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1- Infecção e Sepse

Mesmo com os avanços nos cuidados da vítima de queimadura, a maioria dos óbitos nessa
população ocorre devido à infecção. Sabemos que estes pacientes apresentam condições
favoráveis à instalação de processos infecciosos, tais como perda da integridade cutânea,
imunodepressão, predisposição à translocação bacteriana a partir do trato digestivo e
presença de dispositivos invasivos (ventilação mecânica, cateteres venosos profundos,
sonda vesical de demora).
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DIAGNÓSTICO
O diagnóstico precoce de infecção:
A área queimada deve ser mantida sob vigilância constante na busca de sinais clínicos.
(1) evolução de área de queimadura de segundo grau para necrose de toda a espessura da
derme;
(2) surgimento de focos de hemorragia, escuros ou negros;
(3) aparecimento de lesões sépticas na pele íntegra em torno da queimadura, como o ectima
gangrenoso (característico da infecção por Pseudomonas), ou surgimento de celulite em
áreas adjacentes à queimadura.
A propedêutica precisa ser complementada pela avaliação microbiológica.O diagnóstico
definitivo de infecção de área queimada exige biópsia quantitativa da lesão suspeita; na área
queimada a biópsia demonstrará invasão bacteriana da derme e contagem de 104 a 107
UFC/g de tecido queimado.
Obs: Quando não é possível a realização de biópsia, os achados clínicos da ferida associados
a uma piora da contagem de leucócitos e da curva térmica podem ser elementos suficientes
para o diagnóstico.

Felizmente, a incidência de infecções invasivas, geralmente por Pseudomonas aeruginosa,


vem diminuindo nas últimas décadas; hoje em dia, essa complicação é mais observada em
crianças e ocorre tardiamente na evolução clínica dos pacientes. Entretanto, houve um
aumento proporcional na importância das infecções fúngicas, com Candida sp. sendo o
agente mais comum, e Aspergillus sp. como o responsável por quadros mais graves. Os vírus
pouco contribuem, com o herpes-simples tipo 1 o mais encontrado. O tratamento das
infecções invasivas da área queimada envolve o início de antibioticoterapia sistêmica e
excisão da região infectada, com abordagem cirúrgica agressiva.
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A vítima de queimaduras extensas se encontra em risco de surgimento de processos
infecciosos em outros sítios, além da área queimada.

 Pneumonia (complicando a lesão pulmonar por inalação),


 sinusite (sondas nasoentéricas de permanência)
 sepse (a partir de cateteres vasculares centrais)
Estas estão entre as principais infecções descritas.
A atrofia de células da mucosa intestinal ocorre aproximadamente 12 horas após a
queimadura e é diretamente proporcional à extensão da área queimada. O aumento da
permeabilidade intestinal resultante favorece a translocação bacteriana, outro fator
determinante de sepse. De acordo com os principais livros-textos de cirurgia, as fontes mais
comuns de sepse são a infecção invasiva da área queimada e os pulmões (pneumonia).

TRATAMENTO
O emprego de curativos sintéticos e biológicos e o uso de curativos tradicionais, com gaze e
antibióticos tópicos, reduziu expressivamente o risco de infecção da queimadura.
Os antimicrobianos locais não esterilizam a área queimada, apenas mantém o número de
micro- -organismos sob controle.
Todavia, em pacientes com mais de 30% de SCQ e naqueles onde ocorreu falência de
enxerto cutâneo, esse equilíbrio pode ser rompido, propiciando o surgimento de infecção
invasiva e sepse.
É importante termos em mente que os antibióticos profiláticos (sistêmicos) de infecção de
área queimada não devem ser recomendados rotineiramente, uma vez que promovem
pressão seletiva da flora com o surgimento de bactérias multirresistentes. Todavia, a
antibioticoprofilaxia deve ser prescrita em casos de desbridamento e enxertia, no período
perioperatório, não devendo ser utilizada por mais de 24 horas.

