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ÁPORO
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
1
O Recife cai sobre o mar
sem dele se contaminar.
O Recife cai em cidade,
cai contra o mar, contra: em laje.
2
Olinda não usa cimento.
Usa um tijolo farelento.
mesmo com tanta geometria,
Olinda é já de alvenaria.
3
Os arrabaldes do Recife
não opõem os mesmos diques
contra o rio que em horas é
o mar disfarçado em maré.
4
As vilas entre coqueirais
(as muitas Itamaracás)
mais que as corrói o tal cupim:
ele mesmo as modela assim.
5
As cidades do canavial,
escava-as um cupim igual.
Ou outra espécie de cupim
já que o mar cai longe dali.
Igaraçu, Sirinhaém,
o Cabo, Ipojuca e também
Muribeca, Rio Formoso:
há algo comido em seu estofo.
6
A paisagem do canavial
não encerra quase metal.
Tudo parece encorajar
o cupim, de causa ou de mar.
7
No canavial tudo se gasta
pelo miolo, não pela casca.
Nada ali se gasta de fora,
qual coisa que em coisa se choca.
8
No canavial, antiga Mata,
a vida está toda bichada.
Bichada em coisas poucos densas,
coisas sem peso, pela doença.
9
Certas cidades de entre a cana
(Escada, Jaboatão, Goiana)
procuraram se armar com aço
contra a vocação de bagaço.
10
sempre cair num buraco, depois dizer “ok, essa não é sua cova, saia desse buraco”, sair do
buraco que não é a cova, cair num buraco outra vez, dizer “ok, essa também não é sua cova,
saia desse buraco”, sair desse buraco, cair em outro; às vezes cair num buraco dentro de um
buraco, ou muitos buracos dentro de buracos, sair deles um depois do outro, depois cair de
novo, dizer “essa não é sua cova, saia do buraco”; às vezes ser empurrada, dizer “você não
pode me empurrar para dentro desse buraco, ele não é minha cova”, e sair com a cabeça
erguida, depois cair de novo num buraco sem ninguém empurrar; às vezes cair num
conjunto de buracos cujas estruturas são previsíveis, ideológicas e muito antigas, cair
frequentemente nesse conjunto de buracos estruturais e impessoais; às vezes cair em
buracos junto com outras pessoas, com outras pessoas dizer “essa não é nossa cova coletiva,
saiam desse buraco”, todas juntas saírem do buraco juntas, mãos e pernas e braços e escadas
humanas umas das outras para sair do buraco que não é a cova coletiva mas que só dá para
sair juntas; às vezes cair por vontade própria num buraco que não é a cova porque na
verdade é mais fácil do que não cair num buraco, mas depois de estar lá dentro, perceber
que não é a cova, acabar saindo do buraco; às vezes cair num buraco e ficar ali definhando
por dias, semanas, meses, anos, porque embora não seja a cova, mesmo assim é muito difícil
sair e você sabe que depois desse buraco só tem outro e mais outro; às vezes examinar a
paisagem de buracos e desejar um buraco final de alta qualidade; às vezes pensar em quem
caiu em buracos que não são covas mas talvez seria melhor se fossem; às vezes contemplar
com anseio demais o buraco final enquanto tenta evitar os provisórios; às vezes cair e sair
obedientemente, com perfeita bravura, dizer “vejam com que maestria e espírito eu me
levanto de novo do que parece a cova mas não é!”
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Quem anda de cabeça para baixo, minhas Senhoras e meus Senhores, quem anda de
cabeça para baixo tem o céu por abismo debaixo de si.
Paul Celan, O Meridiano