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vol. 3 | n. 6 | setembro 2020 | pp.

202-218 | Artigo

Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas:


caso de Crixás, Goiás, Brasil

Luana Nunes Martins de Lima1

Resumo: Crixás (Goiás, Brasil) é analisada neste artigo desde sua gênese colonial até o atual contexto que
indica a negligência na defesa de seu patrimônio cultural. Diversos eventos econômicos, políticos e sociais
conduziram à quase completa destruição de um conjunto de bens culturais móveis e imóveis no espaço
urbano. O objetivo da pesquisa foi identificar em que medida ausências e permanências na paisagem
urbana e/ou na memória coletiva constroem um sentido de patrimonialidade particular. Foi possível
reconhecer que tal sentido, oriundo da relação patrimônio-memória-lugar, tensiona a dialética material-
simbólica do patrimônio local, sobrepondo-se ao reconhecimento institucional ou ao discurso oficial de
conservação de bens edificados. Para a análise, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais,
observação participante em manifestações cuturais locais, técnicas da história oral e entrevistas
(semiestruturadas, narrativas e fotoentrevistas).
Palavras-chaves: Crixás; patrimônio; patrimonialidade; memória; lugar.

Patrimonialidad en ciudades no patrimoniales: caso de Crixás, Goiás, Brasil

Resumen: Crixás (Goiás, Brasil) es analizada en este artículo desde su génesis colonial hasta el contexto
actual de ausencia institucional en defensa de su patrimonio cultural. Diversos eventos económicos,
políticos y sociales han llevado a la destrucción casi completa de un conjunto de bienes culturales muebles
e inmuebles en el espacio urbano. El objetivo de la investigación fue identificar hasta qué punto las
ausencias y permanencias en el paisaje urbano y / o en la memoria colectiva construyen un sentido del
patrimonio particular. Fue posible reconocer que tal sentido, procedente de la relación patrimonio-
memoria-lugar, articula la tensión de la dialéctica material-simbólica del patrimonio local, superponiendo al
reconocimiento institucional o el discurso oficial de conservación de los bienes construidos. Para el
análisis, se realizaron investigaciones bibliográficas y documentales, observación participante en
manifestaciones culturales locales, técnicas de historia oral y entrevistas (semiestructuradas, narrativas y
entrevistas fotográficas).
Palabras-clave: Crixás; patrimonio; patrimonialidad; memoria; lugar; sitio.

Patrimoniality in non-heritage cities: case of Crixás, Goiás, Brasil

Abstract: Crixás (Goiás, Brazil) is analyzed in this article from its colonial genesis to the current context
that indicates the negligence in the defense of its cultural heritage. Several economic, political and social
events have led to the almost complete destruction of a set of movable and immovable cultural goods in
the urban space. The objective of the research was to identify the extent to which absences and
permanences in the urban landscape and / or in the collective memory build a sense of particular
patrimoniality. It was possible to recognize that such a sense, originating from the heritage-memory-place
relationship, tensions the material-symbolic dialectic of the local heritage, overlapping the institutional
recognition or the official discourse of conservation of built goods. For the analysis, bibliographic and
documentary researches, participant observation in local cultural manifestations, techniques of oral history
and interviews (semi-structured, narratives and photo-interviews) were carried out.
Keywords: Crixás; heritage; resistance; patrimoniality; memory; place.

DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.31725
Como citar este artigo: Lima, L. N. M. (2020). Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas: caso de Crixás,
Goiás, Brasil. PatryTer – Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, 3 (6), 202-218.
DOI: https://doi.org/10.26512/patryter.v3i6.31725

Recebido: 23 de maio de 2020. Aceite: 25 de junho de 2020. Publicado: 01 de setembro de 2020.


1 Professora doutora da Universidade Estadual de Goiás, UEG, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0374-

0488. E-mail: prof.luanunes@gmail.com.

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Luana Nunes Martins de Lima Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas

1. Introdução “decadência” econômica no período pós-


mineração e dos processos de modernização que
As contradições recorrentes em todo o incidiram na destruição de parte significativa do
processo de patrimonialização no Brasil, desde a acervo no espaço urbano. A segunda parte
“invenção do patrimônio nacional”, retardaram o apresenta parte dos bens referenciados pela
reconhecimento do patrimônio cultural de muitas população em pesquisa de campo e denuncia a
cidades e, de forma geral, impossibilitaram a ausência de uma estrutura institucional de
conservação em tempo hábil, gerando um preservação que possibilite uma política
“esquecimento” de conjuntos de bens móveis e democrática do patrimônio histórico, além do
imóveis. Nesse contexto se insere o patrimônio de relativo abandono do patrimônio material ainda
muitas cidades em Goiás, cuja trajetória está existente. Na terceira parte, para além de uma
contextualmente imersa na relação dicotômica e análise restrita do que restou do patrimônio
dialética entre "conservação do passado" e histórico material na paisagem de Crixás, busco
"modernização do presente", mas fora marcada evidenciar as relações sociais e afetivas de uso dos
substancialmente pela segunda (Lima, 2017). patrimônios culturais para compreender a forma
Autores como Chaul (2010), Teixeira Neto (2009) e como sua apropriação por parte das populações
Bertrand (1978) contribuíram para a compreensão locais constituem-se resistências às supostas
de como a região foi inserida no projeto de nação, ameaças ao patrimônio, a saber: a modernização do
cujo objetivo era garantir a unidade e identidade território e a negligência institucional e política.
nacionais por meio de um projeto de modernidade, Ao mesmo tempo, refletir sobre o caso de
o que nos permite estabelecer uma correlação entre Crixás é atestar a necessidade de uma utopia do
o patrimônio e a urbanização do território goiano- “patrimônio-territorial”, pois, segundo Costa
tocantinense. No debate acerca da preservação do (2016), isso revelaria estratégias diante de um
patrimônio brasileiro, Chuva (2003; 2009) e universalismo que se impõe aos lugares, sobretudo,
Pelegrini (2006) se destacam ao denunciar a prática em relação às ações capitaneadoras da Unesco, que
seletiva de projetos políticos historicamente na consagração dos patrimônios, “paradoxalmente:
constituídos, nos quais se determinou os bens acirram competições ou confrontos entre agentes e
dignos de perenidade e aqueles condenados a atores no território; favorecem a concorrência da
destruição. oferta de lazeres entre cidades e países; estimulam
A pesquisa aqui apresentada desenvolveu- uma corrida global pelo selo supremo da
se no percurso da tese de doutoramento defendida patrimonialização; setorizam a destinação de verbas
em 2017 no Programa de Pós-Graduação em públicas para intervenções urbanísticas classistas;
Geografia da Universidade de Brasília, intitulada privilegiam políticas, restritamente, aos bens
“Lugar e memória: o patrimônio goiano entre o patrimoniais chancelados etc.” (Costa, 2016, p. 11).
esquecimento e a resistência”, tornando-se agora A abordagem está concentrada na análise
base para uma nova contribuição neste artigoi, com sobre bens não institucionalizados ou parcialmente
tratamento específico do caso de Crixás, município institucionalizados, concepção que coincide com a
do interior do estado de Goiás. Para tal, distintos proposta de Costa (2017) no viés de um patrimônio-
aportes metodológicos serviram à pesquisa, tais territorial, como alternativa real de valoração do
como a Observação Participante, a História Oral, patrimônio latino-americano subalternizado na
as entrevistas (Semiestruturada, Narrativas e história oficial. Ciente da necessidade de conceber
Fotoentrevistas) e as pesquisas bibliográfica e a espacialidade do patrimônio e da memória, e de
documental. que as relações sociais que as envolvem se
Crixás está situado no Vale do Araguaia, materializam no espaço e ganham significações em
região compreendida entre o rio Crixás-Açu, e sua dimensionalidade vivida, faço o uso conceitual
Crixás-Mirim, na microrregião São Miguel do do “lugar”. Importa, sobretudo, encontrar na
Araguaia. Ligado à Belém - Brasília (BR-153), oralidade e na observação, elementos que possam
através da GO-336, distante 354 km de Brasília e conferir um sentido patrimonial (patrimonialidade),
320 km de Goiânia, conta com uma população de um conjunto de formas de reconhecimento que
15.760 habitantes em uma área de 4.661,162 Km2, individualizam Crixás e definem seu patrimônio
de acordo com dados do Instituto Brasileiro de próprio.
Geografia e Estatística [IBGE], (2010). O que amadureceu o entendimento do que
Na primeira parte do artigo, a trajetória é o patrimônio e do que efetivamente resiste em
histórica do município corrobora para a Crixás foi a perspectiva fenomenológica, a qual
compreensão do contexto marginal em que o considera os lugares e objetos efetivos e afetivos da
patrimônio cultural de muitas cidades em Goiás se memória. Isso significa que a memória coletiva
insere, sendo resultado da condição de abarca a cidade em todas as suas dimensões e não

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restringe o patrimônio ao que é material e recorrente abandono do povoado, disseminação de


Figura 1 – Localização
institucionalizado, fortalecendo um sentidodo município de Crixás no Estado de Goiás
de doenças
patrimonialidade (Poulot, 2009) ao lugar.

