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ESCAVAÇÃO DA POESIA: UM OLHAR PARA BAIXO

Marcelo Reis de Mello

Oficina: A Palavra e as Imagens


Responsável: Prof. Dr. Rafael Zacca

Editora 7Letras, 17 de março de 2021

A linguagem é o medium no qual estão soterradas as cidades antigas. Quem


procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar
como um homem que escava.

Walter Benjamin: “Escavando, lembrando”, em: Rua de Mão Única.

Chamo imagem o que habita o visível em termos de exigência.

Marie-José Mondzain: “Imagem, Sujeito, Poder”.

Doris Salcedo, Shibboleth (2007)


https://www.youtube.com/watch?v=iWlkOlhhFZg
Gordon Matta-Clark, Conical Intersect (1975)
https://www.youtube.com/watch?v=W8_laap8y5c
[Começar em 7”15’]

Leïla Danziger, Diários Públicos (2002-2007)


https://vimeo.com/152783213

Ver também: Cascas, de Georges Didi-Huberman (p.109-110).


BREVE ANTOLOGIA DE POEMAS

Carlos Drummond de Andrade


João Cabral de Mello Neto
Paul Celan
Anne Boyer

ÁPORO

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,


em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto


(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Carlos Drummond de Andrade, de A Rosa do Povo (1945)


PAISAGENS COM CUPIM

1
O Recife cai sobre o mar
sem dele se contaminar.
O Recife cai em cidade,
cai contra o mar, contra: em laje.

Cai como um prato de metal


sobre outro prato de metal
sabe cair: limpo e exato
e sem contágio: em só contato.

Cai como cidade que caia


vertical e reta, sem praia.
Cai em cais de cimento, em porto,
em ilhas de aresta e contorno.

O Recife cai na água isento.


Bem calafetado o cimento:
ao dente da ostra, ou sua raiz,
aos bichos do mar, seus cupins.

2
Olinda não usa cimento.
Usa um tijolo farelento.
mesmo com tanta geometria,
Olinda é já de alvenaria.

Vista de longe (tantos cubos)


ela anuncia um perfil duro.
Porém de perto seus sobrados
revelam esse fio gasto

da madeira muito roçada,


das paredes muito caiadas,
de ancas redondas, usuais
nas casas velhas e animais.

Porque Olinda, uma Olinda baixa,


se mistura com o mar na praia:
que e por onde se vão infiltrar
em seu corpo os cupins do mar.

3
Os arrabaldes do Recife
não opõem os mesmos diques
contra o rio que em horas é
o mar disfarçado em maré.

Lá o mar entra fundo no rio


e em passos de rio, corredios,
derrama-se em todos os tanques
por onde a salmoura dos mangues.

O mar por lá vai de água parda


de rio, e de boca calada.
É água de mar, também salobra.
Só que sonolenta e mais gorda.

E lá no que se infiltra, quando,


o mar não rói: corrompe inchando.
Não traz cupins de fome enxuta.
Traz úmidos bichos de fruta.

4
As vilas entre coqueirais
(as muitas Itamaracás)
mais que as corrói o tal cupim:
ele mesmo as modela assim.

São aldeias leves de palha,


plantadas raso sobre a praia
com os escavados materiais
que o cupim trabalha e o mar traz.

São menos da terra que da onda:


tem as cavernas das esponjas,
das pedras-pomes, das madeiras
que o mar abandonou na areia.

Menos da terra que do mar:


dos cupins que ele faz medrar
e dão a tudo a carne leve
que o mar quer nas coisas que leve.

5
As cidades do canavial,
escava-as um cupim igual.
Ou outra espécie de cupim
já que o mar cai longe dali.

Igaraçu, Sirinhaém,
o Cabo, Ipojuca e também
Muribeca, Rio Formoso:
há algo comido em seu estofo.

E outras ainda mais dentro:


Nazaré, Aliança, São Lourenço:
imitam no estilo, no jeito,
casas de cupim, cupinzeiros.

Cidades também em colinas,


do mesmo tijolo de Olinda,
também minadas por mares,
(ora de cana) pelos pés.

6
A paisagem do canavial
não encerra quase metal.
Tudo parece encorajar
o cupim, de causa ou de mar.

Não só as cidades, outras coisas:


os engenhos com suas moitas
e até mesmo os ferros mais pobres
das moendas e tachas de cobre.

Tudo carrega o seu caruncho.


Tudo: desde o vivo defunto.
Da embaúba das capoeiras
à economia canavieira.

Em tudo para o ar de abandono


de meia-morte ou pleno-sono,
e esse deixar-se imovelmente
próprio da planta e do demente.

7
No canavial tudo se gasta
pelo miolo, não pela casca.
Nada ali se gasta de fora,
qual coisa que em coisa se choca.

Tudo se gasta mas de dentro:


o cupim entra os poros, lento,
e por mil túneis, mil canais,
as coisas desfia e desfaz.

Por fora o manchado reboco


vai-se afrouxando, mais poroso,
enquanto desfaz-se, intestina,
o que era parede em farinha.

E não se gasta com choques,


mas de dentro, tampouco explode.
Tudo ali sofre a morte mansa
do que não quebra, se desmancha.

