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A CAPITAL É UM CAOS!

Maytê Regina Vieira

RESUMO:

Em 1904 o Rio de Janeiro viveu um conflito que pode ser comparado a uma guerra
civil. Quebra-quebra, destruição de bondes, iluminação pública. Barricadas nas
ruas para enfrentar a polícia. Esta, mesmo com a ajuda da Marinha e dos
Bombeiros, teve dificuldade em conter o ímpeto popular. A Revolta da Vacina é
comumente retratada como um levante popular contra um decreto que obrigava a
vacinação. Mas não é só isto que a explica. Buscamos neste artigo entender os
mecanismos que levaram a população carioca ao levante e a enfrentar com armas
ou o que pudesse ser usado como tal, as autoridades. Defendemos que a
obrigatoriedade da vacina foi somente uma justificativa. Os motivos eram bem
mais antigos e bem mais profundos. Era uma mescla de frustrações com o governo,
com o novo regime, com as condições de moradia e com a imposição arbitrária de
novos modos de vida que excluíram a maior parcela da população.

Palavras-chave: república, urbanização e modernização, vacinação obrigatória.

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1850 – 1889: AS MUDANÇAS QUE ABALARAM AS ESTRUTURAS DA
NAÇÃO.

Durante os 43 anos de reinado de Pedro II, muitas mudanças


ocorreram na nação: os meios de transportes foram modernizados,
assim como a forma de fabricação do açúcar, “o capitalismo industrial
esboçou seus primeiros passos” (COSTA, 1999, p. 463). Por conta disto
aumentaram as indústrias, os créditos financeiros. A mão de obra
escrava começou, gradativamente a ser substituída, nos cafezais
paulistas, pelo trabalhador livre assalariado, a economia deixou de ser
exclusivamente agrícola. Devido a isto cresceu a população nos
grandes centros urbanos. Além disto, desde 1850, uma série de leis
vinha mudando a configuração política e econômica do país, pois elas
iriam pouco a pouco, minar o regime escravocrata no país.

Segundo Carvalho (1998, p. 109), o Brasil do período das últimas


décadas do século XIX importava da Europa idéias e ideais então em
voga como o evolucionismo, o progresso, o materialismo e o
positivismo, o que criou novos grupos sociais.

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A nova versão da idéia de progresso dá ainda maior
ênfase à ciência e à técnica como fatores de
transformação social. [...] Mas no caso brasileiro
talvez se devesse mais ainda ao surgimento de um
grupo social urbano e educado que se sentia
sufocado na sociedade escravista e rural. Sua única
credencial para ascender socialmente era a
competência técnica. (CARVALHO, 1998, p. 109)

Entre estes ideais estava o de transformar o Brasil numa


República. Há muito já existia o ideal republicano no Brasil, de acordo
com Costa (1999, p. 468). Em 1870 foi criado o Partido Republicano
formado por fazendeiros de São Paulo e camadas urbanas do Rio de
Janeiro e restante da nação. “Nos últimos anos do Império existia entre
eles um grande número de simpatizantes das idéias republicanas,
embora muitos não estivessem filiados ao partido”. (COSTA, 1999, p.
481).

De 1885 a 1889 o movimento cresceu, surgiram novas adesões e


começaram as conspirações que resultaram na Proclamação da

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República através de um golpe militar que uniu civis e militares. Um
ano antes, em 1888 foi assinada a Lei Áurea que proibia a escravidão
no país, este foi o golpe final no sistema monárquico, pois os grandes
fazendeiros, senhores de escravos que sustentavam a monarquia,
foram abalados pela abolição.

A República somente se concretizou por conta da crise e da


fraqueza do Império que não conseguia mais se sustentar. Os
republicanos acreditavam que somente a República poderia solucionar
os problemas brasileiros, promoviam suas idéias, tentavam mobilizar o
povo através de escritores e poetas.

