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Para o antropólogo
humano é socialmente
se reproduzem no corpo
de maneira a dotá-I o de um sentido particular.
José Carlos Rodrigues, o corpo
concebido, e, portanto, um
objeto do cientista social. Estabelece para tanto
uma distinção. No corpo, existem aspectos
r---------
instrumentais, universais, que são as funções
orgânicas estudadas pelos cientistas naturais. Mas l.,/í 'St' C"arlos Rodrigues I
existem também os aspectos expressivos,
portanto simbólicos, ou seja, as codificações
particulares de um grupo social, objeto do so.ciólogo.
O prof. José Carlos Rodrigues afirma: "estudar
a apropriação social do corpo é estrategicamente
importante para os cientistas sociais, uma vez que
j
ele é sem dúvida, o mais natural, o mais concreto,
o primeiro e o mais normal patrimônio que o
homem possui."
Talvez por isso, Os tabus do corpo se
constituam numa das mais fascinantes e
~
elucidativas iniciações à Antropologia Social e seu
objeto por excelência, a cultura. ~ que no corpo
se encontram indissociadas as dimensões
orgânica e social do homem, domínios
respectivos da natureza e da cultura.
r~\',
achíamé
SÉRIE UNIVERSIDADE - VOL.: 2
José Carlos Rodrigues
Orientador: Luiz Felipe Baêta Neves
1I
TABU DO CORPO
I
Dissertação de mestrado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3~ Edição
t
I
t·1
Editor
Robson Achiamé Fernandes
Coordenador Editorial
Moacy Cirne
Gerente Comercial
",I achiamé
Rio de Janeiro
Jaques Jonis Netto
1983
" t
"
Às pessoas que entrevistei - e muitas vezes incomodei _
deve este trabalho a sua eventual originalidade, e devo eu res-
peito e gratidão.
Com Elisa de Alencastro Bezzi contraí uma dívida de
que não poderei me libertar.
Introdução 1
('''píIUlo I 9
1\ Sociedade como Sistema de Significação
1\ Cultura ea Natureza 20
O Sagrado e o Profano 24
O Distante e o Próximo 29
() Desvio e a Norma 32
O Consciente e o Inconsciente 39
('apítulo II li ~3'· .)
Corpo ou Corpos? 43 / c ~l
O Corpo: Vida e Morte 49
,:. 1)
O Corpo: Suporte de Signos 62 G
O Corpo: Fome de Símbolos 65 11 () 7
1\ Gramática dos Sexos 69 (/,'
Feiticeiros, Médicos e Semiólogos 87
O Corpo: Denotação e Conotação 95
Higiene: Mito e Rito 108
Os Códigos da Emoção 121
Capítulo III
O Nojo do Corpo ou a Magia sem Magos 127
Os Códigos do Corpo e os Códigos da Sociedade 129
O Tabu do Natural 159
{
44 45
conotações: liberado física e sexualmente na publicidade~ na gamcas, está fora da abordagem sociológica e pertence ao do-
modã,· nos filmes e romances; cultivado higiênica, dietética c mínio dos cientistas naturais.
t.erapeuticamente; objeto de obsessão de juventude, elegância
e cuidados.
Estudar a apropriação social do corpo é estrategicamente
Cumpre uma função ideológica. A visão que se tem do
importante para os cientistas sociais, uma vez que ele é, sem
homem primitivo, "pré-histórico", é de proporções desequili-
dúvida, o mais natural, o mais concreto, o primeiro e o mais
bradas, exageradamente peludo, pesado. Classificamos as pes-
normal patrimônio que o homem possui. Como tal, portanto,
soas quanto à "aparência", habilitando-as ou não a determi- deve ser visto pelos cientistas sociais como uma categoria
nados empregos, e nos surpreendemos quando uma pessoa própria, sistematicamente relacionada às outras categorias so-
"bem apresentada" é identificada como transgressora das nor- ciais. Classificá-Ia como "outros" ou "vários" é esquecer que
mas sociais e considerada criminosa. Nunca esperamos ser aten- ele possui o seu lugar próprio - e de importância - no
didos por um médico negro e normalmente não nos ligamos domínio das Ciências Sociais.
ao fato de apenas rarÍssimas vezes sermos atendidos nos res- Este lugar é o ponto de convergência de fenômenos sin-
taurantf'S por garçom de pele preta. gulares que põem em relação Íntima a natureza orgânica e a
Ao corpo se aplicam, portanto, crenças e sentimentos natureza social do homem, onde a Cultura e a Natureza dia-
que estão na base da nossa vida social e que, ao mes~o tem- logam, onde o grupo e o indivíduo se interpenetram. Este é
po, não estão subordinados diretamente ao corpo. O mundo o lugar dos fatos "dos quais Lévi-Strauss (51, p. 154) diz que
das representações se adiciona e se sobrepõe a seu fundamento :c.-eria necessário estudar bem depressa, pois neles a natureza
natural e material, sem provir diretamente dele. As forças social se liga muito diretamente à natureza biológica do ho-
mem.
físicas e as forças coletivas estão simultaneamente juntas e
O estudo da maneira pela qual cadà sociedade pressiona
separadas.
os seus indivíduos a fazerem determinados usos de seus corpos,
Nesse sentido, para que possamos compreender sociolo- e a se comunicarem com eles de maneiras particulares, abre
gicamente o corpo, para que possamos transformá-lo em ob- novas perspectivas para o estudo da integração social, uma
jeto da Ciência Social, é necessário apenas que apliquemos a vez que, por meio dessa pressão, a marca da estrutura social
ele a distinção que os sociólogos formularam entre o que cha- imprime-se sobre a própria estrutura somática individual, de
mamos de aspectos "instrumentais")e "expressi~os" )do com- forma a fazer do psíquico, do físico e do coletivo um amál-
portamento humano. A atividade expressiva éum modo de gama único que somente a abstração pode separar.
dizer ou expressar alguma coisa, uma idéia ou estado espiritual; Nesse terreno, todavia, muito pouco, infelizmente, se pro-
é uma atividade simbólica, à qual convém sempre indagar o duziu, "a este respeito, nada se fez, ou quase nada... Nin-
/ v'
que está sendo dito ou o que significa. Da atividade instru- guém, na verdade, abordou ainda esta tarefa imensa de que
mental, procuramos saber para que serve, a que fim visa. Mauss sublinhava a necessidade urgente, a saber, o inventário í
e a descrição de todos os usos que os homens, no decurso
Tudo o que for expressivo no corpo~ tudo o que comunic~
da história, fizeram e continuam a fazer de seus corpos ... "
alguma coisa aos homens, tudo o que depender das codifica-
(51, p. 151). De fato, os trabalhos que incidem explicita-
ções particulares de um grupo social, é objeto de estudo so- mente sobre este terreno são escassos; representam normal-
ciol§gico. Tudo o que for universal, tudo o que for apenas ment~ artigos programáticos ou formulações de esquemas teó-
instrumental, tudo o que cumprir funções exclusivamente or- ricos que têm por finalidade constituir o estudo da sociologia
46 47
um olhar amplo sobre a apropriação geral que a sociedade faz
do corpo em domínio próprio, diferente do das outras disci- do corpo humano, procurando destacar alguns tópicos que nos
plinas (Medicina, Antropologia, Física, Biologia, etc.). São parecem mais importantes ou, do ponto de vista desse traba-
extremamente raros os trabalhos empíricos de caráter eminen- lho, mais interessantes.
temente sociológico, e muitos dos que dispomos, como os de
Ruth Benedict (4) e Margareth Mead, (61, 62) fizeram-no
de maneira esporádica e assistemática, encarando a's manifes- o Corpo: Vida e Morte
tações corporais como subprodutos das motivações psíquicas
variáveis segundo as diferentes culturas.
No conjunto das modificações que o homem sofre no decorrer
Uma discussão da apropriação cultural do corpo exige de sua existência, há duas mudanças que se destélçam e predo-
que tomemos por base o exame d.~uma larga relação de formas minam sobre as outras: o nascimento)e a m?rtc.) Rechaçada
culturais possíveis, porque somente assim poderemos distinguir como tabu na vida cotidiana, a morte está, não óhstanle, pre-
entre os comportamentos humanos que são culturalmente con- sente, em todos os momentos, nas mitologias, no ritual, no
dicionados e os que são comuns a toda a humanidade; além inconsciente.
disso, como vimos, a introspecção simples não pode na maioria Os nossoS jornais relatam e dissecam dezenas de mortes
das vezes nos fazer distinguir entre os compd:tamentos "ins- diariamente. A morte exerce fascínio e é ambicionada merca-
tintivos" e os culturalmente determinados, já que tende a to- doria jornalística. O espectador dos meios de comunicação de
mar como naturais os comportamentos específicos do grupo a massa, como diz, Kientz (37, p. 140), "é um espectador in-
que o indivíduo pertence. saciável dos casos de morte". O jornal e o cinema fazem re-
Todavia, ao utilizarmos dados extraídos de diferentes cul- verberar o tabu de morte, vendendo para cada um de nós
turas, tomamos consciência dos limites desse procedimento e um sentimento que está reprimido na profundidade de cada
procuramos nos resguardar da suposição de que possamos in- alma.
ferir a significação de cada um deles fazendo abstração do De fato, esta exaltação da morte nos diários contrasta
sistema a que cada um pertença e do contexto etnográfico em com a sua silenciosa dissimulação na vida cotidiana, em que
que este sistema mesmo adquire significação. Pelo contrário, a ela é banida das conversas, obscurecida por metáforas e es-
exposição que segue procurará demonstrar que em Antropolo- condida das crianças que podem ver os cadáveres empilhados
gia duas coisas podem freqüentemente ser a mesma coisa e nas telas de cinema e televisão, mas. a quem é furtado o
que uma coisa normalmente é duas ou mais coisas, segundo conhecimento da realidade da morte em seus CÍrculos familia-
as variações dos sistemas culturais. res, e de quem se afastam os velhos, porque estes seres enru-
Os dados de diferentes procedências etnográficas que en- gados, curvados, decrépitos, são capazes de transmitir a idéia
tram na composição do texto seguinte apenas cumprem a fun- de decadência e morte. Quantos j()vens ..viram ou se aproxi-
ção dupla de nos fazer sair de nós mesmos, para que nos maram de um cadáver? - ---- .-
possamos apreciar como objeto, e de colocar intelectualmente Ninguém permanece perto de um cadáver, sem que sua
as mesmas coisas em novas relações, de forma que possamos fisionomia ateste que é precisamente um cadáver o que está
deduzir novas relações e novos conhecimentos. vendo. Se a pessoa não está habituada, apresenta certas .r.ea-
ções típicas, ousa olhar rapidamente para o cadáver e afasta
os olhos imediatamente, de maneira a não deixar dúvida de
Antes de procedermos à análise específica e mais deta-
que'quer separar sua visão de algo que não quer ver; há quem
Iha_dª_de um dos tabus do corpo, as evitações chamadas de
cubra os olhos e quem desmaie.
(nojo"! - o qtiêfaremos no capítulo seguinte - vamos lançar
49
48
o certo é que o morto, como as coisas insólitas, anormais f;'-(;U_ servirá a ele como seu mais poderoso fetiche (12, p.
ou ambíguas, constitui um ser impuro, cujo contato representa 1(". h).
,\
perigo para o mundo das normas. Em muitas sociedades, amea- A morte tem mana e atribui mana~!David Sudnow (68,
ça manchar a todos e a tudo que tem ou teve contato com ele I' 11) relata o estigma que recai nos hospitais que estudou
- incluindo os seu&pertences - já que tudo que se relaciona ",Iue os indivíduos que se relacionam com cadáveres. Descreve
com ele participa de sua perigosa personalidade: se ele é tabu, .1' ••.. ~empre que se constata a presença desses indivíduos, des-
são também tabu suas propriedades, sua casa, seus parentes, . ,,"l1a-se da ocorrência de morte; de onde quer que esses in-
seus amigos. Estes, segundo os casos e em grau variáveis, se .I,v"llIllS venham, e para onde quer que eles se encaminhem,
tratam com cuidados especiais, se evitam, se destroem ou se "lU ~empre vistos e imaginados como indivíduos que recolhem
-purificam. ..••laveres, ou que se acham envolvidos nas horripilantes tare-
Em algumas sociedades, como entre os'Maori,: os que to- I,,'. de necrópsia. Vistos como poluídos por causa de suas ati-
caram um morto, ou participaram de seu enterro, estão ex- "I( Lides, estes indivíduos tentam dissimular de toda maneira
tremamente poluídos. Qualquer contato com outras pessoas n, aspectos mais degradantes de seus misteres: evitando falar
lhes está interditado. Estão proibidos de entrar em casa ou 'I(' ;I~;sllnto,não usando guardanapo manchado de sangue; dis-
tocar algum objeto, sob pena de os tornarem impuros também. "lIl1lando que fazem a limpeza do chão depois das autópsias,
Nem sequer tocam com as próprias mãos os seus alimentos. d. f~ fácil verificarmos este poder negativo nas conotações
Apenas indivíduos miseráveis e abandonados que vivem de es- '''I',;ltívas com que vemos os "papa-defuntos", os coveiros e
molas podem se aproximar deles. Ao fim desse período de 1".1,,-; os que de ·uma forma ou de outra se relacio,nam com a
~uo~h~_
isolamento tudo o que teve algum contato com eles, tudo
o que os serviu no tempo de perigo, é sumariamente destruído .i'auto isto é verdadeiro, que nos hospitais existe uma evi-
e eles são purificados. Coisa fundamentalmente parecida acon- .klllc divisão de tarefa na maneira de se lidar com cadáveres.
tece com osbayaks(marítimos que praticam o enterro imedia- '., lllL:dicos que entrevistamos (e o trabalho de Sudnow (68,
tamente após a morte, porque acreditam que se o conservassem I' 100) o confirma, somente tocam cadáveres quando
')j, 97,
perto por muito tempo estariam se expondo a sinistras influên- d"'I',lIosticam a morte ou realizam autópsia, considerando a
cias. A mais simples observação de nossos costumes demonstra IILlIlIl'ulação de corpos mortos um trabalho de menor dignidade,
que não sentimos coisa essencialmente diferente. d,-;llIIado às pessoas de status menos elevado. Os médicos e
A morte reconhecemos uma eficácia ritual. A morte tem , ••IClmciras de status mais elevado são normalmente os que
mana. Basta olharmos em volta dos muros dos cemitérios e IIIIIIOSchance têm de presenciar falecimentos e de ver cadá-
VI I CS, C os que menos probabilidade têm de os manipular fi-
veremoS a quantidade de ritos mágicos de que ela é objeto.
'.1' ;Ullcnte, já que "o trabalho de locomoção e preparo dos
Ritos que exprimem o seu poder temível. Entre certos Pigmeus,
a iniciação dos magos exige provas para o ingresso na socie- , .••bveres é feito por pessoas de menos nível", conforme nos
dade secreta dedicada à magia negra, muitas delas ligadas ao d"iaroll um informante médico. Num dos hospitais que
contato com a morte e com a impureza: em uma delas se ',IIdllOW estudou, a tarefa de preparar os cadáveres estava a
coloca atado, peito contra peito e boca contra boca, o can- ,.11/',0 de funcionários de baixa posição, 95 % dos quais eram
didato, a um cadáver, levando-os, ambos, para o fundo de ItC;',1 OS~
violento que a existência dirige ao homem. Ela significa uma ,L"" i qualquer: é necessano dar-lhe uma sepultura. Não por
terrível ameaça ao grupo humano e exige alterações substan- 1I111'1e~; gesto instrumental de motivação higiênicà, mas por
ciais na organização da vida, sobretudo quando é inesperada. "I" "',,Il.::I\) moral e por necessidade de exprimir alguma coisa.
