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Diálogos entre psicanálise e literatura: Um ensaio sobre o amor nos tempos do cólera
Diálogos entre psicanálise e literatura: Um ensaio sobre o amor nos tempos do cólera
Diálogos entre psicanálise e literatura: Um ensaio sobre o amor nos tempos do cólera
Ebook319 pages4 hours

Diálogos entre psicanálise e literatura: Um ensaio sobre o amor nos tempos do cólera

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A obra Diálogos entre psicanálise e literatura: um ensaio sobre O amor nos tempos do cólera é resultado da dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Federal de São Paulo, em que é realizada uma análise psicanalítica do protagonista do romance O amor nos tempos de cólera, Florentino Ariza. Organizado em três capítulos, o livro, que analisa o romance de Gabriel García Márquez, busca compreender a dinâmica psíquica de Florentino, considerando sua maneira de enfrentar as adversidades da vida a partir da teoria psicanalítica do luto em Freud.
LanguagePortuguês
Release dateOct 3, 2023
ISBN9788546225026
Diálogos entre psicanálise e literatura: Um ensaio sobre o amor nos tempos do cólera

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    Diálogos entre psicanálise e literatura - Eduardo Toshio Kobori

    1. O PROCESSO SUBJETIVO DE FLORENTINO ARIZA E O COROLÁRIO DO DESEJO

    1.1 Subjetividade e sofrimento psíquico sob o ângulo da psicanálise

    Como toda arte e, particularmente, como toda obra literária, O amor nos tempos do cólera abre as sendas de múltiplas e inesgotáveis leituras. O recorte que priorizamos em nosso estudo procura abordar os aspectos subjetivos de Florentino Ariza e o modo pelo qual esses traços se atualizam em formas específicas de sofrimento psíquico.

    Na contramão de toda uma história do pensamento que coisificou e unificou a subjetividade, pode-se dizer que a Psicanálise produz uma inversão no pensamento ocidental, ao descentralizar a razão, ao recusar a equivalência entre consciência e representação e estabelecer a insuperável cisão da psique. Se a certeza do cogito cartesiano permitia o questionamento da realidade do mundo e de Deus, ao mesmo tempo, ela garantia a existência do Eu como lugar da verdade e do conhecimento.¹⁸ Ao afirmar que a consciência é a superfície do inconsciente e que o último exerce alguma influência sobre o primeiro, Freud aponta uma mudança de referencial na centralidade da subjetividade na consciência. Nesse sentido, com o surgimento da psicanálise, já não é mais possível considerar a consciência como morada da Razão ou sustentar que existe um domínio absoluto desta. O que Freud postula é justamente o contrário, ou seja, outras instâncias também participam da constituição do Eu como subjetividade e a consciência, na realidade, é o lugar do ocultamento, do desconhecimento. Nas palavras de Garcia-Roza:

    [...] é a produção do conceito de inconsciente que resultou numa clivagem da subjetividade. A partir desse momento, a subjetividade deixa de ser entendida como um todo unitário, identificado com a consciência e sob o domínio da razão, para ser uma realidade dividida em dois grandes sistemas – o Inconsciente e o Consciente – e dominada por uma luta interna em relação à qual a razão é apenas um efeito de superfície.¹⁹

    A concepção freudiana de homem pressupõe uma subjetividade cindida, em que ambas as partes, consciente e inconsciente, possuem sua lógica de funcionamento e exercem influências sobre o sujeito. Em outras palavras, com o descentramento do sujeito, a razão deixa de ser senhora absoluta do Eu para figurar como uma parte da subjetividade subordinada a outras forças que a compõem. É nesta noção de subjetividade clivada que nos ancoramos para ler e interpretar O amor nos tempos do cólera.