Fonte: elaborado por Sílvio Braz de Sousa. Organizado pela autora, 2016.

restringe o patrimônio ao que é material e recorrente abandono do povoado, disseminação de


institucionalizado, fortalecendo um sentido de doenças e inúmeras mortes; 3) Chegada de
patrimonialidade (Poulot, 2009) ao lugar. estrangeiros, retomada da economia mineradora e
do comércio local – período de emancipação do
município e prerrogativa de “modernização”.
2. Crixás: a gênese colonial, a Em janeiro de 1755, o arraial de Crixás foi
“decadência” e a retomada das elevado a paróquia, condição em que permaneceu
minas por quase dois séculos, tornando-se sede da vila
transferida de Pilar de Goiás, a cujo distrito
A ocupação de Crixás teve início com o pertencia (IBGE, 2010).
ingresso dos bandeirantes pelos sertões e com as Segundo Asmar (1988), o declínio do ciclo
descobertas dos garimpos de ouro em Goiás no da mineração, na década de 1770, condenou ainda
século XVIII. O município recebeu esse nome por mais Crixás a uma posição geográfica sem
ser antigo território da nação indígena Kirirás ou privilégios, provocando o êxodo mineiro e sequelas
Curuxás (Asmar, 1988). Há duas versões históricas de instabilidade: escassa mão-de-obra destinada à
sobre a fundação do antigo povoado. A primeira a lavoura de cana-de-açúcar, tabaco e mandioca. A
atribui a fundação ao bandeirante Manoel estatística de 1804 levantada pelo autor acusa a
Rodrigues Tomás, companheiro de Bartolomeu queda demográfica e, por conseguinte, do interesse
Bueno, no período de 1726 a 1734, com a econômico pela região. Nesse ano, o Julgado de
denominação de Nossa Senhora da Conceição. A Crixás contava com um total de 1693 homens e
segunda versão defende que foi o sertanista 909 mulheres, entre brancos, negros, pardos e
Domingos Pires o fundador do povoado, em 1734, escravos. Por estar subordinado a Pilar de Goiás
sendo elevado a arraial em 1740. durante várias décadas, o abandono também
O histórico da cidade está claramente acompanhou o distrito. O historiador Johann Pohl,
demarcado por três períodos principais: 1) em 1817, entre outras descrições bastante
Ocupação pelo bandeirantismo e operação das depreciativas, faz a seguinte:
primeiras lavras; 2) Estagnação da produção com

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O Arraial de Crixás [...] está bastante tomado pelo E ainda o relato de uma descendente do
mato. Fica entre arbustos tão altos que, a não ser a geólogo alemão que retomou a garimpagem no
semi-arruinada Igreja de Nossa Senhora da município neste mesmo período confirma que a
Abadia, nenhuma casa se avista antes de penetrar cidade esteve devastada, não apenas pelo fim da
no próprio lugar. [...] Consiste em quatro ruas mineração, mas poucos habitantes sobreviviam às
largas, acidentadas e sem calçamento, que seguem a penúrias no espaço urbano no início do século XX.
mesma direção. Tem cerca de 200 casas de madeira
e barro, mal construídas, baixas, algumas caiadas, [...] Esse período era um período em que a cidade
outras apenas rebocadas por fora. Há quatro igrejas, ainda, pra aquela época, [...] tinha uma certa
todas feitas do mesmo material e em péssimo estado pujança, digamos assim, né? Mas o meu avô, o meu
de conservação. Algumas tinham torres, que já bisavô, [...] jogava trinta pessoas nas costas, ia lá,
desabaram. O melhor edifício é o que serve de erguia assim as tábuas, e só jogava. E os resquícios,
residência do Juiz. Foi construído pelo governo. o restante da população refugiou-se nas fazendas.
Como a maioria dos escravos já morreu e o solo da [...] No começo de mil novecentos e pouco, quando
região não é bom, mas impróprio para o cultivo, em meu avô chegou aqui... (ele veio pelo Araguaia, né?)
breve teremos a irremediável e completa decadência e desceu, e chegou aqui, encontrou as ruínas, entrou
deste lugar, e os futuros viajantes aqui só avistarão dentro de uma casa velha lá, limpou e tinha três
ruínas abandonadas e ermas (Pohl, 1975, p. 60). vidas aqui [referindo-se às pessoas citadas no
poema]. [...]essas três vidas que meu avô contava
Este estágio de abandono atingiu dimensões que tinha encontrado aqui, morando dentro da
ainda maiores no século seguinte, culminando em cidade. (Entrevista concedida por Elisabeth
problemas de ordem sanitária. De abril a outubro de Dietz Neves Ferreira, em Crixás, Goiás, em
1912, Arthur Neiva e Belisário Penna percorreram 01/07/2015).
Piauí, Pernambuco, Bahia e Goiás, para o
reconhecimento topográfico e o levantamento das Ainda nos primeiros anos do século XX, a
regiões secas, por requisição da Inspetoria de Obras exploração aurífera foi redescoberta pelo geólogo
Contra as Secas, órgão do Ministério dos Negócios Albrecht Dietz, descobridor das famosas minas de
da Indústria, Viação e Obras Públicas. Para Asmar ouro Chapéu de Sol e Venâncio. As minas ainda
(1988), essa expedição certificou o grau de eram exploradas de forma autônoma, inclusive por
insalubridade agressiva no interior do país, prova do mulheres, em bateias no leito do Rio Vermelho. As
abandono oficial. O que se constatou em Crixás foi terras foram adquiridas por uma Companhia
o descaso geral sentido duramente pela população, Inglesa, John Taylor & Sons, cuja exploração durou
até a atualidade. Diversos relatos colhidos em até 1923, quando os ingleses evadiram-se com todo
entrevistas, e de registros deixados por historiadores o ouro fundido, em virtude de uma revolta no
confirmam que a febre amarela quase devastou toda garimpo. Albrecht Dietz, que sustentava seu
a cidade. O poema abaixo, de Sebastiana Ester Dietz comércio atendendo os garimpeiros estrangeiros
de Oliveira, retrata este momento da história da com suprimentos variados, veio à falência, adoeceu
cidade. e faleceu em Crixás em 1927, deixando uma
descendência que viria a tornar-se família
[...] Temos que deixar a Paróquia, tradicional em Crixás, iniciada por seus filhos com
esta Freguesia da Sra. da Conceição, Maria Pedrosa, João Dietz e Joaquim Dietz (Lima,
diziam os que dirigiam essa pequena fração, 2015; Asmar, 1988).
porém, para aquele tempo Em 1938, o Distrito de Crixás perdeu para
já era um grande rincão, o de Pilar de Goiás as prerrogativas de sede
era uma terra nova municipal (Decreto-Lei Estadual nº 557), e
cheia de esperanças! somente em 1954, o município de Crixás foi
[...] Não sei se lenda ou verdade, desanexado da Comarca de Pilar e oficialmente
mas... só ficaram na cidade instalado (Lei Estadual nº 850/1953) (IBGE,
apenas três personagens: 2010). Permanecia a antiga cidade, mas com
Ana Freire, Ana Fraga e João Franguinho. anseios de modernização e desenvolvimento.
Agora, veio a falência Anos mais tarde, em meados da década de
E uma tristeza imensa 1970, apesar dos ideais de modernidade que Goiás
Tomou conta da Paróquia! absorvera pelos projetos de expansão da fronteira
Que ficou em pouco tempo agrícola, a realidade do abandono que envolveu as
sem dono, sozinha idas e vindas da mineração permanecia enrustida
ao léu do tempo! no espaço urbano de Crixás. Ocorreu um grave
(Oliveira, 2001, pp. 91, 94). desencontro político a partir de 1975, na gestão de

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Jair Feitosa de Carvalho, o qual lutava por uma estrutura urbana precária nesses municípios.
rápidaFiguras 2 e 3 – Festa de comemoração aos 25 anos deEstes continuaram
emancipação dependendo
política de Crixás, de ouma
em 1978, quando
governador Irapuan Costadiversidade
Júnior esteve de
presente
mercado e serviços que exigem o
deslocamento para Crixás. Já Asmar (1988)
considera a “amputação

Fonte: acervo pessoal de Rômulo Xavier de Lima.