,\
A morte de uma pessoa adulta significa normalmente dor e 11" I :;(~ poderia explicar, por exemplo, o enterro, por motivos
solidão para as pessoas que sobrevivem a ela: verdadeira chaga l,,,,.,mente utilitários (afastar a sociedade de uma possível fonte
que põe em risco a vida social. ,I, ,!<-mentos patogênicos), porque, se isto fosse verdade, não
Vau Gennep (32) e Hertz (35) mostraram que a morte, , ,,,tenderia o porquê de algumas sociedades enterrarem os
para a consciência coletiva, representa um afastamento do in- " llll'mbros antes mesmo de estes falecerem.
divíduo da convivência humana; esta exclusão, entretanto, tem (l l"nterro, e as outras formas de se lidar com o corpo
um caráter temporário e tem por efeito fazer! com que o morto ",,,010, L: um meio de a comunidade assegurar a seus membros
passe da sociedade palpável dos vivos para a sociedade invisí- 'I'" ,. indivíduo morto caminha na direção da ocupação do
vel dos ancestrais. Como fenômeno social, a morte consiste na '11 hll~ar determinado, devidamente sob controle. Estas práti-
. \ \
"realização do penoso trabalho de desagregar o morto de um " ,omunicam ao grupo uma mensagem que evolui da inse-
:(domínio e introduzi-Ia em outro. A feitura desse trabalho exige ,"1,1111;:' ao sentimento de ordem, e representam a maneira
~oda uma desestruturação e uma reorganização das categorias I'" 1.11 que cada grupo tem de resolver o mesmo problema
mentais e dos padrões de relacionamento social. E, apenas ao I ,,,,,LIIllcntal: o drama da finitude humana.
termo desse doloroso esforço, o grupo se recobra, restabelece ,Inlz (35, p. 34) relata que, entre os lndonésios, os
sua paz e vence. I' ", lIic'" C particularmente a viúva, têm obrigação de recolher,
Nessa passagem de um mundo a outro, do conhecido ao L I, illPUS em tempOS, os líquidos produzidos pela decom.po-
desconhecido, do seguro ao misterioso, o indivíduo recebe um "H, do'; cadáveres, a fim de aplicá-Ios sobre o próprio corpo
acondicionamento que se concretiza em ritos que o preparam ," .k lllisturá-Ios aos alimentos. Aqueles que observam este
para a nova vida; muda o nome, as roupas, ou o gênero de ,,111. .1 justificam-no alegando que o afeto pelo defunto e a
vida. Este estágio intermediário, intersticial entre um mundo I. 1.I,f,\ que sobre eles se abate, em virtude de h:wer perdido
e outro, coloca em jogo forças perigosas. Entre a desintegra- • ',11,\ presença, os obrigam a proceder dessa maneira. Obser~
ção do indivíduo excluído de um mundo e a sua integração à .1 ftllbvia, que esta alegação não basta para explicar o rito,
sociedade dos mortos, pratica-se uma série de procedimentos " 'l'I<" ele é estritamente obrigatório, inclusive ameaçando de
rituais que visam completar o processo e proteger a comunida- 1'"I1I'"IU capital às mulheres que não o ob3ervarem. Diz ele:
de. Ninguém estará livre do perigo antes que o processo fune- 11.1<1 :,c trata, pois, simplesmente de um sentimento individual,
rário esteja completado em todas as suas etapas, e antes que iI", de uma participação forçada de certos sobreviventes à
todas as coisas estejam em seus devidos lugares. "'1,,1";;10 presente do morto".
Nesta fase intermediária, o grupo está sujeito à ação das TI :lIa-se de manobras sociais, por meio das quais o grupo
forças nefastas que a morte irradia - forças nocivas que amea- ".d 11\11:1, por meio do morto, a solidariedade do grupo a que
çam o homem. Deve, então, se prevenir e se munir dos re- ,J, 1"lIl'nCeu. Coloca-se a morte no seu devido lugar e evita-se
~
cursos simbólicos capazes de alterar essas forças e de neutrali- .1"111 que ela continue agindo no interior da sociedade. Os 1< '
zá-Ias. É necessário exorcizar o cadáver, a morte, e tudo o que I","'lIlcs próximos, que realizam estes atos, comungam de al~
diga respeito a eles. Nesse ponto está a inspiração das práticas 1'"111.' lorma com o defunto; imunizam-se a si mesmos e evitam
funerárias e de seu valor expressivo. '1'11 .\ sociedade sofra outras infelicidades; acreditam que ab-
Valor expressivo, porque, por tudo o que se disse, o '" V('11l as qualidades do morto ou a potfncia mística que re~
,.1.-' IlO cadáver, tornando-se, assim, capazes de a controlar.
corpo humáiiomorto não pode ser considerado como um ca-
53
52
Entretanto, estes parentes estão em contato íntimo e sólido 1.llIlIlIa se deitava fora porque, na sua dor, esta não podia
com a morte - o que é um argumento para a comunidade 10, 1"lcresse por coisas que lhe pertenciam nem utilizá-Ias. As
completar a construção de uma muralha protetora em torno I'" 'I" ias tendas eram desmontadas e dadas a outras pessoas.
de si, expulsando-os temporariamente do seu convívio. Uma 11.,.Ia ficava para a viúva, além do cobertor em que ela pró-
prática parecida, o próprio Rertz diz existir entre os Dayaks, I" 1;1~,e envolvia. Os cavalos favoritos do morto eram levados
")' de Bornéo, que promovem a comunhão com os mortos mis- ,,, I'l' de sua campa e aí mortos, enquanto todos gemiam".
turando com arroz os líquidos que provém da decomposição Um dos costumes mais comuns entre os diferentes povos
do cadáver, fazendo com que os parentes próximos se alimen- , que em certo grau podemos constatar entre nóS mesmos -;
tam dele durante o período fúnebre. , .'1l:.lsle na proibição de se tocar no nome do morto em deter-
Entre os Bororo verifica-se a dupla inumação. Realizam IIIIII;l(losperíodos, ou sem observar determinadas condições.
um primeiro enterro, rápido, quando durante várias semanas 1',11.1 alguns povos, inclusive, o pronunciar o nome do morto
se joga água sobre o cadáver para apressar a decomposição. .••• determinadas circunstâncias, ou diante de determinadas
Quando esta se encontra adiantada, abrem a sepultura e lavam IH'c,nas constitui uma profunda ofensa, sujeita a penas com-
o esqueleto, retirando dele todas as carnes. Pintam, então, de l,""veis às dos mais graves crimes. Outros grupos costumam
vermelho, os ossos, e os enfeitam com plumas. C-olocam-nos I.,,, ;11 o nome do morto imediatamente apóS o seu falecimento,
em um cesto e os submergem, em ato solene, em um rio ou ". ;lImlo as proibições de citar o nome sobre o anterior. O Ir!
lago, onde moram as almas, completando o processo (53, p. I "." do nome em alguns povos atinge o extremo de deter- II,i
193). A.. água e a morte, em decorrência disto, estão para '""',;l' ('Om que todos os que possuem nomes idênticoS ou 'i
'li
sempre associadas no pensamento desses indígenas. Para evitar I "liidos ao do defunto tomem outros diferentes; ou ainda de ii
I
associação com a morte, provavelmente, os Esquimós pres- ,tilll a modificação do nome de animais ou coisas quando
crevem que a morte deve ter lugar fora das casas. Talvez .. 'HHil1cntes com o do falecido.
encontremos também, nesse ponto, a explicação de porque, () nome, de qualquer maneira,' está associado àquele que
nos nossos velórios, se coloca sempre o defunto com os pés ••I ,ri a, sendo uma parte constitutiva da identi~ade social da
Jt
voltados para o lado de fora de casa, e porque a tendência 1"".:,lla.Portanto, é lógico que possa ser envolvido no tabu que
a velar o corpo em lugares especialmente dedicados a isto .ll! n:speito ao defunto. Pronunciar o nome de um morto é
(capelas), abandonando-se as residências. '"11;( forma de entrar em contato com ele, ou, o que pode ser I,
Ruth Benedict (4, p. 78) narra que "nas planícies do •••.11';I',rave, de invocá-lo.
oeste a atitude do sobrevivente durante o luto era tudo o Todo esse trabalho social ligado à morte diz respeito
que há de mais distante de uma tal ansiedade: era um ren-
"'l'l'dfico a cada sociedade. Quem pode pronunciar o nome
der-se dionisíaco a uma dor sem restrições. A conduta seguida .1., lIlorto e quando, o que se pode comer e como, como se
intensificava, em vez de evitar o desespero e o abalo que a 1'.llar () corpo do morto, vestindo-o, lavando-o, pintando-o,
morte implica. As mulheres golpeavam a cabeça e cortavam: I" balido os orifícios corporais, mutilando uma parte de seU
os dedos. Longas filas de mulheres com as pernas nuas a •••1po, enterrando-o, cremando-o, quem deverá temer, quem
verter sangue atravessavam o acampamento quando morria ,kverá chorar _ tudo isso é função de cada cultura e expressa
qualquer pessoa importante. Não limpavam o sangue da cabeça 1',II1icularidades de sua própria cosmologia e de sua estru-
nem das pernas, deixando formar uma crosta. Logo que o ;I social.
111I ! r t'
corpo saía da tenda a enterrar, atirava-se ao chão, para quem Não obstante, os antropólogos têm observado que os
o quisesse, tudo que nela existia. Os bens próprios do morto
não deviam ser poluídos, mas tudo () que existia em casa da
1'11Il:t';dimentosfunerários mostram uma similaridade bastante ,
'",I;lIltlc através do mundo e através da história. Parece que, 'I
55 '
54
em todas as sociedades, o ato de morrer, talvez o mais Íntimo I"L' si; isto é, na sua solidão, pode levá-Ia com ela ( ... )
da existência humana, é transformado em uma ocasião pública. '""I conseqüência, é tratado com todas as precauções com que
Há quase sempre uma manifestação de tristeza mais ou menos
I", .1 pessoa que morreu. Deve isolar-se durante quatro dias
real, mais ou menos convencional. O cadáver é sempre con- 01, loda a vida corrente: não deve falar com ninguém nem
siderado peri.goso ou repugnante. Há sempre ritos que cum- ,,"q',II{~mse lhe deve dirigir; toma um emético todas as manhãs
premarriisslÍorle preparar o morto para sua viagem em 1'''.1 :;e purificar, e sai da aldeia para ofertár com a mão es-
direção ao outro mundo. Mallinowski (57, p. 49) observa a 'I'" "Ia milho moído, fazendo girar quatro vezes a mão em
dupla e contraditória tendência de, por um lado" preservar 1"1110 da cabeça e arremessando o milho para 'arrancar de si
o corpo, deixar suas formas intactas, ou reter partes do mesmo, " ,it:')',osto', como se diz. No quarto dia crava no chão as varas
e, por outro lado, o desejo de despachá-lo, de aniquilá-lo .I, OL,r pelo morto e roga-lhe, na única prece que em Zufi.i se
completamente. Para ele, a mumificação e a cremação corres-
01111)',1' a um indivíduo natural ou sobrenatural, que o deixe em
pondem às duas expressões extremas dessas tendências, I"!, q lIe o não arraste consigo e que lhe conceda:
enquanto o canibalismo mortuário - praticado, ao mesmo
tempo, com extrema repugnância e asco, e em nome da reve-
rência, do amor e da devoção que se dedica ao morto _ Toda a vossa boa sorte
representa o ponto intermediário, onde elas se encontram e Que nos guarde ao longo
conflitam. E acrescenta: "é impossível ver a mumificação ou De um caminho seguro."
a cremação ou qualquer forma intermediária como determi-
nadas pelo mero acidente de crença, como um traço histórico
de uma ou de outra cultura que ganhou sua universalidade
pelo mecanismo da difusão e do contato apenas. Porque nesses 1\ morte de um homem ou de uma mulher, para um
costumes está claramente expressa a atitude mental fundamen- r' "po de reduzidas dimensões, é um evento de enormes pro-
tal dos parentes, amigos ou amantes sobreviventes ... " 1""';O(;S. OS parentes e amigos são abalados no mais profundo
A descrição de Ruth Benedict (4, p. 76-8) do seguinte ,10 :;lIa vida emocional. A morte mutila uma sociedade pequena
110 IlIgar do morto deixa um vazio indisfarçável. Ela quebra
ritual resume tudo o que estamos tentando dizer: "(Aos ,
é
Zufi.i), o qlle mais interessa que a pessoa enlutada esqueça
,. ,IIIS0 normal das coisas e questiona as bases morais da
",wdade, ameaçando a coesão e a solidariedade do grupo
( ... ) Reúnem-se para alimentar o morto pela última vez e
despedi-Ia ( ... ) .Então, expulsam-no da aldeia, levando-o I",do em suaintegridade.
para fora dela (e) enterram tudo (o que era seu). Voltam A reação do homem é um impulso contrário a essas
para casa a correr e sem olhar para trás, e trancam a porta
Iolt;~IS desagregadoras. A violência das manifestações contrá·
contra o morto, gravando nela com uma faca de sílex uma 'L"; a morte significa que a sociedade continua viva. Quanto
'Il.W; da chora, quanto maior a sua dor, tanto mais intensa
cruz para evitar que ele entre, o que corresponde ao formal
rompimento com o· morto. O chefe fala às pessoas, dizendo- .• ~,lIapresença na alma de seus membros. A sociedade reaje
, "111 veemência igual à da força que a feriu. Os indivíduos
lhes que o esqueçam para sempre ( ... ) Despedem as pessoas
IlIl1lc;l a amam tanto quanto quando ela é ameaçada. Visa
e terminou o luto. Mas qualquer que seja a tendência de um
, "111 isto reagir ao desabrigo a que seus membros se viram
. povo, a morte é um fªto iIl1piedosamente iniludível ( ... )
',"hllletidos, restabelecendo, pelo calor da solidariedade dos
uma morte que toca muito de perto uIl1a pessoa nem mesmo
tl'W ficaram, a integridade do grupo. Aproximando-se, os
em Zufi.i é coisa fácil de esquecer ( ... ) o cônjuge que sobre- ,t ,hrcviv'\'utes conseguem ocupar o vazio deixado pelos que
I'
,J
,
vive corre grande perigo. A sua falecida mulher pode puxá-lo partiram.
56
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Tudo isto porque os efeitos da morte não se restringem ""III',entes, os militares,
os sacerdotes, merecem, cada um, um
absolutamente a dar termo à existência material do homem. I" '" n hmento particular. Em muitas sociedades, o cadáver de
Ela atinge, diretamente o capital investido nesse corpo pelo li'" :,lIícida suscita um pavor especial e mais intenso, e por
grupo social. Ela incide sobre uma individualidade física car- ." (' imediatamente abandonado. Entre nós, cristãos, os
regada de sentido. Quando um homem morre, não é apenas "" "Lis não podiam ser enterrados no mesmo cemitério que
uma fração do grupo que foi roubada: algo de dignidade infi- ",orlos regulares, nem suas sepulturas receber a bênção
nitamente mais elevada foi afetado - a própria estrutura " li dotal, acreditando-se que iam para o inferno. Mas, se,
social, que se reproduz no organismo. Atingido em seu I'''' IIIll lado, o suicídio pode gerar entre os parentes que
princípio
desmoronar. mais sagrado, o edifício social corre o risco de "\·,.-vlvem um certo sentimento de vergonha, por outro, os
"t',,"viventes de um suicida altruísta, de um mártir, de alguém
Aí está a razão do pavor 9ue a morte inspira. A putre- I'" :,(' deixou morrer em defesa dos ideais patrióticos, dos
fação, a decomposição, não ameaçam apenas a material idade "'''li":; da moralidade coletiva, dele podem se orgulhar, e sua
corporal, já que, a ser isto verdadeiro, todos os corpos deve- "', ", ••, Ia se torna, para sempre, objeto das mais solenes
' 'i riam provocar o mesmo horror. Entretanto, a experiência I' '.'I"I("IlClas.
I
J
etnográfica demonstra que o sentimentO que' a morte deter- J'alllbém é diferente, e mais branda, a reação que a morte'
Dilria varia enormemente com o tipo de morte e com a qua- ,I, • I ,a 1I~:as produz na consciência coletiva. Na realidade, a
lidade do morto. A morte do rei, do governante, ou de qual- '''''''lLtídade investiu nelas pouco mais que esperança. Não
quer alto mandatário, é normalmente seguida de intenso 1,. ""li a Ihes imprimir a sua marca. Sente-se pouco atingida.
assombro, pois nele se resume toda a personalidade social. A 1, ••1" ::c passa como se fosse uma morte menor. Um fenômeno
morte do rei anuncia a iminência do caos. A decadência de ".I", :;ocial", como diz Robert Hertz (35, p. 80). Em muitos
sua majestade se apresenta aos homens como catastrófica, I '''I'II;IIS, os natimortos são lançados ao lixo.
deixando-os perplexos. À iminência do caos, muitos povos I J;í ainda a morte insólita, ocorrida fora da rotina, longe
respondem com rituais de inversão da ordem, procurando
,L.. !"evisões, colhendo de surpresa os sentimentos sociais,
produzir, sob controle social, a desordem que poderia provir '.,,, os desastres, a morte do casal que retoma da lua-de-mel,
de fontes implacáveis: nas ilhas Sandwich muitos matam, ,I., I' )vem assassinado no dia de sua formatura, do rapaz J
"
um corpo alheio ao controle cujo aprendizado é uma das ,\ ';ociedade tem que se apropriar desse processo natural
primeiras tarefas, que ela impõe ao recém-nascido. Por isso, 1''''1'1(', se os indivíduos morrem, ela, pelo cuntrário,sobre-
tratamos o corpo cuidadosamente depois de sua morte: ves- " \(" ela vê no homem a sua imagem projetada, gravada,
timo-lo, fechamos-lhe a boca e os olhos, obturamos-lhe todos I, "\:15 que o constituem devem ter a mesma perenidade.
os orifícios pelos quais ele pode manifestar alguma atividade \ .1,',lllIição do corpo turva a sua imagem, sobretudo enquan-
de uma natureza escapada ao oomÍnio da coletividade. " ,,," se consome. Obriga a sociedade a refletiisobre si e
:f: esta atividade incontrolada que sobrevém ao cadáver I" ,meus a pensar em seus destinos. Evidencia-Ihes suas
- e que o consome - que a sociedade não pode suportar. "I""ahilidades. Para uma sociedade que se crê imorta.l, o J
E preciso esconder, apressar, intervir de alguma forma. Enter- I" l.lClIlo de degradação do objeto em que se vê não pode
rar, comer, cremar,' são formas de interferência, tentativas IIportado. Não pode suportar que os membros que a
simbólicas de definir o irreversÍvel processo por caminhos ••I" ";nllam, que os corpos em que existe, estejam destinados
demarcados. Assisti certa vez, em um programa de televisão, , I' I (Ter. f: bastante comum dizermos que a morte é trai-
a um debate sobre a cremação, tendo os participantes quase " " pois diante dela nos sentimos como vítimas: difici!-
.1
unanimemente tomado o partido desse processo como um "",10- perguntamos "por quê?", quando nos noticiam a morte
método "mais econômico", "mais racional" e "mais digno". I, ,,,,n pessoa, mas "de quê?"
