Você está na página 1de 12

Alguma

Poesia
de Drummond:
VIVALDO ANDRADE DOS SANTOS
VIVALDO ANDRADE
DOS SANTOS é
professor da Georgetown

o corpo
University (EUA).

O presente artigo é parte de um


que morreu
especialmente
estudo maior sobre a representação
do corpo na poesia de Carlos
Drummond de Andrade.

para nos
comover
“Marcel debateu que o corpo não possui
uma relação exterior ou contingente à
existência, visto que meu corpo está ime-

A
diatamente presente na experiência. Ele
rejeitou as dicotomias convencionais de
sujeito/objeto e ser/ter para argumentar para
a unidade física e da experiência mental.
Para Marcel, ter um corpo é de fato sempre
estar incorporado de forma que existência
é incorporação-experienciada”1.
coexistência de um impulso de afas-
tamento e aproximação da rea- Este ensaio examina em que medida
lidade do sujeito lírico na poesia a aproximação e o distanciamento que se
de Carlos Drummond de Andra- estabelecem entre o sujeito lírico e a reali-
de é o que mais tem sido in- dade em Alguma Poesia são mediados pelo
dicado por grande parte da corpo. Também, discute-se a representação
crítica literária (Can- do corpo em Drummond dentro da estética
dido, Costa Lima; Sant’Anna, Sternberg). de vanguarda das primeiras décadas do sé-
Alguma Poesia é o começo, o grau de maior culo XX, especialmente a partir da estética
consciência e de maior conflito verifica-se do feio, proposta pelo expressionismo. Em
em A Rosa do Povo, com menos força nas seguida, examina-se a representação do cor-
obras posteriores, a partir da publicação de po sob a ótica do grotesco, enfatizando-se o
Claro Enigma. Para esse corpus crítico, a desejo sexual e sua relação com a morte.
subjetividade lírica drummondiana é defi-
nida ora pela presença, ora pela ausência do
sujeito lírico no mundo que o rodeia. Assim,
no caso de Alguma Poesia, a ênfase recai O GROTESCO EXPRESSIONISTA
1 Tradução minha. especialmente no aparente distanciamento
2 É com cuidado que retomamos entre o sujeito lírico e a realidade, na cen- Hugo Friedrich aponta o grotesco e o
as idéias de Friedrich neste
estudo, especialmente pelo tralização da perspectiva no eu, na atitude fragmentário como tendências caracterís-
paradigma da lírica moderna
que elas impõem a partir da
de superioridade do eu frente ao mundo ticas da lírica moderna2. A estética do feio
negação do subjetivismo de (Sant’Anna, Sternberg). Essa distância é é como um sintoma antecipador da moder-
traços românticos em função da
valorização da linguagem refe- interpretada como estado de alienação do nidade. Friedrich (1991, p. 44) assinala a
rencial, do rigor da expressão, sujeito lírico, também reconhecido pelo dimensão metafísica do grotesco presente
presentes em certos poemas de
Drummond – filho da “estirpe próprio poeta num comentário sobre o livro em Victor Hugo, na “bufonaria transcen-
mallarmaica”, como chamou
Décio Pignatari – como aceno que “traduz uma grande inexperiência do dental” de Friedrich Schlegel, ou no intento
poético para a futura poética sofrimento e uma deleitação ingênua com de “deformação do real sensível”, capaz de
racional e antilírica de João
Cabral de Melo Netto e dos o próprio indivíduo” (Andrade, 2002, p. produzir na tensão criada a “dramaticidade
futuros concretistas. Nossa
abordagem coincide aqui com
533). chocante que se deve estabelecer entre texto
um grupo novo de estudos que Não obstante, mais do que marcar essa e leitor” (Friedrich, 1991, p. 77). Na sua lei-
apontam na direção de uma
releitura da poesia moderna relação dialética como etapas distintas tura do grotesco em Hugo, o crítico alemão
fora do clássico paradigma dentro do conjunto da obra drummondiana salienta que o feio não se manifesta apenas
da “lírica moderna”, cujo
exemplo é o livro de João Luiz é importante salientar que, apesar da dis- em oposição ao belo, mas como algo que
Lafetá sobre a obra de Mário
de Andrade. Em a Figuração da tância que se observa entre o sujeito lírico carrega em si um valor de expressão. O feio
Intimidade: Imagens na Poesia e a realidade, ela se trata de uma distância como imagem incompleta e desarmônica é
de Mário de Andrade, Lafetá
(1986) faz uma releitura da relativa. Alguma Poesia revela um sujeito capaz de “aliviar-nos da beleza e, com sua
positividade da presença do
elemento individualista na poe-
lírico, embora marginal à realidade, dela ‘voz estridente’, afastar sua monotonia”,
sia do autor da Paulicéia Des- dependente para articular-se como sujeito, refletindo “a dissonância entre os estratos
vairada. No âmbito da poesia
mundial, tem ocorrido também pois, como anota Bryan S. Turner (1996, animais e os estratos superiores do homem”
uma revisão do modernismo. p. 76), definindo a visão do corpo para (Friedrich, 1991, p. 33). Friedrich vê a esté-
Ver, por exemplo: Huyssen,
1989; Drucker, 1994. Gabriel Marcel: tica do feio “como o ponto de ruptura para

