prescrições do Relatório Flexner.
Como vimos, as atividades iniciais da FR centraram-se, de um lado,
na introdução de técnicas e no financiamento de ações saneadoras em regiões
de interesse econômico do grande capital internacional, como a Amazônia e
o Vale do Rio Doce, bem como em áreas de importância estratégica, desti-
nadas à construção de bases aéreas norte-americanas no Amapá, em Belém,
São Luís, Fortaleza, Recife e Salvador (CAMPOS, 1999:606). Se por um lado
essas ações trouxeram benefícios diretos para as populações das áreas envol-
vidas, com reflexos de relativa importância para a economia do País, por outro
criaram dependência. Esta, inicialmente econômica e técnica, por conta dos
financiamentos e metodologias introduzidas, tornou-se científica e intelectual,
dado o alinhamento das comunidades acadêmicas nacionais aos núcleos de
pensamento e de pesquisa vigentes nos Estados Unidos.
A Segunda Guerra fez emergir os EUA como a nação mais poderosa
do planeta, política, econômica e militarmente, capaz de impor suas regras no
tabuleiro da política internacional. No campo da saúde, tal situação subordinou
as demais escolas de pensamento antes vigentes ao modelo biomédico flexne-
riano, oriundo da conjunção de interesses da corporação médica e do grande
capital, mediados pelas fundações filantrópicas, e o Brasil não se constituiu em
exceção.
Entre nós, o modelo flexneriano fora introduzido na Faculdade de
Medicina e Cirurgia de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, e a ex-
periência adquirida serviria para a disseminação das novas práticas para outras
escolas médicas do país. O modelo biomédico alicerçava-se nas ciências bási-
cas, buscando as causas das doenças no meio celular do paciente e relevando
os determinantes causais oriundos do meio onde ele vivia e trabalhava. Para
tanto, valia-se de meios diagnósticos crescentemente tecnificados, somente
disponíveis no ambiente hospitalar, tornado o local por excelência do trabalho
médico.
Em função da ênfase na especialização médica, de visão segmentada
e conferidora de maior estatura social ao médico, também o paciente passou
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
196 para a compreensão de problemas atuais

a ser segmentado em áreas de interesse diagnóstico. Chegar a um diagnóstico


tornou-se o objetivo perseguido, e uma vez alcançado e enquadrado nas cate-
gorias patológicas criadas, o tratamento adquiriu contornos determinísticos,
seguindo uma padronização na utilização dos novos fármacos, terapias e inter-
venções introduzidas, intensificando-se a hospitalização.
Essa nova dinâmica “hospitalocêntrica” resultaria na formação do com-
plexo médico-hospitalar, transformando o hospital, de local anteriormente re-
servado à caridade, em porta de eleição para alcançar as estruturas de atenção
à saúde (STARR, 1982:136-7), esta, por sua vez, mediada por ações predo-
minantemente curativas, centradas na especialização, tecnificação dos meios
diagnósticos e terapia com fármacos industrializados.
A influência da FR não se esgotou no momento de sua retirada formal
do país, anunciada em 1942. As décadas de 1940 e 1950 foram dedicadas à
difusão das propostas da fundação e à expansão do modelo biomédico flexne-
riano, com sua implantação em outros centros de ensino médico. Para tanto,
foi de fundamental importância o trabalho de dois antigos bolsistas, Ernesto de
Souza Campos e Zeferino Vaz, ambos identificados com os valores da socieda-
de norte-americana e a causa da ciência (MARINHO, 2001:4-5).
Souza Campos, formado em engenharia pela Escola Polítécnica de São
Paulo, formou-se em medicina pela primeira turma da Faculdade de Medicina
e Cirurgia de São Paulo, futura Faculdade de Medicina da USP, cujos pré-
dios ajudariam a projetar e da qual seria diretor. Com breve passagem pelo
Ministério de Educação e Saúde no governo Dutra, fundou o Rotary Club e a
União Cultural Brasil-Estados Unidos, criou e dirigiu a Comissão de Pesquisa
Científica e a Comissão para a Construção da Cidade Universitária.
Zeferino Vaz, também médico e formado pela Faculdade de Medicina
de São Paulo, considerado o herdeiro de Souza Campos, teve longa e destacada
atividade no Conselho Universitário da USP, o que lhe garantiu legitimidade
e trânsito na comunidade acadêmica (atributos importantes para sua aproxi-
mação com a FR e, mais tarde, para a implantação da Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto e da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP).
Acrescentemos ao seu currículo a passagem pelo Conselho Estadual de
Para Entender a Saúde no Brasil 197

Educação de São Paulo, do qual foi o primeiro presidente, e pela Universidade


de Brasília, da qual foi reitor. Contatos desse nível permitiram à FR ampliar
sua atuação e difundir seu modelo para outros estados, seguindo critérios ra-
cionais e estratégicos na identificação e seleção das instituições e atores com os
quais buscava associar-se (MARINHO, 2001:3-4, 34, 97-111).