Pela primeira vez, a política saía dos limites


estreitos dos conchavos familiares para a praça
pública. Os políticos falavam às populações urbanas.
Os poetas e escritores voltaram a falar do povo,
redescobrindo-o, como fonte de inspiração. Apesar
dessas tentativas de mobilização popular, a
República se faria como a Independência se fizera –

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sem a colaboração das massas. O novo regime
resultaria de um golpe militar. (COSTA, 1999, p. 15)

Para a população em geral, nada mudou. O povo continuou sendo


ignorado nas grandes decisões políticas. O conceito de República, numa
interpretação bem simples, diz respeito à “organização política de um
Estado com vista a servir à coisa pública, ao interesse comum” ou
ainda, um “sistema de governo em que um ou vários indivíduos eleitos
pelo povo exercem o poder supremo por tempo determinado.”
(FERREIRA, 2004). O novo regime manteria as estruturas
oligárquicas, os valores antidemocráticos, elitistas e autoritários que
manteriam o povo afastado do governo e das escolhas políticas.

[...] a mudança de regime político despertava em


vários setores da população a expectativa de
expansão dos direitos políticos, de redefinição de
seu papel na sociedade política, razões ideológicas e
as próprias condições sociais do país fizeram com
que as expectativas se orientassem em direções
distintas e afinal se frustrassem. O setor vitorioso

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da elite civil republicana ateve-se estritamente ao
conceito liberal de cidadania, ou mesmo ficou
aquém dele, criando todos os obstáculos à
democratização. (CARVALHO, 1987, p. 64)

Contudo, o povo da capital, que sofreu as conseqüências das


grandes mudanças, deu uma das primeiras lições à jovem República:
não se submeteu de forma dócil à vontade do governo. Em 1904, o
povo se rebelou, a capital virou uma praça de guerra, em um
movimento contra a lei de vacinação obrigatória. A intenção deste
artigo é esclarecer o porquê de uma reação tão violenta a uma medida
que permitiria a erradicação da varíola, doença que atingia a todos sem
distinção. Para isto precisamos abranger as modificações sociais e
culturais na capital.

A CAPITAL REPUBLICANA PRECISA BRILHAR.

No início do século XX a cidade do Rio de Janeiro era a capital do


país, e como tal era o centro político, econômico e social. Sendo assim
foi onde mais foram sentidas as mudanças ocorridas nos últimos anos

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do Império até a Proclamação da República. Vivia-se na capital a
agitação dos novos tempos, os sonhos de mudança com o novo regime.

República e América eram o novo, o progresso, o


futuro. Quando os republicanos falavam em
América, era especialmente aos Estados Unidos que
se referiam. Esse País representava o espírito de
iniciativa, o liberalismo econômico, o federalismo, o
industrialismo, o pragmatismo, em oposição ao
paternalismo, ao protecionismo, ao centralismo, ao
ruralismo, ao bacharelismo, da sociedade
monárquica. [...] grupos de técnicos e cientistas
procuravam civilizar as populações da periferia
urbana ainda presas ao que consideravam
superstição e atraso. [Eles buscavam] o progresso, a
civilização, a modernidade. (CARVALHO, 1998, p.
110)

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No final do XIX os efeitos da Segunda Revolução Industrial1
alteraram os costumes e o cotidiano no Brasil e no mundo, e para
civilizar o Rio de Janeiro era preciso modernizá-lo, fazer da capital da
república brasileira um modelo, um atrativo para os estrangeiros, uma
capital tão reluzente quanto as européias, uma Paris nos trópicos, sem
nada dever a capital francesa, entretanto para chegar a isto era preciso
enfrentar os problemas da cidade. E eles eram enormes, havia muito a
fazer.

Um dos primeiros locais a ser atacado pela elite dominante era o


centro da cidade e as áreas adjacentes ao porto, local de escoamento
dos produtos de importação e exportação e também de chegada dos

1 A Segunda Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XIX


(1850 - 1870), foi uma segunda fase da Revolução Industrial, envolvendo uma
série de desenvolvimentos dentro da indústria química, elétrica, de petróleo e de
aço. Outros progressos essenciais nesse período incluem a introdução de navios de
aço movidos a vapor, os automóveis, o desenvolvimento do avião, a produção em
massa de bens de consumo, o enlatamento de comidas, refrigeração mecânica e
outras técnicas de preservação e a invenção do telefone eletromagnético.
Esse período marca também o advento da Alemanha e dos Estados Unidos como
potências industriais, juntando-se à França e à Inglaterra, durante a Segunda
Revolução Industrial, a população urbana superou o contingente populacional do
campo, fazendo crescer a importância das cidades.