182 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006


a ascensão à idealidade”, tal qual sugere saída a metamorfose do pathos tragicizante
a visão de Baudelaire na sua impaciência da literatura do século XIX” (Merquior,
com a banalidade e a tradição, presente “na 1975, p. 10). O humor grotesco para o
beleza do estilo antigo” (Friedrich, 1991, poeta carece do elemento irônico, pois a
p. 44)3. ridicularização não se dá de forma simples
A estética do feio não somente exerceu sobre seu objeto mas sobre o próprio su-
seu fascínio sobre a geração de fins do jeito lírico, como se observa no “Poema
século XIX como também foi um dos ele- de Sete Faces”. Para o crítico, “o estilo
mentos principais para o expressionismo grotesco se serve da comicidade como
nas primeiras décadas do século XX. O feio arma antitrágica, mas não elimina a con-
tornou-se assim a forma estética preferida sideração séria, problemática do mundo”
para uma parcela de artistas demonstrarem (Merquior, 1975, p. 10). A partir da leitura
o seu inconformismo com a realidade eu- de Erich Auerbach, Merquior analisa em
ropéia nos anos anteriores e posteriores à Alguma Poesia a estilística do grotesco,
Primeira Guerra Mundial. Segundo Marion caracterizada pela mescla de estilos alto/
Fleischer (2002, p. 71), esses jovens baixo, vulgar/sublime. Em contraste, nossa
aproximação se enfoca na representação do
“Conceberam-na [a realidade] como feia em grotesco do corpo na poesia de Drummond.
sua totalidade, retrataram-na em sua fealda- A estética expressionista no seu ideal de
de e, incapazes de nela integrar-se, muitos deformação, no exagero da realidade, e na
encontraram na configuração grotesca um ênfase no grotesco4 é visível na represen-
instrumento adequado para externar sua tação drummondiana do corpo5.
insatisfação e seu repúdio, para lutar contra “Europa, França e Bahia” é o primeiro
os males do seu tempo. Porque a imagem poema no qual se verifica isso:
grotesca, desfigurando as proporções na-
turais, exagerando determinados aspectos “Meus olhos brasileiros sonhando
até as raias do monstruoso, dissolvendo as [exotismos.
relações familiares, ou seja, pertencentes Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas
ao cotidiano, que habitualmente existem [como um caranguejo.
entre os objetos, e refletindo o mundo à Os cais bolorentos de livros judeus
semelhança de um espelho convexo, embre- e a água suja do Sena escorrendo
nha-se para além das aparências sensoriais [sabedoria.
e penetra as camadas mais profundas da
realidade. O grotesco expõe, dessa forma, O pulo da Mancha num segundo.
a face de um mundo minado por energias Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes
negativas, e a dimensão inquietante, por [nas docas.
vezes demoníaca, da existência”. Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias
O livro Alguma Poesia deve ser lido [longínquas formam um tapete para Sua
com base no contexto da vanguarda artís- [Graciosa
tica das primeiras décadas do século XX, Majestade Britânica pisar.
além das leituras tradicionais de caráter E a lua de Londres como um remorso.
mais formalista enfocadas nas chamadas 3 Em Brejo das Almas vemos
como em Drummond essa crise
“conquistas modernistas”, tais como o Submarinos inúteis retalham mares da idealidade, entendida como
o desejo de transcendência, é
verso livre, o ritmo novo, e a linguagem [vencidos. imperativa.
coloquial (cf. Garcia, 1996; Martins, 1968; O navio alemão cauteloso exporta 4 Para uma definição do grotesco,
Teles, 1970). José Guilherme Merquior [dolicocéfalos arruinados. ver: Bakhtin, 1987, pp. 27-
50.
(1975) estuda o grotesco em Alguma Hamburgo, embigo do mundo.
5 Ver Guinsburg, 2002. Sobre a
Poesia e aponta para a presença de uma Homens de cabeça rachada cismam em presença do expressionismo na
subjetividade antitrágica em Drummond: [rachar a cabeça dos outros dentro de arte e literatura brasileira, ver no
mesmo livro: Nazário, 2002;
“[...] o humor de Drummond consegue de [alguns anos. Mattos, 2002.