Jair Feitosa de Carvalho, o qual lutava por uma estrutura urbana precária nesses municípios.
rápida mudança e transferência da antiga sede Estes continuaram dependendo de uma
para o Povoado de Governador Leonino diversidade de mercado e serviços que exigem o
Caiado, sob argumento de uma sede moderna, deslocamento para Crixás. Já Asmar (1988)
onde se pudesse construir uma nova cidade que considera a “amputação geográfica” do
deixasse para traz os vestígios da miséria e da território de Crixás um paradoxo, pois impõe a
insalubridade. Os contrários à mudança Crixás a perda de considerável base econômica,
reagiram em defesa da antiga sede, a exemplo diminuindo-lhe as fontes de receita do Fundo
de Ursulino Leão, então Procurador de Justiça e de Participação dos Municípios (FPM).
membro da Academia Goiana de Letras. Embora a estrutura econômica de
As figuras 2 e 3 destacam a proclamação Crixás tenha resguardado as atividades da
da ideia de “desenvolvimento”, nas faixas pecuária e da mineração como principais
fixadas no centro da cidade; e a “pecuária”, potencialidades produtivas, há de se convir com
como atividade que tiraria Crixás da Dias (2010) que não foi uma simples
“decadência”. reacomodação dessas atividades que garantiram
Nessa questão de ser ou não ser a modernização da cidade, mas novas relações e
município, Crixás fez sua trajetória. Em relação mecanismos de organização impostos pela
ao número de habitantes, de construções, de industrialização progressiva.
rendimentos para manutenção de serviços A dinâmica econômica da cidade
peculiares, em facilidades de acesso aos envolve a mineração desde as primeiras lavras
mercados consumidores, entre outros, estava à até a industrialização do processo de extração
frente de outras localidades no interior goiano. presidida pela multinacional Serra Grande, cuja
Mas houve ainda outros percalços pela criação, lógica de produção insere-se no mercado global.
recriação, integração e fragmentação territorial Somam-se a isso fatos anteriores mencionados
advinda de várias emancipações em seu por Asmar (1988), como: o Proterra – Programa
território, que ocorreram em função de de Redistribuição de Terras e Estímulo à
interesses de grupos sociais movidos por Agroindústria do Norte e Nordeste que incluiu
questões ideológicas, processos que foram Crixás como alvo de um Projeto do Cobre
explorados por Dias (2010). Municípios que desenvolvido pela Metago; o Prodoeste, que
hoje são emancipados: Mundo Novo, possibilitou a criação de estradas, recolocando-a
Bandeirantes e Nova Crixás pertenceram ao como ramal de alimentação da GO-4 e
município de Crixás, o qual já foi um dos confirmando seu contato viário, entre o sul e o
maiores de Goiás em extensão territorial, um norte do país, com boas alternativas de rotas.
total de 15.250 Km 2. O autor considera a A expansão urbana se deu de forma
insuficiente viabilidade econômica de criação de acentuada na década de 1980. Dias (2010)
unidades administrativas, observando as explica que no início dessa década Crixás tinha
necessidades de orçamento advindo da união, uma população de 30.219 (trinta mil, duzentos e
como fator que desencadeou uma condição de dezenove) habitantes, dos quais 75,66% se

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localizavam na zona urbana. Isso porque em


1980 a cidade
Figuras ainda
4 e 5 – Vista não de
da entrada tinha em
Crixás, suas
acesso pela GO-4 e Rua Tomás de Campos, área central da cidade
imediações a mineradora Serra Grande, mas
havia a prática exploratória do ouro feita com
técnicas que necessitavam

Fonte: fotos da autora, 2015.

localizavam na zona urbana. Isso porque em 3. “Vão-se os anéis, ficam os dedos”:


1980 a cidade ainda não tinha em suas ausências e permanências na
imediações a mineradora Serra Grande, mas paisagem urbana e na memória
havia a prática exploratória do ouro feita com coletiva
técnicas que necessitavam de adentrar nos
aluviões dos leitos dos rios, além de escavações Vários anos, muitos anos...
com jatos d’água de bombeamento mecânico, o Casarios emendados, agora todas caladas...
que implicava maior esforço físico e também Abatidas, sem vida!
uma maior concentração de garimpeiros Saudosas dos seus que foram...
migrantes. Essa realidade tenderia a se E foram para nunca mais...!
modificar com a instalação de uma (Oliveira, 2001, p. 97)
multinacional, anos depois, em 1989, já que a
mesma aboliria qualquer tipo de práticas ilegais Diante de sua conjuntura histórica, Crixás,
vinculadas à extração do ouro. Muitos atualmente, possui poucos bens materiais históricos
garimpeiros e suas famílias, que viviam dessa em seu núcleo original. Lima (2015) denuncia que,
atividade, se viram forçados a procurar outras no curso do desenvolvimento urbano local, os
áreas para explorar o mineral, reduzindo moradores com maior poder aquisitivo demoliram
drasticamente a população. seus bens históricos, casas coloniais, construindo
Em síntese, são marcos na história de em seus lugares casas modernas sem expressão
Crixás: ocupações às pressas e despretenciosas original. Três elementos que designam alto valor
para fins de garimpagem; febre que ocasionou a memorial são centrais nos relatos: a antiga Igreja
fuga da população para outras localidades; Nossa Senhora da Conceição (figura 7), a Casa
reapropriação da atividade mineradora pelos Grande (figura 8) e a Cadeia (figura 9), as três
ingleses; subordinação a outras Comarcas (Pilar representadas na pintura em tela de Claudiuir
e Itapaci); fragmentação do território; e por fim, Fernandes (figura 6), situadas em área central, hoje,
sua atual recolocação no destaque na indústria Largo da Matriz e Praça Manoel Rodrigues Tomás.
extrativa de ouro. Este último marco no A igreja da figura 7 não é a primeira igreja
desenvolvimento do município, entretanto, não de Nossa Senhora da Conceição construída no
apresentou indicadores sociais e econômicos povoado. Foi construída em 1931 no lugar da
que caracterizam uma elevação de qualidade de antiga igreja colonial que fora derrubada pela
vida da população localizada na sua área de chuva. Já na década de 1980, foi demolida e uma
influência, conforme demonstraram Fernandes, nova igreja com arquitetura moderna foi construída
Lima e Teixeira (2007). A condição do em seu lugar. A atual igreja ainda mantém o sino
patrimônio e o fim que levou muitas edificações original fundido na própria cidade, em 1783, e três
na cidade são, em grande parte, reflexos dessas imagens recentemente restauradas, esculpidas pelo
situações às avessas que marcaram a história do artista goiano Veiga Valle em 1852, Senhora da
município, como se verá no tópico a seguir. Conceição, São Benedito e São Sebastião.

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Figura 6 – Da esquerda para a direita: Casa Grande, Igreja Figura 7 – Igreja Nossa Senhora da Conceição no
Nossa Senhora da Conceição e Cadeia Pública. Pintura de Tecer local onde
mesmo as se encontra
devidasa igreja atual
relações,
Claudiuir Fernandes, morador de Crixás correspondências

Fonte: acervo pessoal de Rômulo Xavier Lima.

Figura 8 – Casa Grande – construída no século XVIII Figura 9 – Antiga Cadeia Pública de Crixás

Fonte: acervo pessoal de Rômulo Xavier Lima.

Figura 10 – Atual Igreja de Nossa Senhora da Figura 11 – Sino fundido em 1783,


Conceição, em Crixás Igreja N. Sra. da Conceição

Fonte: fotos da autora, julho de 2015.