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grandes empresários e negociantes estrangeiros, portanto, o centro da
cidade precisava ser modernizado.

O Rio de Janeiro vivia um grande problema com o aumento da


população, a cidade não comportava o enorme contingente
populacional que a ocupava, além das levas de imigrantes “a abolição
lançou o restante de mão de obra escravo no mercado de trabalho livre
e engrossou o contingente de subempregados e desempregados. [...] a
população quase dobrou entre 1872 e 1890, passando de 266 mil a 522
mil”. (CARVALHO, 1987, p.16).

Era uma população pobre que se abrigava em antigos casarões


que foram divididos em vários cômodos que abrigavam famílias
inteiras,

[...] para as autoridades, eles significavam uma


ameaça permanente à ordem, à segurança e à
moralidade públicas. Por essa razão foram
proibidos os rituais religiosos, cantorias e danças,
associadas pelas manifestações rítmicas com as

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tradições negras e, portanto, com a feitiçaria e a
imoralidade. (SEVCENKO, 1998, p. 21).

As crises econômicas que fizeram parte dos primeiros anos da


República deixaram na cidade uma grande quantidade de pessoas mal
remuneradas, sem ocupação fixa e vivendo na ilegalidade. Eram
pessoas que, segundo Carvalho (1987, p. 18) estavam freqüentemente
envolvidas com a polícia em contravenções como vadiagem,
embriaguez, jogo. A cidade era considerada perigosa e vista como um
tumulo para estrangeiros, pois aos problemas populacionais somavam-
se a miséria, a sujeira, as doenças. A febre amarela, por exemplo, era
fatal para os estrangeiros. Haviam problemas com saneamento e
higiene que causavam grandes epidemias.

Podemos observar na ilustração a seguir que a Praça da Sé era


uma feira ao ar livre, a sujeira se acumulava nas ruas, os antigos
casarões usados como moradias estavam em péssimas condições e ao
fundo, um quiosque, estes eram considerados ponto de encontro de
todo tipo de desordeiros.

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Era preciso, portanto alargar as ruas transformá-las em avenidas
que permitissem o tráfego dos automóveis, das mercadorias do porto,
a renovação da cidade e, principalmente, livrar o centro da população
pobre indesejável, esconder as mazelas dos olhos europeus.

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A grande reforma da cidade começou com o presidente
Rodrigues Alves e foi planejada em três etapas: modernizar o porto,
sanear e reformar a cidade. Para isto foram dados poderes ditatoriais e
ilimitados aos três responsáveis o engenheiro Lauro Müller, o médico
sanitarista Oswaldo Cruz e o engenheiro Pereira Passos.

Como era de se prever, os três se voltaram contra os


casarões da área central, que congregavam o grosso
da população pobre. Porque eles cerceavam o
acesso ao porto, porque comprometiam a segurança
sanitária, porque bloqueavam o livre fluxo
indispensável para a circulação numa cidade
moderna. Iniciou-se então o processo de demolição
das residências da área central, que a grande
imprensa saudou denominando-o com simpatia de
a “Regeneração”. Para os atingidos pelo ato era a
ditadura do “bota-abaixo”, já que não eram
previstas quaisquer indenizações para os
despejados e suas famílias, nem se tomou qualquer

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providência para realocá-los. (SEVCENKO, 1998, p.
23)

Esta população juntou seus poucos pertences e subiu o morro


montando barracões para acomodar a família com os destroços das
demolições. A demolição dos cortiços causa o que, Chalhoub (1996, p.
17) chama de, a passagem da “era dos cortiços para o século das
favelas”. O agravante é que as condições de higiene e saneamento
permaneceram iguais, senão piores, porém estavam fora da visão da
burguesia que desejava a liberação do centro da cidade e dos
visitantes.