Ensino médico, associações médicas e o complexo


médico-hospitalar no Brasil
Foi somente no século XIX que surgiu o ensino médico no País, tardio
em relação às outras nações do continente, mas os médicos brasileiros logo se
organizaram com a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, pouco
depois transformada em Academia Imperial de Medicina. Por seu intermédio,
a corporação médica passa a influir em todos os assuntos relacionados com
a saúde: o ensino e a regulamentação das práticas profissionais médicas, e
mesmo sobre a organização social, pela via da aproximação e influência sobre
o Estado, iniciando uma ação de aliança que sempre se renovou. A partir de
então o Estado passou a atuar sobre as condições sanitárias, ao mesmo tempo
em que a medicina passou a ser exercida com base científica e adquiriu feições
sociais (FERREIRA, 1999a:84-5, b:177-8).
Legitimados pela revolução tecno-científica da época e articulando-se
com o poder público, os médicos deram curso a uma duradoura relação mate-
rializada na ocupação formal de espaços na burocracia regulatória. Se de um
lado o saber técnico desses profissionais trouxe inegáveis benefícios para a
concepção de saúde no Brasil, de outro, também o conformou aos seus interes-
ses corporativos.
A produção do conhecimento médico e a sua prática ainda aconteciam,
sobretudo, sob a influência do modelo clínico francês, mas já se notava, prin-
cipalmente em São Paulo, a influência norte-americana. As transformações
ocorridas no ensino médico dos Estados Unidos e na prática médica, em de-
corrência da implantação da reforma iniciada após a publicação do Relatório
Flexner, resultaram em um modelo exportado para todo o continente america-
no e também para outras terras sob a influência dos EUA.
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
198 para a compreensão de problemas atuais

As atividades econômicas em torno da saúde limitavam-se aos progra-


mas de combate a endemias, e demais atividades de saúde pública implemen-
tadas pelos governos federal e estadual, e às iniciativas de assistência médica,
centradas nas instituições de natureza previdenciária e de beneficência/miseri-
córdia. No plano federal, a partir de 1937 a assistência médica focalizou doen-
ças específicas, como tuberculose, lepra, malária e outras: a ênfase dava-se na
construção de equipamentos hospitalares, não na incorporação de tecnologia.
Não se poderia falar em mercado de serviços de saúde, pois todo o aparato
industrial e médico-hospitalar era inexistente. Tampouco havia uma indústria
farmacêutica, a produção de medicamentos realizava-se de forma semi-artesa-
nal (ROZENFELD; RANGEL, 1988:336), embora soros e vacinas fossem já
produzidos em vários estabelecimentos governamentais desde o final do século
XIX.
Nos EUA, a indústria farmacêutica adquirira alguma importância eco-
nômica a partir dos anos 20, depois de iniciada a cooperação entre essas, as
escolas médicas e as fundações, mais tarde originando o complexo médico-
industrial. O período entre guerras testemunharia grande desenvolvimento da
indústria farmacêutica, em especial da norte-americana, notadamente a partir
da metade dos anos 40, via introdução e produção em larga escala da penicili-
na, sinalizando o início da explosão da terapia medicamentosa (ROZENFELD;
RANGEL, 1988:336-8).
O saber médico é limitado e controlado pela própria corporação, via
escolas de medicina e associações, e o médico é o único profissional com legi-
timidade para exercer a medicina. Quaisquer outros interesses econômicos do
segmento, como por exemplo, o das organizações hospitalares e de fundações
estrangeiras, precisaram necessariamente envolver de alguma forma o médico
em suas estratégias. Oferecer oportunidades de capacitação e desenvolvimento
profissional foi uma das estratégias cooperativas encontradas. No Brasil da
primeira década de 2000, os médicos (enquanto categoria profissional) perdem
espaço na direção das organizações hospitalares, substituídos por profissionais
de outros “saberes”, mas continuam hegemônicos na relação com o paciente
– não por acaso, o convencimento dos médicos continua como importante es-
tratégia de vendas da indústria de materiais e medicamentos.
Para Entender a Saúde no Brasil 199