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Na Freguesia de Crixás foram um sobrado muito simples de dois andares: uma


construídas quatro igrejas, entre 1740 e 1755. Por sala livre no andar de cima para os “menos
volta de 1817, Cunha Mattos as descreveu castigados” e duas celas mais seguras no andar de
brevemente: 1ª) Nossa Senhora da Conceição, baixo para os réus (Oliveira, 2001). Era um
matriz com sete altares, muito pobre e arruinada, elemento simbólico da cidade e até hoje é incluída
2ª) Nossa Senhora da Abadia, com um altar, entre os bens que são elencados como “perdidos”.
conservada em bom reparo e detentora de objetos Em seu terreno, situado bem próximo à atual Igreja
de prata, 3ª) Nossa senhora do Rosário dos Pretos, de Nossa Senhora da Conceição, foi construída a
com três altares, mediana e muito pobre, 4ª) Santa Igreja Presbiteriana do Brasil, fato que teve a
Efigência, um altar apenas, pequena e pobre. Em influência de famílias tradicionais que se tornaram
entrevistas ouvimos também a respeito da Igreja de protestantes, quando o presbiterianismo se
São Gonçalo, situada em um morro que leva o assentou na cidade pela vinda de missionários
nome de São Gonçalo. Os moradores mais antigos norte-americanos na década de 1940.
não chegaram a conhecer tais igrejas, apenas suas Em 1987, a prefeitura sancionou a lei nº
ruínas. Alguns conviveram bem de perto com esses 618, que declara como patrimônio artístico e
resquícios da antiga cidade ou ouviram seus pais e cultural de Crixás oito imóveis situados à
avós contarem as histórias que envolvem o tradicional rua Ricardo Neves (figura 12), para
contexto da dita “decadência”. Entretanto, efeito de tombamento, preservação e proteção da
lembram-se muito bem da Casa Grande, apesar de memória local. Destes bens remanescentes, boa
certa amargura e pesar darem a tônica às narrativas parte foi demolida, a fim de que se cedesse espaço
sobre tal edificação. A Casa Grande foi construída para o Supermercado Agrovet, da rede Smart. As
para tornar-se sede das ocasiões festivas que já contínuas demolições que se seguiram indicavam a
eram uma constante desde o antigo Arraial. prevalência de uma mentalidade que vislumbrava o
Tudo parece indicar que a Casa Grande progresso e o “novo” e invalidava qualquer lei de
tinha (ou ainda tem), para os moradores de Crixás, preservação. Três casarios agregados, com
um valor ainda mais significativo do que a própria características de famílias abastadas do período
igreja, pois as lembranças estão correlacionadas a colonial, conhecidos como “Casarão” (figura 13),
um acontecer festivo que ainda se manifesta no foram cedidos à prefeitura municipal por quatro
presente, ainda que com menos vigor do que irmãos que eram proprietários por direitos
outrora. hereditários. O imóvel localizado entre a casa 1 e a
casa 3 mede 6,5 m de frente por 10,64 m de fundo,
Sinto [saudade] pela Casa Grande. A mãe de um com todas as paredes construídas de adobe
dos responsáveis pela demolição dela veio aqui, me assentadas com argamassa de barro.
chamou, foi na casa da minha tia que morava aí no Em 2008, a professora da Universidade
casarão velho, chamando pra nós fazer um Estadual de Goiás (UEG), do campus de Crixás,
movimento pra não deixar desmanchar. Mas aí nós Anália Dias Souto submeteu um projeto de
três só que teve essa ideia, né? Falou com um, falou extensão intitulado “Resgatando as raízes culturais
com outro: -“Ah, não deixa. Deixa, isso aí vai da cidade de Crixás” à Pró-Reitoria de Extensão,
acabar mesmo, ficar só por conta de morcego”. – Cultura e Assuntos Estudantis da Universidade,
[risos] [...] Então, hoje eu tenho arrependimento, bem como o encaminhou à 14ª Superintendência
nós tinha que ter feito um movimento de não ter Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e
deixado eles destruir a Casa Grande. [...] Essa Artístico Nacional (Iphan), a fim de pleitear
Casa Grande é uma casa que os historiador que já recursos e apoio na execução do projeto de
passou por aqui diz que no Brasil não tinha outra, restauração do Casarão. O relatório de vistoria foi
era só ela desse padrão que era ela. Ela tinha as realizado pela Divisão Técnica da superintendência
paredes tudo dessa largura assim ó [...]. Ela foi em março de 2009, contudo, não houve atuação
demolida por cabeça ruim de prefeito, que invés de efetiva do Iphan, uma vez que o financiamento da
querer restaurar ela, né? E nós, naquela época obra de restauro foi obtido pela participação direta
ninguém sabia, tinha noção do que era o valor da iniciativa privada, por intermédio da Lei
econômico disso, né? Deixou, né? Porque podia o Rouanet. A obra de restauração foi concluída em
povo ter feito uma revolta e não ter deixado. 2012, em uma parceria firmada entre a mineradora
Deixou. (Entrevista concedida por Honória Serra Grande, a Prefeitura Municipal, a
Ferreira Neves, em Crixás, Goiás, em Universidade Estadual de Goiás (Campus de
30/06/2015). Crixás) e a Loja Maçônica Estrela Crixaense.

A Cadeia Pública não era uma edificação Minha participação se deu como historiadora,
do período colonial, fora construída em 1926. Era professora da UEG e acima de tudo, como cidadã

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crixaense preocupada com a possível perda das raízes Embora seja um imóvel “sem valor” do ponto de
históric
Figura 12 – Casarios antigos que foram demolidos vista Figura
da longevidade histórica,
13 – Espaço Cultural segundo os critérios
Ursulino Leão –o
na rua Ricardo Neves (sem data precisa) “casarão”
institucionais, a casa tem restaurado
um valor fundamentado
na história e experiências locais.

Fonte: acervo pessoal de Rômulo Xavier Lima. Fonte: foto da autora, 2015.

crixaense preocupada com a possível perda das raízes Embora seja um imóvel “sem valor” do ponto de
históricas, que a partir da elaboração de um projeto vista da longevidade histórica, segundo os critérios
que tem como premissa, atendimento a algumas das institucionais, a casa tem um valor fundamentado
necessidades da produção cultural crixaense e aos na história e experiências locais.
interesses da coletividade, sendo que foi possível A casa do “Tio Joca” representou, para o
chegar aonde está em parceria com o Poder Público crixaense, um lugar de hospitalidade, onde a cidade
Municipal, UEG – Crixás, união das iniciativas se abria para os de “fora”, pois abrigava padres que
público-privada cumprido cada qual sua parte nesse vinham para ocasiões festivas, juízes, promotores e
processo de resgate cultural. [...] Pela necessidade de pessoas das mais variadas classes. Nela funcionou a
termos aqui em Crixás um espaço cultural de prefeitura da cidade nos seus primeiros dois anos.
interlocução e diálogo com a comunidade local, com João Ferreira de Faria, ou “Tio Joca”, como era
nossos artistas anônimos (que não são poucos), com chamado, foi o primeiro prefeito da cidade,
os grupos já formados (folia do Divino Espírito nomeado em 1954. Casou-se com Eulampia e
Santo, Cavalhadas, mais recentemente, festival do tiveram dez filhos: Eula, Honória, Prudêncio,
pequi entre outros). Nosso intuito é único: fomentar Maria, Inácio, Rosália, João, José, Eva e Libania.
e favorecer a construção do conhecimento cultural e a Foram entrevistados Eula, Honória e Prudêncio.
participação social (Entrevista concedida por
Anália Dias Souto, Crixás, Goiás, em Até duas hora da tarde por aí... na realidade até a
19/03/2016). hora que fosse que chegasse, tinha comida na panela
[...]. Porque a pessoa morava na fazenda, saiu de lá
Os casarios restaurados foram unificados e cedo, tava na roça [...] e vinha, chegava aqui,
o local foi denominado “Espaço Cultural Ursulino procurava a casa do [...] Tio Joca e Tia Eulampia.
Leão” (figura 13), em homenagem ao escritor e [...] Então, aí “cumê” direto, não precisava
político crixaense. A proposta original era que além cozinhar pra três, quatro pessoas que chegava, tinha
de abrigar um pequeno museu, o espaço servisse a comida pronta. E tinha muita fartura na casa.
toda comunidade crixaense, para eventos culturais, Essa casa aqui, essa mesa aqui é mesa de não sei
pousos de folias, exposições, oficinas, entre outros. quantos anos que existe ela. [...] Então essa mesa
Na antiga Rua da Fundição, onde aqui já serviu comida pra muita gente, graças a
supostamente era fundido o ouro da região, agora Deus. [...] O primeiro juiz que veio pra aqui já foi
denominada Rua Rosa Pereira Neves, dois casos indicado pra casa do Seu Joca. [...]. Aí esse juiz que
são emblemáticos. O primeiro é uma pequena casa saiu, ele já indicava pro outro que vinha. Promotor,
colonial bastante degradada (figura 14), que resiste juiz. Eram pessoas que chegavam aqui, vinham pra
em uma vizinhança considerada privilegiada. O Crixás, chegava lá: “– Como é que eu faço? Eu vou
dono não reside nela e se recusa a vendê-la ou pra Crixás”. “– Lá cê procura Seu Joca, ele te
derrubá-la para construir outra de alto padrão, encaminha lá”.
embora não devam faltar ofertas, dada sua [...] Agora, essa casa aqui, ela tá entrando já um
localização. O segundo caso é a “Casa do Tio Joca” pouco na história... Meu pai foi o primeiro prefeito
(figura 15), construída no início da década de 1940. depois que passou a ser município a cidade de