A população pobre que foi despejada era considerada uma classe


perigosa, o que justificava a luta para expulsá-los da cidade em nome
da modernidade. O conceito de classes perigosas foi criado para definir
um grupo de bandidos, desocupados e vagabundos em geral, porém ao
estudar seus hábitos de vida, estes acabaram por fazer um retrato das
condições de vida dos pobres em geral. (CHALHOUB, 1996, p. 21). Para
os parlamentares brasileiros cheios dos ideais capitalistas que
pregavam a oportunidade de riqueza a todos que trabalhassem com

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afinco, a associação era simples: se o trabalho gera riqueza, quem é
pobre não trabalha o suficiente, então se não trabalha é vagabundo e se
é vagabundo é perigoso. O mais grave é que o contexto social e
histórico da época fez com que os negros encabeçassem a lista dos
integrantes das classes perigosas. (CHALHOUB, 1996, p. 23).

Alguns anos antes da presidência de Rodrigues Alves e seu plano


de regeneração já haviam sido feitas algumas obras de reforma no Rio
de Janeiro. Na presidência de Floriano Peixoto, em 1893 o prefeito
Barata Ribeiro, mandou demolir o Cabeça de Porco, uma estalagem que
era o cortiço mais famoso do da cidade. Tinha esse nome porque sua
entrada tinha era decorada com uma cabeça de porco e era composta
por um grande corredor com uma centena de pequenas casas que,
segundo as fontes do período, contava com cerca de 2 mil habitantes.
Os proprietários haviam recebido uma intimação dando três dias para
a desocupação. “A intimação não foi obedecida, e o prefeito Barata
Ribeiro prometia dar cabo cortiço à força.” (CHALHOUB, 1996, p.15).
E foi exatamente o que fez, a polícia cercou o lugar e começaram
as demolições sem um mínimo de interesse pelo destino dos
habitantes.

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A imprensa do período aplaudiu a atitude do prefeito. A Revista
Ilustrada2 mostrou uma ilustração que satirizava o acontecimento.
Nela uma barata desfila triunfante em cima de uma cabeça de porco
lacrimejante servida em uma bandeja. As reformas promovidas por
Rodrigues Alves para modernizar a cidade seguiram a mesma linha
impositiva.

2 A Revista Illustrada foi uma publicação satírica, política, abolicionista e


republicana brasileira, fundada no Rio de Janeiro pelo ítalo-brasileio Angelo
Agostini, circulando durante os anos de 1876 a 1898.

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A forma como a moderna República tratava o povo, fazia com
que este tivesse uma antipatia pelo regime. Sua simpatia era dirigida à
Princesa Isabel, pela obvia assinatura da Lei Áurea e ao Imperador D.
Pedro II que era considerado o pai dos pobres e representava a
sacralidade e a tradição familiar.

[...] para o grosso da população alheada dos


processos decisórios, o imperador era uma figura
sagrada, assim como o eram o sacramento do
matrimônio ou o campo santo dos cemitérios. A
deposição do monarca, assim como a separação da
Igreja e do Estado, decretada pelos republicanos, só
poderia lhes soar como atos, além de
incompreensíveis, de desprezo e profanação de suas
crenças mais íntimas e sublimes. (SEVCENKO, 1998,
p. 19)

A República não conseguiu conquistar o povo, sua perseguição


aos pobres e negros, segundo Carvalho (1987, p. 31) causou efeitos
como revoltas populares e agitações, demonstra um profundo abismo

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entre os pobres e a República mostrando o que a modernidade
brasileira não era.

[...] o que a modernidade brasileira não era.


Começando pelo aspecto político, ela não
incorporava a idéia de igualdade e de democracia.
[...] A idéia de povo era puramente abstrata. O povo
era na maior parte hostil ou indiferente ao novo
regime, e nenhum esforço foi feito para incorporá-lo
ao sistema político por meio do processo eleitoral. A
República brasileira foi uma originalidade: não
tinha povo. (CARVALHO, 1998, p. 120).

Para Carvalho, mais que ignorar o povo a modernidade brasileira


era “alérgica ao povo”, não acreditava nele. Os grandes reformadores
se viam como os “salvadores de um povo doente, analfabeto, incapaz
de ação própria, bestializado, se não definitivamente incapacitado para
o progresso.” (CARVALHO, 1998, p. 121).