A II Guerra Mundial trouxe a necessidade de produzir serviços médicos


em grandes volumes. De um lado, estimulou o desenvolvimento de novas téc-
nicas, tornadas possíveis via inovação tecnológica nos centros de pesquisa nor-
te-americanos; de outro, fomentou a produção industrial em grande escala dos
novos equipamentos, gerando um excedente financeiro re-investido na criação
de processos de produção mais eficientes, e em pesquisa e desenvolvimento de
novos produtos. A prática da medicina vai se industrializando, absorvida pela
lógica da produção em série, da eficácia de processos e controle de resultados.
Este modelo só foi possível a partir da junção do ensino médico financiado
pelas fundações, mais as indústrias farmacêuticas, de materiais e equipamentos
médicos. Desde então, a prestação de serviços de saúde, a produção de medi-
camentos e equipamentos passou a gerar um excedente crescente, permitindo
investimento e desenvolvimento contínuos, criando o mercado de serviços de
saúde.
O propósito do novo mercado era aumentar a riqueza dos detentores
do capital por meio do aumento da produção, das vendas e, naturalmente, do
lucro, objetivo a ser atingido com o incremento da base de consumidores, a
ampliação do escopo dos novos fármacos, procedimentos, materiais, equipa-
mentos. Nesse mesmo movimento de acumulação de capital, os médicos lo-
graram aumentar a estatura social e os ganhos financeiros, bem como lutar por
limites ao acesso à profissão (tal como planejado por ocasião da confecção do
Relatório Flexner). A importância e oportunidade do crescimento do mercado
de serviços de assistência médica seria defendido com base nos benefícios para
as pessoas, na melhoria da qualidade de vida, na maior longevidade, na pron-
ta recuperação da saúde, alcançáveis por meio do aumento do consumo dos
produtos e serviços postos à disposição. Para assegurar a correta e adequada
dispensação desses benefícios, tornava-se essencial que seu encargo ficasse
restrito a apenas uma classe de profissionais, os médicos.
Enquanto foi possível manter um fluxo contínuo de consumidores in-
gressando no sistema, o segmento da saúde desenvolveu-se; mas ao se aproxi-
mar do esgotamento do número de participantes disponíveis, houve uma ten-
dência à estagnação. Para evitá-la, cumpria aumentar a demanda por serviços
de saúde, seja pela identificação de novas patologias, pelo rebaixamento dos
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
200 para a compreensão de problemas atuais

níveis de normalidade arbitrados, pela contínua introdução de novos recur-


sos tecnológicos tornados imprescindíveis. Forma-se um campo complexo, no
qual campanhas de marketing, de informação ou conscientização, misturam os
interesses dos ofertantes de produtos e serviços às necessidades dos cidadãos
relativamente aos cuidados com saúde, sendo muito difícil estabelecer limites
para as ações dos agentes.
No Brasil, a despeito da importação e implantação do modelo, a absor-
ção cultural não foi linear. O transplante de um modelo em um determinado
contexto histórico-social revela contradições distintas daquelas observadas nas
condições originais, notadamente no que tange às condições econômicas que
afetaram ambas as economias em tela, bem como quanto às diferentes trajetó-
rias cumpridas pelas respectivas denominadas classes médicas.
Quando em 1943, em pleno Estado Novo, introduziu-se a Consolidação
das Leis do Trabalho, CLT, garantiu-se ao trabalhador formalmente empregado
uma cesta de benefícios sociais, incluindo o seguro de acidente de trabalho, a
assistência médica extensiva aos dependentes e a aposentadoria por tempo de
serviço e por invalidez. Um avanço relativamente às condições gerais reinan-
tes até então, ainda que, se de um lado protegia os trabalhadores formais, de
outro deixava os demais sem direito algum. De qualquer forma, foi um passo
na direção de ampliar a base de assistidos pela medicina curativa previdenci-
ária. Os determinantes sociais da doença, no entanto, foram preteridos, tais
como as condições sanitárias e alimentares, as relacionadas ao trabalho e ao
local e condições de moradia, bem como a educação das mães.
Ressalte-se que recente estudo da Organização Mundial da Saúde apon-
ta para a maior relevância de fatores sociais, em relação a fatores genéticos,
na composição de níveis de saúde. Injustiças sociais, a conseqüente iniqüidade
e condições econômicas desfavoráveis, respondem pela morte de pessoas em
larga escala, fato observado na maioria dos países. A solução apontada não
encontra respaldo no incremento da medicalização, mas na melhora de con-
dições visando reduzir as desigualdades. Como exemplo, um recém-nascido
boliviano, de mãe não escolarizada, possui probabilidade 25 vezes maior de
Para Entender a Saúde no Brasil 201