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Crixás,Figura
né? E14a– prefeitura
Casa de José Seixas, dois anos
funcionou Figura
contrabando, ora15sobre
– Casa do Tio Joca, gestões, uma
determinadas
aqui. na antiga Rua da Fundição vez na antiga Rua da Fundição

Fonte: fotos da autora, 2015.

Crixás, né? E a prefeitura funcionou dois anos contrabando, ora sobre determinadas gestões, uma
aqui. [...] E tem as amizades da gente, muito vez que a memória religiosa sempre foi
grande, né? [...] Tem muita gente que habita aqui, preponderante na cidade, mas sobretudo, recai
que sabe quem é nós, e nós não sabemos quem ele é, sobre os próprios crixaenses.
né? [...] Aí conhece a casa aqui é como a Casa do
Tio Joca, porque todo mundo falava Tio Joca, né? Eu lembro de meu pai, [...] falar um absurdo, que o
[...] E ele era de muita amizade, toda vida. responsável pela igreja, vendendo os sinos, vendeu
(Entrevista concedida por Prudêncio toda a parte histórica que tinha dentro da igreja.
Ferreira Neto, em Crixás, Goiás, em [...] E as igrejas antigas, aqui tinha cinco igrejas
30/06/2015). [...], muitas caíram em ruína por causa de falta de
preservação e muita coisa foi vendida [...] a preço de
Na casa do Tio Joca há uma resistência de banana, pra ir pra outros museus [...]. Era tudo
natureza espiritual que se manifesta nas coisas que que “papai” mandou, que o papa e os padres, né?
foram modeladas durante anos e resistiram aos Então, se eles chegassem aqui e pedissem pro
seus proprietários com sua alteridade, tomando prefeito: “-É pra derrubar aquela Casa Grande ali,
algo do que foram, confirmando o que Bosi (1994, pra construir!”. – Eles iam lá, derrubavam e
p. 436) define como “casa materna”. A disposição construíam [...]. E o dinheiro também não ficava
dos móveis, a guarda de certos objetos e aqui, ia tudo pra Roma. Tudo, tudo, tudo.
fotografias, o fogão a lenha mantido, tudo remete a (Entrevista concedida por Elisabeth Dietz
essa dimensão. O Tio Joca e a Tia Eulâmpia Neves Ferreira, em Crixás, Goiás, em
tornaram-se “personagens da memória” (Pollak, 01/07/2015).
1992). Os relatos demonstram como os domínios
da memória se estendem para além da memória Agora, quem construiu o supermercado tava
institucionalizada e fazem da casa patrimônio procurando um ponto comercial, né? Ele num tinha
histórico e material. A impressão que se tem da obrigação de amar aquele patrimônio ali, ele num é
vida dessa família é que, mantendo o lar da daqui. Eles procuraram um ponto estratégico para
infância, mantém-se a recordação de toda uma vida fixar seus comércios. Eles não são culpados. [...]
que continua orientando os valores da família, Não contesto a atitude dos compradores, mas dos
mantém-se uma história que lhes dá prestígio e vendedores sim. Aqueles que eram autoridade, né,
lugar de “ser” na cidade, dando a pacífica ideia de porque eram crixaenses. Agora às vezes cê vai
continuidade, de consagração de um patrimônio conversar com um deles, eles falam assim: “ –Ah, os
próprio, de “patrimonialidade” (Poulot, 2009). padres levou isso daqui. Ah, não sei o quê...” – e
As respostas de diferentes sujeitos aos conta tanta história e fica desinventada por eles, né?
questionamentos: “por que e por quem foram (Entrevista concedida por Maria Madalena
destruídos tal e tal bem material” manifestaram de Lima, em Crixás, Goiás, em 30/06/2015).
algumas contradições. A culpa ora recai sobre a
própria Igreja (no sentido amplo), detentora de Diante do arrasamento das edificações de
parte dos bens e corresponsável pelo “abandono” e valor histórico, outra perspectiva de resistência no
pela venda indevida dos bens móveis para presente se revela nas ações de denúncias contra o

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descaso. Uma das ameaças de destruição do


patrimônio está no descomprometimento e no Eles não tinham consciência que aqui era a história
esquecimento das relações e das experiências com de um povo, [...] porque se tivesse não tinha deixado
o mesmo, o que gradativamente cede espaço para derrubar. Então, se eles não tinha consciência, não
novas formas, funções e fazeres na/da cidade sentia falta. [...] Tem o nome de Crixás que é
diante da resignação da população. Em um perfil histórico, mas na realidade a história de Crixás é
da Comunidade Crixás, em rede social, obtivemos muito pequena em material. Fisicamente é muito
o seguinte depoimento de uma ex-moradora 1 pequena, porque destruiu as casas que tinha. [...]
natural da cidade, a respeito do tratamento do Então, nessa altura, faz falta, né? (Entrevista
patrimônio material: concendida por Prudêncio Ferreira Neto,
em Crixás, Goiás, em 01/07/2015).
Lembro-me com certa clareza, um dia muito
chuvoso, na minha infância quando alguém chegou A cidade de Crixás não tem seu patrimônio
em casa noticiando que a Igreja Católica da Praça limitado pelo que restou de bens materiais de valor
Manoel Rodrigues Tomás havia sido derrubada pela histórico, afinal, quase nada restou. Entretanto, é
chuva. Não me lembro da Igreja. Mas dessa notícia preciso lançar luz a um patrimônio que não é dado
me lembro. Também recordo o dia que parte da como patrimônio, mas que resiste na trama de
“cadeia velha” caiu. Como não fora restaurada, as vivências e memórias do lugar. “Sendo o
chuvas terminaram o serviço fazendo-a desaparecer patrimônio-territorial elemento de arte, cultura e
do mapa. Na minha adolescência vi, horrorizada, o vivências situadas na periferia, bem material-
cenário de destruição de casas históricas da Rua imaterial ainda em realização espacial no continente
Ricardo Neves. [...] Deram lugar ao “moderno” (sem qualquer ato de institucionalização por parte
demolindo o “antigo” para construir o “novo”, onde do Estado-mercado), ele se opera em singularidade
hoje seria o nosso Centro Histórico. (o fazer do e no lugar) diante de múltiplas
[...] Sinceramente eu tenho medo do dia que eu particularidades […]”(Costa, 2017, p. 59). É
voltar a Crixás e não reconhecê-la mais como preciso esclarecer que esta periferia destacada pelo
"minha". É natural a transformação da paisagem autor ultrapassa o sentido restrito de aglomerado
urbana, mas 'um povo sem história, é um povo sem urbano, indicando locais que estão às margens das
memória'. Como Drumond disse e o repito: "Como centralidades geográficas, políticas e econômicas;
dói!" (Anadete Maciel Santosii). de forma que podemos considerar muitas cidades
do interior goiano como periferias dentro do
Apesar do que indicam estes relatos, a estado.
recente consciência e o despertar de um sentimento Por fim, há uma trilha histórica dos
de perda por parte de muitos moradores, agentes e sentidos patrimoniais desses sujeitos situados a ser
representantes políticos em Crixás, devem-se percorrida e mapeada, a fim de averiguar em que
também ao fato de que outras cidades coloniais do medida a memória revive o lugar em permanente
estado, como Goiás e Pirenópolis, reconhecidas reconstrução, tornando-o capaz de resistir ao
por tombamento do Iphan e da Unesco, tornaram- tempo e às demolições. Assim, o patrimônio não é
se referências históricas, culturais e turísticas, e somente materialmente quantificável. Ao contrário,
receberam notoriedade midiática. Uma realidade ele pode ter sido demolido, pode não ser mais
que poderia ter sido a de Crixás, se houvesse a tangível, pode somente estar preso a lembranças de
preservação. Assim, as demandas contemporâneas velhos lugares, e mesmo assim continuar existindo
contribuem para suscitar reivindicações memoriais, (ou resistindo).
e a visibilidade institucional, por vezes, é a força de
impulso para que se valore internamente.
Lima (2015, p. 63) acrescenta que os 4. “Ainda há brilho no caminho”: o
sujeitos que mais demonstram indignação ante o patrimônio resiste “reabrigado”
descaso em relação ao patrimônio é aprópria
juventude é a própria juventude, que “após tomar Neste tópico e no tópico anterior, faço nos
consciência desses valores, ficam recolhendo fotos antigas e títulos referência à obra de Asmar (1988), que se
lamentando a irreparável perda”. Os entrevistados, na referia, na verdade, à corrida pelo ouro em Crixás.
mesma direção, reconhecem: “Nós demoramos a Neste, utilizo a mesma metáfora para reforçar a
desenvolver nessa área, como a Cidade de Goiás, que é mais ideia de que mesmo sem políticas de preservação
ou menos da mesma época também, um pouco mais velha, do patrimônio, a população, no interior de suas
tem um acervo histórico muito grande. E o nosso foi práticas de resistência, preserva a essência e o saber
acabando”. (Entrevista concedida por Inácio Ferreira daquilo que considera seu patrimônio, uma vez que
de Faria, em Crixás, Goiás, em 20/03/2016). não recorre a ele como mero testemunho do

