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Jônatas Dias Lima

Francisco Augusto Garcia (org)

PRECISAMOS FALAR
SOBRE HOMESCHOOLING

Argumentos para a aprovação da


educação domiciliar no Brasil
Jônatas Dias Lima

Francisco Augusto Garcia (org)

Precisamos falar sobre o Homeschooling


Argumentos para a aprovação da educação domiciliar no Brasil

1ª Edição

2020
Autor:​ Jônatas Dias Lima

Edição e organização:​ Francisco Augusto Garcia

Revisão:​ Edilaine Alberton Lima e Pedro Paulo Teófilo Magalhães de Hollanda

1. Educação domiciliar. 2. Direitos humanos. 3. Congreso Nacional.

JÔNATAS DIAS LIMA - Jornalista, 36 anos, graduado pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUCPR), com especialização em Ética pela mesma instituição. Durante 13 anos
atuou como repórter e editor do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, onde cobriu
principalmente temas relacionados à família e educação. Em 2014, venceu dois prêmios
jornalísticos: o Prêmio Estácio de Jornalismo, na categoria Região Sul, pela melhor
reportagem sobre ensino superior; e o Prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia, pela
melhor reportagem de divulgação científica. Atualmente é assessor parlamentar na Câmara
dos Deputados, em Brasília, onde atua junto à Frente Parlamentar em Defesa do
Homeschooling.​

FRANCISCO AUGUSTO GARCIA - Pedagogo e Engenheiro Eletricista graduado pela


Universidade de Brasília (UnB), com mestrado em Engenharia Elétrica pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), tem experiência em políticas públicas para primeira
infância, e políticas voltadas para a família, além de ter experiência na formação de
professores nas áreas de pedagogia e letras.

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Sumário
Prefácio 4

Introdução 6

O homeschooling não tem cor ideológica 8

É a tecnologia – e não a religião – o que está impulsionando o ensino domiciliar 10

O que o homeschooling tem a ver com a entrada do Brasil na OCDE? 12

Para praticar homeschooling em paz, eles venderam tudo e deixaram o Brasil 14

Ensino domiciliar não é política pública 16

EUA têm leis de homeschooling para todos os gostos. Funcionariam no Brasil? 18

Como funciona o ensino domiciliar (homeschooling) em Portugal 23

O que Nelson Mandela tem a ver com o homeschooling na África do Sul 26

O homeschooling pode mesmo provocar a falência e desemprego? 28

É possível conciliar uma lei do homeschooling e a proteção das crianças​? 30

Do PT a Bolsonaro: 15 projetos de lei sobre homeschooling 32

Os argumentos contra o homeschooling não justificam rejeição à existência de lei 35

Os gênios educados em casa são a melhor propaganda para o ensino domiciliar 37

Por falta de lei, o Estado não sabe nada sobre o ensino domiciliar brasileiro 40

Famílias homeschoolers: a minoria desprezada por defensores de minorias 42

No caso do homeschooling, regulamentação é liberdade 44

Esquerda a favor do homeschooling? Eles existem e são comuns 46

Por que a pandemia fez o interesse por homeschooling crescer tanto 48

O bom momento político para aprovação do ensino domiciliar 50

3
Prefácio

Todo mundo é a favor da educação. Não há ninguém, rico ou pobre, que não
reconheça a necessidade de buscar esse bem para si, mesmo que às vezes em situação
contingente, e para os seus filhos. A Constituição Federal traz logo nos seus primeiros
artigos a função da educação como um direito social, e o artigo 227 dá o contorno de como
se efetivará esse direito: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Fica evidente o
princípio da subsidiariedade nas responsabilidades da educação dos filhos e explicita uma
ordem que deve ser respeitada: primeiro, a família.

A família é base da sociedade e merece especial proteção do Estado. É na família


que se vive a educação de maneira integral, em todas as suas dimensões: racional, social,
emocional, física e transcendente, e só a família tem laços perenes e de amor, de amor
abnegado, de uma entrega total em busca do melhor para os seus. Mesmo as boas escolas
não pretendem, nem poderiam, substituir a família nesses aspectos do desenvolvimento
humano da criança. Cabe à família, sempre, esse papel, a partir de um olhar único,
personalizado, para um ser irrepetível. Cada criança é única e precisa ser respeitada na sua
individualidade, e a escola tradicional não consegue, embora tente, ter um olhar para cada
criança. Não queremos aqui estabelecer uma dicotomia entre família e escola, mas
justamente o contrário. Para atender ao superior interesse da criança e respeitar a liberdade
dos pais na educação dos seus filhos que surge a ideia da educação domiciliar. Educação
domiciliar que é sim um direito humano.

Em países em que a educação domiciliar é regulamentada, muitas vezes filhos de


uma mesma família são atendidos na modalidade escolar e na modalidade domiciliar, em
função das necessidades específicas de cada crianças. Ou seja, o foco é a criança. A
educação domiciliar não é uma revolta à escola, não é uma postura contra a educação em
busca de um sectarismo, mas a busca do melhor ambiente educativo para os filhos.

4
Os artigos que se seguem vão apresentar dados estatísticos, modelos de
regulamentação, experiências de outros países, um histórico da tramitação de diversos
Projetos de Lei sobre o tema no Câmara dos Deputados e no Senado Federal, além de
refutar alguns argumentos daqueles que são contrários à regulamentação da modalidade
domiciliar.

O autor, meu amigo, conduz o assunto com leveza e profundidade. Profundidade de


quem conhece de perto a realidade de muitas famílias educadoras. Se não sabemos
quantas são, sabemos que ninguém entra nessa aventura sem estar preparado.

Sabemos que hoje há uma generosa oferta de materiais, livros didáticos, materiais
complementares, atividades de leitura, modelos de currículos, grupos de apoio para ajudar
aqueles que desejam investir na educação domiciliar. Eu, como pedagogo, percebo um
movimento muito grande em busca de mais formação por parte dos pais. Muitos têm
licenciatura, fazem especialização, mestrado, formações complementares. Outros buscam
apoio em grupos de pais, contratam professores para pequenos grupos, buscam tutores
para alguma disciplina, além de toda uma gama de atividades complementares
“extraclasse”, como atividades físicas, artísticas, línguas estrangeiras, passeios culturais,
exposições.

Se, no entanto, ainda ficamos com o pé atrás, se ainda estamos muito habituados
ao modelo atual de escola tradicional, se nos restam dúvidas dos benefícios da educação
domiciliar, ainda assim o melhor caminho é a regulamentação.

Queria convidá-los para lerem as próximas páginas com o coração aberto e com a
caneta na mão. Todas as dúvidas serão resolvidas. Ninguém quer aprovar nada atropelado,
e muitos já estão nesse caminho há bastante tempo.

Francisco Augusto Garcia

5
Introdução

A decisão do STF no julgamento sobre a constitucionalidade do ensino domiciliar,


ocorrido em 2018, afetou de forma intensa a vida das famílias brasileiras que já haviam
aderido à modalidade. Embora não houvesse lei específica, a situação do ​homeschooling
no país antes do julgamento não era clara e havia interpretações plausíveis para concluir
que o texto da Constituição, lido em conjunto com acordos internacionais sobre direitos
humanos dos quais o Brasil é signatário, permitiria a prática. Isso, somado ao
descontentamento das famílias com a baixa qualidade da rede pública do ensino, aos
preços moralmente questionáveis das escolas privadas e vários outros fatores, levou ao
crescimento do interesse por essa forma de educação. Assim, surgiram milhares de
adeptos no Brasil.

No entanto, com o julgamento em plenário por parte do Supremo, e principalmente


após a publicação do acórdão referente ao mesmo, o que ocorreu em março de 2019, a
situação do ensino domiciliar no Brasil ficou clara. Os ministros decidiram que a modalidade
é compatível com a Constituição, sob determinadas condições. A mais importante delas é a
de que haja lei que a regulamente.

Não foi o resultado esperado pelos defensores do ​homeschooling ​na ocasião, mas
podia ter sido pior. O STF poderia ter destruído qualquer esperança para as famílias
adeptas da educação em casa naquele julgamento, afirmando que o ensino domiciliar é
inconstitucional, mas não o fez. Escolheu passar a bola para o Legislativo, mantendo um
pouco de luz no fim do túnel, mas não sem consequências drásticas para famílias que já
haviam sido injustamente denunciadas por “abandono intelectual”, apesar das evidências de
aprendizagem que podiam mostrar.

Após um período em que todos os processos foram suspensos até que o julgamento
ocorresse, as ações voltaram a andar e uma nova temporada de caça às famílias
homeschoolers voltou com toda a força, motivada, sobretudo, por agentes públicos
obstinados em fazer o tema morrer no Brasil. Ao que tudo indica, fracassaram nessa tarefa,
mas a lei ainda não veio e a perseguição não acabou.

Esse é o contexto no qual teve início a dura corrida por uma lei que dê às famílias o
reconhecimento do direito de educar em casa, mesmo que para tal conquista fosse

6
necessário se submeter a determinadas exigências, contanto que sejam razoáveis. Os
artigos a seguir foram todos escritos com esse objetivo: conquistar uma lei para o
homeschooling no Brasil.