A cremação, como o cozimcnto, representa uma transformação í ;Ida sociedade dá à morte a sua {.esposta e esta resposta
culturalmente orientada. IIIILIespécie de teste projetivo da estrutura social. Mas todas
A transformação culturalmente canalizada aparece real- ,I, "'<;pondem ao mesmo problema: a morte do símbolo que
mente aos indivíduos como "mais digna". Um jornal de 4 de • pu é, A morte do corpo é a morte do símbolo daestru-
"11
setembro de 1973, traz a notícia de haver sido derrotado em IlIll ',(leia!, é a evidência da entropia, é a imposição ao homem
primeira instância um recurso contra a medida do prefeito da .I, ',I' pensar na finitude" (1, capo 9).
cidade de Pirassununga, no estado de São Paulo, que mandou () que se teme na morte é exatamente o que ela tem de
retirar do cemitério municipal um epitáfio que continha os 111' 11 "", c por isso se procura dar ao cadáver aparência de
seguintes dizeres: "Bípede, meu irmão: eis o fim prosaico ,,,L, vestindo-o, engravatando~o, banhando-o, maquiando-o,
de um espermatozóide que, há mais de oitenta anos, pene- .I11,dll lhe, enfim, uma "boa aparênch'). As flores, com que
trou um óvulo, iniciou o seu ciclo evolutivo e acabou virando , ,0111 III")S os cadáveres, cujas pétalas separamos e lançamos
carniça. Estou enterrado aqui. Sou o Chico Sombração. Xingai 11.1', \('IHl!turas, que enviamos em coroas, estão presentes tam-
por mim." Aí se recusa o enquadramento cultural, pois se I" em outros ritos muito proximamente ligados à vida
11 I
descreve o processo de transformação em termos puramente (.lIl1vcrsários, casamentos, nascimentos, convalescença, corte,
naturais; substituem-se por palavras profanas os termos sagra- '\11" Novo, etc,), e, se quisermos aprofundar, são os órgãos
dos que deveriam figurar; impele-se para a natureza, a comu- I'~'vonsúveis pela reprodução da vida vegetal. ..
nidade; matam-se as esperanças de ressurreição e de vida (h ritos que lidam com a morte solucionam o problema
eterna. Fala-se na primeira pessoa, quando os mortos devem
'1111' da ,implica, prometendo, implicitamente, a ressurreiçã() e
silenciar. Ameaça-se. Peca-se. No contexto, a expressão é " VIlIa eterna. A noção de morte está sempre ligada à de
60 61
ressurreição, e esta ligação não se dá explicitamente, apenas, I Ld'IOS, das faces, decepamento das falanges, perfuração
nas religiões institucionalizadas: o avanço material já permite 1., • "IVldo, amputação das unhas, circuncisão,' inscrustrações,
a alguns (ou a milhões?) a audácia de sonhar com um conge- 'I" ,,,I.lIIICllto dos dentes, deformação cefálica, atrofiamento
lamento, na esperança de que a ciência do futuro lhes possa ,I. IIwlllhros, obesidade, compleição atlética, prescrição de
devolver a vida. E cada povo tenta trazer a certeza dessa '" ., I,lrma e cor considerados desejáveis esteticamente, pin-
vida eterna~pâra perto de si, lançando mão dos recursos que I,,,, .1:1'; unhas dos pés, das mãos, barbeamento, corte de
lhe parecem viáveis - quer recuperando, após o luto, os .1"1,,, Iransformações de coloração da pele por meios quí-
nomes que haviam proscrito, dando-os às novas crianças que "'" ,. 011 físicos; tatuagem (injeção de pigmentos embaixo da
nascem, quer carregando no peito as caveiras dos' parentes I" I, IIcando a superfície inteiramente lisa), moko (estrias
falecidos (como as viúvas Bena-Bena, de Nova Guiné), quer '" ,I" ;I(Lassobre a pele e sobre as quais se esfregam pigmen-
expondo os corpos mumificados dos grandes líderes e os ossos I T,"kil/a (introdução de uma agulha e linha impregnados).
de sacerdotes e arcebispos (como no convento de Santa Cata- I ';Hla urna dessas práticas se explica por uma razão
rina, no Monte Sinai), ou ainda, assimilando, por meios cani- " " I,. "Lar, ritual ou estética: ritos propiciatórios, marca tribal,
balísticos ou não, as virtudes das grandes personalidades que '1'11" de status social, ritos de passagem, etc.; os japoneses e
desapareceram fisicamente, mas que não podem perecer moral- ", 1'"IIIII;sios,entre outros, são conhecidos pela extrema sofis-
mei'lte. Hertz constatou, em todos os ritos que estudou, que as ""li'" c pelo agudo refinamento de seus trabalhos sobre o
partes moles dos cadáveres, quando não eram preservadas ,,' I'" especialmente no que diz respeito à habilidade de
por procedimentos artificiais, eram pura e simplesmente des- 'dl!lI Militas vezes, essas marcas fazem referência direta a
truídas. E nós mesmos tomamos, como símbolo da morte, a " Li< •••• ,; sociais: o amor à mulher, o amor aos pais, o elogio
caveira - exatamente o que, da morte, fica. O que se teme , 1."', ,tO social a que se pertence... Em ~ada sociedade
na morte é exatamento o que ela tem de morte, e o que I" "k, ';1: ia levantar o inventário dessas impressões-mensagens'
nela se cultua é o amor à 'vida.
, ,k.,obrir-Ihes o código: bom caminho para se demonstrar,
" .. ',llpnfície dos corpos, as profundezas da vida social.
f'-!;tohá, praticamente, sociedade que não fira de alguma
o Corpo: Suporte de Signos
1"'.111:1 [) corpo de seus membros, havendo, inclusive, prefe-
j, 11' 1.1'; que podem parecer estranhas à primeira vista. Por que
Que o corpo porta em si a marca da vida social, expressa-o
, ,. HIHlllência largamente difundida no espaço e no tempo, da
a preocupação de toda sociedade em fazer imprimir nele,
fisicamente, determinadas transformações que escolhe de um
I'" IlIl'Ilcia pelas partes genitais? - perfurando ritualmente a
",,11.1. na base do pênis, para controlar a fecundação (disci-
repertório cujos limites virtuais não se podem definir. Se con-
....• da metra); furando o prepúcio e introduzindo algum
siderarmos todas as modelações que sofre, constataremos que,
o corpo é pouco mais que uma massa de modelagem à qual a ,,1'1,111 que impossibilite as relações sexuais; ou costurando as
sociedade imprime formas segundo suas próprias disposições: 1"'lldes da vulva de forma a reduzir o orifício vaginal (infi-
formas nas quais a sociedade projeta a fisionomia do seu III,LiI:ao); praticando-se a excisão do clitóris, ou procedendo
próprio espírito. I lalllotomia; abrindo parcial ou totalmente a parte inferior
01'1 mdra peniana, de forma a fazer com que homens e mulhe-
Arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele _
imprimem-se cicatrizes-signos que são formas artísticas ou 11", assumam a mesma posição ao urinar; distendendo os
indicadores rituais de status, como as mutilações do pavilhão 1f,l>lospor meio de manipulação ou outros métodos; escari-
auricular, corte ou distenção do lóbulo, perfuração do septo, Ihulldo-us de modo a colarem-se durante a cicatrização; pra-
62 63
ticando a circuncisão; a castração total ou unilateral; ou o '" "'.',lIlade de combater a inflamação prepucial, a fimose, o
desvirginamento ritual. . . , ,I" vlIlvimento da resistência da mucosa da glande, é pro-
11
Todas essas intervenções da comunidade sobre o sexo 1,'!1I racionalizações que se destinam a legitimar uma prática
são maneiras de ela tentar controlar - agindo sobre o órgão ,111 dúvida muito anterior ao argumento. A origem dessas
:- uma função cujo exercício deve responder pela própria I"li I, ;\'; é social, não havendo outro fundamento: são signos
contiImidade da~1(i~t~Ilcia do grupo humano. Não têm, por- d, I'('rlínência ao grupo e de concordância com os se1.IS
tanto,' importância maior que a sociológica. Nesse ponto, a 1" "" 'pIOS.
tanto, profundas dimensões inconscientes, e residem no âmago Como poderrairiOs hümens manter esses domínios sepa-
de cada ser. Qualquer procedimento agramatical pode trans- ".1,,'; c a Natureza sob o domínio da Cultura? Lévi-Strauss
tornar violentamente um indivíduo. "Certa vez conheci a i' \) observou que os homens sempre empregaram o fogo,
esposa de um comerciante do Arizona que tinha um prazer I''',' fazerem os seus alimentos passarem de um estado cru
algo diabólico em produzir reações culturais. Servia a seus "Ji li! :11, a um estado cozido cultural, fu;}t;3.o que pode ser
convidados, não raro, deliciosos sanduíches recheados com I ,,,dl<"IH preenchida por outros elementos intermediários, que
uma carne que não parecia nem frango nem atum, mas que dli:11H um "cozimento" simbólico: talheres, copos, pratos
vagamente lembrava as duas. Quando lhe faziam perguntas, li" caso que acabamos de descrever, palavras ... Os homens
não dava resposta alguma, até que cada um tivesse comido a li'" <ia instrumentalmente obrigados a cozer seus alimentos;
,1,\ () fazem por razões puramente expressivas: reafirmar, nos
sua porção. Explicava então que o que tinha comido não era
frango, nem atum, mas a carne branca e suculenta de casca. d,Lllhcs, as particularidades da estrutura social e, no todo, a
"l,remacia da Cultura sobre a Natureza, supremacia esta que
véis recentemente· mortas. A reação era imediata: acesso de
, reações emocionais, profundamente incrustadas no incens-
vômitos, não raros violentos. Um processo biológico é envol-
'II"1I1C, procuram proteger, reagindo aos argumentos "cientí-
vido numa trama cultural" (39;"p.30).Elí ffieslno, quando 11'":;", "racionais" e "lógicos" que advogam a sua mudança,
~-;:;;nçi,-'senti-algo-muitõ parecido ao ler em uma revista uma
I" 'I', estão em causa - nas regras dietéticas - a unidade,
descrição, mais ou menos como a seguinte: "um povo do " 1I1lcgridade e a identidade do sistema social.
hemisfério norte costuma ingerir pela manhã, num estranho
ritual, a secreção de uma glândula de um determinado mamí-
fero, ao qual misturava-se líquido de uma cor terrivelmente A Gramática dos Sexos
negra; figurava, ainda, nessa tétrícacerimônia, uma gosma
que determinados insetos vomitavam, células reprodutoras de ",i111' se hoje que a capacidade de reação erótÍCa está pre-
aves e determinadas pastas gordurosas." Talvez o leitor tenha '."III\." desde o nascimento, num determinado grau, e que esta
percebido tratar-se de uma apetitosa refeição matinal, ao estilo ,,,pacidade passa por um desenvolvimento gradual. Obser-
americano, constituído de leite, café, mel, manteiga, queijos \'t>II-SC que durante o primeiro ano de vidl as crianças sno
e ovos. /',nlitalmente reativas e podem empenhar-se numa espécie de
(,8
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.,," ,n 10 exagero, proclamar "sou mulher" é quase tào natu-
masturbação. Pode-se observar, muitas vezes, crianças de idade 1,01 ••• mo dizer "sou general do Exército dos Estados Unidos".
variável dedicalldo-~;e a brinquedos sexuais e masturbação. Em () papel sexual define também um ideal de comportamento
muitas sociedades as crianças constroem "casas" e brincmn de 'I'" ,ada indivíduo tentará realizar. Margareth Mead (61,
"casamento", muitas vezes participando de coitos simulados. I' I,')) observa que um homem Munduf,umor tratará sua
Toda cultura se preocupa com as manifestações da sexua- ,,," •• 1 lllulher como se ela fosse uma fie meio de diversas,
lidacle, coibindo-as ou estimulando-as. Algumas sociedades I" '''1"'' o ideal para o homem bem realizado, nessa sociedade,
iinpõem a mais estrita monogamia para ambos os sexos, ou 1'''''.Ulf várias mulheres, enquanto um homem Arappesh,
para um deles apenas, enquanto outras admitem que um "'li duas mulheres, tratará cada uma como sc fosse a única.
homem se una sexualmente a várias mulheres, ou vários \ lru'li :;cxo poderá ser privilegiado com um status considerado
homens a uma só mulher. O homossexualismo foi aceito em ••, ••, elevado pelo grupo social: então o seu órgão sexual será
várias sociedades, como no mundo greco-romano e em certas • ,.I "do com orgulho, será invejado, poderá ceder o lugar no
áreas do IsIª, e terminantemente banido em várias outras. ',Ht1HI\ "o
Em diversos períodos da história cristã e entre certos grupos Imlavia, qualquer que seja a forma pela qual as dife-
do Tibete, o celibato foi admirado e desejado. Definir os ,. li!!', sociedades se apropriem da constituição genética da
papéis sexuais do homem e da mulher e a forma de relacio- I" • li humana, cada sociedade ditará normas para o rela-
namento de ambos é um problema muito menos biológico do ... '".IIII"l1tO de homem e mulher e associará a cada um
que se tem comumente pensado. ...•.. .,mplexo de valores e de símbolos: divisão do trabalho,
Além disso, o fato de um indivíduo ser do sexo mas- ,I" ,;10 tio poder, divisão de riqueza, dignidade, etc. É claro
culino ou do sexo feminino não significa apenas que ele possui I'" LIIS símbolos, normas e valores são suceptíveis de variar ';'j
uma determinada conformação anatômica e fisiológica. Signi- . ,,1111I ai mente, não se podendo assumir as postulações de
fica também que ele possui um status social cujos limites, !I. "hllma cultura particular como absolutas e universalmente
direitoS e obrigações estão devidamente convencionados e em "..I••las.
relação aos quais a comunidade mostra determinadas espec- i ,t:vi-Strauss
(54), seguindo um raciocínio que está des-
tativas. Cozinhar ou dirigir empresas, caçar ou costurar, IIIL.do a dirigir por bastante tempo ainda as teorizações dos
cuidar das crianças ou ler jornal, são ilustrações destas espec- ilI'llIpólogos sociais, demonstrou a necessidade lógica de, em
tativas, que cada sociedade define à sua maneira. I", Lts as sociedades, se interditarem as relações consideradas
Em toda sociedade as crianças e os adolescentes se 1111 c;tuosas, ou seja, a aproximação - por relações sexuais
ajustam ou são enquadrados nessas definições de papéis e as •"I por casamento - de parentes socialmente definidos como
vêem como as mais naturais e as mais desejáveis. A própria . ,,,.,,;mgüíneos. Mostrou que a razão da universalidade da
bipartição dos sexos, a que estamos acostumados, não é con- I" "'''11;;-10 do incesto é de ordem lógica e sociológica, repre-
siderada universalmente, existindo sociedades que definem uma ,,"lando uma operação ao mesmo tempo natural e cultural,
terceira posição - a que a tradição ctnológica resolvcu cha- 1.1 quc, embora sendo a interdição universal, o parente especí-
mar berdache-)- quando um homem assume o status e o I"" que se proíbe é culturalmente escolhido e definido: o
papel de mulher, vestindo-se, pensando e se comportando , "lHcito de "consagüinidade" não é universal. Contudo, fugi-
como tal, e simulando ciclos menstruais e gravidez, sem que ,',1I110S ao nosso propósito se nos detivéssemos aqui nas
seja homossexual ou hermafrodita. Tais práticas podem ser IIl1l1Úciasdesta importante demonstração.
constatadas em diversas sociedades - Crow, Dakota, Zuni, Interessa-nos, especificamente, o fato de o tabu das reIa-
Dayak, Chukchee - e os berdaches podem muitas vezes ser '."CS incestuosas figurar como a mais sólida regulamentação
investidos em funções religiosas. Como afirmou alguém, com
71
70
do relacionamento entre os sexos na sociedade humana e Dcuteronômio, capo 22: "Se houver de entre vós, homem
dentre as mais zelosamente guardad(ls. ~e .qualquer profana- 'I'" de noite tenha padecido impureza entre sonhos, sairá
ção. KIackhohn (39, p. 30-31) relata úm:- inCidente ocorrido 1'10.1 lora do arraial, e não voltará, menos que à tarde se
em uma escola pública para Índios americanos em que, inad- i, "li;, lavado em água: e depois do sol posto tomará a ir
vertidamente, uma professora provocou profundo mal-estar, I"L' Il campo." Dessa maneira, no mundo ocidental, o que
em ambos, ao sugerir que um rapaz e uma jovem dançassem , ,hama "amor carnal" foi posto em oposição a um "amor
juntos: tratava-se de integrantes do mesmo clã, o que repre- .I, 11I0"', tendo o primeiro sido rebaixado às "sujidades terre-
sentaria - pelo tipo de proximidade corporal e de sugestão ",",", e O segundo elevado "às sublimes regiões do trans-
que a dança produz, segundo o autor, que se propusesse que , '" knte". Há culturasamda - mais rígidas quanto à vida
a professora e seu irmão fossem para a cama juntos. Nesse , 11;11, mas há também aquelas que consideram - com res-
caso, a indignação virtual da professora e a vergonha que os I, ",' rCS a certas pessoas e a certas situações - o sexo em si
Índios sentiram .representam reações emocionais igualmente ""IIlO natural e uma das boas coisas da vida.