    Outra importante diretriz do nosso percurso é a associação entre sofrimento psíquico e subjetividade. Freud nos mostrou que, além da cisão do Eu em uma parte conhecida e outra desconhecida, a dinâmica do psiquismo funciona de acordo com o jogo de forças entre as instâncias envolvidas. Neste embate, que inclui os eventos da realidade externa e a trama interna do sujeito, o Eu sempre preza pela integridade do indivíduo, visando o menor dano a ele. A título de exemplo, extraímos uma passagem das Cinco lições de Psicanálise em que Freud explicita de que maneira os conflitos podem suceder na psique:

    [...] a ideia que aparecia ante a consciência como portadora daquele desejo incompatível sucumbiu à repressão, sendo impelida para fora da consciência e esquecida, junto com as lembranças a ela relacionadas. O motivo da repressão, portanto, era a incompatibilidade entre a ideia em questão e o Eu do paciente; as forças repressivas eram as reinvindicações éticas etc. do indivíduo. A aceitação do desejo inconciliável ou o prosseguimento do conflito teriam gerado intenso desprazer; esse desprazer foi evitado pela repressão, que, dessa maneira, revelou-se como um dos dispositivos de proteção da personalidade psíquica.²⁰

    A citação anterior demonstra o funcionamento dinâmico do psiquismo de um indivíduo, cujas ideias referentes ao seu desejo e sua moral se tornaram incompatíveis. A fim de evitar o desprazer gerado nesse embate, a ideia e tudo o que estava relacionado a ela foram reprimidos, ou seja, deixaram de pertencer à esfera consciente. O acesso a estes conteúdos está barrado, pois eles pertencem agora ao inconsciente. Contudo, o jogo de forças permanece, uma vez que as forças do inconsciente continuam impulsionando o desejo em direção à consciência. Ao mesmo tempo o supereu repele esse conteúdo devido ao seu teor imoral. No meio dessas duas instâncias, o Eu, por sua vez, deve mediar um acordo entre o Id e o Supereu, de modo que as duas partes sejam satisfeitas, bem como o Eu também não fique prejudicado. Podemos notar que o Eu fica impelido às forças de diversas direções, uma impulsiona o conteúdo inconsciente em direção ao consciente, a outra, tenta suprimi-lo. A mediação do Eu resulta numa formação sintomática, na qual o conteúdo insuportável à consciência permanece reprimido, o que satisfaz o supereu e o Eu, evitando assim o desprazer. Por outro lado, para satisfazer o Id, um sintoma pode surgir como compensação da ideia reprimida, ou seja, o sintoma representa, de maneira distorcida, aquela ideia e se torna a expressão de sua existência no inconsciente. Dessa forma, o Eu é pressionado por todos os lados, ainda que obtenha sucesso na repressão de determinado conflito, a formação substituta engendra um sofrimento psíquico, o sintoma.²¹

    Sob esta perspectiva, nossa leitura d’O amor nos tempos do cólera procura enfatizar a subjetividade clivada do protagonista e seu sofrimento psíquico diante das vicissitudes de sua vida como consequência do jogo de forças a que ele está submetido. Iniciemos, pois, nossa aventura: adentremos o romance de García Márquez.

    1.2 Encanto e (des)ilusão na imagem da Feira livre e as problemáticas de Florentino

    Dentre as muitas cenas tecidas no interior da narrativa d’O amor nos tempos do cólera, iniciemos com a imagem da feira livre que explode de modo marcante e configura, a nosso ver, uma das mais importantes do romance.²²