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passado, mas como repositório de valor afetivo, o Por outro lado, a memória individual
que é entendido como “patrimonialidade” (Poulot, também tende a selecionar eventos traumáticos,
2009). como por exemplo, em Crixás: a decadência, a
Felippe (2016, p. 316) identificou três tipos febre amarela, as dificuldades da roça, as famílias
de bens que se constituem patrimônio cultural desfalcadas pela Guerra do Paraguai, entre outros.
valorados afetivamente pela população de sua As lembranças que demonstraram uma maior carga
localidade de estudo. Entre esta tipologia, a autora emotiva foram justamente as que tocaram nas
define o “patrimônio *cultural invisível” como ocasiões festivas do passado, o que aponta
“bens já demolidos que ainda permanecem vivos diretamente para a existência de uma nostalgia da
na memória de muitos moradores, principalmente sociabilidade retrospectiva, concernente a estas
os mais antigos”. Para a análise do patrimônio ocasiões. Esse fato, além de explicar a grande
cultural invisível, aqueles que possuem valor motivação coletiva de fazer perdurar algumas
afetivo e memorial, mas que foram suprimidos da tradições nestas cidades, confirma e esclarece a
paisagem, a autora se vale do conceito de paisagem dimensão afetiva dos lugares.
na memória, por considerar que “a paisagem As festas também se realizavam em locais
conserva não apenas o visível, mas também o próprios, que certamente se modificaram com o
memorial, os extratos de lembrança que compõem passar do tempo, mas ainda assim elas são narradas
a vida do ser, as experiências vividas” (Felippe, como se a paisagem festiva pudesse ser facilmente
2016, p. 313). vislumbrada na memória. Se há um patrimônio
É fato que a paisagem transformada pode destruído pelo tempo, aquele de pedra e cal
dificultar o acesso à memória que os acúmulos testemunho do passado, esse mesmo patrimônio é,
temporais permitiriam com mais facilidade, por nos em certa medida, renovado pelos elementos
oferecerem uma imagem de permanência e materiais e imateriais que resistem como parte do
estabilidade (Halbawchs, 2003). O relato de dona patrimônio urbano: as festas, os ritos, os objetos
Sebastiana nos confirma isso. Com muito esforço, guardados, as receitas, os sujeitos detentores de
por meio da foto-entrevista, ela conseguiu se saberes, entre outros.
lembrar de vários elementos dispostos na cidade do Nos limites do que observamos, há uma
passado que já não estão mais presentes em Crixás. forte tentativa de aglutinar o local do patrimônio
edificado ao patrimônio efetivamente revivido no
Olha, nessa rua principal ali, né, a rua hoje Ricardo cotidiano. Em Crixás, o local de referência das
Neves... o Rio Vermelho que era uma coisa que eu festas sempre foi a Casa Grande. Todos se
gostava demais, esse poluiu, nem meus netos mais lembram, e os que não eram nascidos ou não se
desfrutaram dele, era um lazer que a gente tinha. E lembram, já “ouviram falar”. Esse patrimônio,
as colegas, mães, já se foram, [...] alguns mudaram. demolido já no século XX, ainda se faz presente no
A gente já não tá tão perto, próximo, como era a imaginário e no simbolismo local, como memória
meninada daquele tempo. [...] ando nessas ruas aí, de uma prática tão antiga quanto o próprio
são todas as outras casas que já tomaram lugar das povoado, como posto no seguinte relato que se
outras, né? Tinha uma água que corria aqui, outra refere ao período de total esvaziamento
que corria aqui nessa rua do alto da igreja aí, tinha populacional de Crixás.
uma mina, também já não existe. Os quintais que a
gente tinha, mangueiras, que tinha laranjeiras, [...] [...] E eles vinham na época da festa do Divino e
tudo já demoliu, já é outra coisa. [...] Aí eu lembro limpavam tudo ali a praça do Cruzeiro, limpavam
que bem aqui era a casa da minha avó, subindo as igrejas pra fazer a festa. E o imperador ficava na
aqui é aonde que hoje é o Espaço Cultural, onde é Casa Grande um mês festando, depois voltava para
que o Ursulino Leão nasceu. Aqui tinha um as fazendas. E aqui já era um Arraial. Eu lembro
vizinho da minha avó, logo depois dessa casa, tinha disso. (Entrevista concedida por Elisabeth
uma casinha espremida aqui, era uma outra casa. Dietz Neves Ferreira, em Crixás, Goiás, em
Então, hoje, só tá aqui o Espaço Cultural, da 01/07/2015).
minha avó aqui já tá completamente diferente, essa
árvore já não existe mais, do lado de cá as casas A Casa Grande e a tradicional Festa do
também já tomaram outro rumo. [...] A gente ficava Divino Espírito Santo de Crixás eram percebidas
muito aqui, casa de vovó, nossa casa. A casa da como se fossem fundidas numa só dimensão
minha vó era sempre cheia, fazia bolo... espaço-temporal de existência. Festas religiosas,
(Entrevista concedida por Sebastiana Ester bodas, entrega da folia, danças tradicionais como a
Dietz de Oliveira, em Crixás, Goiás, em Catira e outras danças desconhecidas do grande
19/03/2016). público: Ponto, Batuquinho e Veadeira eram
realizadas na Casa Grande. No passado, durante os

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Figura 16 – Dona Eulâmpia (in memorian) Figura 17 – Sr. Prudêncio, filho de Dona Eulâmpia,
festejos do Divino, os doces e bolos eram
mostrando a telha que restou da Casa Grande, quando foi imperador do Divino com 7 anos de idade
produzidos
guardada em sua casa, onde moram seus filhos

Fonte: Documentário “Viva todos que prestaram atenção” – frame de vídeo, 2002.