padronizadas pelas respectivas culturas. Não é sem razão que Os conceitos de "decente"; e "indecente"r é claro, são
os palavrões de sugestão incestuosa figuram entre os mais ", !,"mente aprendidos =..::: .. e-não há éUltUra que não tenha o
poderosamente ofensivos em quase todas as línguas. '" ,"'Hceito de decência. Todavia, não é verdadeiro que esteja
Reconhecemos, então, que nenhuma sociedade deixa de 11l; Ire associado primordiahnente com a indumentária e com
restringir de alguma forma o comportamento sexual ele seus ""hertura dos órgãos sexuais. Sabemos que existem inúme~
membros. Entretanto, a atividade do sexo fora do casamento .' .. povos que sustentam a nudez absoluta ou quase absoluta.
não é sempre clandestinamente realizada nem inspiradora de ""I,,:m não se dirige universalmente para as funçõesexcre-
culpa. Muitas religiões ocidentais construíram teorias segundo i.q LI:;, já que muitas sociedades as vêem como ingênuos e
as quais o ato sexual é vergonhoso, indigno e desonroso, I" "" Il especiais. O pudor, para os muçulmanos, como sabeJ
devendo ser realizado na obscuridade da noite, em solidão, a ,,,,,.;, está no rosto, não existindo em relação às pernas e às
portas fechadas e furtivamente, devendo visar apenas à pro- '''~;IS, o que permite com que as mulheres levantem as saias,
criação - mas, mesmo assim, intrinsecamente pecaminoso. A 'Ill qualquer pejo, para se coçarem nas vias públicas; para
relação sexual foi proibida, em diversos momentos da história ,.. chinesas, o pudor está mais nos pés, que são cuidadosa-
americana e européia, nos dias anteriores ao Natal, nos dias ""'lIlc ocultos, enquanto os japoneses não têm tabus contra a
anteriores à Páscoa, antes da comunhão dominical; entre os Illldez, não havendo separação de sexos no banho; algumas
judeus e maometanos, durante uma semana antes e/ou depois ',t'Ifas indus recusam exibir, descobel;tas, as cabeças; em
da menstruação e durante certas fases da lua; alguns códigos lllllllas regiões do Brasil, mulher casada de cabelos soltos seria
limitam as relações~exuais a determinada semana do mês ,,,"siderado "sem vergonhice". O pudor pode estar na barba,
lunar; a palavra "mast1.!rbação'j prende-se etimologicamente 110) parto, no ato ~e_comer, nas palavras, etc.
a manu estupro, impurificar com a mão; os compórtamentos A noção de decência estende-se também ao discurso,
eróticos em p\Íblico são contra-iridicados e qualquer indício I,I. ,ibindo-se determinadas .•..• frªses, palavras ou referências.
de excitação deve ser imediatamente dissimulado; as roupas 1,)(lavia, nem aqui se encontra universalidade. A este prop6-
servem para nos separar dos corpos alheios, mas servem tam- '.110, BoItanski (9, p. 38) observou, nas classes populares fran-
bém para nos separar dos nossos próprios; mesmo em situa- ,,':,;IS, a impossibilidade de se distinguir o discurso educado
ções em que se permite o nudismo (saunas, vestiários coleti- ( 'culto", "elevado" ... ) sobre a sexualidade, do discurso obsce-
vos, etc.), a nudez dos órgãos genitais é disfarçada e encarada 110, por falta de vocabulário específico para esta distinção. Em
com uma artificial naturalidade. lodas, ou na maioria das sociedades, o discurso obsceno, s6
72 73
\,
é considerado ilícito em relação a determinadas pessoas (sogra, I"H!em ser abraçadas e apalpadas, na medida em que o recato 1'1
mãe, etc.) ou em determinadas situações (templo, salas de '111(' comanda as relações entre os sexos, especialmente em 1[11
II1
aula, etc. ) - às vezes, inclusive, de maneira não simétrica, p"hlico, é suspenso" (14, p. 139-40).
já que a outra pessoa pode não ser obrigada a uma conduta A esta altura, parece claro que o que é sexualmente
I1
igual perante a primeira, o que é muito comum, entre nós nas ,";1 ímulante em um sociedade pode exercer o efeito exata-
II11
relações hierarqui::adas. É possível, ainda, acontecer de lIlt'nte contrário em outra. Há, na Africa Central, um ideal de
aquilo que deve ser reprimido e escondido no cotidiano, "';laica feminina que identifica e beleza com a obesidade, 111
por ser considerado indigno e inferior, deva ser rituahnente "'lido a moça, à época de sua puberdade, submetida às mais
/111
liberado, mostradc e dito, em certas ocasiões, como nos diversas técnicas, capazes de fazê-Ia o quanto mais gorda;
festejos carnavalescos, nos trotes estudantis e nas festas de ;"I'.uns povos na Africa do Sul costumam arrancar os incisivos I'11
ciadas com o sexo. Em muitas sociedades ele é considerado qlle saem quando se lava o rosto, ou de beber vinagre para
perigoso, ou a rl~lação sexual perigosa, se executada em Iwaf com a cor pálida que encanta os poetas ...
determinadas circu nstâricias. É comum temer-se que as se- Sociedades inteiras ignoram o orgasmo feminino, e os
creções sexuais se iam utilizadas com fins mágicos contra a I'robriandesesnão reconhecem no orgasmo o clímax da rela-
pessoa de que err anaram; também é freqüente a crença de ',;10 sexual, como o fazemos, considerando-o como apenas
que as relações se" uais com mulheres grávidas ou' menstruadas lima entre um agregado de experiências agradáveis (48, p.
são capazes de ef litOS nocivos: podem provocar impotência, ~1\'; ). Em algumas sociedades de rígida organização militar ou
esterilidade, produ::Ír monstros ou desgraça: generalizada. ,h- grupos de idade, em presídios ou em situações de guerra, i
I,'I
I
IJ
IIli,IIII
II
II
Contudo, é exatamente por causa do tniãii{í,) que em L '
I1I11
, II1'1'
1I1
I
lill'l
~ u;II
lil
li/li
1111
geral se lhe recpn hecem, que as relações sexuais - muitas por muitas sociedades e submetidas inclusive às regulamenta- 1/111
III!
1,11,
I1I
" 1
vezes proibidas eu' nome da separação entre o Sagrado e o ,oes convencionais (proibição do incesto, etc.) que muitas I
1I
I11I11
I!
Profano - são sa ~ralizadas' por certos ritos. As religiões ate- vCI,es impedem que o indivíduo seja considerado como um
\ niense, romana, h'ndu e muitos povos primitivos atribuíram plTvertido ou aberrante e, portanto, não lhe causando trans-
sacralidade ao ato sexual e o incluíram em rituais. O tantrismo I, )fI10S íntimos e não prejudicando sua atividade heterossexual.
indiano ilustra Cor'lO um ato fisiológico pode ser erigido em Sllcicdades há, também, que pura e simplesmente desconhecem
;1 homossexualidade como categoria do pensamento coletivo.
ritual e valorizado como uma espécie de técnica mística: não
se trata mais, aí, de um ato fisiológico, "mas de um rito Cada sociedade tem o que se poderia denominar de sua
místico: os parceir os não são mais seres humanos, mas estão dllogenética: já se pensou que os homens e animais eram
desligados e livre~ como deuses... pelos mesmos atos que !',nados por um barro leitoso produzido no interior da terra;
fazem queimar certos homens no Inferno durante milhões de que o sêmen era a espuma do que havia de melhor no nosso
anos, os iogues ohtêm sua eterna salvação" (26, p. 144-5). :,:lngue, uma parte da matéria constitutiva do cérebro, ou um
Nas ilhas Fidgi,~onhecem-se ritos, no curso dos quais se compósito de tudo o que entra na formação do corpo; a
realizam exatamen~e os atos que mais rigidamente se consi- produção de crianças pode ser atribuída a espíritos, à espuma
-deram como sexudmente proibidos, ligados às interdições de do mar, aos astros, a sonhos, a animais, a plantas e ao acaso.
incesto. Roberto Da MaUa chamou atenção para o fato de Os Pilaga, da América do Sul, crêem que a ejaculação do
r que no carnaval b ;a.slIeiro há uma "suspensão de normas que homem projeta um homúnculo completo no interior da mulher
e que aí ele se desenvolve até estar suficientemente grande
l_comandam as relal:ões entre os sexos" e "que ... as mulheres
74 75
para sair (7, p. 150). Os Arapesh não imaginam que o tra- forma, a posição que os europeus e americanos p~nsam ser
balho da paternidade fisiológica se resuma ao ato inicial e hiologicamente normal para as relações sexuais, não é obser-
que o pai possa ir embora e voltar nove meses depois, consi- ,ada em várias outras partes do mundo e talvez r;iio tenha
derando tal forma de paternidade impossível e repulsiva, pois ',illo usada muito freqüentemente na Grécia e em Roma anti-
a atividade sexual é considerada 'importante para a alimen- )'as: nesse ponto, as possibilidades são muito mais numerosas
tação e formação da criança durante as primeiras semanas no que a nossa capacidade de imaginação.
ventre matemo: a criança é produto da contribuição idêntica Lévi-Strauss observou que "todas as sociedades conce-
do sêmen e do sangue (61, p. 55-6). h:"r11 uma analogia entre as relações sexuais e a alimentação;
O caso dos !robriandinos foi bastante polemizado nos mas, conforme os casos e os níveis de pensamento, ora o
círculos antropológicos. Leach estranhamente sustenta, em homem, ora a mulher, ocupa a posição do que come edo
cada um desses trabalhos (43, 44), posições absolutamente que é comido" (55, p. 156), a analogia que se manifesta em
antitéticas acerca das teorias genéticas desses indígenas, um grande número de língua, ao nível do vocabulário, em
admitíndo uma de suas posições, que eles desconhecem a que se aplicam palavras idênticas para designar os atos de
paternidade fisiológica e atribuem o papel da produção de (,(lmer e de manter relações sexuais; "em Yoruba 'comer' e II
crianças a um espírito que penetra no ventre de uma mulher 'casar' se dizem por um único verbo, que tem o sentido I1
e aí se transforma em criança, ficando os homens completa- ,-cral de 'ganhar', 'adquirir'; uso simétrico ao francês, que I
mente excluídos do processo (crença, aliás, que não parece aplica o verbo consommer ao casamento e à refeição. Na 11I
11111
II
li
muito distante do que desejam alguns mitos cristãos). Para os língua dos Koko Yao da península do cabo York, a palavra II1
L3cker, são os horlens que depositam uma "semente" no ven- Katakuta tem o duplo sentido de incesto e canibalismo, que 1I
tre de uma mulhe", semente esta que deve germinar, crescer ',,10 formas hiperbólicas de união sexual e de consumição ali-
e se transformar em criança: para eles, supor que entre a mu- mentar: pelo mesmo motivo, a consumição do totem e o 1I1
il
1'. 130); "os Tupari d;:st<~namo coito por locuções cuio sentido
ções sexuais com lima mulher, e, para outras, as crianças são
próprio é 'comer a vagina' (Küma Ka), 'comer o p~nis' (Ang I1
cutam no mato, de forma "atlética" e "violenta", muito mais c o Solo ensinou ... plantar milho ... e outras plantas comes-
II
satisfatórias que as que realizam cautelosa e silenciosamente tf"eis. Então o homem perguntou a seu pênis: 'E tu, que
nos cestos em qu:: dormem, e mais aÍldentes ainda aquelas queres comer?' O pênis, respondeu: 'o sexo feminino'" (53,
I1
1.1,
p. 266). O tema daivagi1liidéllt~ti? que encontramos na mito- II
colheita de jnhame (61, p. 213): Muitas tribos da Nova logia de diversas regiões ao mundo, parece confirmar a hipó-
1I1
Guiné consideram suas hortas lugares quase tão íntimos como tese; aparece em muitas fórmulas populares, no Brasil,
I
76 77
I!
ii] !
~
~,
li! I
status: em muitas sociedades, os~~ófitos)ecebem novoS nomes,
à "natureza humana", quer culturalizando a Natureza e pen- nu são conduzidos no colo ou pelas mãos, como se fossem
sando que o homem é um ser aprimorado, "racional", "lógico", bebês; outras vezes, aprendem a falar uma língua nova ou
Ilfeito à imagem e semelhança de Deus", pela ação dá Civili- choram como recém-nascidos. Em diversas ocasiões, espera-se
zação - ou realizando simultaneamente as duas operações - dos indivíduos que mudam de posição, que sejam capazes de
as sociedades convencionaram práticas e incutiram crenças que tolerar torturas e castigos que se julgam como situados além
t~m muito menos do que comumente se imagina a ver com o das resistências da catr goria ant~riof: exposição ao frio,
corpo e com o sexo propriamente ditos. picadas de insetos, surras, abandono, jejum ...
Tais ritos tratam de resguardar a sociedade do perigo
Não há dúvidas de que existem fenômenos biológicos que representado pelos indivíduos que nesses estados intersticiais
coincidem com o que chamamos de "puberdade" ou "adoles- se encontram: são, por isso, rebaixados, humilhados, reduzi-
cência". Todavia, umas culturas os ignoram, enquanto outras dos a matérias amorfas capazes de adquirir as formas que a
prescrevem atitude de indiferença' diante _dos mesmos. Para sociedade lhes quiser impingir, ou então, torturados, espan-
certas, a puberdade é importante em relação apenas a um cados, castigados, como punição pela mancha de que são
dos sexos. Em algumas culturas, a primeira menstruação é portadores.
objeto de festividades públicas, ao passo que, para outras, é Entre nós, a adolescência corresponde a uma dessas
um acontecimento íntimo e vergonhoso. Acontece o mesmo, categorias. Representa uma categoria cujo conteúdo é ele mes-
com respeito ao rapaz, em relação à primeira emissão de mo visto como ambíguo, já que o adolescente é aquele que
esperma, em boa parcela das sociedades conhecidas. já não é criança, mas- ainda não é adulto: É claro que muitas
Para as culturas, tudo o que evolui, tudo o que muda, dificuldades que costumamos associar aos adolescentes têm
deve~sêr previsto e enquadrado em categorias, de forma que sua origem exatamente no fato de o seu papel não ser defi-
qualquer mudança seja uma passagem de uma categoria a nido com clareza: ora deve se comportar como adulto, ora
outra. Entre nós, por exemplo, um indivíduo pertence à cate- como criança. E procuramos racionalizar esta atitude de
goria dos que estão sendo esperados mas ainda não nasceram, ambigüidade, recorrendo a argumentos de ordem anatõmica e
passam para a categoria dos homens vivos, são batizados e fisiológica: os problemas dos jovens decorreriam, então, das
incorporados à categoria dos seres sociais (status, religião, mudanças biológicas que têm lugar em seu organismo.
nome etc.), passam a "rapaz solteiro", casam... e, final- Acontece, em primeiro lugar, que a puberdade física é
mente, deixam o mundo dos vivos para ingressar no reino extremamente difícil de ser fixada cronologicamente e os seus
dos mortos. Assim como a sincronill, a diacronia está sob sintomas parecem variar com os diferentes costumes, hábitos
controle .e tudo nela tem o seu lugar. \ alimentares, condições climáticas, profissões, hereditariedade
Contudo, os limites que separariilí'ma categoria da outra, __ entre outros fatores - tanto para os indivíduos do sexo
por não pertencerem completamente nem a uma nem a outra feminino, como para os membros do sexo masculino: apare-
categoria, tendem a desafiar o sistema de classificação e a cimento de barba, secreção de múcus, emissão de esperma,
ameaçá-Io de crise: daí toda sociedade estabelecer procedi- crescimento, aparecimento de regras, crescimento dos seios e
mentos rituais específicos, que são operações destinadas a da bacia _ não podem ser datados consensualmente. Em
exercer um certo grau de controle sobre estes momentos tran- segundo lugar, o que se espera, em cada cultura, dos indiví-
sitórios e intersticiais. duos, durante as diferentes fases de sua vida, não são, absolu-
Circuncisões, subincisões, mutilações, tatuagem, bênçãos, tamente, as mesmas coisas, atividades ou responsabilidade:
são artifícios freqüentemente usados para assinalar a morte entre nós, por exemplo, a idade em que se permite aos jovens
em relação a um estado anterior e o nascimento para um novo
81
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1'1\
No que diz respeito ao sangue menstrual, muitas vezes
o casamento não coincide com a sua puberdade fisiológica, ao
foi associado a "maldição", determinando sentimentos de
passo que em outras culturas a puberdade se celebra com o
vergonha ou culpa. Associa-se freqüentemente à crença de que
casamento e em algumas o casamento antecede a puberdade.
a comida poderia se estragar ou apodrecer se uma mulher
Portanto, osfél~~_fisl()ló&cos da adolescência sãojnter- menstruada a tocasse, à proibição de praticar ato sexual, a
pretados cuItiü:aTmente, e a cada interpretação coúesponderá, exercícios físicos, a banhos de mar, a lavar a cabeça, a pisar
no espíriLÜ dos indivíduos, uma atitude particular em relação em escamas de peixe, a andar descalço, a comer alimentos
a esta fase da vida orgânica e aos fenômenos biológicos e ácidos, a tomar banho frio, a comer peixe, a tocar em flores,
sociais a ela associados; os dados etnográficos deixam supor, a tomar gelado, a comer ovo, a comer galinha choca. Em
por excLlplo, que são muito reduzidas as possibilidades de muitas sociedades, a mulher menstruada é segregada em
as tral1siurmaçõcs biológicas que operam ao nível do organismo
lugares especiais, e obrigada a se alimentar apenas de âlimentos
serem responsáveis pelas perturbações nervosas e comporta- crus.
mentaiscoIl1qlle~omumente tentamos definir a adolescência. Em certas sociedades, a primeira menstruação é objeto
A \PlllJerdade .. cultural,) portanto, não coincide com a de importantes cerimônias, e, em outras, um acontecimento
puberdaoe .fi~ioi6gicâ;'~e' sJo, pelo contrário, coisas essencial- íntimo que deve ser escondido. A mulher menstruada é -muitas
mentê ..dJerentes,já· que um organismo evolui enquanto as vezes considerada doente e fora de seus juízos normais -
sociedaJt:s classificam. As cerimônias, comportamentos, cren- irritadiça, nervosa, mal-humorada e tendo suas faltas justifi-
ças e emoções ligadas a puberdade, na nossa sociedade como cadas no trabalho. Outras vezes, está formalmente proibida de
em outras, antes de resultarem de determinações do apareluo Irabalhar, proibição que pode também estender-se a seu
natural, l-clebram um fato cultural. marido, e é comum, entre muitos povos, a· mulher definir a I
84
1 afastada desses poderes e inferior no escalol1amento da dig-
85
1
nidade religiosa. Todavia, todas devem assumir lm relação à '",nais. de um sangue '"mau", que brota do corpo em desafio
mulher uma atitude capaz de dar conta de suas características .1 vontade humana, que comove e amedronta. Por detrás da
biologicas, mesmo que esta atitude seja o desinteresse e a des- dí"linção entre sangue "bom" e sangue. "mau", a distinção
preocupação em relação a estas funções. Fundamentalmente, nJlre Natureza e Cultura, já que o primeiro é culturalmente
a mulher, mais que o homem, tem a potencialidade de funcio- produzido, enquanto o segundo emerge de forças naturais.