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006 183


A Itália explora conscienciosamente vulcões “Percebemos a passagem do estado do
[apagados, ser vivo para o cadáver, quer dizer, para o
vulcões que nunca estiveram acesos objeto angustiante que é para o homem o
a não ser na cabeça de Mussolini” cadáver de um outro homem. Para cada um
(Andrade, 2002, p. 9). dos que ele fascina, o cadáver é a imagem
de seu destino. Ele testemunha a violência
Esse poema é uma crítica à elite inte- que não somente destrói um homem, mas
lectual brasileira das primeiras décadas do que destruirá todos os homens” (Bataille,
século XX, e apresenta uma atitude negativa 2004, pp. 69).
frente à realidade. Na imageria expressio-
nista dos versos, Paris se caracteriza pela Como é característico de muitos dos
velhice e decadência (“os cais bolorentos”, poemas de Alguma Poesia, quando o leitor
“a água suja do rio Sena”), e a monstruo- começa a identificar-se com a visão do sujei-
sidade da torre Eiffel presente na imagem to lírico, Drummond introduz uma mudança
que combina invenção humana e natureza no poema. Aqui a ironia rompe a expectativa
(a antena-caranguejo). Merquior (1975, p. da possibilidade dessa identificação:
17) observou que, nessa sátira à França,
Drummond declarou-se “contra um dos mais “Chega!
fortes fetiches da cultura de elite brasileira”. Meus olhos brasileiros se fecham
Nessa representação da França, o país perde [saudosos.
seu encanto, restando apenas uma paisagem Minha boca procura a ‘Canção do
“exótica” estranha que, ao invés de seduzir, [Exílio’.
repugna6. A tour expressionista tem conti- Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’?
nuidade em Londres, onde a crítica agora Eu tão esquecido de minha terra...
se faz contra aquilo que a cidade representa Ai terra que tem palmeiras
como símbolo da modernização, isto é, o onde canta o sabiá!”
capitalismo (“Tarifas bancos fábricas trustes (Andrade, 2002, p. 9).
craques”) e o imperialismo. Na visão do
poeta, a própria natureza, representada pela A natureza surge como possibilidade
lua, torna-se cúmplice dessa sociedade7. A de fuga, ainda que irônica, para o sujeito
lua, topos romântico por excelência, outrora lírico que busca escapar da fantasmagoria
única companheira dos seus momentos de urbana que a realidade européia representa.
solidão é agora cúmplice deste mundo que O poeta tenta recuperar a visão romântica
se repugna, como se ela tivesse traído o da natureza como extensão do estado emo-
poeta. Nessa visão negativa do continente cional do sujeito lírico, através do poema
europeu o corpo é reificado (“Milhões de de Gonçalves Dias. Há agora a consciência
6 Sobre a visão da natureza dorsos agachados em colônias longínquas de que o sujeito se transformou; com ele,
dentro da estética expressio-
nista, ver: Fleischer, 2002, pp. formam um tapete para Sua Graciosa Ma- também, a natureza. A natureza perdeu sua
73-6. jestade Britânica pisar”). aura idílica, seu poder de conforto e de
7 Essa visão da lua se encontra Na Alemanha, a alusão à política de refúgio do eu.
também em “Poema de Sete
Faces” (“Eu não devia te dizer/ eugenia do nazismo emergente que faz É interessante observar como na oscila-
mas esta lua/ mas esse conha- apologia da perfeição corporal. Porém, o ção do sujeito lírico de “Europa, França e
que/ deixam a gente comovido
como o diabo”) e “Casamento poeta contrasta a cabeça, “dolicocéfalo”, Bahia” toda a dramaticidade que se vinha
do Céu e do Inferno” (“a lua irô-
nica/ diurética/ é uma gravura com “cabeças rachadas”. A fragmentação construindo nas imagens corpóreas (“doli-
de sala de jantar”) de Alguma da realidade paralela à fragmentação cor- cocéfalos arruinados”, “homens de cabeça
Poesia. Drummond retoma aqui,
parodisticamente, o topos para pórea no corpo textual (o corpo, o dorso, rachada cismam em rachar a cabeça dos
fazer dele motivo de zombaria,
justificativa para toda forma de
o umbigo, a cabeça) é representada pela outros”) desaparece, e o corpo físico do
excesso sentimental do sujeito monstruosidade do corpo. Lembramos social que se desenhava é deslocado para
lírico. Sobre a representação
da lua como motivo poético Bataille, para quem o horror à guerra é ao um segundo plano. A representação da
desde o século XVIII até o mesmo tempo um horror à morte e àquilo realidade torna-se inconseqüente, cedendo
expressionismo, ver: Fleischer,
2002, pp.74-5. que ela representa para o sujeito: lugar ao estado anímico do poeta. Isso se

184 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006


evidencia também no “Poema do Jornal”, olha a bala na negra,
no qual a representação do corpo é apenas olha a negra no chão
um fato jornalístico: e o cadáver com os seios enormes,
[expostos, inúteis”
“O fato ainda não acabou de acontecer (Andrade, 2002, p. 35).
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia. A representação corporal (negra, cadá-
O marido está matando a mulher. ver) remete-nos à estética expressionista
e primitivista das primeiras décadas do
A mulher ensangüentada grita. século XX, no gosto pelo detalhe físico
Ladrões arrombam o cofre. do corpo. O ritmo do poema serve para
A polícia dissolve o meeting. recriar a cena da guerra para o leitor. O
A pena escreve. dinamismo cinematográfico da cena con-
trasta com a fixação da imagem do corpo.
Vem da sala de linotipos a doce música Se o ritmo do poema desvia a atenção do
[mecânica” leitor diante do trágico, a fixação da ima-
(Andrade, 2002, p. 19). gem da negra traz de volta à cena o horror
não à guerra mas sim ao corpo (“o cadáver
No ato de escritura do corpo, o qual “a com os seios enormes, expostos, inúteis”).
pena escreve”, como diz o poeta, a repre- Horror este que espanta e fascina. Lem-
sentação é puramente mecânica. O estilo bramos Georges Bataille (2004, pp. 71-2)
é típico da linguagem vanguardista, aqui para quem “a violência e a morte que ela
presente no dinamismo das imagens e nos significa possuem um duplo sentido: por
flashes rápidos sugerindo as manchetes jor- um lado o horror não afastado, ligado
nalísticas. “Poema do Jornal” está marcado ao apego que a vida inspira; por outro,
por um sentimento absurdo, de indiferença um elemento solene, ao mesmo tempo,
frente à realidade. O ponto de vista distan- aterrador, fascina-nos e provoca, uma
ciado faz da realidade um acontecimento perturbação soberana”. Portanto a estro-
banal, repetitivo do cotidiano. Dessa for- fe acima sugere também a relação entre
ma, o horror configurado na imagem do erotismo e morte. Drummond relaciona
corpo ensangüentado perde-se em meio a morte do corpo à morte do desejo (“o
à gratuidade das manchetes jornalísticas, cadáver com os seios enormes, expostos,
esvaziando o corpo de qualquer carga inúteis”). Ela leva consigo a “utilidade”
humana ou subjetiva, pois o corpo é mera do corpo como objeto de desejo. Isso se
“doce música de linotipos”, como mostram verifica no erotismo em Alguma Poesia,
os versos finais do poema. em que o aspecto grotesco desloca para
Em “Outubro de 1930” o elemento um segundo plano qualquer possibilidade
grotesco tem relação direta com o expres- do despertar sensual no leitor.
sionismo, sobretudo na ênfase colocada O grotesco está presente também no
no detalhe, no corte ou isolamento do seu poema “Romaria”, no seu tratamento do
objeto de representação com o intuito de sentido da fé religiosa:
“gigantizar a realidade pela deformação”,
como sugere Mário de Andrade (cf. Lopez, “Os romeiros sobem a ladeira
1996, p. 21)8 ao equiparar o corpo à gratui- cheia de espinhos, cheia de pedras,
dade dos acontecimentos diários, acentuada sobem a ladeira que leva a Deus
pela rapidez das imagens típicas da poesia e vão deixando culpas no caminho.
de vanguarda:
Os sinos tocam, chamam os romeiros:
8 O livro de Lopez é um dos estu-
“Olha a negra, olha a negra, Vinde lavar os vossos pecados. dos principais sobre a presença
a negra fugindo Já estamos puros, sino, obrigados, do expressionismo na lírica
modernista, em especial na
com a trouxa de roupa, mas trazemos flores, prendas e rezas. poesia de Mário de Andrade.