morte perinatal do que um outro com mãe escolarizada até o nível secundário
(WHO, 2008:29)38.
Explica-se. As pressões para a adoção do modelo hospitalocêntrico já
eram pronunciadas no Brasil de então, e aumentariam em função do cresci-
mento dos interesses médico-assistenciais, até então preteridos em nome dos
interesses sanitaristas/campanhistas. Tal embate, ainda não ideologizado, teria
maior expressão ao longo das décadas seguintes, até que, após o golpe militar
de 1964, seria materializada a supremacia do modelo assistencialista em 1966,
durante o governo Castello Branco39.
A partir de então o modelo médico-hospitalar tornou-se absoluto.

O sistema de saúde em 2008


No artigo 196 da Constituição de 1988, consta “A saúde é direito de to-
dos e dever do Estado”, mas esse direito, como vimos, é atravessado pelos in-
teresses organizados presentes no setor (PERILLO, 2006:252). Assim, há um
sistema governamental de saúde, o SUS, presente nas três esferas de governo,
do qual todo cidadão brasileiro participa, e um sistema suplementar, compos-
to pelos planos de saúde, dos quais são beneficiários cerca de 40 milhões de
pessoas.
As estruturas dos sistemas suplementar e governamental não são es-
tanques, na prestação dos serviços de saúde encontram-se organizações não
governamentais de vários tipos (filantrópicas, beneficentes, com finalidade de
lucro, etc.), que na maioria das vezes prestam serviços tanto ao SUS, quanto
ao sistema supletivo. Há também as organizações públicas de saúde que aten-
dem ao sistema supletivo, situação que é alvo de muitas críticas (AMORIM,
2006:273-4).

38
Para dados de iniqüidade e desenvolvimento econômico relativos ao Brasil, ver WORLD BANK,
Brazil, Inequality and Economic Development (2 vol.). Report No. 24487-BR, Washington: World
Bank, October, 2003.
39
Para a discussão em profundidade sobre a importação e implantação do modelo médico-hospitalar no
Brasil, ver: (PERILLO, 2008).
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
202 para a compreensão de problemas atuais

A criação do SUS após o final do período ditatorial militar, significou


a realização das aspirações dos movimentos sanitaristas vigentes em todo o
processo de construção dos direitos de cidadania, de tal sorte que o direito
de assistência universal à saúde pudesse estender-se a todos os cidadãos, não
somente a uma elite.
Em conseqüência de pressões por incremento das atividades médicas
curativas, tanto sindicais quanto da vertente assistencialista da medicina, mais
as deficiências da oferta governamental de serviços, surgiu a assistência mé-
dica suplementar. Sucede que a crescente formação de especialistas, fruto da
divisão e tecnificação do trabalho médico, somada à expansão da rede hospi-
talar privada, fomentada e financiada por recursos públicos, levaram a uma
situação na qual a oferta tem relativo poder de ampliar o mercado de serviços
de saúde.
É mérito do SUS, em 1988, impor, ao menos no plano legal, a universa-
lidade do atendimento ao cidadão, independentemente do vínculo empregatí-
cio. Na prática, até nossos dias, o acesso das parcelas não empregadas continua
problemático. Os desempregados e aposentados não conseguem manter renda
suficiente para pagar o plano de saúde, provocando a migração para o SUS.
Para contornar o problema, o governo, por meio da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), instituiu o controle dos preços dos planos individuais,
mas as operadoras reagiram com a redução ou interrupção da comercialização
dos mesmos. Aposentados e desempregados, precisamente a parcela mais vul-
nerável da população, têm cada vez mais dificuldades de permanecer na saúde
suplementar, aumentando a procura pelo SUS.
A tecnificação da medicina, por sua vez, permitiu a instalação de in-
dústria local de materiais médicos, tendo em vista os controles governamen-
tais sobre o balanço de pagamentos e a restrição à importação de materiais de
consumo e de tecnologia menos sofisticada. Em 2008, a produção de insumos
nacionais é bastante desenvolvida, mas voltada para equipamentos de tecnolo-
gia já dominada pelo parque industrial nacional. Dependemos ainda da impor-
tação de equipamentos de tecnologia de ponta, visto que os investimentos em
pesquisa e desenvolvimento são escassos, e as parcerias entre universidades e
empresas ainda são embrionárias.
Para Entender a Saúde no Brasil 203