Para atingir tal fim, dediquei-me, primeiro, a estudar as argumentações mais usadas,
tanto por defensores como por aqueles que se opõem à legalização da modalidade. Essa
etapa envolveu horas de leitura e muitas conversas com agentes relevantes no processo.
Participação em eventos como reuniões, simpósios e palestras também contribuíram, mas o
foco de atenção sempre esteve nas forças de influência atuantes no Congresso Nacional e,
em certa medida, suas correlatas nas Casas legislativas de unidades da federação e
municípios.

Convém destacar também que, com tal objetivo, a mera publicação dos textos
jamais atingiria seu fim se os mesmos não chegassem às pessoas com maior poder
decisório na produção de leis: os parlamentares. Por isso, a cada artigo publicado, os links
de acesso foram enviados para deputados federais, senadores e outros agentes públicos
fundamentais para o sucesso da regulamentação do ensino domiciliar.

Não poderia encerrar essa introdução sem antes agradecer ao jornal Gazeta do
Povo, uma casa de excelência jornalística na qual tive a alegria de servir como repórter e
editor durante 13 anos, e com a qual contribuo ainda hoje, agora, de forma voluntária. Como
ocorre também em outros temas, a Gazeta do Povo assumiu um valiosíssimo protagonismo
no debate sobre o ensino domiciliar no Brasil, abrindo espaço não apenas para os textos
semanais de minha autoria, mas também para consistentes reportagens que influenciaram
– e ainda influenciam – as conversas sobre o tema nos corredores do Congresso Nacional.

Registro também minha gratidão ao deputado federal Filipe Barros, parlamentar a


quem tenho a satisfação de assessorar, e que também é um grande defensor da
legalização do ensino domiciliar, ajudando a causa não apenas discursando na tribuna e
nas redes sociais, mas também de formas muito mais efetivas – ainda que discretas –
abrindo caminhos políticos que só poderiam ser abertos por um dos mais influentes nomes
da atual legislatura, e somente por alguém com enorme prestígio junto ao Governo Federal.

Jônatas Dias Lima

7
O homeschooling não tem cor ideológica1

Quem se aventura a debater sobre ensino domiciliar (​homeschooling)​ no Brasil


precisa estar disposto, primeiro, a gastar muito de suas energias revelando a fragilidade de
mitos repetidos à exaustão, e quase sempre desprovidos de razoabilidade. A meu ver, um
dos que mais atrapalham a aprovação de uma lei que regulamente a modalidade é a falsa
crença de que educar os filhos em casa é coisa da “direita religiosa conservadora”. Se isso
foi verdade um dia, há décadas deixou de ser e é fácil provar.

Antes, contudo, convém ser compreensivo com quem acreditou nessa fábula por
nunca ter tomado conhecimento do assunto antes da chegada do governo Bolsonaro. O
volume de conteúdo disponível para pesquisa sobre o homeschooling no Brasil só cresceu
nos últimos anos. Antes, era de uma escassez e superficialidade espantosas. Quando o
atual governo – o primeiro de direita desde a redemocratização - incluiu entre suas metas a
aprovação do ensino domiciliar, o ato foi o suficiente para uma multidão de leigos no
assunto decretarem que isso só podia ser coisa dessa gente que acabou de chegar ao
poder.

A história recente do ensino domiciliar no mundo, entretanto, mostra fatos que


podem ser chocantes para ativistas de direita e de esquerda. Nem sequer precisamos ir
muito longe para achar líderes políticos supostamente inusitados defendendo uma
modalidade que, pela lógica desse mito, nunca seria defendida por eles.

Olhemos primeiro para nosso vizinho latino-americano, o Equador. Lá, o direito ao


ensino domiciliar foi garantido pela ​Constituição promulgada em 2008 e regulamentado por
um ​acordo ministerial emitido em 2013​. Nas duas ocasiões, quem governava o país - e
apoiou a modalidade - foi o presidente Rafael Correa, um bolivariano que esteve à frente do
Equador por dez anos, abertamente adepto do chamado “socialismo do século XXI”. Correa
foi um dos chefes de estado mais próximos do ex-presidente Lula, de Hugo Chávez e de
Fidel Castro.

Já que falamos em socialismo, vamos à terra onde essa ideologia se tornou forte o
bastante para dividir o mundo em dois durante a Guerra Fria. Sim, a Rússia também
legalizou o ​homeschooling​. Aconteceu em 2012, como parte de uma ampla reforma

1
https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/o-homeschooling-nao-tem-cor-ideologica/

8
educacional, e, desde então, o número de famílias educadoras não para de crescer. Hoje,
estima-se que 50 mil famílias russas aderiram à modalidade e a tendência de crescimento
já foi tratada como um fenômeno num ​recente documentário sobre o tema​. Em 2018, o país
que já foi o coração da União Soviética chegou a sediar o ​Global Home Education
Conference,​ provavelmente o maior evento mundial sobre ensino domiciliar.

Outro poderoso exemplo de como a opção pelo ensino domiciliar tem atraído perfis
cada vez mais diversos vem dos Estados Unidos, o país que abriga o maior número de
​ o mundo:​ ​2,3 milhões​.
famílias ​homeschoolers n

No final da década de 80, estudos mostravam que educar em casa era a opção de
apenas 10 mil famílias norte-americanas, e que 93% delas eram formadas por brancos
evangélicos, a maioria vivendo na zona rural. Provavelmente, o retrato daquele momento
deu origem ao estereótipo usado pelos críticos do ​homeschooling ​até hoje. Entretanto, um
levantamento mais recente, feito em 2016, mostra uma realidade completamente diferente.

Nenhum outro grupo étnico cresceu tanto na adesão ao ​homeschooling ​nos Estados
Unidos quanto o dos afro-americanos. ​Cerca de 220 mil famílias negras educam seus filhos
em casa naquele país​, representando 10% do total (para comparação, nas escolas públicas
os negros ocupam 16% das vagas). As famílias latinas também ganharam espaço nessa
conta e hoje compõem 15% do todo. Outra minoria que tem se destacado entre os optantes
pelo ​homeschooling l​ á é a dos imigrantes​ ​muçulmanos​.

Portanto, nos Estados Unidos, tornou-se matematicamente impossível apontar o


homeschooling c​ omo uma pauta exclusiva de cristãos, brancos e direitistas. Reivindicar o
direito de educar os filhos em casa é uma demanda tão natural, e foi tão facilitada pelas
novas tecnologias, que a pauta se universalizou.

Tenho a firme convicção de que no Brasil ocorre o mesmo fenômeno, mas se o


Poder Público tem sido tão omisso em legitimar uma modalidade que na prática já existe,
não é nada realista esperar por dados precisos que confirmem o perfil das famílias
brasileiras que adotam ensino domiciliar.

Essa omissão, aliás, parece que só terá fim quando mais parlamentares, gestores
públicos e pesquisadores no campo da educação abandonarem seus preconceitos
infundados contra o ensino domiciliar, encarando esse fato social com mais realismo e
coragem.

9
É a tecnologia – e não a religião – o que está
impulsionando o ensino domiciliar2

O que ocorre no Brasil e no mundo durante a pandemia da COVID-19 não é


exatamente ​homeschooling​, já que a quarentena foi imposta a todas as famílias, inclusive
àquelas que preferem o ensino escolar. Trata-se de um improviso, recebido como um
incômodo para alguns, mas também como uma grata surpresa para outros. Entre esses,
muitos provavelmente viam o ensino domiciliar como uma excentricidade, ​coisa de
religiosos fanáticos, como no mito já desmascarado em outro artigo​. No entanto, estão
descobrindo – ainda que involuntariamente – que educar os filhos em casa é possível,
funciona e que a educação personalizada de verdade pode gerar resultados inalcançáveis
em outros ambientes. Estão descobrindo ainda que o grande motivador por trás do
crescimento do ensino domiciliar no mundo não é um suposto desejo religioso de isolar os
filhos da sociedade, mas sim as facilidades oferecidas pelas novas tecnologias de
aprendizagem, pois elas funcionam e muito bem.

Pais que até hoje nunca tinham se dado ao trabalho de procurar, estão agora tendo
o primeiro contato com o universo das plataformas de aprendizagem online e
surpreendendo-se com a qualidade dos materiais disponíveis, muitos deles a preços
acessíveis ou até de graça.

Virou cena comum, por exemplo, ver posts de alegria nas redes sociais dos pais que
descobrem o Khan Academy, o gigante site norte-americano de educação à distância, cuja
missão é “proporcionar uma educação gratuita e de alta qualidade para todos, em qualquer
lugar”. É possível que muitos já tivessem ouvido falar da iniciativa em notícias de jornal,
mas não faziam ideia de que grande parte dos conteúdos já está traduzida ao português do
Brasil - inclusive os vídeos e gráficos - com divisão por faixa etária e adaptada ao currículo
nacional.

Os insensatos críticos do ​homeschooling também vão se surpreender ao saber que


a plataforma multinacional disponibilizou, em português, ​uma página específica para pais
que educam os filhos em casa​, na qual anuncia “um recurso gratuito e de alto nível para

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/e-a-tecnologia-e-nao-a-religiao-o-que-esta-impulsionand
o-o-ensino-domiciliar/

10
famílias que optam pelo ensino domiciliar”. Nela, há testemunhos de gratidão escritos por
pais ​homeschoolers que usam o Khan Academy como uma das principais ferramentas de
aprendizagem.