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006 185


No alto do morro chega a procissão. para receber-me, estais abertos,/ E por não
Um leproso de opa empunha o estandarte. castigar-me estais cravados.// A vós, di-
As coxas das romeiras brincam no vento. vinos olhos, eclipsados,/ De tanto sangue
Os homens cantam, cantam sem parar. e lágrimas abertos […]”) (Matos, 1976,
p. 300) a cena é a mesma, a motivação é,
Jesus no lenho expira magoado. contudo, outra. Em Gregório, a retórica do
Faz tanto calor, há tanta algazarra. sujeito lírico é de culpa e perdão, enquanto
Nos olhos do santo há sangue que escorre. em Drummond é de culpa e favor. Isso não
Ninguém não percebe, o dia é de festa. impede a aproximação dos dois poetas, pois,
como Merquior (1979, p. 12) assinala, “a
No adro da igreja há pinga, café, fé barroca não se perde no Além: canaliza
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros os impulsos religiosos para a presença ativa
e um sol imenso que lambuza de ouro neste mundo”. Desse modo, a subjetividade
o pó das feridas e o pó das muletas. drummondiana coincide com a subjetivi-
dade barroca.
Meu Bom Jesus que tudo podeis, Em “Romaria” é interessante notar como
humildemente te peço uma graça. a verticalidade inicial, caracterizada pela
Sarai-me Senhor, e não desta lepra, subida da ladeira e pela busca do Cristo
do amor que eu tenho e que ninguém me tem. (o celestial), culmina na horizontalidade
do encontro com o terreno, representado
Senhor, meu amo, dai-me dinheiro, pelas motivações mundanas dos romeiros.
muito dinheiro para eu comprar A primeira cena mostra o martírio do cor-
aquilo que é caro mas é gostoso po ao subir a ladeira (“cheia de espinhos,
e na minha terra ninguém não possui. cheia de pedras”). O corpo martirizante (o
leproso de opa, o sangue que escorre na
Jesus meu Deus pregado na cruz, face de Cristo, os aleijados e feridos, repre-
me dá coragem pra eu matar sentados metonimicamente pelas muletas e
um que me amola de dia e de noite feridas) tem paralelo com o corpo festivo
e diz gracinhas a minha mulher. (o desejo representado pelas coxas das
romeiras, a música, a aguardente, o café, o
Jesus Jesus piedade de mim. cigarro, o baralho). Nessa visão irônica da
Ladrão eu sou mas não sou ruim não. religiosidade, observamos como o corpo,
Por que me perseguem não posso dizer. representado pelos desejos individuais,
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo. na valorização topográfica do “baixo” em
oposição ao “alto”, como sugere Bakhtin
Os romeiros pedem com os olhos, (1987, p. 18), ocupa um papel de relevân-
Pedem com a boca, pedem com as mãos. cia ao enfatizar o elemento humano e tirar
Jesus já cansado de tanto pedido o caráter transcendental dos romeiros. As
Dorme sonhando outra humanidade” imagens corpóreas servem para enfatizar o
(Andrade, 2002, pp. 37-8). elemento humano, o físico e o terreno.
A representação grotesca do corpo toma
O poeta, na sua crítica à religiosidade, lugar também na “Elegia do Rei de Sião”:
desmascara as motivações religiosas de
interesse pessoal que movem os fiéis. A “Pobre rei de Sião que morreu de desgosto
ironia se revela nesse desajuste, na tensão por não ter um filho varão.
entre os desejos humanos e o ideal de espi- Pobre rei de Bangkok educado em Oxford,
ritualidade que observamos no barroco, es- pequenino, bonito, decorativo,
pecialmente na poesia religiosa de Gregório que morreu especialmente para nos
de Mattos. No poema “Buscando a Cristo” [comover.
(“A vós correndo vou, braços sagrados,/ O filho que desejava, a Ásia não deu
Nessa cruz sacrossanta descobertos;/ Que, e seu desejo de um filho era maior