Observa-se uma mesma “identidade” nos problemas dos sistemas pú-


blicos e privados, no mais das vezes operados simultaneamente nas mesmas
instituições e pelos mesmos profissionais. No plano estatal, mesmo em órgãos
de criação recente, persistem modelos centralizados de gestão, burocratizados,
com foco no processo e não nos resultados. Como exemplo, apontamos o orga-
nograma e as rotinas operacionais da ANS, criada em 2000, inspiradas em seus
congêneres do INAMPS, (extinto em 1993), o qual por sua vez os recebera
do INPS, criado em 1966 como resultado da fusão dos IAPs (esses datando
da década de 30 do século passado). Em recente seminário sobre o comple-
xo industrial da saúde, organizado pelo BNDES em maio de 2008, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), foi alvo de críticas severas por
sua excessiva burocracia, a qual impõe barreiras ao bom funcionamento dos
próprios laboratórios e centros de pesquisa estatais ligados ao SUS.
Tal cultura e modelo de gestão e das rotinas operacionais do aparato es-
tatal, por conta da origem e da interpenetrabilidade das instâncias, transbordou
para o âmbito das instituições privadas de atenção à saúde, exemplificado no
sistema de pagamento por procedimento. Por certo alguma modernização ao
longo do tempo foi introduzida, mas não no nível estrutural, pois se percebem
no presente a genealogia e a cultura advindas do modelo primitivo.
O senso comum aponta o sub-financiamento como origem de todos os
males do sistema, estando a solução no maior aporte de recursos (demanda
antiga, como vimos). Todavia, oferecendo-se mais recursos a uma estrutura de
baixo rendimento, a resultante tende a reproduzir o desperdício, mesmo que se
obtenha, transitoriamente, algum equilíbrio de curto prazo. Logo, não resolvi-
das os problemas estruturais, haverá novo desequilíbrio, a ser sobrepujado por
nova adição de recursos.
Pretende-se chamar atenção nesse artigo para o fato de que não estamos
diante de um vício ou desorganização do sistema no tocante à sua incapacidade
para superar os problemas do cidadão, quanto ao acesso aos serviços de saúde.
Como esperamos ter demonstrado ao apresentar e analisar a história da saúde
no Brasil, estamos diante das conseqüências das disputas entre setores organi-
zados, que por sua vez têm desenhado a lógica de funcionamento dos serviços.
O sistema de atenção à saúde, em sua forma atual, foi concebido e estruturado
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
204 para a compreensão de problemas atuais

para fomentar o complexo médico-hospitalar, isto é, para maximizar a utilida-


de de seus componentes do lado da oferta, e não dos tomadores. Note-se que
esses últimos não foram denominados demandantes; dada a condição singular
do sistema de atenção à saúde, a demanda é regulada pelos ofertantes, em vir-
tude da assimetria de informação entre os participantes e a forma de pagamen-
tos. Os tomadores de serviços, pacientes e seus terceiros pagadores, públicos
ou privados, seguirão as diretrizes apontadas pelos ofertantes dos serviços, os
médicos, hospitais e demais componentes do complexo médico-hospitalar.
No contexto da democracia e da economia de mercado, vivemos um
conflito de interesses entre financiadores do sistema (públicos e privados), e
provedores de serviços. Se os primeiros desejam reduzir ou no mínimo con-
ter os gastos per capita de sua massa de assistidos, os segundos vivem essas
ações como ameaças à maximização de sua utilidade. Afinal, são remunerados
apenas quando realizam procedimentos, utilizam equipamentos diagnósticos
ou consomem materiais e medicamentos, cuja comercialização responde atual-
mente por pelo menos 40% do faturamento de hospitais.
Na busca da sobrevivência, as organizações utilizam ferramentas de
análise de custo-utilidade e custo-eficácia; tanto provedores como tomadores
de serviços tentam evidenciar os benefícios advindos de um procedimento,
técnica, equipamento ou medicamento como elemento de negociação. Todavia,
pautando-se apenas pelo aspecto técnico, o uso de tais ferramentas não consi-
dera os interesse dos grupos organizados em confronto. Ora, a complexidade
das relações impõe considerar, simultaneamente, as dimensões organizacional,
econômica e política, como condição para entender a dinâmica das estruturas
de atenção à saúde.
Abordagens propondo soluções apenas técnicas realizam leituras par-
ciais da realidade, desconsideram que problemas da vida real possuem natureza
desestruturada e, portanto, exigem ferramental adequado para lidar com seus
componentes tecno-políticos. Há que se levar em conta os interesses organiza-
dos presentes no tecido social, lembrando que condições observadas em uma
determinada sociedade poderão não se apresentar em outra. Por essa razão, a
importação de metodologias que desconsideram os contextos sócio-políticos
locais, consumirão recursos, perderão oportunidades e apresentarão propostas
Para Entender a Saúde no Brasil 205