A modernização do Rio de Janeiro era um processo elitista,


autoritário, antidemocrático, com a intenção única de mostrar uma

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capital civilizada no estrangeiro, para isto era preciso esconder o povo,
esconder o negro, o mestiço, que inferiorizavam a nação. Criar um
espaço único para a elite que mantivesse longe de seus olhos a pobreza
e a miséria.

Infelizmente, o processo que discutimos de maneira breve e


superficial – por conta da limitação do espaço – foi a inauguração de
uma forma de administração que continua ocorrendo nas cidades do
Brasil, ainda hoje, nada se faz para melhorar as condições sociais das
populações pobres, o que se faz é escondê-la dos olhos da elite, que
cria seus próprios espaços e dos visitantes.

A idéia de modernidade, segundo Silva e Silva (2006, p. 299) foi


criada pelos iluministas e previa duas vertentes: a autonomia que
defendia a libertação do homem sem distinção de raça, sexo, credo, cor
ou opinião e, a eficácia que defendia uma maior eficiência científica
através do domínio da natureza que permitiria uma maior produção de
bens e uma melhor administração política. Alguns pensadores
defendem que esta modernidade ideal proposta pelo iluminismo, no
Ocidente, gerou uma grande disparidade. A eficácia criou um grande

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desenvolvimento material que aumentou as diferenças sociais. No
Brasil, assim como na América Latina isto ocorreu porque as elites
promoveram a modernização das cidades aplicando a eficácia, mas não
a autonomia, mantendo o povo dominado e sem direitos democráticos.

A segregação social iniciada no Rio de Janeiro, capital da nação,


no século XIX permanece e continua sendo a base da urbanização de
nossas cidades. Neste primeiro ponto já conseguimos esclarecer um
dos motivos da reação tão violenta à lei de vacinação obrigatória. Ela
era apenas a gota d’água num copo transbordante de uma população
ignorada, que era tratada com descaso pela elite dominante, que não
tinha direito a opinar, apenas lhe cabia aceitar todas as imposições
governamentais.

ALGO DEU ERRADO, A CIDADE SE TORNOU UMA PRAÇA DE GUERRA.

O centro da cidade do Rio de Janeiro no ano de 1904 era um


grande canteiro de obras, as reformas prosseguiam, as demolições dos
cortiços continuavam para abrir as grandes avenidas na cidade, a
grande massa da população pobre continuava sendo despejada e
empurrada para a periferia da cidade.

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Em meio às reformas ocorria também o saneamento e a
higienização da cidade justificadas pela ocorrência de epidemias. O
médico sanitarista Oswaldo Cruz, tentava erradicar as doenças e
acabar com os problemas sanitários no centro. Para isto, assim como o
prefeito Pereira Passos, ele possuía poderes ilimitados para cumprir a
contento sua tarefa. Há muito seus atos incomodavam os cidadãos mais
atingidos.

Em 1850, de acordo com Chalhoub (1996, p. 29-30), houve um


surto de febre amarela no Rio, este mal atingia principalmente os
imigrantes europeus que deveriam substituir os negros nas lavouras
de café. Com o fim de acabar com os focos de febre amarela, foi iniciada
uma operação de guerra contra os cortiços, considerados locais
propícios para o mal. Contudo, a tuberculose, fatal para a população
negra era ignorada, aparecia mais uma vez a segregação social.

E houve então o diagnóstico de que os hábitos de


moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e
isto porque as habitações coletivas seriam focos de
irradiação de epidemias, além de, naturalmente,

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terrenos férteis para a propagação de todos os
vícios. (CHALHOUB, 1996, p. 29)

Havia desde o século XIX leis que regiam a construção das


habitações populares, os chamados cortiços, para que pudessem
permanecer em funcionamento era necessária uma série de reformas
para torná-los habitáveis e a construção teria que passar pela inspeção
da Junta de Higiene, composta por fiscais responsáveis por atestar a
capacidade ou não de uma determinada construção permanecer como
local de moradia. Pode-se antever os problemas com a fiscalização já
neste momento.