Com outro foco, mas igualmente úteis aos pais educadores, há uma infinidade de
opções disponíveis em agregadores de cursos, como ​Hotmart e ​Udemy​, que servem como
formação continuada aos pais, além de alternativas mais acadêmicas, como a Coursera,
que oferece, por exemplo, ​conteúdo gratuito sobre alfabetização​, certificado por
universidades norte-americanas, para famílias determinadas a ensinar melhor. No Brasil, o
próprio Ministério da Educação lançou esse ano seu curso online em práticas de
alfabetização, o ​Tempo de Aprender​, cujo número de acessos chegou a dois milhões em
apenas quatro meses.

Entretanto, não são apenas as grandes organizações e o governo, que têm usado as
novas tecnologias para dar sua contribuição às famílias educadoras. Quem participa de
grupos de WhatsApp e comunidades virtuais sobre ​homeschooling conhece bem o
fenômeno dos professores que se tornam verdadeiras celebridades nas redes sociais,
graças ao prestígio e confiança conquistados pela qualidade dos materiais didáticos que
produzem e do bom atendimento aos pais que os procuram.

Nomes como o de Sérgio Morselli, no campo da matemática, ou de Géssica


Hellmann, no segmento da educação clássica, são mencionados e recomendados com
impressionante frequência nesse meio. Eles não dispõem de potentes plataformas de
educação à distância, mas sabem usar com competência as redes sociais, são bons no que
fazem e reconhecem o ensino domiciliar como opção legítima, como um fato e como
modalidade em ascensão.

Seguindo a mesma linha, há toda uma geração de educadores libertando-se das


amarras daquele pensamento sindical típico do século XIX, vencendo o medo da novidade
e enxergando o ​homeschooling aliado à tecnologia como um mundo de oportunidades a ser
conhecido e com o qual podem contribuir. São todos muito bem-vindos.

11
O que o ​homeschooling​ tem a ver com a entrada
do Brasil na OCDE?3

Desde janeiro desse ano, quando Donald Trump tornou explícito o apoio dos
Estados Unidos à entrada prioritária do Brasil na Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), os sinais de que a conquista dessa vaga está
próxima são cada vez mais evidentes. Na já famosa reunião ministerial de 22 de abril, cujo
vídeo foi recentemente divulgado pelo STF, o ministro da Casa Civil, general Braga Neto,
chegou a dizer que “já nos consideram na OCDE”, em referência às autoridades da
organização. No entanto, naquela mesma ocasião, houve outra fala sobre o mesmo assunto
que trouxe a público uma informação ainda mais surpreendente para muitos: 84% dos
países que integram a OCDE tem ensino domiciliar legalizado, lembrou a ministra Damares
Alves.

O dado está correto e surpreende porque, no Brasil, o desconhecimento sobre


homeschooling ainda é tão grande que são poucos os que prestam atenção ao valor que a
instituição dá à modalidade.

Quando se trata de avaliar os benefícios econômicos da adesão à OCDE, a


aprovação é quase uma unanimidade entre os analistas, e as contribuições da organização
no campo educacional são tomadas como referência no mundo todo, há anos. O melhor
exemplo é a importância dada por governos ao PISA, exame internacional que mede o
desempenho de alunos nas áreas de leitura, matemática e ciências. Mesmo assim, no
Brasil, gestores públicos, parlamentares e pesquisadores no campo da educação
prosseguem ignorando o apoio da entidade ao ​homeschooling e ao princípio da liberdade
educacional. Por coerência, isso precisa mudar.

Comecemos citando números. Hoje, a OCDE tem 36 membros. Desses, 30


reconhecem o ensino domiciliar como opção legítima de educação compulsória, seja por
meio de legislação específica ou por permissão concedida na própria constituição nacional.

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/o-que-o-homeschooling-tem-a-ver-com-a-entrada-do-bra
sil-na-ocde/

12
Nesse grupo entram, por exemplo, os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia,
França, Finlândia, Reino Unido, Portugal e nosso vizinho, o Chile.

Na verdade, o único país-membro que realmente proíbe a prática é a Alemanha,


graças a uma lei datada de 1938, sancionada por ninguém menos que Adolf Hitler e que
ainda hoje não foi revogada. Trata-se do ​mesmo texto que criou o Ministério da Educação
do governo nazista​.

Mesmo em países como Holanda, Grécia e Espanha, não há proibição, mas sim
disputas interpretativas quanto à legislação local, ou restrições severas que reduzem em
muito o perfil de famílias aptas à modalidade.

O incentivo da OCDE à liberdade educacional, contudo, não se limita às leis de seus


países-membros, mas já foi expressa em vários documentos da entidade. Em 2010, por
exemplo, o estudo ​Education at a Glance – OECD Indicators 2010​, envolvendo 27 países,
dedicou várias páginas ao tema do ensino domiciliar no capítulo ​How much school choice
do parents have​. No questionário da pesquisa constavam perguntas como "as reformas
reduziram as restrições para o ensino domiciliar?" ou "as oportunidades para as famílias
educarem seus filhos foram ampliadas pela legislação desde 1985?".

Em 2019, no estudo ​OECD Future of Education and Skills 2030 - Project


background,​ o ​homeschooling foi mais uma vez mencionado de forma positiva no item
relacionado às mudanças na escolarização compulsória e novidades na educação do
século XXI.

Ainda mais recentemente, por conta da pandemia de COVID-19, a ONG educacional


HundrED, em parceria com a OCDE, lançou ​uma plataforma para o compartilhamento de
experiências de ensino domiciliar​, convidando os integrantes de sua comunidade a
“compartilhar recursos de ​homeschooling e educação online que apoiem o aprendizado e o
bem-estar dos alunos”.

Por fim, aos ainda céticos, recomendo a leitura de uma ​reportagem publicada pelo
site do Fórum Econômico Mundial, em 3 de abril desse ano​, na qual foi ouvido o diretor da
OCDE para Educação e Habilidades, Andreas Schleicher, e que estampou em seu título
uma realidade que as autoridades e referências da educação brasileira não podem mais
fingir que não veem: “O ​homeschooling durante a pandemia de coronavírus pode mudar a
educação para sempre”.

13
Para praticar ​homeschooling​ em paz, eles
venderam tudo e deixaram o Brasil4

No mundo todo, há séculos, as guerras, a miséria, o desemprego e as epidemias


mortais figuram entre as principais causas que levam cidadãos comuns a abandonarem
seus países de origem, junto de suas famílias, em busca de uma vida melhor. No Brasil,
contudo, há outro motivo. Um que iguala nosso país aos regimes mais desumanos do
planeta, que deveria tirar o sono e encher de vergonha nossas principais autoridades. No
Brasil, pessoas de bem fogem do país para poder educar os filhos em paz.

A família de Fátima entra nessa lamentável estatística, cuja conta jamais foi feita,
dado o grau de descaso que são obrigados a suportar os pais que escolhem o ensino
domiciliar como modalidade. Mãe de três filhos, ela e o marido cansaram de ser tratados
com desprezo por agentes públicos insensatos, venderam tudo o que tinham no Brasil e
foram embora para Portugal, na esperança de poder usufruir da liberdade educacional que
nosso país ainda rechaça.

Em 2017, depois do ministro Roberto Barroso, do STF, decidir que todos os


processos movidos contra famílias ​homeschoolers estariam suspensos até que a corte
julgasse o tema, a família de Fátima decidiu aderir à modalidade, tirou os filhos da escola e
passou a educá-los em casa. O diretor da escola, contudo, sem disfarçar um tóxico
preconceito contra a fé do casal, decidiu denunciá-los ao Ministério Público, acusando-os de
“abandono intelectual” e “confinamento”.

As abundantes evidências de aprendizagem e as irrefutáveis provas de que as


crianças levavam uma vida normal, socializavam, saíam de casa, tinham amigos e
praticavam diversas atividades, felizmente, foram suficientes para que o desembargador
responsável pelo caso os favorecesse, ao menos não levando adiante as ridículas
acusações.

Entretanto, após o julgamento do STF sobre ​homeschooling,​ ocorrido em 2018 e,


principalmente, após a publicação do acórdão, em março de 2019, a perseguição voltou
com força. Naquela ocasião, o Supremo decidiu que o ensino domiciliar não é

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/para-praticar-homeschooling-em-paz-eles-venderam-tud
o-e-deixaram-o-brasil/

14
inconstitucional, mas também disse que não existe direito a tal modalidade no Brasil
enquanto não houver lei que a regulamente.

A decisão caiu como uma bomba sobre todas as famílias injustamente processadas,
como a de Fátima. Embora já estivessem morando em outro estado, aquele antigo processo
foi transferido de comarca. Agora, novos promotores e conselheiros tutelares, que pouco
sabiam da realidade de sua família ou da história de sua luta, passaram a intimidá-los, de
modo que abandonassem sua opção por educar os filhos em casa.

Os telefonemas, as visitas surpresa e a desgastante batalha judicial os abateram,


mas não a ponto de fazê-los desistir de fazer o melhor por seus filhos. Fátima e o marido
estavam tão convictos dos benefícios de educá-los por meio do ​homeschooling que
traçaram um plano para se livrar da abusiva mão do estado brasileiro.