'.nar simbolicamente como peI1turbador dos sistemas sociais de Cada cultura tem a sua maneira de resolver o problema
classificação, uma vez que é um ser da Cultura, ostensivamente ,LI dualidade da natureza feminina: algumas exaltam a mulher
submetido a processos naturais que escapam aos esforços que "cssa fase; outras, as proscrevem, enquanto outras ainda es-
o aparelho cultural dispende para controlá-Ios. Nesses períodos, ,olhem uma alternativa intermediária de exaltá-Ias em um nível
a própria mulher coloca-se fora da Cultura e se aproxima da c castigá-Ias em outro. Parece que as culturas de tradição oci-
Natureza (o que se vê nas inúmeras práticas de fazer com que ,knta! escolheram a terceira possibilídade:· exaltar, no plano
a mulher se retire da aldeia, coma alimentos crus. .. etc.). Ideológico, a maternidade como o acontecimento "mais subli",,--.
Nessas oportunidades, seu estado fisiológico e seu estado 1111:" e submetcr, no plano psíquico, a mulher, à tortura de
social são incompatíveis. Às culturas se abrem, para solucionar 'lljiJos, desejos, etc. Já que ·cm muitas culturas o enjôo matinal
o problema, três alternativas básicas: banir a mulher, esconder ilO período da gravidez é desconhecido, resta-nos supor ser
a menstruação, ou desconhecê-Ia, tratando a mulher nessa fase 11111<1 manifestação cultural típica de uma sociedade particular.
como o faz normalmente., Todavia, as três alternativas repre- I' enjôo da gravidez, assim como os distúrbios psicossomáticos
sentam a mesma atilude fundamental, que é o reconhecimento, 'inc associamos a ela e ao estado puerperal (que inclusive pode
por ação ou omissão, desses processos como sendo, em última mwionar como atenuante de penas), pode muito bem ser re-
instância, rebeldes ao controle social e passíveis de serem su- .Idlante dessa conjugação agramatical a que é obrigada a mu-
primidos apenas ao nível da consciência.
lher a se submeter: ser um ser da Cultura, tê-Ia como o má-
A mesma dualidade fundamental aplica-se ao recém-nasci-
'limo valor. e estar escravizada à ação de inarredáveis processos
do, que também está simultaneamente na Natureza e na Cul-
da Natureza.
tura (apenas que a dualidade para a criança se dá na diacronia,
enquanto que para as mulheres se dá na sincronia). Diante
dessa conjunção lógica, não é por acaso que as mulheres são
Feiticeiros, Médicos e Semiólogos
quase universalmente consideradas como indicadas e adequadas
para as tarefas da primeira educação: estando mais próximas
da Natureza que o homem (em virtude de estar mais sujeita Supomos freqüentemente que se uma criança, ou mesmo um
adulto se alimenta diferentemente do que prescrevem as normas
a seus processos), a mulher é o personagem estruturalmente
articulado para a realização, como mediadora, da transição ',(Il'iais, ou se esqui\'a de qualquer outro cuidado corporal
da criança do reino da Natureza para o domínio da Cultura. '1"(' pensamos necessário, isto destruirá sua saúde. Mas, em
Aos homens, estariam reservados os nÍ\·eis mais elevados c muit as sociedades, as crianças recebem alimentos toda vez
sofisticados da tarefa socializadora. que choram. sem que isto lhes traga qualquer prejuízo à saúde.
O sangue é signo da possibilidade de violência, se não se Fnsinamos a nosSOS filhos que os horár~os de comer e de
tomam as precauções devidas. Não é por acaso que muitas dormir, que os hábitos de tomar banho diariamente e de es-
sociedades distinguem o sangue voluntariamente derramado, o covar os dentes após as refeições, ou de lavar as mãos quando
sangue controlado, a que atribuem propriedades vivificantes e se chega da rua, são de fundamental importância para a exis-
benéficas, um sangue "bom", que serve para selar alianças l('neia de uma estrutura biolôgÍl:a saudúvel. Entretanto, muitos
g7
86
,I II
povos atingem graus de saúde comparáveis ou superiores a()s ,kixar as janelas abertas para respirar ar fresco, achando que
nossos através de convenções completamente diferentes. 1:;10 põe em perigo as suas saúdes e as dos seus bebês (28,
É certo que os índices de longevidade variam com as so- p. 219-20). No Japão, a proporção de loucos reconhecidos
ciedades, mas isto não significa que a sociedade ocidental seja nJllIO tais é basicamente a mesma registrada nos Estados Uni-
a que melhores resultados tenha obtido neste terreno. Dentro ,Ios, mas a tolerância é maior e a taxa de internação em hos- '111
dela mesmo, sabemos que a estimativa média de duração da pitais psiquiátricos é muito menor; e se podem constatar va- I
vida varia com enormes discrepâncias entre os indivíduos das I íações nos índices de internamento em diferentes períodos da
classes superiores e das classes populares. Da mes~a forma, Ilistória de uma sociedade (29, p. 90). A mais simples obser-
as doenças' incidem diferentemente sobre os diversos estratos v;u,:aoem torno de nós não deixará dúvidas de que a atitude dos
da população, e existem doenças típicas de determinadas classes familiares de um doente, em relação a ele, difere da dos demais,
e de determinadas sociedades. d~ maneira notável.
Cada sociedade determina, de certa maneira, quanto tem- Sabemos que as culturas valorizaram e tornaram social-
po os indivíduos viverão e de que forma normalmente deverão llI~nte necessários alguns tipos humanos que elas plióprias con-
morrer. As próprias categorias de morte legítima e de causas .;ideravam doentes, mas em que viam, por isso mesmo, um
de morte são entidades construídas culturalmente, e algumas :;igno de especialidade e de importância: corcundas, cegos,
sociedades não acreditam em "morte natural", devendo cada ('piléticos, mudos, etc. Os Xamãs da Sibéria costumam, ao
uma ser atribuída a uma vingança, ou atos de feitiçaria. Não m~nos em certas fases, ser loucos, irresponsáveis, esqueléticos,
obstante, é possível que todas as culturas reconheçam como ;ujeitos a ataques de catalepsia, e visionários (4, p. 176) - e
patológicas algumas mesmas manifestações - o que nos ajuda IWIl1 por isso deixam de ser objetos de honrarias e respeito.
a compreender que, quando divergem, fazem-no por imposição r( 'omo estes atributos variam culturalmente, podemos facilmente
de particularidades de suas estruturas sociais. <,oncluir que o que lhes concede virtudes mágicas não são pro-
Assim como as doenças, a medicina varia através do tem- priamente as suas peculiaridades físicas, mas a atitude da
po e do espaço. Se a nossa medicina nos parece ter atingido coletividade diante delas, assim como aqueles que são consi-
um suce~so que consideramos largamente satisfatório, isto não derados doentes o são por não receberem apoio das institui-
pode, contudo, nos impedir de constatar que outros sistemas çôes sociais para as suas características individuais: são doen-
r médicos possam ter atingido resultados comparáveis, mesmo tes não porque o sejam, mas porque assim são considerados.
porque, a rigor, toda medicina parece amparada pela natureza "Doença" e "doente", portanto, são categorias sociais e u
mesma da doença, já que o destino da maio.ria delas é o de \: de se esperar que cada cultura lhes dê explicações próprias.
serem superadas pela própria reação do organismo: morremos Os indígenas· do sudoeste da América do Nórte compreendem
apenas uma vez e, em geral, de apenas uma doença; as outras, as doenças como resultados de uma perturbação da ordem de
são curadas - pelo organismo, ou pela medicina? relacionamento dos homens com os animais e vegetais: revol-
Não somente variam as doenças e as medicinas, como 1 atlas contra os homens, os animais os atacaram com doenças,
também variam as atitudes dos pacientes e da comunidade em ~nquanto os vegetais aos homens se aliaram, dando-Ihes os
rélação a elas: Enquanto os americanos pensam que estão mal remédios; para eles, cada espécie de doença se deve a um
quando estão doentes, os Navaho acham que foram enfeitiça- lInimal particular e requer um tratamento com uma planta
dos ou que transgrediram algum tabu (33, p. 58); em Quito, específica _ o mesmo acontecendo entre os Pima, do Ari-
Equador, é comum às mulheres criticarem os hospitais, por wna (55, p. 193). Para os Nuer, doenças se devem aqlleb!as
lhes obrigarem a determinadas práticas que consideram pre- de normas sociais, cada uma associada a uma doença: o in-
judiciais, como limpar as unhas, tomar banha diHrial1~:::nte, cesto produz doenças de pele, o adultério provoca dores na
88 89
illl
90 91
\
significados simbólicos que expressam estas intenções. uma linguagem, o que faz dela um fato eminentemente social,
I
II
A partir dessa estrutura conceptual, o "doutor" está mu- IMiável com as diferentes taxionomias das sociedades e das II
94 95
J\.s culturas determinam as posições que devemos adotar o social se faz presente nas menores ações humanas. Em
I
para dormir, ficar de pé, sentar e descansar. Da mesma forma, l ;Ida caso, para cada cultura, essas práticas, na aparência in-
dita as maneiras de utilizar ferramentas e de movimentar o 'ognificantes (a ponto de muitos cientistas sociais delas não
corpo durante o trabalho - direta ou indiretamente, pois, as I, 1I1larcm conhecimento), traduzem mensagens, normalmente
dimensões do cabo de uma enxada podem determinar toda lIll"onscientes - sobre o que é certo e o que é errado, o que
uma disposição do aparelho ósseo e muscular. Quando pensa- I próprio dos homens e o que é "coisa de hichos", o que é I
mos que o deitar-se para dormir é algo universal, estamos I)',nal ao "nós" e o que dele difere, o que é respeitoso e o que
bastante afastados da verdade. As crianças pequenas dormem ,o profanação, o que é nobre e o que é indigno -- e cujos
nos braços da mãe em algumas culturas, penduradas nas costas dcitos conotativos vão muito além do quc se poderia esperar
dela em outras e em berços em outras; há pessoas que dor- do seu fraco poder denotativo.
mem em trouxas, em redes, em bancos e em cadeiras. Há Todavia, não' é apenas involuntária e conotativamentc
povos que dormem agachados, como alguns bosquímanos, e 'lHe o corpo cumpre sua função signifieacional: o repeltório
óutros que dormem em pé, acreditando muitas vezes que deit,ªI ,k gestos cujos conteúdos são manifestadamente denotativos,
é assumir a posição dos mortos. No Japão, diz Ruth Benédict Jamais teria fim em um inquérito etnográfico geral. Os ociden-
(5, p. 225), "o pudor na posição da mulher dormindo é tão Iais afirmam com um aceno vertical da cabeça, os turcos sa-
forte quanto o de andar nos Estados Unidos ... a menina tem ,odem a cabeça, os abissínios atiram suas cab~ças para trás
de aprender a dormir estendida, de pernas juntas, embora " levantam simultaneamente as sobrancelhas, os Dayaks levan-
o menino tenha maior liberdade". Há povos que dormem mais o supercílio, e os neozelandezes elevam a cabeça e o queixo.
I :lIH
e povos que dormem pouco, povos que dormem prepondera- ) mesmo gesto, muitas vezes, indica coisas diferentes; e coisas
damente de dia e povos que dormem de noite. Da mesma for- Rdênticas são, muitas vezes,' como a afirmação,' referidas por
ma, variam as posições consideradas adequadas para descançar. gestos diferentes.
No Brasil mesmo, enquanto em algumas regiões o descançar
A utilização" do corpo como sistel118 de ,expressão não tem
'é sentar-se em cadeiras, em outras é agachar-se sobre as pontas limitesc A palavra corm;ãoáparece na Bíblia niais de mil vezes,
dos pés, erguendo os calcanhares, e, em outras, permanecer mas raramente com o seu sentido fisiológico. Para alguns, o
em pé sobre uma só perna, encostando a sola de um pé no coração representa a sede da vida intelectual; para outros, da
lado do joelho da perna de apoio. ,~ todas essas posturas vida emotiva. A raiva, o ódio e a cólera já foram atribuídos
devem ser aprendidas, da mesma fonita que nós, ocidentais, ao fígado; a inveja já esteve associada ao baçó. Quem não
aprendemos a não cair da cama.
tem entranhas é perverso ou mau. As pessoas ficam com "nó
Há regras especiais para tossir, para espirrar, para cuspir, na garganta", "perdem a fala", precisam "ter estômago" para
para o asseio corporal, para a estética corporal, para a prática ,'uportar alguma coisa, FaJamos em "amigo do peito", em pes-
de esportes, para o lazer corporal, para a infância, para a ,uas dc "coração moI c", em pessoas de "fibra", em "sangue
adolescência, para a velhice, para a dança, etc. Tais práticas, quentc", em "ter garra", em lutar "com unhas e dentes", em
a que Mauss (60) denominou "técnicas do corpo", oferecem pessoas de "pé frio" ou que alguém é "dedo duro", Ajudar
ao cientista social um campo de trabalhoáinclà.Hliâà explorado, ~ "dar a mão", pessoas bobas são "babacas", corajosas são
cuja capacidade de produção de conhecimento é similar aos "peitudas", Fugir é "dar no pé", ser teimoso é ser "cabeçudo",
sistemas de parentesco, aos sistemas políticos e às religiões _ invejar é ter "olho grande". Um bom professor "mastiga. a
porque em cada uma delas está presente uma confluência de matéria", enquanto um mau professor "vomita a matéria'\" Coi-
forças sociais, em relação às quais a base física do corpo não sas caras custam "o olho da cara"; persuadir é "salivar';. Ser
é senão a matéria sobre que se aplicam. indiscreto é "bater com a língua nos dentes", dormir é "tirar
96 97
uma pestana" Tais expressões são exemplos de um repertório ",Iamática de vital importância para o convívio social: não basta
vocabular que dificilmente poderia ser concluído. ',abermos bem a língua pátria, é preciso que saibamos a dicção
I ()ueta e a altura apropriada.
A saliva, durante m\lito tempo, foi usada nas cerimônias
do batismo, quando o sacerdote molhava os dedos com ela e Explícita ou implicitamente, no comportamento corporal
tocava o nariz e os ouvidos dos batizandos. Em muitas socie- h<Í muita expressão: botões, alavancas, pedais, manivelas, cé-
lulas foto-elétricas, expressam silenciosamente uma sociedade.
dades, o proprietário de um objeto, a fim de torná-Io tabu para
(-alo dos meus pára-brisas, dos meus pneus, dos meus vidros, do
as outras pessoas, costumam cuspir no mesmo - prática que
fIIl u volante: legitimo no meu próprio corpo um sistema político.
presenciei muitas vezes em um internato para adolescentes, por
parte daqueles que queriam garantir para si o melhor quinhão Penso geralmente que meus gestos e posturas são universais e
da comida. naturais (tanto que "falo" por gestos quando não conheço o
Idioma de meu interlocutor): legitimo a cultura no meu pró-
Observar os gestos da cabeça, das mãos, dos braços, do
corpo inteiro, enfim - seria um interessante trabalho socio- prIO corpo.