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Ao assumir a presidência em 1902 Rodrigues Alves torna
Oswaldo Cruz responsável por acabar com as epidemias no Brasil. O
primeiro alvo é a febre amarela, um grupo de sanitaristas visita as
casas em busca de focos da doença e destruição do mosquito, a
população não entende como um mosquito pode causar o mal. Nos
jornais da época ele é satirizado por caçar mosquitos e ratos para
acabar com as proliferações de doenças, como na charge ao lado, onde
é identificado com um caçador e ganha até mesmo um epíteto. O tempo
provou que Oswaldo estava certo, em 1907 a febre amarela foi
erradicada no Rio de Janeiro. O próximo alvo foi a varíola.

As campanhas de vacinação contra a varíola já eram conhecidas,


a população já era vacinada no reinado de D. Pedro II e a insatisfação
do povo com a invasão dos policiais e dos higienistas às suas moradias,
também. A varíola já era pública desde a antiguidade, bem como os
métodos para sua prevenção, como a inoculação3 que causava a sua
prevenção, entretanto a população do Rio de Janeiro desconfiava dos

3 Inocular: Transmitir uma doença inserindo seu agente etiológico (vírus, neste
caso) em um organismo.

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novos métodos e da nova medicina, que há pouco tempo havia
descoberto as formas de conter ou amenizar os sintomas da doença.

Em 1798 foi publicado o trabalho de Edward Jenner, como


médico ele observou que os camponeses com ferimentos que
ordenhavam vacas infectadas pela varíola, entravam em contato com a
doença, mas não desenvolviam os sintomas. Ele descobriu a vacina
para a varíola que chegou ao Brasil por volta de 1804, segundo
Chalhoub (1996, p. 107) e desde então, passou a haver campanhas de
vacinação. O grande problema foi a obrigatoriedade da lei imposta pela
República e como ela foi aplicada.

Rio de Janeiro, novembro de 1904. A divulgação do


projeto de regulamentação da lei que torna
obrigatória a vacinação antivariólica transforma a
cidade em praça de guerra. Durante uma semana,
em meio a agitações políticas e tentativas de golpe
militar, milhares de pessoas saem às ruas e
enfrentam forças da polícia, do exército e até do
corpo de bombeiros e da marinha. O saldo da

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refrega, segundo os jornais da época: 23 mortos,
dezenas de feridos, quase mil presos, sendo que
centenas destes enfrentariam um breve “estágio” na
ilha das Cobras4 e, em seguida uma viagem sem
regresso para o Acre.5 (CHALHOUB, 1996, p. 97)

4Litoral do Rio de Janeiro


5Há inúmeros livros e artigos que discutem em detalhes os desdobramentos e as
ocorrências durante da Revolta, os levantes populares, as lutas contra a polícia, a
destruição da cidade. Há também as discussões entre os grupos em oposição no
governo e a revolta de uma escola militar que “quase” estourou num novo golpe
militar. Como a intenção deste artigo é entender as mudanças no Rio de Janeiro e
as condições sociais que levaram o povo ao levante, me limitei ao excelente resumo
que Chalhoub (1996, p. 97) faz em seu livro. Além disto, não haveria espaço para
estender de tal forma a reflexão neste artigo.

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A campanha em grande escala contra a doença criou “batalhões
de visitadores que, acompanhados da força policial, invadiam casas a
pretexto de vistoria e da vacinação dos residentes.” (SEVCENKO, 1998,
p. 23). Quaisquer indícios de risco de contaminação ou de possibilidade

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de propagação da doença era a justificativa para a expulsão dos
moradores e a demolição da construção.

Além de controlar o espaço social, em nome da


“política sanitária”, os “exércitos de fiscalizadores”,
os “esquadrões mata-mosquitos” e os “batalhões de
vacinadores” eram autorizados a invadir tanto a
privacidade das casas quanto a intimidade dos
corpos6. As pessoas abordadas eram submetidas a
questionamentos sobre suas origens, suas
condições físicas, seus familiares, seus hábitos, sua
vida sexual, suas atividades e suas andanças. Um
decreto de 1905 determinava que todo indivíduo
recolhido à Casa de Detenção fosse imediatamente
“vacinado e revacinado”. Eventualmente as marcas
da vacinação serviriam para revelar de pronto a
passagem do seu portador pelo sistema
penitenciário. (SEVCENKO, 1998, p. 571-572)