Entraram em contato com famílias portuguesas adeptas da modalidade, criaram


laços, informaram-se sobre possibilidades de emprego e decidiram partir. Sacrificariam
todas as economias que possuíam e passariam a viver num país que não era o seu, mas
educariam seus filhos da forma como sabiam ser a melhor.

Foi assim que, no início desse ano, Fátima, seu marido e os filhos chegaram a uma
cidade do interior de Portugal, onde o custo de vida é baixo e recomeçar uma vida é viável.
Lá, o ensino domiciliar é permitido e, embora a legislação seja rigorosa, não são vítimas de
acusações absurdas, nem perseguidos como se fossem criminosos.

Apesar de tudo, ainda querem voltar ao Brasil um dia. Provavelmente o farão no dia
em que nossos parlamentares e governantes abandonarem o indignante hábito de deixar o
assunto do ensino domiciliar para depois, como fazem há 26 anos, quando o primeiro
projeto de lei sobre o tema chegou ao Congresso Nacional. Nesse dia, ninguém mais terá
que fugir do Brasil por amor aos seus filhos. Poderão amá-los e educá-los com liberdade,
aqui mesmo, na terra em que nasceram.

15
Ensino domiciliar não é política pública5

Na exaustiva tarefa de desmontar mitos sobre ensino domiciliar que são


reproduzidos em escala industrial nas redes sociais, um dos que aparecem com espantosa
frequência é aquele que não questiona o mérito da causa, mas sim seu lugar numa
hipotética lista de prioridades com as quais o país devia se preocupar. “​Homeschooling ​não
é prioridade” costuma ser o mantra invocado por aqueles que escolhem esse discurso, na
esperança de parecerem equilibrados. É preciso admitir que ele soa até compreensível para
os mais desatentos, mas a verdade é que o argumento não resiste a uma análise séria, pois
parte de uma premissa muito falsa, que é aquela que considera o ensino domiciliar como
mais uma política pública educacional em meio a tantas outras, como num cardápio de
opções.

Quando alguém invoca tal sentença, é quase infalível apostar que logo em seguida
virão exemplos de políticas públicas com os quais o governo, o Congresso, a sociedade e
até as famílias deviam se preocupar “primeiro”. Na lista estarão reivindicações de melhores
salários para os professores, de melhor distribuição dos recursos federais, de mais
segurança nas escolas, de capacitações mais eficazes para o corpo docente, de
metodologias mais inovadoras, etc. A conclusão dessa linha de raciocínio, portanto, é a de
que seria possível substituir o interesse de educar em casa por outros que tornassem a
escola mais atraente. Trocar uma política pública por outra, mais “urgente”.

O erro desse argumento está no fato de que ensino domiciliar não é política pública,
nem nunca foi apresentado como tal por seus defensores mais relevantes. O governo
federal não considera o tema dessa forma, nem os parlamentares autores de projetos de lei
sobre o assunto, nem as associações de famílias, nem os juristas engajados na causa. Os
únicos a tratarem o ensino domiciliar como política pública são seus opositores, justamente
por que é apenas por meio dessa falácia que conseguem simular algum frágil bom senso
quando se opõem ao tema.

A legalização do ensino domiciliar é uma questão de reconhecimento de direitos e


quem se opõe, está se opondo ao direito das famílias. Essa é uma realidade
constrangedora para os que hostilizam a modalidade em seus discursos e por isso mesmo
deve ser mais conhecida. No debate público, é fácil escolher entre uma ou outra política

5
https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/ensino-domiciliar-nao-e-politica-publica/

16
como a melhor ou a que merece prioridade, mas são poucos os que estão dispostos a
admitirem francamente que são militantes do rechaço a um direito.

O próprio Supremo Tribunal Federal tratou o ensino domiciliar como um direito –


existente ou que poderia ser criado - ​quando discutiu, em 2018, se a modalidade era ou não
contemplada pela Constituição​. Portanto, não faz o menor sentido tentar desqualificar o
homeschooling ​usando estudos que comprovam – real ou supostamente - que se atinge
mais gente e se alcança melhores índices de desempenho investindo esforços e dinheiro
em outras ações. São reivindicações de categorias completamente distintas e de forma
alguma competem entre si.

A atitude de quem tenta substituir a causa da legalização do ​homeschooling por


outras demandas é equivalente a de alguém que tentasse convencer às mulheres do início
do século XX de que o direito ao voto não era tão importante assim, de que elas poderiam
ser felizes sem votar e de que deveriam lutar por causas mais relevantes. Algo parecido
pode-se dizer tomando-se como exemplo as pessoas com necessidades especiais, os
idosos ou qualquer outra minoria que reivindicou um direito por anos, até conquistá-lo.

As famílias que educam em casa formam hoje uma das minorias mais perseguidas,
discriminadas e indefesas do país. Portanto, embora tentem, aqueles que são contrários ao
direito que essas famílias almejam não tem como se esconder muito tempo atrás do verniz
de uma simples discordância democrática. Ao relegarem o pedido das famílias educadoras
a um eterno patamar secundário, eles se tornam diretamente responsáveis pelo sofrimento
que provocam a milhares de pais, mães e crianças, pois os condenam à permanente
clandestinidade.

O que esses opositores à existência de uma lei para o ensino domiciliar têm feito é
sim cruel e desumano. Isso precisa ser mais exposto.

17
EUA têm leis de ​homeschooling​ para todos os
gostos. Funcionariam no Brasil?6

Um dos erros mais graves que se pode cometer na luta por uma lei que regulamente
o ensino domiciliar no Brasil é o apego excessivo a um único texto, ao ponto de
comprometer a própria existência de uma lei. Infelizmente, não é difícil encontrar quem até
aceita se engajar na ação política junto a deputados, vereadores e poder executivo, mas
retira o apoio se determinado projeto de lei não atender integralmente às expectativas
criadas. Se a projeção do que está em sua mente não se concretiza, acaba caindo na
insensatez de proclamar que “se for assim, melhor sem lei”, sentença esta que carrega em
si muito mais rancor do que razoabilidade.

Para não sucumbir a essa tentação, um bom antídoto é conhecer um pouco mais
sobre a grande diversidade de legislações sobre ​homeschooling em vigência no mundo.
Embora até se possa falar num conceito universal e amplo do que seja ensino domiciliar, a
forma como se dá o direito a essa modalidade, e como cada lei local a define, varia muito.
Não faz sentido, portanto, implicar com leis mais rigorosas, acusando-as de não representar
o “verdadeiro” ​homeschooling​, pois este sim é um conceito tremendamente subjetivo.

Tendo em vista que comparar leis de diferentes países é um trabalho árduo, com
grande risco de erros interpretativos ou de tradução, aos interessados nessa empreitada,
um bom caminho é começar por uma única nação estrangeira, os Estados Unidos, onde a
modalidade é legalizada em todo o território, embora coexistam dezenas de variações
legislativas, desde as mais liberais até as mais restritivas.

Tomemos como primeiro exemplo o estado do Texas, cuja lei é frequentemente


apontada como ideal pelos pais mais resistentes à participação do estado na educação dos
filhos. Na prática, o governo do Texas não mantém nenhum controle sobre as famílias
praticantes de ensino domiciliar. Não há avaliações periódicas, nem exigência de formação
acadêmica dos pais e nem sequer um registro centralizado de quais famílias adotam a
modalidade. O máximo de orientação estatal é a de que as crianças aprendam a ler,

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/eua-tem-leis-de-homeschooling-para-todos-os-gostos-fu
ncionariam-no-brasil/

18
escrever, expressar-se bem e calcular. É preciso também que haja um currículo a ser
seguido, mas esse é de livre escolha dos pais.

Condições semelhantes são encontradas nos estados de Oklahoma, Idaho,


Missouri, Illinois, Indiana, Michigan, Connecticut, New Jersey e Alaska. É muito importante
destacar, contudo, que esse tipo de ​homeschooling se enquadra nas formas que o Supremo
Tribunal Federal considerou incompatíveis com a Constituição brasileira. No acórdão
publicado em março de 2019, referente ao julgamento sobre a modalidade ocorrido em
2018, é destacada como obrigatória a “solidariedade entre a família e o Estado” na
educação das crianças, adolescentes e jovens, o que envolve a “supervisão, avaliação e
fiscalização pelo Poder Público”.

Portanto, um pouco mais viável para servir de modelo ao Brasil seriam as


legislações de estados como Califórnia, Nebraska, Mississipi, Arizona e Kansas, todas com
clara participação estatal, embora as exigências sejam relativamente poucas. Na Califórnia,
por exemplo, a modalidade se divide em três opções e as famílias devem informar ao
estado qual delas irá seguir. A primeira é aquela na qual a família ​homeschooler é
equiparada a uma escola privada e, como tal, deve prestar contas ao governo, renovando
anualmente seu registro como optante pelo ensino domiciliar, comprovando a capacidade
de ensinar dos pais, ministrando no mínimo as mesmas disciplinas oferecidas na escolas
públicas e apresentando às autoridades o currículo escolhido.

Outra opção para os californianos é a de matricular os filhos numa das chamadas


escolas satélites, à qual a família fica vinculada. Nesse modelo, a família recebe as
instruções de uma instituição de ensino privada que prepara o currículo e as atividades,
mas sem a necessidade de frequência presencial. Há ainda o sistema de tutoria, no qual a
família contrata um professor credenciado pelo estado para ministrar aulas em casa. Nesse
caso, é esse profissional que se responsabiliza por apresentar eventuais evidências de
aprendizagem junto ao governo.