Figura 18 – Apresentação de Catira das folias Figura 19 – Café da manhã do Capitão do Mastro
durante a festa do Divino no novo salão durante a Festa do Divino

Fonte: fotos da autora, 2016.

festejos do Divino, os doces e bolos eram A partir de 1962 ocorreu uma interrupção
produzidos pelos próprios moradores na Casa nas festas tradicionais de Crixás, como resultado da
Grande no mês que precedia a festa. Quando o demolição da Casa Grande. As folias do Divino
imperador, que geralmente residia na zona rural, se Espírito Santo também não giraram durante 12
alojava lá durante essa preparação. Atualmente, os anos, o que provocou algumas perdas para a
doces comprados para a festa são produzidos manifestação no que se refere a letras dos cantos e
industrialmente. Não há mais o saudoso coreografias tradicionais, que foram esquecidas.
ajuntamento do período pré-festivo (o que já Isso ocorreu porque a demolição da Casa Grande
configurava uma grande festa) para numerosa deixou os moradores sem um lugar para a
produção de doces de todas as qualidades. realização da festa, e para os foliões, que já estavam
em idade avançada, percorrer longas distâncias nas
Terminou a missa do Imperador, ia pra Casa fazendas tornava-se uma tarefa árdua. A festa do
Grande pra comer doce. Então, punha a mesa, Divino era a comemoração da entrega da folia,
aquela mesona comprida aí, punha várias realizar uma sem a outra não fazia muito sentido.
qualidades de doce [...] Naquele tempo era bom Anos mais tarde folia e festa foram retomadas
demais, nossa! [...] O povo festava a noite inteira. somente depois de inúmeros esforços de algumas
Uma festa sadia, gostava de dançar, tinha a festa de famílias. Entretanto, para os foliões mais apegados
Tambor que [...] veio dos negros. [...] E naquela aos lugares tradicionais, a mudança foi
época, quando dava lá pra uma hora da manhã drasticamente sentida: “[...] a festa do Divino era na
servia a mesa de bolo a vontade pro povo, comia bolo Casa Grande, era o Catira, era o Tambor. Era a festa,
a vontade. (Entrevista concedida por muitos dias. Oito dias de festa. Não tem. Por isso que eu tô
Prudêncio Ferreira Neto, em Crixás, Goiás, dizendo que essa festa do Divino, no meu modo, igual eu
em 01/07/2015). conheci, ela acabou. Acabou. (Entrevista concedida por

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Senhorinho Correia Meireles, folião em Crixás, ao às vezes como lamento e contestação. É a mesma
documentário “Viva todos que prestaram atenção”, vida que deu movimento ao patrimônio no
em 2000). passado, que ainda perdura no presente. São os
Na figura 16, Tia Eulâmpia, esposa do Tio “dedos” que ficaram após a retirada dos “anéis”, o
Joca, também conhecida como Vó Lampa, segura que confirmam que “ainda há brilho no caminho”.
uma das telhas que pertencia à Casa Grande.
“Quando demoliu a Casa, acabou com ela, meu véi Principalmente os mais jovens, eles são muito
panhou”. “Eu tenho saudade demais desse tempo. saudosistas. Eles veem as histórias e vivem assim,
Que amanhã é a missa do Divino. Era o dia da postando no facebook fotos de casas antigas, sabe? E
mesada de doce. Aí ia pra Casa Grande, é a hora fotos assim, de pessoas antigas, de trajes antigos. A
que eu sinto a falta” (Entrevista concedida por gente sente assim, na juventude de Crixás, até os que
Eulâmpia ao documentário “Viva todos que saíram, foram estudar e já são formados, poucos não
prestaram atenção”, 2000). O mesmo sentimento carregam esse saudosismo. Está vivo! A memória
parece perdurar entre seus filhos, que ainda está viva neles. (Entrevista concedida por
guardam na “Casa do Tio Joca” duas telhas que Maria Madalena Lima, Crixás, Goiás, em
foram da Casa Grande e ainda relembram, 30/06/2015).
saudosos, da Festa do Divino quando se realizava
lá. Acontecimentos, lugares e pessoas que, pela Isso se confirma em um perfil da
experiência trivial do dia a dia, fizeram do espaço, Comunidade Crixás, em rede social, em que consta
lugar. o seguinte depoimento a respeito do tratamento do
Com o dinheiro arrecadado pelas folias, a patrimônio cultural da cidade:
igreja construiu um grande salão, para dar lugar às
festas, principalmente a do Divino, que ficou Foi-se a Casa Grande, foi-se a Igrejinha, a Cadeia,
“desabrigada” por muitos anos. Desde 2016 a festa os casarões da Rua Ricardo Neves... nos resta
do Divino é realizada neste salão. Isso mostra que pouco, apenas nossa memória imaterial... as
o patrimônio se reconstrói, se recria e se reelabora cavalhadas, a Catira, a Veadeira, nossa folia...
no presente da cidade, a fim de que se mantenha preservemos, preservemos, preservemos... [...] É
aquilo que é essencial. engraçado que quando anunciaram a entrada da
A Casa Grande, na realidade, fora folia no festival [Encontro de Culturas em São
construída pelos escravos para ser a Casa de São Jorge] tive a sensação que chamavam pelo meu
Benedito. No passado, na festa de São Benedito, nome... e não era o contrário, a folia é a minha
que acabou mesclando-se à festa do Divino, havia a história, minha identidade, mesmo que hoje eu não
tradicional Dança do Tambor, que deixou de ser tenha religião específica e que nunca tenha sido
apresentada há alguns anos. Diante disso, a católico na vida... a folia é a história, a vida
Comissão de Folclore, com o apoio de agentes enraizada dos nossos antigos em nós... Não
envolvidos com a cultura local, como Maria traiamos a nós mesmos, lutemos por essa memória, a
Madalena de Lima (Dona Lena), estiveram memória de Crixás... (Publicado por Djallys
trabalhando para criar novos grupos de tambores Dietz, em Comunidade Crixás”iii).
na cidade, apresentando a dança às escolas e
permitindo que esta tradição seja, primeiramente, Nesse sentido, Gonçalves (2005) prescreve
objeto de conhecimento e apreço pela comunidade. atentarmos para “a dimensão patrimonial da
É evidente que existe uma preocupação cultura”. Ao invés de tratarmos unicamente sobre a
com a gestão patrimonial, vinda, por vezes de fora cultura que é eleita como patrimônio, estendermos
do próprio lugar, a qual se serve das memórias a discussão para o que a cultura elege como
locais que ainda estão latentes, tais como a fé dos patrimônio pela memória. E só há cultura em um
devotos, as comidas típicas, as Cavalhadas, o canto sentido corporeamente engajado, em contexto,
de improviso dos foliões diante dos arcos, onde se pode partilhar - pela linguagem, pelo
cruzeiros e altares, as "brincadeiras" de folia que símbolo, pelo signo - a compreensão e a
resistiram ao tempo (Catira, Ponto, Batuquinho e reciprocidade dialógica dos que, “em situação”,
Veadeira), entre outros elementos. Os moradores como posto por Merleau-Ponty (1999),
se mostram prestigiados quando há um determinam como seu “patrimônio-em-memória”.
reconhecimento institucional daquilo que foi Assim, sentidos muito particulares do lugar
resguardado oralmente, via construção coletiva da (em sua dimensão geográfica), correlacionados à
memória. situação dos sujeitos (experiências que conectam
O patrimônio edificado, mesmo ausente na passado ao presente) e seus afetos, são definidores
paisagem, continua ressoando, às vezes em meio às do que deve ser mantido e o porquê deve ser
histórias de acontecimentos vividos pelas pessoas, mantido, como nos revela o seguinte relato:

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acontecer sempre estará associado a um acontecer