6 Era necessário desnudar os braços para ser feita a vacinação.

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Os próprios fiscais eram conflitantes em suas inspeções aos
cortiços. Num relatório feito em 8 de janeiro de 1905, o inspetor
sanitário Dr. Belisário Penna as condições de seu trabalho durante o
período de maio a dezembro de 1904. No relatório ele fala de alguns
locais onde fez a inspeção e demonstra claramente o preconceito
contra as habitações populares ao mesmo tempo preocupa-se com o
destino dos expulsos e critica a falta de atitude do governo:

Há necessidade de fechar, para demolir, mais cinco


grandes estalagens (cortiços), em más condições, e
não susceptiveis de melhoramentos, e bem assim
outras habitações pª serem reformadas, o que irá se
fazendo opportunamente.

Tenho, porém, adiado essa providencia, diante da


falta de habitações para operarios, e que, fechadas
as estalagens, vae essa pobre gente peiorar as suas e
as condições geraes, aboletando-se em predios
communs, transformados pela ganancia de
exploradores sem escrupulo nas chamadas casas de

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commodos, verdadeiros formigueiros, onde
dominam em geral a immoralidade e a porcaria,
onde a promiscuidade e a agglomeração geram as
molestias e a patifaria, trazendo o definhamento
physico e a perversão moral d'esse povo. Enquanto
os governos não enfrentarem com animo decidido o
importante problema das habitações para
operarios, n'uma capital como esta, onde é notavel a
proporção d'esse grupo, a hygiene encontrará
serios embaraços na debelação das epidemias e nas
medidas geraes de saneamento.

Esses desgraçados vivem agora de malas às costas,


escurraçados d'aqui para ali, sem encontrar
habitações regulares, em numero sufficiente e de
preço ao seu alcance, aboletando-se famílias
inteiras em cubículos detestaveis, para serem d'ali
ha pouco removidas pela auctoridade sanitaria da
zona, que deseja saneal-a, para uma outra, onde por

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sua vez a auctoridade competente faz o mesmo, e
assim em seguida. (PENNA, 1905)

Há uma incoerência gritante em relação a todas as fontes que


estudamos para esta produção, todos mencionam a falta de empregos
generalizada por conta do aumento demográfico desenfreado, neste
caso, como o inspetor afirma que,

Isso [a expulsão dos cortiços] traz-lhes o desanimo,


a irritação, e muitas vezes o despertar de máos
instinctos, abafados pelo trabalho que encontram
facilmente na epocha presente.

As medidas a tormar-se a respeito de tão triste


situação tornam-se imprescindiveis e inadiaveis,
d'ellas devendo participar muito directamente a
repartição da hygiene publica....

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E para finalizar o relatório, sua opinião em relação às reformas que
estão sendo feitas,

Acredito que melhoradas as condições hygienicas


das habitações, modificados os habitos da
população pelas constantes visitas, conselhos e
exigencias da auctoridade sanitaria relativas ao
asseio e á prophylaxia, evitando as agglomerações, e
dadas providencias efficazes para o bom
funccionamento dos esgotos, ao calçamento regular
das ruas, a limpeza das mesmas, à regularização de
valas e sargetas, etc. será o Rio de Janeiro uma
cidade de primeira ordem, que causará inveja as
grandes capitais pela sua salubridade e belleza
natural e imponente. (PENNA, 1905)

A obrigatoriedade da lei foi somente a gota que faltava para a


reação popular. Esta foi uma forma de demonstrar sua insatisfação
com o governo republicano e o entendimento da mensagem: a

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modernidade era somente para a elite, o povo, novamente, era
ignorado e excluído.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concordamos com Sevcenko (1998, p. 24) quando diz que a


Revolta da Vacina é um dos episódios menos compreendidos da
história recente do Brasil. Há inúmeras controvérsias entre os
pesquisadores, como aponta Chalhoub (1996) quando discute as
diversas teorias dos pesquisadores para explicar o levante popular.
Segundo ele,