Aos que consideram necessário elevar um pouco mais as exigências, alegando


preocupação com o desenvolvimento das crianças, há leis como a da Flórida, segundo a
qual, além de notificar formalmente uma superintendência local e seguir um currículo bem
estruturado, é preciso manter um portfólio atualizado de todas as atividades educacionais
feitas pelo estudante, bem como uma lista de todo o material de leitura utilizado. Tudo que
for produzido pode ser eventualmente solicitado pela fiscalização estatal. É necessário
também submeter a criança a avaliações de desempenho anuais, que podem ser tanto as

19
oferecidas pelo governo, como desenvolvidas por professores particulares credenciados
para tal fim. As opções de tutoria ou de parceria com escolas privadas que não exigem
frequência também são válidas.

Condições semelhantes às da Flórida são oferecidas por Virgínia, Tenneesse,


Colorado, Havaí e outros quinze estados.

Por fim, há lugares onde o nível de exigências é tão alto que o direito de educar em
casa fica bastante restrito. É o caso de Nova Iorque, onde além de informar ao governo
sobre a opção, manter um portfólio e submeter o estudante a testes anuais, é obrigatória a
apresentação de um plano pedagógico, também anual, além do envio de relatórios
trimestrais sobre o desenvolvimento da criança. É previsto ainda que o estudante cumpra
uma carga horária específica e que ao menos um dos pais tenha ensino superior completo.
Consta ainda a possibilidade de inspeção em domicílio por parte de fiscais do estado.

Como podem ver, no país com o maior número de ​homeschoolers em todo o mundo
há opções de lei para todos os gostos, desde as mais permissivas até as mais rigorosas.
Nenhuma delas, contudo, é pior do que a situação do Brasil, onde não há lei alguma que
legitime a prática e, por consequência, todas as famílias que adotam o ensino domiciliar são
tratadas como infratoras, sujeitas às mais injustas perseguições.

O Brasil precisa de uma lei que regulamente o ensino domiciliar e isso é urgente.

20
Homeschooling​: mais um tema no qual o Chile

supera o Brasil7

Apesar da almejada liderança continental que o Brasil poderia assumir na América


Latina, devido ao seu tamanho e recursos naturais, temos um vizinho que nos supera em
quase tudo o que importa para um governo. Segundo os dados mais recentes disponíveis, o
Chile tem índice de desenvolvimento humano (IDH) de 0,847, posicionando-se pouco acima
da Hungria (0,845) e bem acima do Brasil (0,761). Os chilenos também vencem com folga
na comparação do PIB per capita e obtêm melhores resultados no PISA, exame que mede
o desempenho dos estudantes em leitura, matemática e ciências. A prova, aliás, é
promovida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
grupo no qual o Brasil tenta ser aceito há anos, e no qual o Chile já está desde 2010.

Relacionada a essa conquista, está a situação do ​homeschooling ​naquele país.


Desde 1980, o ensino domiciliar é um direito garantido pela própria Constituição. No artigo
19, inciso 10, é dito que “os pais têm o direito preferencial e o dever de educar seus filhos.
Corresponderá ao Estado outorgar especial proteção ao exercício desse direito”. No inciso
seguinte, a carta magna chilena prossegue falando da liberdade de ensino e explicita que
“os pais têm o direito de escolher o estabelecimento de ensino para seus filhos”, o que inclui
o próprio lar.

O direito de educar os próprios filhos em casa já estaria suficientemente protegido


por esses trechos, mas os chilenos dão tanto valor à liberdade que ainda incluíram em sua
Lei Geral de Educação o “princípio da Flexibilidade”, segundo o qual “o sistema deve
permitir a adequação do processo à diversidade de realidades e projetos educativos”.

É a somatória desses textos o que permite ao Chile nem sequer precisar de uma lei
específica para o ensino domiciliar. Trata-se de um direito absolutamente consolidado,
reconhecido pela justiça e respeitado pelo Poder Executivo, responsável pela aplicação de
exames periódicos e certificação aos estudantes dessa modalidade, que, na verdade, é a
mesma dada aos estudantes escolares. A igualdade de tratamento é total.

A ausência de normas mais restritivas viabiliza também uma grande variedade de


métodos e currículos. Algumas famílias escolhem usar os livros didáticos oferecidos pelo

7
https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/homeschooling-chile-supera-brasil/

21
governo, mas há também as escolas online, as instituições de ensino que fornecem cursos
livres e grupos de famílias que produzem e compartilham o próprio material de estudo. É
​ strangeira. Comuns
aceita, inclusive, a opção de matricular os filhos numa ​umbrella school e
nos Estados Unidos, elas são instituições que oferecem currículo, suporte pedagógico e
certificação às famílias adeptas do ensino domiciliar. Tudo à distância.

Ao completarem 18 anos, com muita naturalidade, todos os anos, alunos


homeschoolers c​ hilenos participam do processo seletivo de acesso ao ensino superior, da
mesma forma como qualquer estudante da modalidade escolar.

O exercício de comparar essas condições de liberdade educacional com as que o


Brasil oferece chega a ser desanimador. Também explica por que o Chile tem atraído o
interesse de um número crescente de famílias educadoras brasileiras, cansadas de esperar
pela insistente e cruel omissão do Poder Legislativo, que tarda em aprovar uma lei que as
reconheça e proteja.

O Chile é signatário do acordo sobre visto de residência do Mercosul, o que facilita


em muito a permissão para brasileiros que queiram morar no país. Essa, contudo, é uma
decisão extrema, que exige muito planejamento.

É evidente, também, que sair da terra natal não deveria ser uma decisão motivada
pela ausência de um direito básico, como educar os próprios filhos em paz. Ao menos, não
numa democracia que busque ser respeitada como tal.

Embora a nossa Constituição não permita o mesmo grau de liberdade que a chilena,
o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu no julgamento de 2018 que a modalidade do
ensino domiciliar tem amparo constitucional, se praticado sob o princípio da solidariedade
entre família e estado. Na mesma decisão, contudo, o tribunal determinou que é necessário
haver legislação específica para que tal direito seja reconhecido.

É essa lei que precisa chegar logo. É essa lei que colocará fim no êxodo de famílias
educadoras que se veem obrigadas a deixar o país."

22
Como funciona o ensino domiciliar

(​homeschooling​) em Portugal8

O idioma em comum e as facilidades migratórias proporcionadas por acordos


bilaterais tornam Portugal um dos destinos mais procurados por brasileiros que querem
deixar o país. Mas o fato de o ensino domiciliar ser legalizado por lá é o que deixa o país
europeu ainda mais atraente para as famílias adeptas da modalidade. Educar os filhos em
casa jamais foi uma prática proibida em terras lusitanas, mas recentemente, como parte de
uma ampla reforma educacional, o ​homeschooling ​português ganhou uma série de normas.
Aos que estão cansados da omissão dos parlamentares brasileiros em aprovar uma lei que
legitime essa forma de educação em nosso país, e ​têm disposição para encarar as
dificuldades de uma mudança para o exterior​, é importante conhecer as novas regras que
entraram em vigor no ano passado.

Ler na íntegra o documento que rege o funcionamento da modalidade é o primeiro


passo. Trata-se da ​Portaria 69/2019 um longo texto que revela logo de início que, na
concepção portuguesa, a educação em casa é dividida em duas opções: o ensino
doméstico, ministrado pelos próprios familiares ou por alguém que more junto com o aluno,
e o ensino individual, ministrado por um professor escolhido pela família, devidamente
autorizado pelo Estado para exercer a função, que vai até a residência e dirige os estudos.

Em ambos os casos, há a necessidade de uma escola de matrícula, instituição de


ensino pública ou privada à qual o estudante se vincula para todos os procedimentos legais.
É para o diretor dessa escola que a família deve fazer formalmente o pedido de autorização
para a prática do ensino doméstico ou individual. Com base no preenchimento de um
questionário, entrega de documentos e uma entrevista presencial, o diretor da escola pode
deferir ou indeferir a autorização para educar em casa. Em caso de indeferimento, a família
pode recorrer, apelando à autoridade educacional imediatamente superior, que, no Brasil,
seria o equivalente à secretaria de educação municipal ou estadual.

Ainda que haja o compreensível temor das famílias por conta de eventuais
subjetivismos aos quais estariam sujeitas as decisões de tais diretores, a portaria não

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/como-funciona-o-ensino-domiciliar-homeschooling-em-p
ortugal/

23
restringe as razões aceitáveis para se conceder a autorização. Pelo contrário, o texto
explicita que “estas modalidades visam dar resposta às famílias que, por razões de
natureza estritamente pessoal ou de mobilidade profissional, pretendem assumir uma maior
responsabilidade na educação dos seus filhos ou educandos, optando por desenvolver o
processo educativo fora do contexto escolar”.

Além do aval do diretor, a portaria também exige que pelo menos um dos
responsáveis pelo estudante tenha “licenciatura”, termo que pode causar alguma confusão
no Brasil, já que, por aqui, a palavra é usada para cursos voltados à docência (Pedagogia,
Língua Portuguesa, Matemática, etc), mas em Portugal refere-se ao que chamamos no
Brasil de graduação, ou seja, qualquer curso superior completo.