Quais são as medidas que devemos adotar para reduzir a incidência de


complicações infecciosas?
Existem algumas condutas que obrigatoriamente devem ser tomadas. A vigilância constante
da área queimada é fundamental e um tratamento agressivo é recomendado na presença de
infecção invasiva.

 Higiene das mãos


 manipulação adequada de cateteres profundos
 posicionamento da cabeceira do leito a 30º a 45º
 A nutrição enteral precoce reduz a probabilidade de translocação bacteriana a partir
do trato gastrointestinal, preservando a integridade da mucosa intestinal.
 controle glicêmico adequado (e não mais rigoroso) deve ser empreendido em
pacientes críticos. Níveis mantidos entre 140 e 180 mg/dl parecem os ideais.
Estas são medidas essenciais a serem adotadas pela equipe assistencial.
Nos pacientes que não desenvolveram infecção, antibióticos profiláticos perioperatórios
devem ser usados em desbridamento e trocas de curativos em centro cirúrgico.
2-Lesão Pulmonar por Inalação
Em vítimas de queimaduras térmicas confinadas, a inalação de fumaça tóxica proveniente da
combustão de alguns elementos que se encontravam no meio ambiente em chamas pode causar
traqueobronquite e pneumonite químicas, determinando uma entidade conhecida como lesão
pulmonar por inalação.

As principais evidências que levam a suspeita de lesão pulmonar por inalação

 Queimaduras em cabeça e pescoço


 chamuscamento das vibrissas nasais
 Hiperemia da orofaringe (este o mais confiável, pois coexiste lesão térmica da via aérea),
 tosse com escarro carbonáceo, rouquidão, sibilos, broncorreia e hipoxemia sem causa
aparente.
 A presença de rouquidão e sibilos expiratórios evidenciam edema grave da via aérea e
intoxicação por fumaça (CO).

Obs: A ausência de escarro carbonáceo e produção excessiva de muco não afastam a presença
de inalação.

O primeiro evento na resposta à inalação é o aumento do fluxo sanguíneo nas artérias brônquicas,
com formação de edema e aumento da linfa pulmonar. O edema está associado ao aumento do
número de neutrófilos locais. Essas células produzem elastase e radicais livres derivados do oxigênio,
mediadores responsáveis pela lesão pulmonar. Posteriormente, as células epiteliais ciliares se
separam da membrana basal e ocorre a formação intensa de exsudato. Este coalesce e forma
“rolhas” de fibrina, que obstruem a via aérea, funcionando como uma espécie de válvula de direção
única: o ar durante a inspiração passa por esta “rolha” e alcança as vias aéreas distais e na expiração
ocorre uma redução do calibre da via aérea e o ar é aprisionado (air trapping). O aprisionamento
predispõe ao barotrauma durante a ventilação mecânica.

Nos primeiros três dias, um intenso broncoespasmo e a própria lesão térmica da via aérea (esta de
forma mais imediata), podem levar à insuficiência respiratória aguda.

Na evolução dos pacientes com lesão por inalação, podemos encontrar entre 72 e 96 horas após a
queimadura, quadro clínico e radiológico semelhante à Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo
(SDRA), com infiltrados lobares difusos, resultado do aumento da permeabilidade capilar alveolar e
exsudação para sua luz. Podem ocorrer microatelectasias difusas por perda de surfactante.

Posteriormente, broncopneumonia secundária à colonização da árvore traqueobrônquica pode


complicar ainda mais o quadro clínico. A pneumonia antes de cinco a sete dias tem como principal
agente Staphylococcus resistente a meticilina; após este período, os micro-organismos mais
encontrados são os Gram-negativos, sobretudo Pseudomonas aeruginosa.