“racionais” de intervenção, com promessas de solução que não solucionam,


sob o risco de cometer o erro de resolver com eficácia o problema errado40
(erro do tipo III) (MITROFF, 1999:23).
Erros do tipo III surgem no processo de formulação dos problemas, e
ao invés de resolver-se o problema “certo”, esforços são despendidos na reso-
lução eficaz do problema “errado”. Daí a necessidade da correta identificação
dos problemas e de suas causas, processo que, ao contrário do senso comum,
não é óbvio. Nesse campo, lembramos desde modelos mais simples para iden-
tificação de problemas, como o proposto por Mitroff (1999), utilizáveis em
ambientes intra-institucionais, até modelos próprios para situações sociais
complexas, como o proposto por Matus (1993).
Publicação recente do Banco Mundial, abordando o desempenho dos
hospitais brasileiros, apresenta diagnóstico que poderia ser enriquecido, ao
nosso ver, se desse maior peso para as determinantes tecno-políticas dos pro-
blemas que espera resolver, bem como ao diálogo com a população, relativa-
mente às suas necessidades. A obra, na tradição pragmática de sua cultura de
origem, oferece soluções prescritivas (cujo histórico remonta à forte influência
do modelo bomédico-flexneriano no desenho do sistema de saúde brasileiro),
apresentando sugestões no nível da administração dos serviços.
Seria oportuno avaliar o alcance e as possibilidades da implantação des-
se tipo de soluções, quando cotejadas com os grupos de pressão, locais e inter-
nacionais, e seus interesses organizados. No cenário democrático, no qual se
cruzam legitimamente conflitos e contradições, qual seria o significado último
de, por exemplo, promover a re-centralização do SUS?
Desde os primórdios da teoria dos sistemas sabemos (as primeiras pu-
blicações são de 1910), as organizações podem ser simultaneamente centrali-
zadas e descentralizadas; não cabe, portanto, defender a idéia de centralização
ou descentralização como uma finalidade em si. Mas a história também nos
ensina, tais “sístoles e diástoles”, com perdão pela metáfora, sempre foram
marcadas pelos rearranjos das pressões políticas.

40
Para erros de tipo III na pesquisa operacional, ver: RAIFFA, Howard. Decision Analysis. Reading,
Addison-Wesley, 1968:264.
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
206 para a compreensão de problemas atuais

E técnicas de gestão, por mais amparadas que sejam no saber estatístico


ou econômico, não são consideradas suficientes para resolver problemas de
sistemas que “possuem finalidades”, ou seja, aqueles caracterizados pelos in-
teresses dos agentes, como é o caso do segmento da saúde – há vasta literatura
sobre o tema.
O aludido relatório do Banco Mundial apresenta uma ferramenta cha-
mada Data Envelopment Analysis (DEA), conhecida como análise envoltória
de dados. Trata-se de utilização de programação linear para estabelecer parâ-
metros de eficiência relativa entre diferentes unidades produtivas, ao mesmo
tempo em que permite contemplar múltiplas entradas e saídas, uma caracterís-
tica encontrada na atividade hospitalar.
A DEA origina-se de outra ferramenta, a pesquisa operacional (ope-
rations research), desenvolvida durante a II Guerra Mundial como ferra-
menta para a solução de problemas logísticos, tendo por expoentes Ackoff,
Churchman e Arnoff. Farrell, estudando a eficiência relativa de diferentes sis-
temas econômicos, propôs que unidades produtivas buscam maximizar suas
saídas (outputs) para uma dada quantidade de entradas (inputs), ou minimizar
a quantidade de entradas, dada uma saída fixa (FARRELL, 1957:253-4). A
partir do trabalho de Farrell, Charnes et al., estudando a eficiência de unidades
produtivas independentes, introduziram em 1978 o conceito da DEA.
A DEA, enquanto metodologia flexível, de aplicabilidade em variados campos
de atuação nos quais se pretende avaliar desempenho comparativo, e particularmente
útil para evidenciar ineficiências em instituições que servem de paradigma para análi-
se comparativa (benchmarking), por outro lado possui fragilidades. O próprio Farrell
recomendava cautela, pois os resultados de medida da eficiência dependem da entrada
considerada, sendo a correta especificação do conjunto relevante de entradas, o pri-
meiro passo na aplicação da metodologia (FARRELL, 1957:289). Novamente
Ackoff, na década de 1970, apontaria os limites do modelo matemático para
analisar sistemas que possuem finalidades ou propósitos, como é a situação
do setor da saúde, propondo abordagens mais participativas e sistêmicas
(ACKOFF; EMERY, 1972).
Para Entender a Saúde no Brasil 207