Concedida a autorização, a família e a escola de matrícula assinam o Protocolo de


Colaboração, um acordo estabelecido entre os pais e o diretor da escola onde o aluno será
matriculado. No texto constam as responsabilidades das partes signatárias, o que inclui
metas de desempenho, a manutenção de um portfólio de atividades realizadas durante o
ano e o compromisso da família em seguir o currículo nacional básico de cada disciplina. O
acordo pode incluir ainda o livre acesso do estudante aos espaços de aprendizagem da
escola, como biblioteca, laboratórios e outros recursos. As provas anuais obrigatórias e
eventuais outros exames de desempenho também devem ser realizados na escola de
matrícula.

Certamente, as normas de Portugal para a prática do ensino domiciliar não agradam


​ a ausência total de regras impostas pelo
nem um pouco os defensores do ​unschooling –
Estado para a educação das crianças -, possibilidade já descartada pelo Supremo Tribunal
Federal em 2018, quando julgou a constitucionalidade dessa forma de educação. No
entanto, tendo em vista as condições preestabelecidas pela mesma Corte para uma válida
​ o Brasil, o modelo português não deixa de ser uma
regulamentação do ​homeschooling n
possibilidade viável para o Congresso Nacional apreciar.

Já que o futuro da modalidade em nosso país depende de uma casa legislativa na


qual só avançam matérias de consenso, um texto semelhante ao da portaria lusitana, feitas
as devidas adequações, poderia equilibrar o desejo das famílias de assumirem o
protagonismo na educação dos filhos, sem necessidade de frequência à escola, com a
legítima preocupação de agentes públicos dedicados à proteção de crianças e adolescentes
socialmente mais vulneráveis.

24
A única situação inaceitável é a atual: sem lei, sem direito reconhecido, sem
fiscalização e com perseguição às famílias.

25
O que Nelson Mandela tem a ver com o
​ a África do Sul9
homeschooling n

A história da legalização do ensino domiciliar na África do Sul precisa ser mais


conhecida, especialmente pela esquerda brasileira, pois explicita de forma muito intensa e
simbólica o fato de que a pauta pertence ao campo dos direitos humanos. A lei que deu às
famílias daquela nação a possibilidade de educar seus filhos em casa foi apoiada e
sancionada em 1996 por Nelson Mandela, um ícone mundial da luta contra o racismo, que
completava na ocasião dois anos como o primeiro presidente negro do país.

No início da década de 90, a África do Sul estava em plena ebulição social, com uma
crescente revolta popular contra o regime segregacionista do apartheid, que dava à minoria
branca significativos privilégios em relação aos negros, provocando frequentes situações de
violência. A questão da igualdade racial, é claro, era o principal item na reivindicações por
mais respeito aos direitos humanos, mas não o único. Vários temas humanitários foram
abraçados pelos movimentos reformistas, e foi nesse contexto que um caso concreto
envolvendo o ensino domiciliar, considerado ilegal pelo regime segregacionista, ganhou
repercussão mundial.

Em dezembro de 1993, o casal Andre e Bokkie Meintjies foi condenado à prisão por
educar os filhos em casa. Andre ficaria dois anos na cadeia e sua mulher, um ano.
Enquanto isso, seus três filhos foram enviados para um orfanato e privados do contato com
os pais. O extremismo da decisão judicial levou entidades internacionais dedicadas ao
direito das famílias a agirem, provocando uma intensa campanha pela libertação do casal e
pelo reconhecimento jurídico do direito de se educar os filhos em casa. A ação foi
bem-sucedida e os Meintjies foram libertados, mas chegaram a cumprir seis meses da
pena, encarcerados.

Em abril do ano seguinte, Nelson Mandela venceu a primeira eleição multirracial na


história da África do Sul e seu governo engajou-se na aprovação do direito ao
homeschooling​. A primeira grande conquista se deu em novembro de 1996, com o ​South
African School Act 84​, que criou a modalidade de ensino domiciliar em seu artigo 51, no

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/o-que-nelson-mandela-tem-a-ver-com-o-homeschooling-
na-africa-do-sul/

26
qual é determinado que as famílias optantes devem encaminhar a solicitação para a
autoridade educacional local, permitindo que cada província estabeleça as próprias regras.
O texto afirma que os requerentes devem seguir “os requisitos mínimos do currículo
adotado nas escolas públicas” e que a qualidade da educação fornecida em casa deve
seguir “um padrão não inferior ao padrão de educação oferecida em escolas públicas”.

Cerca de um mês depois, em 18 de dezembro, o presidente Mandela promulga a


nova Constituição da África do Sul​, agora, livre do apartheid. A fim de fortalecer o direito das
famílias, o ​homeschooling ​também foi incluso no novo texto constitucional.

Hoje, o direito de educar os filhos em casa é intocável e respeitado por políticos de


diferentes espectros ideológicos. O número de famílias registradas junto ao governo
sul-africano que praticam ensino domiciliar gira em torno de 30 mil.

27
O ​homeschooling​ pode mesmo provocar a
falência de escolas e o desemprego de
professores?10

O risco de falência das escolas privadas, com o consequente desemprego em


massa dos professores, costuma ser o cenário apocalíptico usado para assustar
parlamentares que pouco ou nada sabem sobre ensino domiciliar. Esse filme de terror,
contudo, não resiste a dois minutos de conversa honesta e estatística. Em nenhum dos
mais de 60 países onde o ​homeschooling é legalizado houve qualquer consequência
catastrófica para os trabalhadores ou empresários do setor educacional, pois o ensino
domiciliar, com ou sem lei, sempre é a opção de uma minoria que, embora importantíssima
para os que se importam com direitos humanos, é irrelevante para cálculos financeiros.

A fim de desmontar mais esse mito fabricado para fins difamatórios, vamos aos
números. Os Estados Unidos são hoje o país com a maior quantidade de estudantes na
modalidade de ensino domiciliar, chegando a 2,3 milhões, segundo dados de 2017. O
número aparenta ser robusto, mas só se compreende sua real dimensão quando
comparado à enorme população daquele país: 329 milhões de habitantes. Reparem,
portanto, que mesmo na nação que tornou legítima a prática de educar os filhos em casa
em 1972 – há quase cinquenta anos – a porcentagem de famílias que optam por ela nunca
deixou de ser minoritária. Comparados ao total da população, os ​homeschoolers não
passam de inofensivos 0,7%.

Essa proporção diminuta, aliás, é o padrão em todos os países onde ​homeschooling


é permitido. O Canadá, por exemplo, tem cerca de 60 mil estudantes na modalidade, o que
representa apenas 1,5% da população. A mesma porcentagem é identificada no Reino
Unido, onde a comunidade de alunos ​homeschoolers chega a 100 mil. Na Austrália, os 15
mil adeptos do ensino domiciliar representam 0,6% do total de australianos. Na Irlanda,
onde os estudantes dessa modalidade são apenas 1,1 mil, sua representatividade na
população local é de ínfimos 0,02%.

10

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/o-homeschooling-pode-mesmo-provocar-a-falencia-de-e
scolas-e-o-desemprego-de-professores/

28
Os números falam por si, mas considero compreensível a desconfiança daqueles
que sempre rechaçam comparações com os Estados Unidos e outros países desenvolvidos,
dado o abismo socioeconômico que nos separa deles. Olhemos então para nosso vizinho, o
Chile, onde não há legislação específica sobre ensino domiciliar, mas a própria Constituição
daquele país já garante aos pais o direito de educar em casa. Mesmo assim, poucos optam
por usufruir desse direito. Os 15 mil ​homeschoolers morando lá representam somente 0,7%
da população.

Proporção semelhante é encontrada em outros dois países em desenvolvimento


que, assim como o Brasil, integram o bloco conhecido por BRICS. Na Rússia, onde há lei
sobre ​homeschooling desde 2012, o número de praticantes é de 100 mil (0,6% da
população) e na África do Sul, que legalizou a modalidade durante o governo de Nelson
Mandela, a quantidade de estudantes em ensino domiciliar gira em torno de 30 mil, o que
significa 0,5% dos habitantes.

No Brasil, a consequência mais grave da omissão do Poder Legislativo em aprovar


uma lei sobre a modalidade é, sem dúvida, a injusta perseguição sofrida por famílias
zelosas que aceitam correr riscos para fazer o que consideram o melhor para seus filhos,
mas outro efeito colateral desse erro é a ausência de números precisos.

Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), o Brasil tem em


torno de 15 mil estudantes que aprendem em casa, com os pais ou tutores, mas o fato é
que muitas preferem não responder a nenhum questionário sobre o tema, já que não há lei
que as proteja. O número real, portanto, é incerto. Mesmo assim, supondo que seja o dobro
do registrado, essa minoria não chegaria nem perto de 1% da população brasileira. Talvez
nem 0,5%.

Diante dessas amostras, fica evidente o quão fantasioso é o receio de que a


legalização do ensino domiciliar no Brasil possa provocar o desemprego da classe docente
ou fechamento de escolas particulares. A opção por educar os filhos em casa envolve
sacrifícios muito significativos e são poucas – talvez pouquíssimas – as famílias dispostas a
isso. São e sempre serão uma minoria. Essa condição, porém, não justifica que continuem
sendo cruelmente equiparadas a criminosas.