Na realidade, quando nos comunicamos socialmente situa-
lógico: as maneiras de chamar alguém, de cumprimentar, de
mo-nos simultaneamente em diferentes planos, nem todos igual-
indicar objetos, de mandar alguém embora, de ofender, de in-
Illcntê conscientes. Recebemos signos verbais e não-verbais,
dicar intimidade, de expressar desconfiança, de expressar ami-
zade, de exprimir aborrecimento e raiva. .E: claro que cada i;Icteis, visíveis e audíveis: contatos corporais de diferente~ tipos,
cultura o fará segundo o seu próprio estilo: os Maori usam posturas, aromas, aparência física, expressões faciais, movi-
mentos das diferentes partes do corpo, posição das mãos, di-
como expressão de amizade o dobrar o indicador e colocar
a saliência da segunda junta na ponta do nariz; a mãe cqinesa reção do olhar, tom emocional, altura da voz, timbre - enfim,
empurra para a frente e para trás a cabeça do filho, querendo um complexo de informações que tendemos a considerar na-
com isto dizer que está zangada; em certas tribos da África, mrais, mas que estão altamente codificadas e que variam de
apontar com o dedo um objeto é amaldiçoá-Io; beijar a mão "ociedade para sociedade: uma linguagem, tão coletiva como
em algumas sociedades é obediência para alguns e não para qualquer outra.
outros; apertá-Ia por muito tempo pode ser pacto de amizade
para nós, e provocação para outros; pôr a mão na boca é
pedir segredo para algumas culturas, e outra coisa para outras;
o trabalho mais importante, nesse terreno, ainda é, cer- II
colocar a mão nos bolsos da calça não é de bom tom, e as pes- tamente, La p,ééminence de Ia main droite, de Robert Hertz II
soas nervosas "não sabem onde por as mãos". Há toda uma (36), a quem devemos a maior parte das observações que se-
simbologia envolvendo os pés, as mãos, o bocejo, o sopro, o ,'ucrn. Hertz começou por se interessar por um novo método
sono, O sonho, os cabelos, as barbas, a calvície, os beijos. Em pcdagógico que desenvolvia as habilidades de ambas as mãos
c terminou por demonstrar que a predominância de uma das
muitas sociedades, o beijo é substituído por atrito de narizes,
mãos é um aconteCimento sobre o qual a atuação da sociedade
toque de nariz nas faces, atrito das faces, beija-mão apenas,
não é das menos importantes.
ou é permitido somente entre certas pessoas e em determinadas
situações. Comecemos pela consideração dos valores atribuídos à
direita e à esquerda: à primeira, retidão intelectual, bom senso,
Entre nós, uma pessoa que não saiba se portar, sentar,
h:lm caráter, integridade moral, norma jurídica; à segunda, as
quando e onde tocar o seu interlocutor, é uma pessoa "sem
modos" e tendemos a discriminá-Ia. É claro que o desconheCi- idéias contrárias: caráter mau, erro, esquisitice, etc. Empre-
mento dos limites do seu corpo, e das condições de controle }!amos freqüentementc expressões como "entrar com o pé di-
a que ele deve ser submetido, é o desconhecimento de uma rcito", "acordar com o pé esquerdo", falando de nossa boa
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ou má sorte. Cumprimentar pessoas, ou receber presentes, com nesse hemisfério está também a sede da capacidade de lin-
a mão esquerda não é de boa educação. Não devemos levar guagem articulada e dos centros que presidem os m0vimentos
o alimento à boca com a mão esquerda, mas devemos pegar voluntários do corpo. Aceita, então, inicialmente, o pensamento
com ela os feitiços das esquinas, pois assim obtemos proteção. de Broca de que "somos destros da mão, porque somos ca-
Na língua portuguesa, "sinistra" é o sinônimo de "mão es- nhotos do cérebro". Mas questiona em seguida: não há dúvida
querda", ao passo que consideramos a mão direita a nossa de que existe uma correlação regular entre a predominância
mão melhor. Os Y oruba, usam a mão esquerda apenas para da mão direita e o desenvolvimento superior do cérebro es-
manipular alguma coisa suja, porque a mão direita é usada querdo. Mas, destes dois fenômenos, qual é a causa, e qual é
para comer e as pessoas imaginam que correriam o risco de o efeito? O que é que nos proíbe de retomar à proposição de
serem contaminadas, ou de contaminar a comida, se este pro- Broca e dizer "nós somos canhotos do cérebro porque somos
cedimento não fosse observado. Na Turquia e em outros países, destros da mão? (36, p. 85). "Assim, não é necessário negar
a mão esquerda foi associada à limpeza corporal, pois era con- a existência de tendência orgânica para a assimetria; mas, ex-
siderada impura em relação à mão direita. Há notícias de ceto alguns casos excepcionais, a vaga disposição para a di-
uma firma americana que procurou introduzir determinado pro- reita, que parece difundida na espécie humana, não bastaria
duto alimentício na índia e obteve pouco sucesso, porque havia para determinar a preponderância absoluta da mão _direita, se
no cartaz de propaganda uma pessoa que segurava o produto influências estranhas ao organismo não a viessem fixar e refor-
com a mão esquerda: os indianos não tocam os alimentos çar" (36, p. 86).
senuo com a mão direita. Os Árabes também utilizam uma mão Hertz (36, p. 87) observou que alguns povos tinham o
para comer e outra para realizar suas abluções. A oposição entre hábito de amarrar o braço esquerdo de suas crianças, para que
direita e esquerda é freqüel)temente associada respectivamente dele não se pudessem servir; que, quando especialmente trei-
com a fortuna e com o infortúnio, o macho e a fêmea, o forte nada, a mão esquerda era de rendimento similar à destra,
e o fraco, e o seu significado cultural é tão forte que a palavra como no piano, em cirurgia, em datilografia, etc; quando um
"educação" pode ter como sinônimo a palavra "adestramento". acidente priva uma pessoa da mão direita, a esquerda aprende
Segundo a opinião corrente, a predominância da mão di- a substituí-Ia adequadamente, adquirindo a habilidade, a força
reita deveria resultar diretamente da estrutura do organismo e e a rapidez que lhe faltavam; portanto, nada impede que a
nada deveria ter a ver com as convenções e crenças sociais. mão esquerda seja "adestrada".
Entretanto, até aproximadamente a idade de oito meses, a Diante disso, concluiu que a mão direita é obrigatória,
criança é ambidestra, servindo-se, para pegar um objeto, in- .imposta pela coerção, garantida pela sanção. Ao contrário, uma
diferentemente de qualquer das mãos, e, em geral, de ambas verdadeira interdição pesa sobre a mão esquerda e a paralisa.
ao mesmo tempo. Alguns atribuem a predominância da mão A diferença existente entre os valores e funções dos dois lados
direita a particularidades da acuidade visual, outros à influência do nosso corpo apresenta as características de uma verdadeira
da posição pré-natal da criança dentro do útero, à assimetria instituição social, e o estudo do fenômeno pertence ao campo
anatômica do corpo, a diferenças de estrutura do sistema ner- da Sociologia (36, p. 88).
voso, a diferenças das maneiras de a criança ser segurada no Para ele, a mutilação que sofre a mão esquerda, sob a
colo por sua mãe.
ação das sociedades humanas, exprime, como outras mutilações,
Hertz admite que, de todas as explicações, uma só parece a vontade que anima o homem de fazer prevalecer o Sagrado
resistir à prova dos fatos: a que liga a predominância da m30 sobre o Profano, de fazer predominar os desejos e interesses
direita ao maior desenvolvimento, no homem, do hemisfério ja coletividade sobre os desejos e interesses dos indivíduos, e
cerebral esquerdo, que governa os músculos do lado direito, de espiritualizar o corpo, inscrevendo nele as oposições de va-
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101
/111
lores e os contrastes violentos do mundo moral (36, p. 107-8). considerar as maneiras pelas quais os homens aprenderam a
Como o corpo humano, este microcosmos, escaparia à lei da interpretar suas experiências.
polaridade que rege todas as coisas? A sociedade, o universo 11 fácil descobrir as conotações culturais dos sentidos:
inteiro, tem um lado sagrado, nobre, precioso e um outro um provador de vinho, um controlador de qualidade de pro-
profano e comum, um lado masculino, forte, ativo e um outro dutos, um afinador de pianos -capazes de perceber, porque
feminino, fraco e passivo, ou, simplesmente, um lado direito e para isto foram treinados, as menores diferenças do gosto, as-
um lado esquerdo (36, p. 92-3). Se o lado direito se associa pecto visual e som. As pessoas que moram perto de fábricas
ao Fasto, ao esquerdo não resta senão o Nefasto, o domínio de cigarros, de papel, de farinha de osso, de matadouros, etc.
em que a mão esquerda reina. A mão esquerda seria, então, acabam por conviver normalmente com cheiros que, a outros,
o signo de uma natureza contrária à ordem, de uma disposição agrediriam a sensibilidade. Um vendedor de perfume é capaz
perversa e demoníaca. Eis porque a educação se aplica a pa- de identificar diversas marcas por sutis diferença do aroma.
ralisar a mão esquerda, enquanto desenvolve a direita (36, Muitos povos não distinguem entre algumas cores (por
p.l01-2). exemplo o verde do azul, entre os Navaho e os Guarani), por-
Encontramos aqui, então, as principais oposições que con- que, fundamentalmente, suas culturas tornam essas diferenças
figuram a constituição do sistema social ao nível do pensamen- desnecessárias - da mesma forma por que os americanos
to: Sagrado/Profano, Puro/Impuro, Natureza/Cultura, Confor- acham necessário estabelecer uma série de distinções dentro
mista/Desviante, Consciente/Inconsciente. .. oposições univer- do que nós, brasileiros, chamaríamos de "cor de rosa". Há
sais na definição do problema Direita/Esquerda. Todavia, não casos, na literatura etnográfica, de os membros de algumas
podemos acreditar, como nos parece ter queriào Hertz, na uni- sociedades perceberem diferentemente do ocidental a mesma
versalidade semântica e na invariabilidade dos valores respec- forma: pedidos para desenhar, por exemplo, a planta de sua
tivamente associados com a Direita e com a Esquerda. Em aldeia, que o etnólogo havia percebido, suponhamos, como
outros termos, podemos acreditar na universalidade da gra- duas fileiras paralelas de cabanas, desenham uma forma cir-
mática que constitui um espaço dividido em direita e esquerda cular - caso evidente em que a cono.,epção se sobrepõe e
inibe a percepção.
a partir da constituição orgânica, mas não podemos aceitar a
Todas as sociedades se aproveitam dos sentidos para co-
universalidade do vocabulário desse espaço: "0 homem Kaguru.
dificar o mu-:do, não se pode negar. Entretanto, toda sociedade
para os gestos do amor, emprega a mão esquerda, a mulher
codifica esses próprios sentidos. Para nós, por exemplo, os
Kaguru a mão direita, isto é, as mãos que são respectivamente
órgãos sensoriais estão para o pecado assim como o espírito
impuras em cada sexo" (53, p. 171).
está para a virtude, o que está claramente manifesto nos rituais
de extrema-unção em que o moribundo, para obter a salvação,
é convidado a detestar os pecados cometidos por cada sentido,
Os etólogos nos têm demonstrado que cada espécie vive sendo, então, o órgão, lavado, ungido o bento. No dialeto
em um mundo próprio que determina, antes de qualquer coisa, Wintu da Califórnia, diz Lévi-Strauss, há cinco modos verbais,
a natureza de seus órgãos sensoriais, pois o organismo e seu alguns dos quais correspondentes aos sentidos a que se deve
ambiente constituem um campo único. Os membros das diversas atribuir o conhecimento narrado (50, 207).
sociedades humanas vivem também em um universo que lhes Todas as experiências do homem são mensagens percebi--
é próprio, mas as consideráveis diferenças de suas percepções, das por intermédio dos sentidos e devem ser decodificadas de
sentimentos e atitudes com relação ao seu ambiente físico e alguma forma. Todavia, cada mensagem percebida pela cons-
social não podem ser atribuídas a causas fisiológicas: é preciso ciência corresponde a um amálgama de experiências olfativas,
I"
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visuais, táteis, e assim por diante. Cada uma dessas expenen- disso que chamamos de "gosto". Todavia, nem todas as culturas
cias corresponde a uma mensagem particular, capaz de afetar se apropriam conscientemente dessas propriedades.
todas as outras percepções. Portanto, devem existir, além desse A própria identificação é culturalmente variável em rela-
código que nos dá uma única experiência total, códigos que ção às sensações: o cheiro de alguns queijos é considerado
nos podem permitir o acesso a essas experiências específicas: profundamente nojento por diversas populações, o cheiro do
daí ser cada sentido governado por um código especial. corpo do homem branco ocidental, a exemplo de que fazemos
Contudo, cada sociedade atribui, a estes códigos sensoriais em relação a indivíduos de outras procedências, é, por muitos,
especiais pesos diferentes, quer no contexto do código de nossa considerado desagradável. O odor que produz a decomposição
experiência total, quer no contexto de situações ou problemas dos cadáveres é considerado pelos Dayaks, segundo dizem
particulares. Sabemos, por exemplo, que alguns cegos são ca- freqüentemente, particularmente agradável a suas sensibilidades
pazes de ultrapassar parcialmente suas deficiências sensoriais, olfativas, sobretudo se se tratasse da cabeça cortada de um
aperfeiçoando o seu domínio sobre outro código sensorial, inimigo (35, p. 7). Para nós, a concepção de estragado é ba-
quando, por exemplo, se tornam capazes de inferir o valor de sicamente olfativa (o que se expressa no nosso hábito de chei-
uma nota pela simples manipulação tátil da mesma. Os Api- rar os alimentos), o que pode ser substituído, em muitas cultu-
nayé, observou Lévi-Strauss (53, p. 144), codificam a oposi- ras pelo aspecto visual, ou pelo paladar. O cheiro dos órgãos
ção entre vida e morte, ao nível da mitologia, segundo sím- sexuais é tido por agradável e excitante em algumas culturas e
bolos auditivos, enquanto os Krahó o fazem de maneira os- repelente e associado à podridão em outras, como os Tupari,
tensivamente olfativa. O calendário dos Adamaneses baseia-se que acreditam ser o cheiro dos· órgãos sexuais de uma jovem
numa sucessão de perfumes, que as flores e as árvores exalam inofensivo e o de uma mulher velha perigoso. Alguns grupos
nos diversos períodos do ano. árabes tinham por costume o cheirar a noiva, pelo pai do
Algumas culturas enfatizam, de modo global, um sentido, noivo, para dar aprovação ao casamento.
enquanto outras sobrecarregam outros. Todavia, existe sempre Em nossa vida cotidiana, damos enorme importância a
uma espécie de "colaboração" entre os códigos sensoriais espe- determinados signos olfativos. Basta lembrar a nossa classifica-
cíficos "(por exemplo, quando lemos um jornal, estamos tam- ção dos perfumes (fresco, ~ensual, viril, doce, feminino, agres-
bém recebendo mensagens táteis que atuam de maneiras dife- te ... ). Ao olfato está associada uma série de preocupações
rentes) e também a possibilidade de tradução dos termos de sociais: beleza, status, afirmação ... Nossa atitude diante das
um nos termos de outro. Os numerosos paladares, por exemplo, sensações olfativas, dos conhecimentos que por essa via nos
de comidas e bebidas apenas em parte constituem gostos pro- chegam é de desconfiança, suspeita e insegurança, como ex-
priamente ditos: se contrairmos as narinas, de maneira a im- presso no nosso vocabulário "isto não me cheira bem", "estou
pedir que qualquer odor chegue aos receptores olfativos, fica- sentindo cheiro de confusão", "i~to está cheirando mal", etc.
remos impossibilitados de distinguir entre o gosto de café e o É .possível que, do ponto de vista da utilizaç50 cultural
de uma solução fraca de quinina, ou entre suco de maçã e do aparato olfativo e de outros sentidos, nós, ocidentais, es-
suco de cebola - café e quinina têm em comum certo amargor tejamos em situação bastante desfavorável, comparativamente a
e a cebola e a maçã têm certa doçura em comum, o que é outras sociedades. Os esquimós, por exemplo, apoiando-se na
tudo o que recebe um indivíduo de nariz fechado. O interior da direção e no cheiro do vento, fundamentalmente, são capazes
boca é dotado de sentidos da pele e do gosto; um gosto picante de viajar milhas e milhas por um território que, para nós, seria
é, parcialmente, dor e um gosto suave, de alguma forma, uma visualmente indiferenciado (34, p. 55).
sensação tátil; a temperatura de um alimento, bem como a O mesmo acontece com a apropriação cultural da visão.
sua consistência material, contribui também para a constituição Alguns nativos africanos, por não darem grande importância
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4 códigos visuais a que faltam a dimensão de profundidade, jogo de futebol - embora ambos tendam a enfatizar a VIsao
foram incapazes de decodific~ imagens de televisão, e outros, como principal ferramenta de apropriação do mundo, pois esta
postos a assistir a imagens fílmicas produzidas por movimentos parece ser uma característica da nossa cultura.