Quando aplicada em ciências sociais ou de gestão, a DEA revela a difi-


culdade de se conhecer os níveis de eficiência teoricamente possíveis, tornan-
do-a restrita para a avaliação dos níveis de eficiência relativa. Lembremos que
uma situação economicamente ótima, pode conter aspectos não socialmente
benéficos ou aceitáveis, devendo-se, portanto, atentar para as fronteiras de pos-
sibilidades de utilidade, e levar em conta uma possível escolha social ótima.
Em síntese, a DEA não permite extrapolação de conclusões, restringin-
do-se às instituições e variáveis em estudo, por se tratar de técnica não paramé-
trica; pode ser ferramenta útil para a avaliação das ineficiências de instituições,
mas a qualidade da análise é dada ex-ante, pela seleção das variáveis de entra-
da, e estas podem ser selecionadas de forma não funcional para incrementar a
avaliação de eficiência.
Na mesma linha analítica, (nossa preocupação em não perder de vista
as relações de poder presentes no objeto de análise), seria oportuna a reflexão
sobre a popularização de propostas de resolução de problemas, pela via exclu-
siva das negociações de soma positiva, expressa no simplista “ganha-ganha”.
O pressuposto do “ganha-ganha” (sic) é que todos os agentes estão no mesmo
contexto de prejuízo, ou “crise”, como é recorrente nesse discurso. Assim, seria
necessário um acordo do gênero “ou nos damos as mãos ou afundamos todos”,
verdadeiro “pacto de afogados”, para permitir a sobrevivência do sistema.
Foge aos nossos objetivos discorrer sobre as condições de entorno e as
técnicas de negociação – também há farta literatura disponível sobre o tema.
Tendo em vista as contradições presentes no segmento da saúde, e a comple-
xidade e instabilidade das alianças entre os atores, não conhecemos amparo na
literatura técnica ou na história que possam sustentar a factibilidade do grande
“consenso dos afogados” quanto aos rumos da saúde no Brasil. Além do que,
esclarece o mesmo estudo do IBGE citado no início do trabalho, há apreciável
crescimento econômico no setor saúde, tornando imprópria a generalização
da expressão “crise” para qualificar, de um lado, as disputas dos vários sub-
setores pelos seus respectivos resultados, e de outro, as dificuldades de acesso
dos cidadãos aos serviços (e isso sem entrar na discussão do papel do Estado
nessa arena).
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
208 para a compreensão de problemas atuais

Propostas de maior densidade, apontando para as contradições econô-


micas postas em nossa sociedade ocidental, podem ser apreciadas, por exem-
plo, na obra de Hazel Henderson (1996). A autora critica conceitos e valores
arraigados nas instituições, apontando para as conseqüências ruinosas da he-
gemonia da “sabedoria” econômica, e propõe novas abordagens de problemas
antigos e emergentes.

Considerações finais
A partir da segunda metade do século XX, a prestação de serviços de
assistência médica, partindo de uma estrutura artesanal secular, evoluiu para
constituir uma complexa estrutura médico-hospitalar, e desta, a partir dos anos
80, para o atual complexo médico-industrial (RELMAN, 1980:963-70). A evo-
lução tecnológica do antigo instrumental e das próprias práticas do trabalho
médico, passou a exigir estruturas progressivamente complexas, e os hospitais
constituem os centros de atenção à saúde e local privilegiado de sua execu-
ção. Originalmente obtidos a partir de extratos naturais, medicamentos moder-
namente utilizados tornaram-se tecnologicamente complexos e patenteáveis,
com vida útil relacionada ao período financeiramente rentável da proteção pa-
tentária.
As articulações entre as campanhas nacionais e os problemas locais
sempre foram difíceis, entre outras causas, pela disparidade do nível de desen-
volvimento econômico-social das regiões brasileiras, e pela histórica debilida-
de da infra-estrutura do poder público – e ainda no século XXI perdura como
um dilema de difícil solução. A história nos conta do fracasso de iniciativas no
âmbito da saúde pública provocado pelo modelo de desenvolvimento econô-
mico e pelo desenho político a ele associado nos anos 40.
No Brasil pós-Plano Real, o Estado vem privilegiando o gasto com cus-
teio, em detrimento dos investimentos em infra-estrutura, típicos de governo,
por mais que o ideário liberal clame pelo Estado mínimo. A pergunta não é
nova, mas continua atual: quanto se perde em saúde em virtude das dificulda-
des e custos excessivos de transporte, da precariedade dos sistemas de sanea-
mento e segurança, da baixa qualidade ou inexistência de educação, do atraso
Para Entender a Saúde no Brasil 209