29
É possível conciliar uma lei do ​homeschooling​ e a
proteção das crianças mais vulneráveis?11

Nos debates sobre ensino domiciliar, há uma parcela dos que se opõem à
legalização que merecem receber mais atenção por parte dos defensores da modalidade,
não por estarem certos – não estão – mas sim porque o fundamento de sua posição é, de
fato, nobre, embora a falta de informação sobre a realidade do ​homeschooling ​os leve a
conclusões equivocada. Essas pessoas normalmente são vinculadas a ações sociais em
comunidades carentes e, ao ouvir falar de crianças que não vão à escola diariamente, só
conseguem pensar no pior. Para quem pratica ou estuda o ensino domiciliar, a fragilidade
desse raciocínio é evidente, mas, para quem nada sabe sobre a modalidade, e é
acostumado a lidar com aquilo de pior que a miséria gera, a tragédia tende a ser uma
previsão automática ao reduzirem o assunto na sentença “criança fora da escola”.

Tais críticos, cujo espírito de caridade é admirável, estão certos ao apontar que a
escola tradicional, apesar de todos os seus defeitos, continua sendo uma instituição
indispensável para muitas crianças que vivem em permanente estado de vulnerabilidade
social. Com essa afirmação, ninguém está colocando em dúvida o valor da família em
relação ao estado, mas apenas lidando com o triste fato de que, em muitas comunidades
brasileiras, crianças convivem com pais, parentes e vizinhos que lhes fazem mais mal do
que bem. Estamos falando sobre consumo de drogas, falta de condições mínimas de
higiene, violência doméstica, sexo explícito e todo tipo de abuso.

Essas mesmas pessoas, contudo, erram de várias maneiras, e terrivelmente, ao


achar que se opondo a uma lei que regulamenta o ensino domiciliar no Brasil estariam
combatendo esse tipo de problema. O equívoco mais notório é o de generalizar,
equiparando famílias de perfis e realidades completamente diferentes. Com isso, igualam
cruelmente – às vezes criminosamente – os pais zelosos e capazes com os negligentes e
violentos. Por consequência, caem no segundo erro, que é o de achar que a escola –
qualquer escola – sempre é um ambiente mais seguro e melhor para ensinar do que a

11

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/e-possivel-conciliar-uma-lei-do-homeschooling-e-a-prote
cao-das-criancas-mais-vulneraveis/

30
família – qualquer família. São incontáveis os exemplos concretos que expõem o quão
longe da verdade está essa tese, se for tomada como absoluta.

Há, no entanto, um erro de consequências ainda mais nocivas nessa linha de


pensamento. Ao rejeitarem uma lei do ​homeschooling​, esses opositores parecem partir da
ideia de que a lei é que fará existir no Brasil famílias praticantes de ensino domiciliar. No
entanto, elas já existem e aos milhares. Mesmo que as estimativas disponíveis apontem
para algo em torno de sete mil famílias, o número real tende a ser muito maior.

Hoje, sem lei, o ensino domiciliar já é realidade no Brasil e continuará sendo, pois
estamos falando daquilo que há de mais importante na vida desses pais e mães corajosos e
dedicados: seus filhos. Eles sacrificam um salário maior, empenham horas preparando
atividades e aceitam correr o risco de gastar tempo e dinheiro explicando à justiça o que
fazem. Estamos falando de pais e mães muito determinados, que morreriam por seus filhos
sem pensar duas vezes. Não será uma imposição burocrática e desprovida de razoabilidade
que os fará prevaricar.

Portanto, ao decidir se votam contra ou a favor de uma lei para o ensino domiciliar,
os parlamentares, na verdade, estão decidindo se essas famílias passarão a ter
acompanhamento do estado ou não. Hoje, a ausência de lei faz com que aquelas que têm
condições de oferecer um ambiente melhor e uma educação mais personalizada às suas
crianças sejam colocadas na mesma conta de evasão escolar daquelas que,
lamentavelmente, não estão minimamente preocupadas com o desenvolvimento ou a
segurança de seus filhos. Com lei, essa distinção ficaria clara.

Convém ainda destacar que várias das propostas sobre ​homeschooling em


tramitação, no Congresso Nacional e nas casas legislativas locais, trazem consigo uma
série de dispositivos que pretendem adequadamente restringir a modalidade somente para
pais “ficha limpa”, ou seja, que não respondam por nenhum dos crimes previstos no
Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei Maria da Penha, por exemplo.

Portanto, a preocupação com os mais vulneráveis justifica sim uma lei do


homeschooling criteriosa, até exigente, que garanta o bem-estar das crianças e
adolescentes que mais necessitam de cuidado, mas não justifica de forma alguma o
rechaço total à existência de uma lei. Esse, aliás, é o comportamento que perpetuará a
omissão do estado em identificar e punir de forma mais eficaz quem realmente comete
abandono intelectual.

31
Do PT a Bolsonaro: 15 projetos de lei sobre
​ ue já passaram pelo Congresso12
homeschooling q

Nesta semana, algo inédito ocorreu na longa história da luta pela legalização do
homeschooling no Brasil. O Poder Executivo, por meio do líder do governo na Câmara dos
Deputados, deputado Vitor Hugo (PSL-GO), apresentou um ​requerimento de urgência para
o projeto de lei 2401/2019​. Trata-se da proposta de regulamentação do ensino domiciliar
desenvolvida pelo próprio governo Bolsonaro e enviada ao Congresso Nacional no ano
passado. Se o requerimento for aprovado, o projeto ganha tramitação mais célere, indo
direto para o plenário da Casa, sem a necessidade de passar pelo vagaroso caminho das
comissões que, aliás, sequer foram instaladas em 2020, devido à pandemia do coronavírus.

É a primeira vez que um governo dá tal importância ao tema que tramita na casa há
26 anos. Se o tempo percorrido surpreende alguns, o número de propostas, bem como o
perfil de seus autores, costuma resultar em surpresa ainda maior. Ao menos 15 projetos de
lei foram apresentados com intuito de produzir a primeira legislação sobre ensino domiciliar
no Brasil, protocolados por parlamentares filiados a partidos das mais variadas orientações
ideológicas.

O primeiro deles após a promulgação da Constituição de 1988 foi do então deputado


federal João Teixeira (PL-MT). O ​projeto de lei 4657/1994 chegou a tramitar por cerca de
um ano até ser arquivado ao fim daquela legislatura, procedimento padrão para todas as
propostas cuja tramitação não for concluída até o fim do mandato parlamentar.

Foram necessários seis anos até que a regulamentação voltasse a ser proposta e,
em 2001, o deputado Ricardo Izar (PTB-SP) protocolou o ​PL 6001/2001​. Curiosamente,
dois anos depois, o mesmo parlamentar, na mesma legislatura, apresentou mais um projeto
sobre o tema, com texto idêntico ao anterior. Foi o ​PL 1125/2003​, que foi devolvido ao autor
pela Mesa Diretora da Casa, por motivos óbvios. No intervalo entre o original e a cópia,
surgiu o ​PL 6484/2002​, do deputado Osório Adriano (PFL-DF), que foi apensado ao
primeiro de Izar. Ao fim daquela legislatura, ambos foram arquivados.

12

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/do-pt-a-bolsonaro-15-projetos-de-lei-sobre-homeschooli
ng-que-ja-passaram-pelo-congresso/

32
Em 2008, com Lula na presidência da república, foi um deputado petista quem
abraçou a causa da legalização do ​homeschooling.​ Henrique Afonso, do PT do Acre,
apresentou o ​PL 3518/2008​, mas não obteve sucesso em fazê-lo avançar. Um ano depois,
outro parlamentar filiado a um partido de esquerda inovou ao investir não num projeto de lei,
mas sim numa proposta de emenda constitucional (PEC). Foi o então deputado, e hoje
empresário do ramo de educação, Wilson Picler (PDT-PR). Infelizmente, a ​PEC 444/2009
teve o mesmo destino de propostas anteriores e foi arquivada quando aquela legislatura
acabou.

Passaram-se três anos até que o deputado Lincoln Portela (PL-MG) colocasse uma
nova proposta em tramitação, o ​PL 3179/2012​. Embora antigo, o texto tramita até hoje já
que Portela foi reeleito deputado duas vezes seguidas e pediu o desarquivamento do
projeto a cada início de novo mandato. O PL 3179/2012, aliás, é a proposta que encabeça a
comissão especial criada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em dezembro de 2019,
com o objetivo de analisar todos os projetos sobre ensino domiciliar na Casa. A instalação
da comissão, porém, nunca chegou a acontecer.

Ao 3179/2012 foram apensados todos os projetos que vieram em seguida


relacionados ao tema do ​homeschooling.​ É o caso do ​PL 3261/2015​, de autoria do
deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o ​PL 10185/2018​, do deputado Alan Rick
(DEM-AC), o ​PL 5852/2019​, do deputado Pastor Eurico (PATRI-PE), o ​PL 3262/2019 da
deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), o ​PL 6188/2019​, do deputado Geninho Zuliani (DEM-SP)
e até mesmo a ​proposta do Poder Executivo​, que é o texto para o qual foi solicitada a
tramitação em regime de urgência.