[...] para Sevcenko diz que “a revolta não foi contra a


vacina, mas contra a história”; para Carvalho, “o
inimigo não era a vacina em si mas o governo, em
particular as forças de repressão do governo; para
Needell, a lei da vacinação obrigatória foi apenas a
faísca que ateou por fim o incêndio; para Tereza
Meade, a oposição popular originara-se de um leque
bastante amplo de ressentimentos, apenas teria se

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concentrado em determinado momento na questão
da vacina. (CHALHOUB, 1996, p.101)

Em nossa opinião a Revolta da Vacina se originou de uma mescla


de todos estes fatores desencadeados pelos projetos de modernidade
que mais uma vez, excluíram o povo de seu direito de cidadania.

Por fim, o levante popular fez o governo recuar em relação a


obrigatoriedade da vacina, mas não nas reformas e despejos para
melhoria do centro da cidade. O que aconteceu com este povo que foi
expulso? Ela foi, segundo Sevcenko (1998, p. 610) viver nos morros,
em áreas de periferia, em malocas sem qualquer infra-estrutura, sem
as ditas condições de higiene e habitação que pareceram tão caras ao
governo quando se tratou de modernizar a cidade.

A modernidade do Rio de Janeiro foi feita de forma a privilegiar


somente uma elite, conforme Carvalho (1998, p. 121) foi mais uma
“aristocratização da vida urbana do que sua modernização”
construindo um espaço próprio para as elites e “afastando a presença
deselegante da pobreza”. (CARVALHO, 1998, p.121).

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João do Rio, um personagem repórter citado por Sevcenko (1998,
p.543) conta depois da reforma completada que foi conhecer os
morros onde habitava a população retirada do centro e descreve que
ao ver as luzes da cidade ao pé do morro teve a sensação de que
estavam em outro mundo, regido por leis e condições próprias no
centro do Rio de Janeiro. Diz que a população segregada estava
vivendo em condições piores que aquelas em que vivia nos cortiços.

A Regeneração proporcionou amplos calçadões, áreas em que a


elite poderia passear, comprar nas grandes lojas e desfilar nas novas
praças e avenidas de uma capital urbanizada com ares de cidade
européia nos trópicos. O projeto de governo de Rodrigues Alves e da
República foi alcançado, a duras penas para os excluídos, mas foi
atingido.

Para finalizar repetimos as palavras, já citadas, de José Murilo de


Carvalho, “a República brasileira foi uma originalidade: não tinha
povo.” (CARVALHO, 1998, p. 121). A modernidade foi imposta, assim
como o novo regime político, não interessava a opinião dos maiores

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interessados: a população da cidade. Será que podemos dizer que
atualmente é diferente? Podemos afirmar isto?

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Fonte:

PENNA, B. Relatório dos serviços executados pelo inspetor sanitário dr.


Belisário Penna no decurso de maio a dezembro de 1904. Rio de
Janeiro, 8 de janeiro de 1905.

Referências:

CARVALHO, J. M. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que


não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

_____. Brasil 1870 – 1914: A força da tradição. In: Pontos e bordados:


escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 107-129.

COSTA, E. C. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6ª ed.


São Paulo: UNESP, 1999.

CHALHOUB, S. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial.


São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

FERREIRA, A. B. H. República. In: Novo Dicionário Aurélio da Língua


Portuguesa. 3ª ed. São Paulo: Positivo, 2004.

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SEVCENKO, N. A capital irradiante: técnica ritmos e ritos do Rio. In:
_____. (org.) História da Vida Privada no Brasil. Volume 3. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 514-619.

_____. A revolta da vacina. São Paulo: Bernardi, 2003.

_____. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.


In: _____. (org.) História da Vida Privada no Brasil. Volume 3. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 8-48.

FRANCO, A. M. e LACOMBE, A. J. Rodrigues Alves. São Paulo: Isto é,


2003. (Coleção A vida dos grandes brasileiros).

SOUZA, C. M e MACHADO, A. C. Movimentos Sociais no Brasil


Contemporâneo. São Paulo: Loyola, 1997.

SILVA, K. V. e SILVA, M. H. Modernidade. In: Dicionário de conceitos


históricos. São Paulo: Contexto, 2006. p. 297-301.

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