econômico de vastas regiões do norte e nordeste brasileiros e das periferias das


grandes metrópoles?
Pode ser uma leitura demasiadamente genérica afirmar que o sistema
de saúde não funciona ou que seja “irracional” em sua perspectiva econômica;
se não funciona para o cidadão é porque este não participa suficientemente das
decisões, como não participou de sua concepção. O sistema não foi estruturado
apenas para maximizar os interesses do cidadão, particularmente quando lem-
bramos que por largos períodos, esse não teve direito ao voto. Os problemas
no nível administrativo são uma das causas do mal funcionamento (do ponto
de vista do cidadão), mas há que se compreender também, o atual sistema é um
concerto de interesses entre Estado, corporações médicas e ofertantes e, entre
esses últimos, os produtores de materiais e medicamentos acumulam progres-
sivamente mais poder.
Um dos muitos benefícios do estudo da história é mostrar que dilemas
supostamente novos, não o são: por exemplo, os efeitos inflacionários da in-
corporação de tecnologia nos serviços de saúde foram registrados na década
de 30, nos Estados Unidos (PERILLO, 2008). No relato da constituição do
complexo médico-hospitalar observamos que os interesses políticos (e não os
critérios de eficácia na utilização dos recursos), interferem pesadamente na
descentralização da oferta de serviços e nas novas formas de organização do
sistema desde o princípio. Da mesma forma, são problemas antigos e ainda por
resolver, a pressão dos setores organizados por mais recursos governamentais
para a saúde; a dificuldade em universalizar de fato o atendimento; as disputas
políticas e econômicas entre a medicina curativa e a preventiva no nível do or-
çamento público; os limites do modelo de financiamento; o controverso papel
do Estado; o desperdício de recursos. Por quê?
Deixemos claro que encontrar as formas adequadas de responder às
necessidades de saúde da população brasileira não é e nunca foi trivial. Parte
das causas dos problemas citados é de natureza administrativa–gerencial; outro
conjunto de causas repousa nas características da economia e da sociedade: a
concentração da renda, a falta de moradia e saneamento, a fragilidade do sis-
tema educacional, um rol interminável de mazelas. Um terceiro conjunto, ao
qual nos dedicamos especialmente no presente artigo, vem da arquitetura do
Formação do complexo médico-hospitalar: contribuições da história econômica
210 para a compreensão de problemas atuais

modelo de atenção à saúde (ou à doença?), cuja lógica, historicamente consti-


tuída, não objetiva exclusivamente o bem-estar do cidadão.
Organizar as causas em três grandes grupos é mero recurso de racio-
cínio, pois, para aumentar a complexidade da situação, as três dimensões ci-
tadas se interpenetram, não há problema exclusivamente político, ou técnico,
ou financeiro, e assim por diante. E em todos os níveis, a atuação do Estado é
elemento constituinte das dificuldades e das soluções.
Discursos a favor da superioridade da iniciativa privada (lucrativa)
quanto à solução dos problemas no âmbito da saúde, esperamos ter demons-
trado, não se sustentam. As organizações de fins lucrativos, e essa observação
é válida para qualquer setor, orientam-se para a obtenção de lucro, condição
de sua sobrevivência. Argumentos em defesa da estatização dos serviços de
saúde tampouco nos parecem alternativa adequada, seja porque os agentes pri-
vados capturam instâncias governamentais, seja porque o Estado, enquanto
instituição, desenvolve objetivos próprios relativos a muitos outros interesses
que também não são a saúde dos brasileiros.
Todas as iniciativas visando dar maior transparência aos motivos das
ações em saúde, tanto do governo quanto das empresas, em muito contribui-
riam para melhorar as condições de negociações dos vários interesses em pau-
ta. O Estado, a despeito de seus limites, pode e deve cumprir o papel de re-
gulador, pois quanto mais sofisticado e preciso for nessa tarefa, melhor será a
arbitragem dos interesses, inclusive os dos cidadãos.
Para Entender a Saúde no Brasil 211

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