186 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006


[do que a Ásia. culmina no patético (“o rei caiu para trás
Pobre rei de Sião, que Camões não cantou. como um europeu,/ adoeceu, bebeu um
Amou três mulheres em vez de mil veneno terrível e morreu”).
e nenhuma lhe deu um filho varão.
De sua costela real nasceu uma pequena
[siamesa. A ERÓTICA GROTESCA
Ao vê-la, o rei caiu para trás como um
[europeu, Mário de Andrade criticou a erotiza-
adoeceu, bebeu um veneno terrível e ção do grotesco em Alguma Poesia, pois
[morreu. considera o amontoado de pernas e coxas,
Seu coração enegreceu de repente, as “notações sensuais, ora sutis como a da
o corpo ficou todo fofo pele picada por mosquitos, ou do dente de
ouro da bailarina, ora maleducados como o
Depois queimaram o corpo fofo e o coração das tetas”, fizeram do poeta de Itabira “um
[preto numa fogueira esplêndida ostensivo debochado” que “virou grosseiro,
e a alma do rei de Sião fugiu entre os virou realista” (in Andrade, 1982, p. 157).
[canais. Esse realismo é o grotesco expressionista
que vimos discutindo, especialmente o
Pobre reizinho de Sião” elemento erótico. O grupo de poemas de-
(Andrade, 2002, p. 32). nominado “seqüestro sexual” por Mário
ajuda-nos a compreender a importância
No poema “Outubro de 30”, analisado do grotesco na representação do corpo em
anteriormente, a morte tem uma presença Alguma Poesia.
alusiva. Na “Elegia do Rei de Sião” ela ad- Enquanto nos poemas anteriormente
quire maior expressividade devido ao tom analisados o corpo se configura no grotesco
elegíaco que favorece uma identificação da morte, na decadência física, nesse grupo
do poeta com seu objeto de representação. de poemas é o corpo erotizado que se vê
Todavia, o elemento trágico é aqui filtrado grotesco, como em “Cabaré Mineiro”, que
pela carga lírica do poema e pelo elemento passamos a examinar:
cômico, caracterizado pelo grotesco das
imagens (o coração enegrecido, o corpo “A dançarina espanhola de Montes Claros
fofo). Se em um primeiro momento há dança e redança na sala mestiça.
uma empatia do poeta para com a figura Cem olhos morenos estão despindo
do rei, no tom elegíaco, esse sentimento seu corpo gordo picado de mosquito.
é logo afastado pela presença do humor. Tem um sinal de bala na coxa direita,
A materialização corporal da figura do rei o riso postiço de um dente de ouro,
contribui para a amenização do elemento mas é linda, gorda e satisfeita.
trágico, chegando ao grotesco (“Depois Como rebola as nádegas amarelas!
queimaram o corpo fofo e o coração preto Cem olhos brasileiros estão seguindo
numa fogueira esplêndida/ e a alma do rei o balanço doce e mole de suas tetas...”
de Sião fugiu entre os canais”). O corpo é (Andrade, 2002, p. 30).
fundamental aqui para humanizar o rei. O
grotesco transforma a imagem nobre que o O “Cabaré Mineiro” é um prolonga-
rei representa. Para Bakhtin (1987, p. 17), mento da “vida besta” acrescentando-se a
“o traço marcante do realismo grotesco é sexualidade, e deixa entrever o automatis-
o rebaixamento, isto é, a transferência ao mo da repetição cotidiana onde o desejo
plano material e corporal, o da terra e do se constitui ação mecânica do olhar sobre
corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo o corpo9. Na representação do objeto de 9 Além disso, nota-se o elemento
paródico de uma longa tradição
que é elevado, espiritual, ideal e abstrato”. desejo, o corpo feminino carece de sua romântica de poemas sobre
Desse modo, com a degradação, o rei se totalidade, restando apenas uma imagem dançarinas, tais como Salomé,
Laís (cf. Sant’Anna, 1985, pp.
re-humaniza e a tragicidade da sua morte fragmentada (a coxa, a boca, as nádegas). 102-13).

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006 187


O elemento de mistério que caracteriza o a coxa morena
objeto de desejo é construído sobre um sólida construída,
estereótipo, representado pelo exotismo mas ninguém repara
da identidade da dançarina (espanhola). O os olhos se perdem
mesmo estereótipo se passa com os sujeitos na linha ondulada
desejantes em que apenas uma nota racial do horizonte próximo
(o corpo mestiço, o corpo moreno) indica a (a cerca da horta).
identidade. Em termos bakhtinianos o dese- A família mineira
jo eleva o objeto que o motiva e o grotesco o Olha para dentro.
rebaixa: o corpo gordo picado de mosquito,
o sinal de bala na coxa, o riso postiço de O filho mais velho
um dente de ouro, as nádegas amarelas, as canta uma cantiga
tetas moles. Segundo Bataille (2004, p. 45) nem triste nem alegre,
na sua discussão do erotismo como um dos uma cantiga apenas
aspectos da vida interior do homem: mole que adormece.
Só um mosquito rápido
“A escolha de um objeto sempre depende mostra inquietação.
dos gostos pessoais do sujeito: mesmo O filho mais moço
que ela aconteça em relação à mulher que ergue o braço rude
a maioria teria escolhido, o que está em enxota o importuno.
jogo é freqüentemente um aspecto inapre- a família mineira
ensível, não uma qualidade objetiva dessa está dormindo ao sol”
mulher, que, se não tivesse uma repercussão (Andrade, 2002, pp. 33-4).
em nosso interior, talvez não suscitasse a
preferência”. “Sesta”, assim como “Cabaré Minei-
ro”, “Iniciação Amorosa” e “Cidadezinha
A mesma presença do erotismo grotesco Qualquer”, é representativo da poética da
pode ser vista também no poema “Sesta” no “vida besta”, da ridicularização do universo
qual o rebaixamento faz com que não haja, interiorano. Luiz Costa Lima observou na
por parte do poeta, qualquer sublimação do sua análise de “Iniciação Amorosa”, que a
corpo físico ou do corpo social, representado atitude de Drummond coloca em questão
pela celebração da vida no campo: “o idílico da arcádia tropical” tão comum
à visão romantizada da natureza brasileira
“A família mineira (Lima, 1968, p. 139). Em “Sesta” a nota
está quentando sol sensual grotesca encontra-se presente na
sentada no chão imagem da filha mais velha da família mi-
calada e feliz. neira coçando a perna ferida. Em “Cabaré
O filho mais moço Mineiro” o corpo apresenta-se desejante,
olha para o céu, apesar da degradação corporal, do contrário,
para o céu não, em “Sesta” não há nenhuma motivação de
para o cacho de bananas. ordem do desejo sexual interno, a não ser
Corta ele, pai. pelo comentário do poeta sobre o corpo fe-
O pai corta o cacho minino (a coxa morena da filha que ninguém
e distribui pra todos. repara). A única aspiração dessa família é
a família mineira representada pelo cacho de bananas, pela
está comendo banana. sesta, pelo corpo em descanso. Isso porque
o corpo surge apenas como um pequeno
A filha mais velha detalhe no limitado (“a cerca da horta”) e
coça uma pereba monótono universo rural no qual “só um
bem acima do joelho. mosquito rápido” e inoportuno, logo en-
A saia não esconde xotado pelo filho mais moço, quebra a paz