    Nessa passagem, o protagonista, narra o autor, passara a noite em claro vagando pelo cais e pela cidade. Florentino estava ansioso para reencontrar Fermina, cujo isolamento em Rioracha havia terminado. Ao amanhecer, nosso personagem avista a jovem atravessando a Praça da Catedral acompanhada de sua criada. A sensação imediata, ao revê-la, foi a de um abalo sísmico que lhe dilacerou as entranhas²³. Até então, Florentino não havia conseguido se encontrar com Fermina, apenas sabia que ela retornara; daí que sua noite fora dedicada a tecer estratégias para reestabelecer o contato. Ela, porém, surge diante dele, inesperadamente. O protagonista resolve acompanhá-la, seguida da empregada, a uma distância segura para não ser visto. A partir desse ponto, a narrativa descreve a mudança de Fermina, seu amadurecimento físico e comportamental, sua altivez no primeiro dia de compras nas ruelas do comércio. O narrador aponta as novas características da personagem: ela não trajava o uniforme escolar, como de costume; estava mais alta, mais perfilada e intensa²⁴. Havia nela um domínio de pessoa mais velha; a trança havia crescido novamente e agora descansava sobre o ombro esquerdo, diferente de outrora quando pendia sobre as costas; mudança ligeira que a despojou de todo traço infantil. Não havia somente mudanças físicas, ela caminhava com desenvoltura, com uma graça e fluidez natural em meio à multidão. Florentino assistia atônito e admirado. Aos olhos do protagonista, Fermina parecia dona de si; em seu interior, no entanto, enfatiza o narrador, o estado de espírito da personagem era o da fascinação, porquanto desde menina idealizava esta experiência, a saber, a primeira ida às compras. A narrativa nos desloca, assim, para a experiência interna do objeto amoroso de Florentino.

    Fermina passava por cada loja, experimentava aromas, sabores e sensações, e isto aumentava sua vontade de viver. Inequivocamente, ela se divertia como se experimentasse o mundo e os pequenos prazeres que este pode proporcionar à vida. Mas permanecia atenta e não se esquecia do teor de sua principal tarefa naquele lugar; destarte empenhava-se em comprar mercadorias planejando as refeições da semana ou avaliando a utilidade que haveriam de ter em sua residência. Algumas peças de enxoval foram compradas em pares, para ele e para ela. Também adquiriu um vidrinho de tinta de ouro, a fim de impressionar Florentino. Fazia muito barulho na feira, os comerciantes gritavam anúncios por todos os lados, a multidão de pessoas indo e vindo, o calor infernal e o cheiro azedo de suor suscitavam a impressão de caos. Absorvida pela balbúrdia, Fermina foi despertada por uma negra que lhe oferecera um pedaço de abacaxi.

    Nesse momento, um acontecimento visceral se efetua, o qual abrirá sendas inesperadas para os personagens. Florentino se aproxima pelas costas de sua amada e a aborda: Este não é um bom lugar para uma deusa coroada²⁵. Fermina olha atrás de si e vê a dois palmos de seus olhos os outros olhos glaciais, o rosto lívido, os lábios petrificados de medo [...], mas ao contrário daquela vez não sentiu agora a comoção do amor e sim o abismo do desencanto²⁶. Notemos que a descrição da feira carrega em si uma profusão de sensações que absorvem Fermina como num encanto. No instante que Florentino surge, não é apenas o desencanto do amor que fica claro para ela, mas o encanto da feira também é quebrado. Toda a ilusão do amor junto com a idealização da vida adulta e as fantasias que estavam sendo criadas caem por terra quando a aparição de Florentino exige um confronto com a realidade: o encantamento está desfeito.

    Voltaremos a esta imagem da feira mais adiante. Cabe, no momento, ressaltar as questões que permeiam nossa leitura d’O amor nos tempos do cólera, para, em seguida, tecermos algumas considerações sobre o personagem Florentino Ariza.

    Como antes mencionado, o objetivo da presente obra consiste em analisar, por meio do instrumental psicanalítico, o protagonista do romance O amor nos tempos do cólera. A análise desse momento do romance, o encontro na feira, descortina de pronto as duas questões que nos mobilizarão nas páginas seguintes e que estão intrinsecamente ligadas, no que concerne ao drama vivenciado pelo personagem e seus desdobramentos. A primeira se refere aos movimentos realizados por Florentino Ariza no enfrentamento de seu sofrimento emocional pela perda do objeto de amor, o que resulta em uma busca incessante de alívio momentâneo e ilusório em atitudes excêntricas, como, por exemplo, o comportamento donjuanesco de catalogar seiscentos casos eventuais durante toda sua vida. Neste caso, como explicita Freud, o direcionamento da libido segue em direção ao princípio do prazer, negando o princípio de realidade, o que significa que os interesses voltados para o mundo exterior são vinculados às reminiscências do objeto perdido, trazendo, assim, satisfação imediata ao Eu.²⁷ A segunda é a insistente espera de cinquenta e um anos para reconquistar Fermina, reflexo da impossibilidade de desvinculação libidinal do Eu com o objeto de amor, o que o impede de investir em novos objetos, novos relacionamentos, ou seja, de prosseguir sua vida e abrir mão de Fermina Daza. Freud²⁸ assinala que, nesta configuração subjetiva, a libido do Eu permanece investida narcisicamente no objeto perdido, constelação teórica cuja exploração será imperiosa no decurso de nossa reflexão.