Você viu a simplicidade dos foliões, a importância íntimo: a promessa, a dádiva, a doação, a
que a cidade dá pra festividade. Então, isso é penitência, o casamento, o batismo, o compadrio.
tradicional, entendeu? Esse contexto todo, ele é É uma linguagem, uma forma de canto, uma
tradicional, ele é pioneiro. Tanto é assim, que se a atitude de devoção, um encontro esperado, gostos
gente mudar uma corrida na Cavalhada, tem e conversas tão comuns, tão próprios daquele lugar,
cavaleiro que fala: “-Não! Mas meu avô disse que que dão a singela dimensão do “ser”. As festas
não era assim! – Eles apelam [...]. (José Manoel expressam essa identidade de Crixás e, ao mesmo
Carvalho Maciel, Presidente da Comissão de tempo, a patrimonialidade de lugares e sujeitos não
Folclore e das Cavalhadas de Crixás. patrimonializados, pelos sentidos que elas
Entrevista concedida em 29/03/2017). carregam. Ainda há brilho no caminho.
praticidade
O exagero na fartura, o ajuntamento, a
doação, as redes de reciprocidades no entorno da 5. Considerações Finais
festa, a rusticidade (como tudo no mundo rural), o
alongamento reiterado dos ritos e gestos, para que Eventos aqui discutidos sobre a trajetória
todos vejam e saibam. Mudar, resistir, repetir, mas histórica de Crixás e a ausência da atuação
sem perder a essência de “ser”. institucional em defesa do seu patrimônio
conduziram a um estado de abandono parte
[...] nós ficamos tentando adaptar a folia do tempo considerável dos bens culturais locais. Ruas inteiras
de hoje, sem modificar muita coisa. [...] Teve um e monumentos importantes erguidos no período
padre aqui que inventou a não dar janta, nem café colonial foram destruídos quase completamente.
da manhã não era pra dar. Chegava na casa, Entretanto, expressões e manifestações variadas
deixava a bandeira, ia pra casa, jantava, aí lá já observadas em campo negam a ideia de que o
tirava a esmola, brincava e ia embora cada um pra patrimônio em Crixás foi destruído ou “esquecido”
sua casa pra jantar. De manhãzinha, fazia o ritual e são norteadoras das seguintes conclusões (ainda
de manhã. Mas isso foi só um ano, o povo não não esgotadas) às quais a pesquisa chegou:
concordou. Até porque quem faz a maior despesa é o 1) A utopia do “patrimônio-territorial”
povo mesmo, porque a despesa da folia [...] é com a apregoada por Costa (2016, 2017) seria um
doação que o povo dá. Quem é dono e dá um pouso e subterfúgio por meio do qual se evidenciaria as
café da manhã, ele dá com a economia dele. [...] singularidades locais até então negadas, o que
Tem muito pra pagar voto também (Entrevista corresponde, diretamente, com a proposta deste
concedida por Inácio Ferreira de Faria, em artigo, que lança luz sobre um patrimônio goiano a
Crixás, Goiás, em 20/03/2016). ser valorado, ou já valorado, pelos sujeitos
localizados.
São estes sentidos que definem a No caso de Crixás, isso se expressa
patrimonialidade de Crixás. A relação desses nitidamente na reelaboração das práticas
sentidos de lugar com o patrimônio cultural da tradicionais do passado, que são combustível de
cidade está no fato de que a preservação do continuidade da memória local, e por que não
segundo não pode existir fora do que considero dizer, do patrimônio. Exemplos disso são as festas,
como “preservação social”. São valores e sentidos produções simbólicas comunitária, não
compartilhados, definidos por Buttimer (1982, p. institucionais. No caso específico, as tradicionais
172) como um “horizonte abrangente de nossas Festa do Divino e Cavalhadas, heranças do período
vidas individual e coletiva”. Segundo a geógrafa, colonial minerador, adentraram a consolidação da
“na vida diária não se reflete, ou não se examina agropecuária e persistiram no contexto da
criticamente, sobre tais horizontes; a noção de urbanização e modernização da cidade. Além disso,
mundo vivido sugere essencialmente as dimensões há um evidente apego do crixaense a objetos,
pré-reflexivas e tomadas como certas, da práticas e lugares que circundam o universo rural e
experiência, os significados não questionados e estão relacionadas, muitas vezes, à vida pregressa
determinantes do comportamento”. dos sujeitos nesse universo. E, por fim, os modos
Essa essência, vista tão efusivamente no de fazer e de sentir, que alinhavam, no fundo de
conjunto dos rituais solidários da festa do Divino e um tecido coletivo, a particularidade do “ser” e a
nos rituais performáticos das Cavalhadas, revela a profundidade de seus saberes - saberes de roça e de
aspiração do desejo de rememorar acontecimentos sertão – elementos constituintes do lugar
religiosos do passado e a homenagear uma geográfico.
ancestralidade que deixou como herança esses Há ainda, um surto de “vontade de
ritos. A festa do passado é lembrada porque o seu memória”, ante a identidade local ameaçada, que

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Luana Nunes Martins de Lima Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas

em Crixás fora materializada na literatura, Buttimer, A. (1982) Apreendendo o dinamismo do


certamente pela influência cultural da Cidade de Mundo Vivido. In A. Christofoletti (Org.).
Goiás, mas também pela influência da figura de Perspectivas da Geografia (pp. 165 – 193). São
Ursulino Tavares Leão (in memorian), que se Paulo: Difel.
destacou na produção literária goiana e fundou a Cipriano, C. & Clímaco, D. (Diretores) (2002).
Academia Crixaense de Letras. Uma vez que a Viva todos que prestaram atenção!
quase totalidade do patrimônio material não fora (Curtametragem). Goiânia: UFG.
mantida, restava aos crixaenses, outras formas de Recuperado em 20 outubro, 2016, de
participação da construção da memória local https://www.youtube.com/watch?v=bYz
totalmente “lugarizadas” – identificadas em obras hAjdEf9g
literárias, poemas, artes e outros elementos que Chaul, N. F. (2010). Caminhos de Goiás: da construção
reafirmam a identidade de “cidade-patrimônio. da decadência aos limites da modernidade (3a
Estes são temas que merecem especial atenção em ed.). Goiânia: Ed. da UFG.
outros trabalhos. Chuva, M. (2003). Fundando a nação: a
2) Considerando a tipologia de representação de um Brasil barroco,
“patrimônio cultural invisível” formulada por moderno e civilizado. TOPOI, 4 (7), 313-
Felippe (2016) para compreender o patrimônio 333.
cultural de Crixás, observamos, na verdade, uma Chuva, M. (2009). Os arquitetos da memória: sociogênese
dialética entre o visível e o invisível (Merleau- das práticas de preservação do patrimônio cultural
Ponty, 2012), entre o material e o simbólico. A no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ.
patrimonialidade é este sentimento oriundo da Costa, E. (2016). Utopismos patrimoniais pela
relação patrimônio-memória-lugar que escapa à América Latina, resistências à colonialidade
construção institucional de um patrimônio ou do poder. Anais do Colóquio Internacional de
manutenção daqueles já “edificados”. A Geocrítica, Barcelona, Espanha, 14.
patrimonialidade nasce no seio da comunidade e Recuperado em maio, 2017, de
reacomoda o patrimônio vivo que fora http://www.ub.edu/geocrit/xiv_everaldoc
“desabrigado” de seus locais de referência – locais osta.pdf
que guardavam o pretendido “testemunho Costa, E. (2017). Ativação popular do patrimônio
histórico” tão caro às práticas preservacionistas territorial na América Latina: teoria e
institucionalizadas. metodologia. Cuadernos de Geografía: Revista
Se a perspectiva da patrimonialização Colombiana de Geografía, 26 (2), 53-75.
legitima o discurso da preservação como requisito Recuperado em maio, 2017, de
para manutenção da memória (e até da identidade); http://dx.doi.org/10.15446/rcdg.v26n2.59
a patrimonialidade, por sua vez, tensiona a dialética 225
material-simbólica do patrimônio. Isso porque, Dias, W. (2010). No obscuro do ouro, o brilho do
mesmo calcada na memória sobre bens materiais Cerrado: a dinâmica territorial do município de
no espaço da cidade, não cogita, necessariamente, Crixás-GO. Dissertação de mestrado,
reparos, restauros, reformas estruturais e Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
originalidade para resistir. A própria “perda”, por GO, Brasil.
vezes, se torna uma construção, na qual se postula Felippe, J. (2016). Cartografias Valorativas de Sabará –
uma ameaça aos bens culturais, resultando em um MG: a essencialidade da cidade patrimonial
empenho coletivo pela preservação. Assim, o metropolizada. Tese de doutorado,
patrimônio cultural resiste e, ainda que seja Universidade de Brasília, Brasília, DF,
desapropriado de sua base material (edificações, Brasil.
monumentos etc), ele se reconstrói, se recria, se Fernandes F, Lima, M. H. & Silva, N.(2007). A
reelabora no presente das cidades. grande mina e a comunidade: estudo de caso da
grande mina de ouro de Crixás em Goiás. Rio de
Janeiro: CETEM/MCT.
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Luana Nunes Martins de Lima Patrimonialidade em cidades não patrimonializadas

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História das Religiões, Goiânia, Goiás, Brasil,
11.

Notas
i As reflexões desenvolvidas no artigo são também

resultados de pesquisas desenvolvidas no âmbito do


macroprojeto “Patrimônio Cultural e Memória em
Goiás”, coordenado por Luana Nunes Martins de Lima
e cadastrado na Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-
Graduação da Universidade Estadual de Goiás.
ii Publicado em: http://crixasgoias.blogspot.com.br/201

0/08/demolicao.html. Acesso em junho de 2014.


iiiPublicação em rede social não mais disponibilizada na

internet “Comunidade Crixás”. Acesso em junho de


2014.

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