188 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006


bucólica e patética da família dormindo ao A “Cantiga de Viúvo” apresenta a com-
sol. Como observa Gledson (1981, p. 66), binação do erotismo com a morte, outro
“a sugestão de excitação sexual em breve aspecto importante da configuração do
se dissipa em indiferença”. grotesco em Alguma Poesia:
O desejo no universo interiorano mineiro
descrito em Alguma Poesia está marcado “A noite caiu na minh’alma,
pelo distanciamento do sujeito lírico e carre- fiquei triste sem querer.
ga a marca do grotesco na sua representação. Uma sombra veio vindo,
Esse distanciamento se apresenta também veio vindo,
no poema “Iniciação Amorosa”: me abraçou.
Era a sombra de meu bem
“A rede entre duas mangueiras que morreu há tanto tempo.
balançava no mundo profundo,
o dia era quente, sem vento. Me abraçou com tanto amor
O sol lá em cima, me apertou com tanto fogo
as folhas no meio, me beijou, me consolou.
o dia era quente.
E como eu não tinha nada que fazer vivia Depois riu devagarinho,
[namorando as pernas morenas da lavadeira. me disse adeus com a cabeça
e saiu.
Um dia ela veio para a rede, Fechou a porta.
se enroscou nos meus braços, Ouvi seus passos na escada.
me deu um abraço Depois mais nada...
me deu as maminhas Acabou
que eram só minhas. (Andrade, 2002, pp. 14-5).
A rede virou,
o mundo afundou. Mirella Vieira Lima (1995, p. 34) situa
“Cantiga de Viúvo” na tradição dos poemas
Depois fui para a cama do encontro do poeta com a amada morta e
febre 40 graus febre. do “amor-paixão”, do encontro amoroso na
Uma lavadeira imensa, com duas tetas noite – “instância das sombras, superação
[imensas, girava no espaço verde” do mundo físico e de suas dimensões”. Se-
(Andrade, 2002, p. 29). gundo a crítica, esse poema “é ambíguo em
relação ao mito das trevas, oscilando entre
Na visão ironizada do idílio mineiro e a sua reinstalação e o seu esvaziamento. O
da própria experiência amorosa do sujeito ‘encontro na noite’ é atingido pela ironia,
lírico, o corpo apresenta a sua iniciação sem entretanto deixar de sustentar a cena
sexual. Silviano Santiago (1976, p. 60), a amorosa do poema” (Lima, 1995, p. 37).
partir de uma leitura psicanalítica, observou Lima conclui a sua análise argumentando
como a imagem da rede repete “mimetica- que no primeiro livro de Drummond:
mente os movimentos do berço, embala-se o
adolescente ativando a pulsão que o levaria “[...] o amor é também necessidade de uma
a substituir o seio materno por este outro amada fisicamente presente. São portanto
seio que se oferece no espaço-da-exclusão: urgentes o amor e o discurso amoroso que
seio moreno e não pertencente aos do círculo ultrapassem o universo espiritual da noite.
familiar”. No momento em que o sujeito A amada não pode mais surgir sem um
lírico tem como certa a consumação do ato corpo, sombra noturna que se esvai, sem
sexual, o corpo é jogado ao chão, e com que ouçamos o barulho de uma ostentação
ele toda a possibilidade do gozo, restando amarga, apenas o corpo sensual, ‘pernas’,
apenas o êxtase no delírio febril e a alusão visto em seu imediatismo material” (Lima,
metonímica das “duas tetas imensas”. 1995, pp. 39-40).