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TRATAMENTO

A radiografia de tórax é muito pouco sensível, sendo necessária a utilização de recursos diagnósticos
mais sofisticados. A broncofibroscopia permite a visualização de inflamação e/ou ulceração da árvore
traqueobrônquica além do depósito de partículas de carbono; a cintilografia de ventilação com
133Xe evidencia aprisionamento do radiofármaco, indicando obstrução segmentar das vias aéreas,
consequência da lesão por inalação

O tratamento depende do grau de disfunção respiratória determinada pela lesão. Nos pacientes com
quadros leves a moderados, o uso de oxigênio a 100% umidificado associado à fisioterapia para o
tratamento da broncorreia são suficientes.

Os casos graves são abordados com intubação endotraqueal seguida de ventilação mecânica. As
indicações de acesso definitivo à via aérea incluem:

(1) PaO2 < 60 mmHg;


(2) PaCO2 > 50 mmHg;
(3) relação PaO2 /FiO2 < 200 (SDRA);
(4) sinais de desconforto respiratório. Valores da relação PaO2 /FiO2 inferiores a 350 são
preocupantes, com esses pacientes necessitando de reavaliações constantes.

Atualmente, a ventilação com baixo volume corrente e de alta frequência demonstrou reduzir a
mortalidade. Os parâmetros utilizados incluem uma pressão platô < 30 cm H2 O e um volume
corrente de 4 a 6 ml/kg de peso ideal. A PEEP deve ser titulada a uma pressão suficiente para manter
os alvéolos abertos e com mínima repercussão hemodinâmica.

Outras medidas incluem toalete pulmonar agressivo, remoção periódica (através da


broncofibroscopia) de debris e “rolhas” de fibrina da via aérea distal e nebulização regular com
heparina, alfa-miméticos ou polimixina B. Os broncodilatadores (β2 -agonistas) devem ser usados na
presença de hiperreatividade brônquica.

Na presença de infecções pulmonares, está indicada antibioticoterapia sistêmica. Os esquemas


devem apresentar cobertura tanto para Staphylococcus aureus resistentes à meticilina quanto para
Gram-negativos, principalmente Pseudomonas aeruginosa e Klebsiella spp.

DIAGNÓSTICO

O diagnóstico clínico de pneumonia inclui duas das seguintes alterações:

(1) surgimento de nova imagem radiológica, que pode ser infiltrado, cavitação ou consolidação;

(2) presença de sepse;

(3) alterações recentes no aspecto do escarro (ou presença de escarro purulento) e/ou na cultura
quantitativa.

Outras Complicações
As complicações gastrointestinais mais relevantes são o íleo adinâmico, quase sempre
presente nos primeiros dias após a queimadura, ulceração aguda do estômago e duodeno
(úlcera de Curling), rara com o uso profilático de bloqueadores H2 , e a síndrome de Ogilvie,
conhecida como pseudo-obstrução colônica.
Graus variados de insuficiência hepatocelular, com queda de atividade de fatores de
coagulação e hipoalbuminemia são encontrados em pacientes graves. O prejuízo da etapa de
excreção da bilirrubina conjugada leva à hiperbilirrubinemia, outro achado laboratorial
nesses casos. O tratamento é de suporte.
A colecistite alitiásica pode complicar pacientes graves, sendo o tratamento inicial a
drenagem percutânea da vesícula (colecistostomia) associada à antibioticoterapia. A terapia
definitiva envolve a realização de colecistectomia.
Uma coagulopatia pode surgir por diminuição de síntese dos fatores de coagulação e/ou
trombocitopenia. A queda de atividade de fatores está relacionada à coagulação
intravascular disseminada, fenômeno que pode complicar a evolução de doentes graves. A
presença de traumatismo craniano concomitante aumenta ainda mais o risco de
coagulopatia. A quebra da barreira hematoencefálica libera lipídios neuronais que ativam a
cascata de coagulação.
A úlcera de Marjolin é um carcinoma de células escamosas que ocorre na cicatriz da
queimadura, complicação desenvolvida muitos anos após a fase aguda (média de 35 anos)
do trauma. Geralmente, o tumor possui comportamento agressivo, com 35 % dos pacientes
apresentando metástases nodais à época do diagnóstico.

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