    Estas questões que permeiam toda a narrativa se entrelaçam, são causa e efeito uma da outra. Quando Florentino não consegue se desvencilhar do investimento libidinal no objeto, permanece perseguindo-o a todo custo e sofrendo por sua condição, e é por este motivo que o personagem cria formas de amenizar esta falta. Porém, as escolhas que realiza estão vinculadas ao objeto perdido, preenchem momentaneamente seu vazio interior, mas não resolvem seu problema.

    Em síntese, o que se pretende neste estudo é explorar os modos de subjetivação de Florentino percorrendo seus aspectos econômicos e dinâmicos, segundo a teoria psicanalítica. Em outras palavras, interessa-nos compreender como e por que Florentino padece imerso em sua condição emocional e de que modo se estrutura sua constituição subjetiva. Não se trata decerto, insistamos, de subsumir a obra ao instrumental psicanalítico, uma vez que a primeira transborda infinitamente o segundo. Nosso intuito é modesto e circunscreve-se a construir uma via possível de interpretação, aquela pautada pela psicanálise.

    1.3 A recusa de Fermina Daza e o início do sofrimento psíquico

    O primeiro tema a ser abordado neste subitem refere-se ao início do relacionamento entre Florentino e Fermina. É importante citarmos este período inicial da paixão do casal, pois ele nos fornece material para entendermos a experiência subjetiva do personagem após o rompimento com Fermina, e, consequentemente, seu sofrimento psíquico. Em seguida, demonstraremos os aparentes motivos pelos quais o término do relacionamento ocorreu e, por fim, abordaremos o início do sofrimento de Florentino, bem como a possível alternativa criada pelo personagem para suportar sua dor.

    O compromisso que se firmava entre Florentino e Fermina foi paulatinamente construído ao longo dos anos. O futuro casal se conheceu na casa da adolescente; Florentino na época trabalhava na agência dos correios e fora designado para entregar um telegrama na residência dos Daza. Ao adentrar a casa, viu de relance Fermina dando aulas de leitura à sua tia Escolástica, isto foi o suficiente para despertar o seu interesse, segundo o autor: esa mirada casual fue el origen de un cataclismo de amor²⁹. A partir deste dia, Florentino procurou levantar informações sobre Lorenzo Daza, além de esperar diariamente por Fermina, sentado em um banco de uma praça por onde ela passava para ir ao colégio. Estes breves vislumbres da colegial lhe bastavam e "poco a poco fue idealizándola, atribuyéndole virtudes improbables, sentimientos imaginarios, y al cabo de dos semanas ya no pensaba más que en ella."³⁰ É interessante notar que a descrição realizada pelo autor colombiano não menciona um desejo sexual, mas apenas sentimentos afetuosos com relação às qualidades imaginárias da personagem. Freud descreve este estado de enamoramento em Psicologia das massas e análise do Eu. Neste texto, o autor discorre sobre os efeitos iniciais da paixão, tal como observamos em Florentino: a idealização do objeto amado, atribuindo-lhe características positivas de forma exaltada e os sentimentos ternos desprovidos de desejo sexual. O psicanalista sublinha estas características nesta passagem:

    As tendências que impelem à satisfação sexual direta podem ser inteiramente empurradas para segundo plano, como sucede regularmente, por exemplo, com o entusiasmo amoroso de um jovem; o Eu se torna cada vez menos exigente, mais modesto, e o objeto, cada vez mais sublime, mais precioso

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