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006 189


O que está em jogo no poema que catastróficos, freqüentemente a morte. A
analisamos é a tematização do desejo por sombra aqui representa uma extensão do
meio da figura da sombra da amada morta eu que, uma vez revelada, condena o indi-
(“Era a sombra de meu bem/ que morreu víduo a um enfrentamento consigo mesmo
há tanto tempo”). A constante referência às fazendo-o recordar, a todo instante, o destino
partes do corpo em Drummond (as pernas, trágico de sua condição”.
os seios, a boca, as nádegas) não é apenas
a incapacidade de captação do objeto de O argumento de Moraes aplicado a nossa
desejo pelo sujeito desejante, em que o uso leitura do poema de Drummond sugere a
da metonímia prevalece. Para representar a sombra como representação do inconsciente
satisfação do desejo, Drummond faz uso da e do confrontamento do eu com seu duplo.
metáfora. O seu objeto de desejo, apesar do Desse modo, a consciência do “destino
aspecto fantasmagórico, incorpóreo, surge trágico de sua condição” em Drummond
como uma totalidade metafórica, distinta seria a própria consciência do desejo como
da parcialidade característica da metoní- falta/carência (da amada) e da sua fugaci-
mia. Não queremos dizer com isso que o dade, indicados nos versos finais.
amor não esteja presente no poema, mas “Cantiga de Viúvo” é um poema em que
que a presença do amor é um pretexto para a temporalidade do desejo é representada
elaborar inconscientemente uma visão do pelo “final feliz”, momentâneo do corpo.
desejo. Como observa Hobbes (apud Chauí, Na sublimação (relativa) do corpo, o desejo
1990, p. 24), “desejo e amor são a mesma se revela como força motriz da individua-
coisa, salvo que por desejo sempre se quer lidade a transcendê-lo através da morte
significar a ausência do objeto e quando se como realidade física. Mesmo na ausência
fala em amor, geralmente, se quer indicar do corpo físico da amada, o desejo acaba
a presença do mesmo”. por superá-la, concretizado como presença
O primeiro verso sugere o adormecer e erótica. O poema não somente tematiza o
o sono (“A noite caiu na minh’alma”)10. Já corpo desejante como também apresenta os
o segundo verso, se por um lado apresenta paradoxos da natureza própria do desejo,
a condição de abandono involuntário do isto é, a satisfação (“Me abraçou com tanto
sujeito lírico (“fiquei triste sem querer”), amor/ me apertou com tanto fogo/ me beijou,
por outro a locução adverbial sem querer me consolou”) e a insatisfação que é revela-
sugere, na sua substantivação (o querer), a da na última estrofe, na saída da sombra da
ausência do desejo. Lembrando o signifi- cena amorosa (“Depois riu devagarinho,/ me
cado dos sonhos na psicanálise, a questão disse adeus com a cabeça/ e saiu./ Fechou a
do desejo ganha relevância, sobretudo porta./ Ouvi seus passos na escada./ Depois
considerando-se a sua latência em todo mais nada.../ acabou”).
o livro. Para Freud (1999), os sonhos são O elemento trágico, combinado com
um caminho real que conduz às retrações o grotesco, é tema também da “Balada
inconscientes da mente. São portanto os do Amor Através das Idades”, em que
sonhos que revelam os conteúdos mentais Drummond trata da impossibilidade de
que foram reprimidos ou excluídos da consumação plena do amor e da dialética
consciência pelas funções defensivas do da conquista, construída sobre um marco
ego. Nessa mesma linha, Eliane Robert irônico:
Moraes (2002, p. 101) observa, estudando
as manifestações do topos da sombra na “Eu te gosto, você me gosta
literatura oitocentista, que desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você era troiana, troiana mas
“[...] o espectro surge sempre para desvendar [não Helena.
10 Mirella Vieira Lima (1995, pp.
33-4) faz uma aproximação da uma realidade oculta, ora identificada com Saí do cavalo de pau
temática da noite nesse poema forças do inconsciente, ora com segredos do para matar seu irmão.
a partir do estudo de Antonio
Candido sobre o romantismo. passado ou ainda com a previsão de fatos Matei, brigamos, morremos.

190 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006


Virei soldado romano, Você é uma loura notável,
perseguidor de cristãos. boxa, dança, pula, rema.
Na porta da catacumba Seu pai é que não faz gosto.
encontrei-te novamente Mas depois de mil peripécias,
Mas quando vi você nua eu, herói da Paramount,
caída na areia do circo te abraço, beijo e casamos”
e o leão que vinha vindo, (Andrade, 2002, p. 30).
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois. A distância entre o universo dos amantes,
nos casos mencionados, evolui no corpo
Depois fui pirata mouro, moderno, na apologia do cuidado individual
flagelo da Tripolitânia. que anula a diferença entre os indivíduos.
Toquei fogo na fragata Nessa visão irônica do amor através dos
onde você se escondia tempos, vê-se como Drummond aponta para
da fúria de meu bergatim. um novo tipo de subjetividade inaugurada
Mas quando ia te pegar pela modernidade. Nela, o sujeito lírico é
e te fazer minha escrava, um novo sujeito com heroicidade cinema-
você fez o sinal-da-cruz tográfica, resultado do século XX com a
e rasgou o peito a punhal... modernização, o surgimento duma socieda-
Me suicidei também. de de massa. Isto é, um sujeito incapaz de
heroicidade a não ser no cinema, para quem
Depois (tempos mais amenos) o cuidado com o corpo passa a ser o capital
fui cortesão de Versailles, simbólico no jogo amoroso masculino e
espirituoso e devasso. feminino: “Hoje sou moço moderno,/ remo,
Você cismou de ser freira... pulo, danço, boxo […] Você é uma loura
Pulei muro de convento notável,/ boxa, dança, pula, rema”11. Para o
mas complicações políticas sujeito lírico da balada, todo desejo é pos-
nos levaram à guilhotina” sível de satisfação, como sugere o culto do
(Andrade, 2002, pp. 29-30). corpo do herói hollywoodiano (“Mas depois
de mil peripécias,/ eu, herói da Paramount,/
O trágico de cada experiência amorosa te abraço, beijo e casamos”).
segue pelo tempo, tornando-se banalizado Recapitulando, pode-se dizer que a re-
em si mesmo: “Matei, brigamos, morre- presentação do corpo em Alguma Poesia
mos”; “o leão comeu nós dois”; “você fez tem relação direta com as vanguardas das
o sinal-da-cruz/ e rasgou o peito a punhal.../ primeiras décadas do século XX. O corpo
Me suicidei também”; “complicações po- nesse livro prima por seu aspecto grotesco,
líticas/ nos levaram à guilhotina”. Mais do por sua deformação e exagero. A inevitável
que marcar o trágico, observemos como relação desse tipo de caracterização do cor-
se constrói a subjetividade dos amantes po, enfatizada por Mikhail Bakhtin e Hugo
nesse poema. Através dos tempos o amor Friedrich, com o expressionismo surge
é impedido de realização por guerras, re- claramente nesse livro. O corpo é posto ora
ligião, revoluções até a época moderna, a serviço da representação irônica da “vida
quando o obstáculo que levaria à tragédia besta” (o corpo grotesco erotizado), ora a
desaparece, transformando-se em burgue- serviço da representação trágico-cômica
sice, como sugere Mário de Andrade (in dos acontecimentos da realidade (o corpo
Andrade, 1982, p. 158). Vejamos a última deformado). A acentuação da fealdade do
estrofe do poema: corpo emerge como sinal de inconformismo
e parte constitutiva da construção do humor,
11 Para uma análise do assunto
“Hoje sou moço moderno, da ironia presente no livro, ao mesmo tempo e das principais discussões
remo, pulo, danço, boxo que acentua a visão realista e antiidealista teóricas obre o lugar do corpo
numa sociedade de consumo,
tenho dinheiro no banco. de Drummond. A visão ironizada do amor ver: Turner, 1996.

REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006 191


12 Segundo Mike Featherstone moderno apresentada no poema “Balada em Alguma Poesia. Isto é, em Drummond
(1982, p. 26), “A preserva-
ção individual depende da do Amor Através das Idades”, analisado apaga-se a possibilidade do trágico em nome
preservação do corpo dentro acima, resume a representação do corporal do happy ending do corpo12.
de determinada cultura na
qual o corpo é o passaporte
para tudo que é bom na vida...
A secularização do corpo
resultou no eclipse do propósito
religioso tradicional do corpo
em que ele era tido como um BIBLIOGRAFIA
veículo de transição, um meio
de transcendência espiritual.
Hoje, dor, sofrimento e morte ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2002.
são vistos como intrusões inde- ________ (org.). A Lição do Amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro,
sejáveis no meio de uma vida
feliz e a imagística da cultura José Olympio, 1982.
de consumo que decretou que a
vida pode e deve ser feliz para
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo, Arx, 2004.
sempre” (tradução minha). BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o Contexto de Rabelais. Trad. Yara Frateschi
Vieira. São Paulo, Hucitec, 1987.
BRAYNER, Sônia (org.). Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978 (Col. Fortuna Crítica).
CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na Poesia de Carlos Drummond de Andrade”, in Vários Escritos. São Paulo, Duas
Cidades, 1995.
CHAUÍ, Marilena. “Laços do Desejo”, in Adauto Novaes (org.). O Desejo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
DRUCKER, Johana. Theorizing Modernism: Visual Arts and the Critical Tradition. New York, Columbia University Press, 1994.
FEATHERSTONE, Mike. “The Body in Consumer Culture”, in Theory, Culture and Society (1), 1982, pp. 18-33.
FLEISCHER, Marion. “O Expressionismo e a Dissolução de Valores Tradicionais: uma Evolução Espiritual e Estética, um
Período de Análise e Protesto”, in J. Guinsburg (org.). O Expressionismo. São Paulo, Perspectiva, 2002.
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro, Imago, 1999.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo, Duas Cidades, 1991.
GARCIA, Othon Moacyr. Esfinge Clara. São Paulo, Topbooks, 1996.
GLEDSON, John. Poesia e Poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo, Duas Cidades, 1981.
GUINSBURG, J. (org.). O Expressionismo. São Paulo, Perspectiva, 2002.
HOUAISS, Antonio. Drummond Mais Seis Poetas e um Problema. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
HUYSEEN, Andreas. “Paris/Childhood: The Fragmented Body in Rilke’s Notebooks of Malte Laurids Brigge”, in Andreas
Huyseen & David Bathrick (orgs.). Modernity and the Text: Revisions of German Modernism. New York, Columbia
University Press, 1989, pp.113-41.
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da Intimidade: Imagens na Poesia de Mário de Andrade. São Paulo, Martins Fontes, 1986.
LIMA, Luiz Costa. Lira e Antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
LIMA, Mirella Vieira. Confidência Mineira: o Amor na Poesia de Carlos Drummond de Andrade. Campinas/São Paulo,
Pontes/Edusp, 1995.
LOPEZ, Telê Ancona. Mariodeandradiando. São Paulo, Hucitec, 1996.
MARTINS, Hélcio. A Rima na Poesia de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
MATTOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. Seleção de José Miguel Wisnik. São Paulo, Cultrix, 1976.
MATTOS, Cláudia Valladão de. “Histórico do Expressionismo”, in J. Guinsburg (org.). O Expressionismo. São Paulo,
Perspectiva, 2002, pp. 62-3.
MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975.
________. De Anchieta a Euclides. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979.
MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. São Paulo, Iluminuras, 2002.
NAZÁRIO, Luiz. “O Expressionismo no Brasil”, in J. Guinsburg (org.). O Expressionismo. São Paulo, Perspectiva, 2002, pp. 607-46.
NOVAES, Adauto (org.). O Desejo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. São Paulo, Perspectiva, 1971.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O Canibalismo Amoroso. São Paulo, Brasiliense, 1985.
________. Drummond: O Gauche no Tempo. Rio de Janeiro, Record, 1992.
SANTIAGO, Silviano. Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis, Vozes, 1976.
STERNBERG, Ricardo da Silveira Lobo. The Unquiet Self: Self and Society in the Poetry of Carlos Drummond de Andra-
de. Valencia, Albatroz/Hispanofila, 1986.
TELES, Gilberto Mendonça. Drummond – A Estilística da Repetição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1970.
TURNER, Bryan S. The Body & Society. London, Sage Publications, 1996.

192 REVISTA USP, São Paulo, n.69, p. 181-192, março/maio 2006

Você também pode gostar