de câmara, interpretaram-nas como sendo árvores e pedras se- Tomando por base esta característica da nossa cultura,
moventes; personagens de filmes eram vistos como mágicos, algumas interpretações históricas dela se construíram - do
porque tinham o dom de mudar de tamanho e de roupa ins- que o pensamento de McLuhan pode ser um exemplo recente.
tantaneamente, entre duas seqüências (13, p. 337). Klineberg :Ê claro que não se pode cair nesse reducionismo, mas é ver-
(38, p. 226-7) narra o seguinte acontecimento: "viajando pela dade que as ênfases culturais sobre os diferentes sentidos atuam
Nova Zelândia, certo pintor inglês fez uma quantidade de re- constantemente sobre a vida dos membros dessas sociedades.
tratos de nativos, i lcIusive o de um chefe cuja face estava co- Nós, por exemplo, suspeitamos dos outros sentidos que
berta pela tatuagen em espiral típica de sua qualidade. O não a visão e o tato: precisam0s ver para crer, ou, como São
artista mostrou o retrato ao modelo: esperava sua cordial Tomé, tocar as chagas de Cristo para acreditarmos; precisamos
aprovação. O velho olhou o retrato e devolveu-o com est~ escrever as coisas, para não nos esquecermos delas e para
palavras: "não é isto que eu desejo". Pediu-lhe então o artistl:& firmar compromissos seguros; criamos diferentes sistemas para
que desenhasse o seu próprio retrato. Quando entregou ao nos ajudarem a ver o que ouvimos; chamamos as pessoas de
branco o retrato com estas palavras: ':Ê isto que eu sou', este maior arrojo ou sensibilidade de "visionários" ou "videntes";
não pôde ver mais nada além do feitio da tatuagem do velho representamos a onipotência e onisciência de nosso Deus por
chefe e que significava a sua conexão tribal!". Comenta o um olho; dizemos que os olhos são "o espelho da alma"; os
caso dizendo que, para os Maori, o pensamento ocidental de sábios são "iluminados"; quando cuidamos de algo damos
valorizar o indivídllo é desconhecido, importando fundamental- "uma olhadinha"; em Paris, a polícia é "l'oeil"; quando nos
mente o conceito de comunidade. Nesse caso, a concepção despedimos de alguém, dizemos "até a vista"; quando tomamos
que o chefe tem de si determina a maneira pela qual ele se conhecimento superficial, dizemos que é "à primeira vista";
"vê". Alguns prog"amas de prevenção da saúde, ao exibirem uma pessoa estimada é "bem vista"; quando compreendemos
filmes que mostravam os efeitos daninhos das moscas e das bem, "vemos claramente". Temos "visão da história", "pontos
formigas, a alguns indígenas, receberam a seguinte resposta: de vista"; acreditamos que "no princípio eram as trevas e fez-se
"vocês têm razão :te se preocuparem com estes animais, mas a luz"; damos "uma luz", para solucionar um problema; um
os nossos não são tão grandes!". caso pode ser "obscuro", uma solução "nítida"; um lugar triste
Diante disso, a associação de valores semãnticosa cores é um lugar "sombrio" e já houve quem dissesse que "a luz é
particulares (preto:morte/ branco:limpeza/ vermelho:perigo/ informação em estado puro".
verde:esperança; amarelo:desespero, etc.) se transforma em Aqueles que não acreditam no que a sociedade quer que
um problema baIlal para a Antropologia, em que pesemos acreditemos são "visionários" ou estão "alucinados". Não pode
esforços brilhantes de Victor Tumer (69) de provar o contrá- haver dúvidas de que a visão cumpre uma importan'te função
rio, sustentando qre haveria uma profunda motivação emocio- de controle social, e, por isso, tendemos a considerar as noites
DaI associada às c )res do sangue, das feses e do sêmen. e os lugares escuros como perigosos, castigamos nossos filhos
Na nossa própria sociedade, podemos constatar, como colocando-os em quartos escuros, surpreendemo-nos com um
observou HaU (3·t, p. 65), que hOi:lef'l e mulher habitam crime "em plena luz do dia", relegamos certas práticas para o
universos visuais b lstante diferentes, pois aprenderam a usar a "escurinho" e fazemos com que o ritmo da vida social decresça
vista com atenção a diferentes objetos - basta observarmos à noite. Observemos, por exemplo, o que acontece quando se
os comentários de ambos após um passeio, uma festa, ou um apagam inesperadamente as luzes de uma cidade: as pessoas
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se expandem, como um gás que se visse repentinamente libe- às crianças. Parece claro que as nossas crianças de tenra idade
rado da pressão que o continha, e gritam. Todavia, se a falta não têm pelas matérias eliminadas pelo organismo a mesma
de luz se prolonga, os "mapas" de direcionamento no mundo repelância que os adultos manifestam em relação a elas -
começam a fazer falta e sentimo-nos inseguros: por isso, as do que resulta uma espécie de batalha entre os pais e a criança,
pessoas ficam alegres e gritam novamente quando a luz re- batalha que os adultos acabam invariavelmente vencendo.
toma ... Este processo, pelo qual as mães e babás terminam fa-
Portanto, a crença de que dois corpos humanos subme- zendo com que a criança acabe por abrir mão de sua autonomia
tidos ao mesmo est ~mulosensorial reagiriam da mesma maneira, fisiológica e aceite o controle cultural, representa uma espécie
não pode ser vista sem restrições no atual estágio do desenvol- de "treinamento" em que se manifestam basicamente duas
vimento do conhedmento científico. Na realidade, quando se tendências: por um lado, o reconhecimento da acumulação de
trata de culturas d Jerentes, "mesmo estímulo" é, na realidade, pressões na bexiga e no reto,. como avisos da necessidade de
uma multiplicidade de "dados" e de "informações" que devem inibição do esfíncter automático e para atividades tais como
ser "lidos" e "proc,~ssados" segundo códigos diferentes, capazes pedir ajuda, locomover-se ou controlar-se e, por outro lado,
de atuarem uns sobre os outros conotativamente, de forma a aprender a evacuar a urina ou as fezes somente quando a
produzir um universo novo - infinitamente distanciado das evacuação é pedida pela mãe ou ama. Estes processos, então,
origens orgânicas das experiências sensoriais - em que os não são puramente fisiológicos, mas acontecimentos culturais,
sons têm cores (como na publicidade de um televisor: "todas na medida em que a sua ocorrência passa a depender de si-
as cores do som"), as cores têm cheiro ("o branco com cheiro tuações exteriores ao organismo, e não apenas de necessidades
de limão", como quer o anúncio de um sabão em pó) e em que funcionais, intra-orgânicas. São processos por meio dos quais o
as ações e condições humanas têm cheiros e gostos ("sabor educador incute toda uma visão do mundo e todo um com,·
de aventura", "sabor de loucura" como dizem alguns textos plexo de símbolos.
publicitários) . As funções excretórias cOlfleçam, nesse processo, a ser ob-
Para podermos compreender o homem, é claro que deve- jeto de reservas para a criança, a se indentificar como impuras ill,
mos saber a natureza dos seus sistemas sensoriais, mas devemos - pelas caras-feias, pelas palmadas, pelas alterações de tom I1II
saber também, e principalmente, como é que a Cultura modi- de voz, pelo mistério com que estas funções passam gradativa-
fica as informações que alimentam esses órgãos receptores. mente a ser envolvidas. A criança começa a aprender que os
"111
,li
Como disse Wittgenstein, no seu Tratactus Logicus - Philo- produtos das eliminações são tão ruins que, se permanecerem 111
sophicus, 5634: no corpo por tempo diferente do prescrito culturalmente, po- 11I
Whatever we see could be other than it is com a lembrança da possibilidade de a criança não vir a ser
Whatever we can describe at alI could be other than it is incorporada pela coletividade.
'111 1I
There is no a priori order of things." Quando já um pouco maior, a criança descobre a ofensi- II
111
Higiene: Mito e Rito sar que as pessoas associadas a posições socialmente importan-
tes possam estar submetidas a estas regularidades, porque o I
Existem bastantes indícios - e a Psicanálise tem insistido sintagma que assim se forma terá por efeito profanar o pri-
meiro termo. Assim, dificilmente imaginamos "aquela" mulher
I111
tética e toda uma magia. Cada sociedade os corta de uma quente para secar as mãos, portas que não abrem se não se
maneira e por um motivo: beleza, luto, idade, etc. Para nós, der descarga ...
até pouco tempo, uma cabeleira emplastada' de óleo ou vase- Há todo um aparato "científico" para nos proteger, e acre-
lina representava "boa aparência", e o movimento natural do ditamos que as nossas práticas higiênicas se caracterizam como
cabelo deveria ser evitado pela aplicação de gomas. diferentes das dos outros povos por esta sua cientificidade. De
Dumont (20, p. 71) observa que um Brâmane deverá um manual de educação higiênica podemos extrair a seguinte ci-
praticar severos atos de higiene quando acorda e quando se tação: "todo progresso lU camp0 Jas ci':ncias em geral pro-
alimenta, e que estas práticas devem estar associadas à oração, jeta-se na evolução da Higiene e da Medicina. " o objeto da
para que ele possa recuperar o seu estado de pureza mais Higiene é evitar as doenças, proteger e manter a saúde utili-
elevado; se ele trabalha fora, deve tomar o cuidado de se ba- zando os conceitas que nos fornecem a Física, a Química, a
nhar antes de entrar em casa. Medicina e a própria Engenharia". Os anúncios publicitários
Em certa região da Itália, as populações rurais, colocadas de produtos de higiene conotam-se de cientificidade: "bacté-
em condição de viver em casas modernas equipadas com ba- rias", "vírus", "micróbios", "microorganismos", "flúor", "ioni-
nheiros e com vasos sanitários ~ habituadas •• fazer suas zação", "deosteral", "cloridóxido de alumínio"... termos de
necessidades no campo - usavam os referidos aparelhos para uma linguagem que os espectadores não conhecem, mas em que
realizar a limpeza de azeitonas, que envolviam em uma pequena acreditam como em um mito.
rede presa por um fio e que eram agitadas pela pressão da Entretanto, a observação da implantação dessa teoria na
descarga de água. Alguns povos se opõem violentamente ao vida prática cotidiana não nos deixa acreditar em sua coerência
tratamento e limpeza da água, pois muitas vezes acreditam ter e veracidade. As pessoas usam o banheiro e depois se limpam
ela .caráter sagrado e que ta! ato seria, conseqüentemente, com papel higiênico: em seguida, lavam as mãos e não as
uma proianação; ou que homens viris não devem beber água partes que tiveram contato direto com a matéria que se con-
limpa, e assim por diante. sidera poluída e poluígena; e a crença de que o hábito de
Sabemos como era diferente o conceito de higiene entre lavar as mãos visa proteger a saúde das outras pessoas não
os nossos antepassados medievais. Qualquer atenção para o pode ser verdadeiro, porque as torneiras não são imediata-
corpo poderia ser considerada falta grave. Muitos monges não mente lavadas.
somente não se banhavam, como também não Ihes era permitido Na raiz dessas crenças parece estar a concepção de que
lavar os pés. Conhecemos histórias de alguns santos que, por a Medicina, disciplina principal deste domínio, é, ela mesma,
pudor, só se banhavam de túnica, prática que não havia de- inteiramente técnica, instrumental, e livre de conotações rituais.
saparecido até há pouco tempo em alguns internatos femininos Entretanto, sabemos quantas ritualizações cercam a prática
de orientação religiosa. da Medicina e que não são poucos os médicos que se sentem
Há informações de que a prática de limpar o ânus com pouco à vontade para trabalhar sem os seus "paramentos"
papel é bastante recente, pelo menos cOm o papel especial- brancos. Além disso, um bom número dessas práticas higiê-
mente destinado para esta função, e que entre os romanos as nicas são anteriores à descoberta da existência dos micro-
"privadas" eram públicas, limpando-se as pessoas com as pró- organismos patogênicos.
prias mãos, servindo-se da água que corria por debaixo, de Portanto, não seria deslocado interpretar o hábito de lavar
onde provém a palavra "latrina", corruptela de lavatrina ,_ as mãos após as atividades de eliminação como uma espécie
o que contrasta de certo modo com os nossos esforços de des- de rito que marca uma transição entre domínios diferentes da
cobrir métodos de tornar os banheiros mais privativos e de- vida social, da mesma forma que devemos lavar as mãos
sinfectados: aparelhos de luz ultra-violeta, aparelhos de ar antes das refeições ("para não contaminar os alimentos") e
114 1 115
depois delas (para não ser contaminado pelos alimentos? - mente a mesma e seria portadora de microorganismos qual-
podemos perguntar), ao chegarmos do trabalho (por que quer que fosse a cor sobre a qual se aplicasse. Na realidade,
razão de ordem instrumental?) ou ao chegarmos da rua - o que importa não é o seu caráter im;trumental, mas o que a
para celebrarmos a transição do Público para o Privado, do sujeira tem de expressivo. E, na medida em que se transforma
Sagrado para o Profano,. da Natureza para a Cultura, e assim a sociedade, na medida em que começa a exigir das pessoas
por diante. E, nessa comparação das práticas higiênicas com que produzam em outras áreas, torna inviável o dispêndio de
as práticas rituais; poderíamos arriscar, com um certo arrojo, uma parcela igual de tempo e de atenção nas atividades de
colocar no mesmo pé os instrumentos utilizados para a higiene limpeza. A ,cor que "suja menos" cumpre, então, a mesma
corporal (lenço, toalhas, papéis, algodão, ete.) e os objetos função racionaliza dor a das fórmulas científicas que "limpam
utilizados nos ritos sacrificiais, porque devem, ambos, ser des- profundamente e rápido".
truídos ou purificados, por haverem tido contato com forças
sagradas consideradas impuras. Por outro lado, as regras de
higiene podem ser invertidas e transgredidas em determinadas Um estudo detido do processo de socialização revelaria,
situações, geralmente ligadas à exaltação da emotividade (amor, provavelmente, que as maiores violências praticadas em nossa
ódio, perigo de vida, competições, festejos carnavalescos, etc.), sociedade co.ntra uma criança se ligam à introjeção nelas das
o que também acontece com as normas rituais, em geral, nas regras de higiene: tapas na mão que foi posta em lugares inde-
licenças rituais, nos rituais de "communitas", nos ritos de vidos, pimenta ou esparadrapo nos dedos para a criança não
inversão, ete. chupá-Ias, ridículo à criança que evacua nas calças ("que
Chegaríamos ao mesmo ponto se lembrássemos que vergonha! deste tamanho!") ...
Durkheim construiu a sua teoria dos ritos negativos inspirado Existe aí, fundamentalmente, a necessidade de se incutir
em um modelo que lembra as práticas higiênicas, o que se um sistema de signos que se apóia basicamente na superiori-
manifesta de pronto na própria terminologia que adota: con- dade do Puro sobre o Impuro, mas que contém também muitos
tágio, puro, impuro, purificação, imunização. .. O fato é que outros princípios de diferenciação e de organização social.
nau se trata de dizer que as práticas higiênicas, que a socie- A própria maneira que consideramos "correta" de falar
dade ocidental tem desenvolvido com tanto cuidado, estão do corpo constitui uma espécie de código de "boas maneiras"
completamente desprovidas de fundamentação objetiva e que que abriga em si um instrumento de assimetri~ social, pois
são puras convenções simbólicas, mas de lembrar que são implica, imediatamente, em uma distinção entre quem é
também práticas simbólicas, nem sempre consubstaRciadas "cultivado" - e pode falar em termos "I:1obres", "elevados"
pelas demonstrações científicas - e que, mesrilO quando existe e "científicos" - e quem é "rude" - e só pode se exprimir
por detrás delas uma fundamentação objetiva constatada ou por um vocabulário "baixo", "vulgar" e "indecente".
constatáve! pela ciência, esta fundamentação é, a0' nível do
A inculcação das regras gerais implica sempre uma
pensamento e do comportamento das pessoas, que não são ameaça em termos de higiene e de posição social: "se você
cientistas e que não estão se comportando nesse momento não estudar, vai ser lixeiro". As revistas femininas, ao divul-
como cientistas, de ordem mítica e ritual. A cientificidade é,
garem os produtos de beleza e higiene, difundem também um
então, um instrumento racionalizador.
modelo de vida de classes superiores, e um modelo de com-
Compreendemos, então, porque é possível a substituição portamento, em relação ao corpo, procedente de estratos supe-
da cor branca, tradicionalmente associada à limpeza, nos riores da hierarquia. Por esta via, suscitam vergonha de seus
banheiros, geladeiras e hospitais, por outras cores, que, segun- próprios corpos, naqueles que não se enquadram nas defini-
do os argumentos, "sujam menos". Ora, a sujeira é evidente- ções desses modelos - o que ocorre invariavelmente, pela
116 117
própria diferença de estilo de vida que classes diferentes são ausência do bidê é então um signo de marcação da discre-
obrigadas a observar. Esta vergonha não é senão uma maneira pância social e um signo indicador das posições respectivas.
de se expressar a vergonha de classe, funcionando, então, o Além disso, a higiene separa as mulheres dos homens:
corpo, como mais um dentre outros objetos possuídos - como "tão bonita e cheirando igual a um homem", "o desodorante
um signo de marcação de um sistema de assimetrias sociais que protege a mulher onde ela é mais mulher", dizem as
e de desigualdade de distribuição do poder: o mais íntimo e publicidades de desodorante. Determina-se à mulher que ocupe
o mais importante dos signos, porque nunca pode ser desvin- o seu lugar. Os desodorantes masculinos devem ter nomes
culado da pessoa a que pertence (9, p. 41-2). viris "Brut", "Agreste" ...