8
No canavial, antiga Mata,
a vida está toda bichada.
Bichada em coisas poucos densas,
coisas sem peso, pela doença.

Bichada até a carne rala


da bucha e do pau-de-jangada.
Até a natureza puída,
porém inchada, da cortiça.

Eis o cupim fazendo a vez


do mestre-de-obras português:
finge robustez na matéria
carcomida pela miséria.

Eis os pais de nosso barroco,


de ventre solene mas oco
e gesto pomposo e redondo
na véspera mesma do escombro.

9
Certas cidades de entre a cana
(Escada, Jaboatão, Goiana)
procuraram se armar com aço
contra a vocação de bagaço.

Mas o aço tomado deu mal:


não se fecharam ao canavial
e somente em bairros pequenos
seu barro salvou-se em cimento.

E nelas (como nas usinas,


que o aço também se vacina,
nas quais só a custo a ferrugem
vive, azul, nos meses de moagem)

a cana latifúndia em volta,


com os cupins que ela cria e solta,
penetra ainda fundo: combate-as
até a soleira das fábricas.

10

O Recife, só, chegou a cristal


em toda a Mata e Litoral:
o Recife e a máquina sadia
que bate em Moreno e Paulista.

Essas existem matemáticas


no alumínio de suas fábricas.
Essas têm a carne limpa,
embora feia, em série, fria.

O cupim não lhes dá combate:


nelas motores vivos batem
que sabem que enquanto funcionem
nenhuma ferrugem os come.

Mas nem na Mata ou Litoral


há mais desse aço industrial
para opor-se ao cupim, ao podre
que o mar canavial traz, ou fosse.

João Cabral de Melo Neto, de Quaderna (1960).


HAVIA TERRA NELES

Havia terra neles, e


cavavam.

Cavavam e cavavam, assim passava


o seu dia, a sua noite. E não louvavam a Deus,
que, segundo ouviam, queria tudo isto,
que, segundo ouviam, sabia tudo isto.

Cavavam e não ouviam mais nada;


não se tornavam sábios, não inventavam nenhuma canção,
não imaginavam qualquer espécie de linguagem.
Cavavam.

Veio um silêncio, veio também uma tempestade,


vieram os mares todos.
Eu cavo, tu cavas, e o verme cava também,
e aquilo que ali canta diz: eles cavam.

Oh um, oh nenhum, oh ninguém, oh tu:


para onde íamos que não fomos para lado nenhum?
Oh tu cavas e eu cavo, cavo-me para chegar a ti,
e no dedo acorda-nos o anel.

Paul Celan, do livro A Rosa de Ninguém (1963)


Trad. Yvette K. Centeno
O QUE PARECE A COVA MAS NÃO É

sempre cair num buraco, depois dizer “ok, essa não é sua cova, saia desse buraco”, sair do
buraco que não é a cova, cair num buraco outra vez, dizer “ok, essa também não é sua cova,
saia desse buraco”, sair desse buraco, cair em outro; às vezes cair num buraco dentro de um
buraco, ou muitos buracos dentro de buracos, sair deles um depois do outro, depois cair de
novo, dizer “essa não é sua cova, saia do buraco”; às vezes ser empurrada, dizer “você não
pode me empurrar para dentro desse buraco, ele não é minha cova”, e sair com a cabeça
erguida, depois cair de novo num buraco sem ninguém empurrar; às vezes cair num
conjunto de buracos cujas estruturas são previsíveis, ideológicas e muito antigas, cair
frequentemente nesse conjunto de buracos estruturais e impessoais; às vezes cair em
buracos junto com outras pessoas, com outras pessoas dizer “essa não é nossa cova coletiva,
saiam desse buraco”, todas juntas saírem do buraco juntas, mãos e pernas e braços e escadas
humanas umas das outras para sair do buraco que não é a cova coletiva mas que só dá para
sair juntas; às vezes cair por vontade própria num buraco que não é a cova porque na
verdade é mais fácil do que não cair num buraco, mas depois de estar lá dentro, perceber
que não é a cova, acabar saindo do buraco; às vezes cair num buraco e ficar ali definhando
por dias, semanas, meses, anos, porque embora não seja a cova, mesmo assim é muito difícil
sair e você sabe que depois desse buraco só tem outro e mais outro; às vezes examinar a
paisagem de buracos e desejar um buraco final de alta qualidade; às vezes pensar em quem
caiu em buracos que não são covas mas talvez seria melhor se fossem; às vezes contemplar
com anseio demais o buraco final enquanto tenta evitar os provisórios; às vezes cair e sair
obedientemente, com perfeita bravura, dizer “vejam com que maestria e espírito eu me
levanto de novo do que parece a cova mas não é!”

Anne Boyer (EUA, 1973- )


Tradução de Rafael Mantovani
https://escamandro.com/2019/04/01/anne-boyer-1973-por-rafael-mantovani/

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Ensinar a ver abismos ali onde estão lugares comuns.


Karl Krauss. “Die Sprache”, em: Die Fackel

Quem anda de cabeça para baixo, minhas Senhoras e meus Senhores, quem anda de
cabeça para baixo tem o céu por abismo debaixo de si.
Paul Celan, O Meridiano

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