A ascenção na hierarquia está constantemente presente É preciso expulsar a sujeira; expulsá-Ia das profundi-
nos textos publicitários: no do dentrifício que tem "gosto de dades, pois ela se infiltra: os sabonetes são "penetrantes", os
vitória" e que "faz de você um vencedor", no do desinfe- cremes 'limpam profundamente", os microorganismos "pene-
tante que "foi criado para você", porque "ninguém gosta de tram" nas pessoas - no que talvez encontremos uma das
limpar vasos sanitários". Recentemente, uma propaganda de razões de ser a boca um dos mais poluíveis pontos do corpo,
papel higiênico narrava uma pequena histórJa: ele era usado pois leva diretamente às "profundezas" - profundezas que
pelo mordomo e pela cozinheira, às escondidas, porque seu são tocas onde se trama uma destruição e que se ligam tam-
uso deveria estar reservado a aristocratas: o mordomo põe um bém à intimidade física pessoal, e um domínio onde operam
rolo do mesmo sobre uma bandeja, para levá-Io ao patrão. poderosas forças naturais.
Exprime-se então: a) que este papel tem a dignidade das Os produtos de higiene não são para todo o mundo, para
coisas que vão à bandeja - aparente agramaticalidade, que qualquer pessoa, mas, no máximo, para você e para a sua
sugere que ele realmente pode purificar; b) que há aí uma família: respeitam a sua intimidade. Com as crianças, discute-se
relação de poder: ele é bom demais para simples empregados, a higiene apenas enquanto elas estão sendo "iniciadas"; depois,
dos quais se supõe deverem se purificar menos eficientemente respeita-se a intimidade delas. A oposição entre público e
e c) o cometimento do ato às escondidas sugere a marcação privado sempre está presente. É preciso considerar a impressão
da relação de poder, pois, se o patrão viesse a saber, imedia- que se causa aos outros, quando se exibe a intimidade: toma-se
mente haveria represálias. banho para ser consultado por um médico, para se encontrar
Esta relação de poder está em toda parte nas regrás de com uma mulher. .. A aproximação do íntimo é a aproxi-
higiene: sujam-se lenços, roupas, banheiros, etc. e as limpezas mação de uma Natureza que deve ser culturalizada, para se
são feitas por pessoas situadas em posições inferiores da hier- preservar o status, a imagem, a representação social, o pres-
quia. Muitas vezes, a prática dessas atividades purificatórias tígio. .. o povo diz "roupa suja se lava em casa" ...
é, ela mesma, símbolo de uma baixa posição: o "lavador de A oposição entre Normal e Patológico também está aqui:
latrina", o "lixeiro", o "estar na merda", o "ser um merda" ... acreditamos que os nossos dentes se estragarão se não forem
O trabalho feminino tem sido quase sempre associado a estas escovados, que os cabelos cairão se não forem devidamente
atividades: os árabes, por exemplo, usam uma mão para comer lavados, que as impurezas são portadoras de doenças. Toda-
e outra para a higiene corporal, mas as mulheres árabes são via, a principal preocupação é com a possibilidade de o indi-
obrigadas a utilizar ambas as mãos para lavar roupas, e limpar víduo se tornar socialmente patológico: as regras de higiene
crianças (41, p. 75-6). E, entre nós mesmos, os banheiros de estão associadas à personalidade sadia. Por isso, os dejetos
empregada doméstica são desprovidos de bidê, o que deixa
crer que há uma suposição quanto a ser o seu organismo ( são jogados para longe: no lixo, no mar ou no fogo - de
maneira a desaparecer dlo nosso convívio, sob pena de nos
diferente, ou, então, ser diferente a sua condição social. A
expulsar do convívio com os nossos. As pessoas de mau-
118 1 1 <)
hálito e de mau-odor são marginalizadas. Pelo contrário, quem é de se temer que sirvam a disfarçar algum defeito natu-
usa Halitol pode casar com um parceiro invejável e quem ral dessa espécie, o que deu aliás origem a estes aforis-
usa Rexona sempre encontra um lugar. Enquanto isso, na mos de poetas antigos: 'é sinal de fedor o bom odor'."
expressão publicitária os bandidos são mal barbeados e os
loucos mal penteados e, na expressão popular, os criminosos
cospem no chão, os negros e portugueses são mal-cheirosos Os Códigos da Emoção
e os mendigos sujos e fedorentos - mecanismos que cumprem
a função de identificar o "nós" como oposto ao "eles" e que Dentre as capacidades fisiológica~ relativamente bem desen-
já serviu para medir o grau de cultura de um povo pela quan- volvidas em crianças de pequena idade está incluída a de reação
tidade de sabão que consumia ... orgânica àquilo que poderíamos chamar de "estímulos emo-
A oposição entre a Cultura e a Natureza também está cionais". O fato social que deixa este ponto relativamente
presente, e é operante em todos os níveis da co.lstituição das claro é o de que no treinamento e educação de criança, desde
mensagens produzidas a partir da utilização deste código. No as mais tenras idades, a punição e a recompensa constituem
filme de Truffaud sobre o "Enfant Sauvage", o primeiro signo importantes instrumentos: violência ou prêmio físicos, senti-
de ausência da Cultura é a sujidade e o primeiro indicador da mento de segurança ou de medo, afeto ou negação de afeto.
presença da Cultura é o aprendizado, ou a submissão às regras E parece que tudo o que diz respeito ao corpo está, de uma
de higiene. Entretanto, não é preciso ir à origem da Cultura, ou de outra maneira, envolvido em emoções.
pois a oposição está aqui mesmo - no out-door que pede Todavia, da mesma forma por que se aproveita da capa-
que você deixe "o banho demorar em você", porque entre a cidade emocional para fazer valer os seus princípios, o pro-
sua Natureza, o seu organismo, e a limpeza existe uma incom- cesso de socialização é também, e de maneira muito impor-
patibilidade, e as forças impuras que emanam do seu orga- tante, um processo inibidor das expressões emocionais que a
coletividade tem por inaceitáveis, e incentivador das emoções
nismo podem ser controladas apenas provisória e precaria-
desejáveis: a ética puritana tendia a inibir a expressão· de
mente; na nossa recusa de designar o papel higiênico pela
alegria e a exaltar a seriedade; entre alguns orientais, sobre-
vinculação da sua função ao órgão a que está associado; no
tudo chineses, a expressão livre da emotividade não é tida
nossO hábito de lavarmo-nos todas as manhãs e todas as noites,
por de bom tom, e, entre nós mesmos, não é difícil ouvir-se
depois ou antes de dormir, para realizarmos mediações entre dizer que "homem não chora".
os estados naturais e culturais (respectivamente, "dormir" e
Portanto, não é difícil concluir que as estruturas neuro-
"estar acordado"); na nossa preocupação de que os perfumes lógicas são, até uma medida considerável, formas vazias que
sejam "discretos", "suaves" e "naturais" (?), porque um as diferentes culturas preencherão diferentemente, e que os
perfume mais eX!lltado cumpriria a função semiologicamente complexos emocionais assim formados estarão a serviço das
inversa da que se deseja, chamando, por contrariedade, a diferentes sociedades, como mecanismos avaliadores e contro-
atenção sobre o cheiro que se quer disfarçar ou banir - o ladores da observância ou não observância das normas com-
que Montaigne percebeu mordazmente: portamentais culturalmente constituídas. De fato, tanto quanto
os sentimentos de vergonha e culpa, ou de desgosto de .:um
"Eis porque Plauto diz - 'O mais delicioso perfume modo geral, que acompanham a transgressão das normas
de uma mulher está na ausência de qualquer odor'. sociais, as satisfações alcançadas pela realização dos ideais
Quanto aos bons odores provenientes de perfumes agre- sociais são também mecanismos de controle social, sediados no
gados ao corpo, há que desconfiar de quem os usa, pois íntimo de cada individualidade.
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do estamos aflitos ou quando estamos alegres - mas quase
Além disso, é preciso considerar que o "sentir emoção"
sempre associamos a emergência de lágrimas a um impulso
é também algo que se aprende. a tom emocional dos pais,
natural. Todavia, a literatura etnológica registra inúmeros
ao ensinar as crianças a falar, ou no ensinar a analisar os
casos de sociedades que treinam os seus membros a verter
seus comportamentos, são um importante transmissor dos
lágrimas quando têm vontade, e cada uma associa as lágrimas
padrões culturais da emotividade. a fumante neófito de maco-
a fatos particulares. Entre nós, por exemplo, é relativamente
nha - como Becker (3) demonstrou - não sente esponta-
fácil compreender este fenômeno, se resolvermos observar as
neamente as emoções e as sensações que caracterizam o ato
atitudes das pessoas, dentro ou fora da sala em que se vela
de fumar; há necessidade de aprender, de indivíduos com
um corpo; ou, num hospital, se resolvermos comparar as
experiência anterior, a reconhecer os efeitos da droga, e de
reações dos médicos e enfermeiras a mortes naturais de
identificar os sinais que indicam o começo da "viagem", assim
doentes às suas reações a mortes excepcionais (acidentes, por
como de' aprender a conhecer o significado das diferentes
exemplo), ocorridas no interior do mesmo e vitimando os
sensações e emoções que ocorrem "durante a viagem".
próprios médicos, enfermeiros e funcionários.
As próprias rotulações com que designamos as diferentes
Seria oportuno lembrar aqui as palavras de Durkheim
emoções ou as associações que delas fazemos com diferentes
(23, p. 410): "se o cristão, durante as festas comemorativas da
eventos, não podem ser traduzidas com facilidade de um sis-
Paixão, se o judeu, no aniversário da queda de Jerusalém,
tema cultural para outro. atto Klineberg (38, p. 212) observou
jejuam e se mortificam, não é para dar curso a uma tristeza
que entre os Kwakiutl, a morte de um filho ou d~ uma esposa
espontaneamente experimentada. Nestas circunstâncias, o
é ocasião de tristeza, mas, não de uma tristeza acidental,
estado interior do crente carece de proporção com as duras
porque é também um insulto que a natureza dirige aos que
abstinências a que se submete. Se está triste, é, antes de tudo,
permaneCllí:am vivos, o que determina que o seu sentimento,
porque se obriga a estar triste e se obriga a isto para afirmar
nessa oportunidade, seja a configuração de tristeza, vergonha
a sua fé. A atitude do australiano durante o luto se explica
e raiva. A mesma coisa pode acontecer em relação à emoção
da mesma maneira, Se chora, se geme, não é simplesmente
do amor que, em algumas sociedades, estará associada ao
para expressar uma dor individual; é para cumprir um dever
desejo de posse; em outras, separada dele. a próprio amor
que a sociedade circundante não deixa de recordar-lhe quando
"romântico", que celebramos e desejamos, está ausente em
chega o caso". De fato: quando choramos pela morte de uma
muitas sociedades e, mesmo entre nós, é de história relativa-
pessoa e não choramos pda morte de outra, estamos, no pri-
mente recente. Rir, para nós, é fundamentalmente expressão
meiro caso, cumprindo uma obrigação que diz respeito à rela-
de alegria, mas sabemos que, em muitas ocasiões, o riso pode
ção entre o nosso status e o status da pessoa que morreu, e
exprimir outra coisa, como deboche, por exemplo. No Japão,
dispensados dessa obrigação, no segundo caso.
rir nem sempre significa qBe a pessoa está alegre, pois pode
também expressar que ela está passando por uma situação Se estas expressões emocionais respondem efetivamente
embaraçosa. Ensinamos às nossas filhas que não devem rir a sentimentos verdadeiramente sentidos pelos indivíduos, é
em qualquer lugar, muito menos sorrir para qualquer homem, um problema que escapa do domínio da competência do cien-
e deixamos 'que elas sintam que podem chorar em caso de tista social; todavia, podemos dizer que estas expressões de
dificuldades - o que para um homem seria humilhante, sobre- sentimentos que estão relacionadas com diferentes posições e
tudo se em público. com os diferentes papéis sociais, mesmo que não signifiquem
Quando, porque e com que intensidade chorar é algo que tristeza para o indivíduo, significam para a comunidade. Além
deve ser aprendido. a aparecimento de lágrima nem sempre, disso, se o abaixar a cabeça significa socialmente "obediência",
como sabemos, significa tristeza, pois choramos também quan- "respeito" e "humildade", é provável que o indivíduo que
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abaixe a cabeça se sinta também "obediente", "respeitador" que significa que têm sempre uma origem intelectual, baseada
e "humilde". em sistemas de classificação da sociedade.
Uma lista de termos que as pessoas rotulam normalmente
como emoções - medo, ira, furor, horror, terror, angústia,
ansiedade, amor, ciúme, vergonha, perturbação, aversão, pesar, Quando os nossos corpos se sentirem cansados, sentir-
tédio, desânimo, mágoa, tristeza, desprezo, repulsa, desgosto, nos-em os sonolentos e procuraremos dormir. Estaremos
remorso, inveja, frustração, dor, ódio, raiva, orgulho, excita- cedendo a impulsos naturais. Todavia, antes de dormir, pro-
mento, animação, prazer, divertimento, felicidade, alegria, curaremos nossos parentes e desejaremos a eles que tenham
humor, sensação estética, disposição, impaciência, admiração, uma boa noite; escovaremos os dentes; escovaremos os cabe-
exaltação, êxtase, etc. não revelaria elementos cujos domínios los; às vezes tomaremos banho; mudaremos de roupa e,
sejam nitidamente demarcados e, arriscaríamos dizer, univer- conforme o nosso credo, rezaremos ou não; e, pela manhã, ao
salmente presentes segundo as diferentes sociedades e as acordarmos, repetiremos alguns desses atos. Dormir é uma
classes sociais. necessidade natural, mas é também um fato cultural e um
Os próprios psicólogos têm enfrentado uma série de difi- rito. A relação dos homens com suas necessidades naturais
culdades para definir "emoção" e para fazer o conceito dife- não é simplesmente uma relação com a Natureza: sofre a
rente de outros conceitos afins ("sentimento", "sensação",
mediação de uma Cultura que imprime nela as suas próprias
etc.), e observaram que nenhuma das reações envolvidas orga- concepções.
nicamente nas emoções - seja visceral, endócrina, esqueletal
ou nervosa - é específica a determinadas emoções, não Não se pode compreender a Natureza do homem apenas
sendo, então, possível, neste plano, estabelecer uma linha em termos de Natureza, pois na mesma matéria coexistem um
divisória entre as diversas reações emocionais (15, p. 11) _. corpo biológico e um corpo social. A experiência do corpo é
o que sugere que as reações orgânicas, se bem que importantes sempre modificada pela experiência da Cultura. O que cha-
na predisposição e na expressão das emoções., não são, por mamos de "necessidades naturais" só nos é acessível após ser
si mesmas, suficientes para dar conta da questão. traduzido e retraduzido por todo um conjunto de normas e
Portanto, uma análise do fenômeno corporal da emoção valores que constituem a lente sem a qual somos todos cegos
está simultaneamente fora do corpo. Como qualquer sistema e insensíveis. Portanto, a percepção do corpo é função da
de comunicação, as emoções estão submetidas a uma gramá- organização da sociedade e do modo de relação do corpo com
tica, ou seja, a um sistema de convenções 'que ditam a inten- as coisas - e as práticas corporais são atualizações de repre-
sidade, a situação, a razão c a forma delas, por um lado, e sentações mentais. E, consciente ou inconscientemente, expres-
que servem, por outro, para conotar ou para classificar outros sa essas práticas e essas representações, desencadeando um
sistemas de convenções e outras relações sociais, o que acon- processo de redundâncias que as fazem sempre vivas e mais
tece, por exemplo, quando se considera determinado procedi- reais.
mento como "odioso", "triste", "nojento" ...
No corpo está simbolicamente impressa a estrutura social;
Sendo um código conotador e controlador, as emoções
e a atividade corporal - andar, lavar, morrer - não faz mais
não podem ser consideradas, pelo sociólogo, como simples
desordens psicofisiológicas, pois, em graus variáveis de cons- do que torná-Ia expressa. A estrutura biológica do homem
ciência, são parte integrante das relações sociais, e um dos possibilita-lhe ver, ouvir, cheirar, sentir, e pensar, mas a Cul-
níveis de significação delas, - quer como respostas à ordem tura fornece o rosto de suas visões, sentimentos e pensamentos,
das coisas, quer como conseqüência da ausência de ordem, o criando novos cheiros, sons e visões, constituindo novos uni-
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~J'
versos e - novos corpos. Universos e corpos novos, simbó- CAPITULO 111
licos e reais. Reais, exatamente porque simbólicos, porque
todo símbolo se define por um sistema e todo sistema por o NOJO DO CORPO
uma lógica. Lógica que impõe, a todos, os seus pressupostos, OU A MAGIA SEM MAGOS
de forma que, tomando esses pressupostos por verdadeiros e
sendo eles mesmos termos dessa lógica, os homens-crentes "Classifica-se como se pode, mas
confirmam-se reciprocamente as suas interpretações do mundo.
classifica-se" .
Lévi-Strauss
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