Convém mencionar ainda os dois projetos cuja tramitação teve início no Senado, e
não na Câmara. Ambos são de autoria do atual líder do governo na Casa, senador
Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) e, embora os dois tratem de ensino domiciliar, têm
textos e objetivos distintos. O primeiro é o ​PLS 490/2017​, que estabelece a regulamentação
propriamente dita e está na Comissão de Direitos Humanos, sob relatoria da senadora
Soraya Tronicke (PSL-MS). O outro é o ​PLS 28/2018​, que explicita no Código Penal que o
ensino domiciliar não caracteriza abandono intelectual. Esse aguarda designação de relator
na Comissão de Constituição e Justiça da Casa.

Diante do volume de propostas, da frequência crescente com que foram


apresentados, da conscientização dos parlamentares sobre a injusta perseguição contra
famílias educadoras e da relevância que o tema ganhou neste período de pandemia,

33
pode-se dizer com tranquilidade que nunca houve momento mais propício e maduro para a
aprovação de uma lei do ​homeschooling​ como agora.

Estabelecer a urgência para o 2401/2019 é o primeiro passo para colocar fim na


persistente e triste omissão do Poder Legislativo acerca do tema.

34
Os argumentos contra o ​homeschooling n ​ ão
justificam rejeição à existência de lei13

Em qualquer debate, audiência pública, entrevista ou seminário, são sempre dois os


​ ara justificarem
argumentos mais frequentes dos críticos à legalização do ​homeschooling p
sua posição. A suposta falta de socialização à qual estariam submetidos os estudantes
dessa modalidade e os riscos às crianças e adolescentes mais vulneráveis, já que, para
elas, a escola não seria apenas um ambiente de aprendizagem, mas também de proteção
social.

Por mais discutíveis que sejam os pontos levantados, penso que os defensores do
ensino domiciliar deveriam chamar a atenção para outro aspecto, mais amplo, antes de
refutá-los. À luz da razão, os dois argumentos, por si mesmos, são incapazes de explicar o
rechaço total a uma legislação sobre o tema. Esse é um fato que precisa ser mais exposto.
No máximo, justificam o debate sobre o nível de restrições que a lei brasileira sobre o tema
deveria adotar. Aliás, essa sim é a conversa sobre ​homeschooling ​na qual lados distintos,
porém com motivações honestas, poderiam chegar a um consenso.

Aos preocupados com a falta de socialização, bastaria, por exemplo, lutar para que a
lei exija das famílias adeptas da modalidade a apresentação periódica de evidências
capazes de comprovar que as crianças não são mantidas em reclusão, como um portfólio
de fotos e vídeos nas quais apareçam brincando com outras ou, para atender aos mais
exigentes, algum comprovante de matrícula em cursos livres nos quais haja turmas, como
escolas de inglês, de música ou de esportes.

Nos Estados Unidos, há estados que fazem uso de soluções semelhantes. Em Nova
York, por exemplo, as famílias ​homeschoolers ​são obrigadas a apresentar um plano
pedagógico no qual é preciso incluir atividades físicas praticadas coletivamente. Tudo deve
ser registrado e, posteriormente, apresentado ao órgão estatal fiscalizador.

Tenho plena consciência de que tal medida soa ridícula para os defensores de uma
legislação mais liberal, com menos Estado, no entanto, se é algo desse tipo o que faria a

13

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/os-argumentos-contra-o-homeschooling-nao-justificam-r
ejeicao-a-existencia-de-lei/

35
oposição à lei ceder, ao menos entre os que colocam foco na socialização, creio que seria
um aspecto negociável para as famílias mais conscientes da necessidade de sair da
clandestinidade.

No caso da necessária proteção às crianças e adolescentes socialmente


vulneráveis, a solução foi aprofundada em artigo recente, e envolve um conjunto de
dispositivos que restringiria o acesso à modalidade somente aos pais e responsáveis que
cumpram pré-requisitos claros, todos com o objetivo de preservar a segurança, o bem estar
e a aprendizagem do estudante.

Convém realçar ainda que uma lei do ensino domiciliar pode ajudar os conselhos
tutelares a priorizarem quem mais precisa, já que, hoje, na ausência de uma legislação,
famílias educadoras são incluídas nos índices de evasão escolar. Assim, ao invés de
dedicar todo o seu tempo e energias para combater casos reais de negligência, abuso e
violência, os conselheiros continuam recebendo denúncias anônimas – frequentemente
motivadas por mero desafeto pessoal – que os levam a famílias homeschoolers zelosas,
capazes de apresentar abundantes evidências de aprendizagem, socialização e bem estar
de seus filhos. Basta conversar com conselheiros honestos para obter deles relatos do quão
constrangidos se sentem ao se deparar com esse tipo de situação, tendo de investigar
alguém obviamente inocente.

Uma lei para a modalidade, portanto, é útil para os dois lados. No caso das famílias
já adeptas, a legalização as beneficia por tirá-las da clandestinidade e do risco de injusta
perseguição. Já aos agentes públicos dedicados à proteção de crianças e adolescentes
vulneráveis, mesmo àqueles que não gostam do ensino domiciliar, a lei garantiria
fiscalização onde hoje não há.

O pior dos mundos para todos os envolvidos é manutenção do atual estado de


discriminação às famílias e de completa omissão do Poder Público.

36
Os gênios educados em casa são a melhor
propaganda para o ensino domiciliar14

Ao buscar pelo termo “ensino domiciliar” nas redes sociais, o que não falta são
piadinhas maldosas de críticos sobre a suposta incapacidade dos pais – quaisquer pais –
de ensinarem em casa, bem como memes de crianças, supostamente educadas por suas
famílias, que escrevem mal ou não sabem calcular. Na grande maioria das vezes, tudo não
​ ão gera
passa de humor escrachado para propagar a mentira de que o ​homeschooling n
bons resultados de aprendizagem. É claro que os divulgadores dessas bobagens
normalmente apelam para vídeos de contexto desconhecido, sem dar absolutamente
nenhuma garantia de que a família em questão realmente é adepta da modalidade. Afinal,
se fossem buscar na realidade a matéria-prima para seu sarcasmo, ela os deixaria
completamente frustrados.

O mundo e a história estão repletos de gênios que foram educados em casa, pelos
pais ou por professores contratados pelas famílias. Alguns jamais frequentaram uma escola
regular até chegar à idade universitária, outros experimentaram ao longo de sua vida
estudantil, na infância e na adolescência, tanto a educação escolar como a domiciliar.

Se para muitos o exemplo realmente vale mais que mil palavras, tomar
conhecimento sobre alguns ​homeschoolers ​famosos, que se tornaram referências em suas
áreas, pode ser um argumento mais poderoso do que os muitos outros já apresentados
neste espaço.

Comecemos pelo cientista mais famoso do último século. Albert Einstein


(1879-1955), a quem é creditada uma extensa lista de descobertas e elaborações teóricas
no campo da Física, frequentou a escola dos 5 até os 10 anos de idade, quando seus pais
decidiram tirá-lo do sistema convencional e contrataram um tutor que o ensinou em casa. O
escolhido foi um estudante de medicina judeu, chamado Max Talmud, que o instruiu nas
disciplinas de matemática, ciências e filosofia.

14

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/homeschooling-genios-educados-em-casa-ensino-domic
iliar/

37
Thomas Edison (1847-1931), o inventor da lâmpada, foi educado pela mãe. Ela
chegou a levá-lo a uma escola por algumas semanas quando ele tinha 7 anos, mas,
segundo os biógrafos do gênio, as professoras passaram a reclamar demais de suas
frequentes interrupções com perguntas durante as aulas. A história provou que o problema
não estava com o aluno.

Podemos prosseguir citando o filósofo, matemático, historiador e crítico social


Bertrand Russel (1872-1970), que foi criado pela avó e educado por tutores, na Inglaterra,
após a morte dos pais. Em 1950, venceu o ​Prêmio Nobel​ de Literatura.

Por falar na badalada premiação, outro intelectual educado pela família que ganhou
um Nobel foi Erwin Schrördinger (1887-1961), físico austríaco de destaque nas áreas da
mecânica estatística, termodinâmica, teoria das cores, eletrodinâmica, relatividade geral,
cosmologia e física quântica. Ele estudou em casa até os 10 anos.

É bem provável, contudo, que os implicantes reclamem do fato de que todos esses
cientistas nasceram no século XIX, quando a educação escolar no modelo que conhecemos
hoje ainda não era de alcance universal, nem mesmo no Ocidente. A justificativa é frágil,
pois não anula o fato de que os citados foram homens influentes com intelecto altíssimo e
que não frequentaram uma escola diariamente desde os 4 anos de idade, como se impõe
no Brasil. Mesmo assim, a lista de homeschoolers geniais e bem-sucedidos é tão extensa
que não me custaria nada citar alguns nomes mais recentes.

O canadense Willard Boyle (1924-2011), por exemplo, agraciado com o Nobel de


Física, em 2009, é o inventor do circuito de semicondutores de imagem, uma espécie de
sensor que permitiu à Nasa enviar imagens nítidas à Terra do espaço. Seus serviços para a
agência espacial norte-americana também lhe possibilitaram participar da equipe que
determinou onde os astronautas deveriam pousar na Lua. Boyle era filho de um médico, foi
educado pela mãe, e fez homeschooling até os 14 anos, quando entrou precocemente para
o ensino superior.

O caso da enxadrista húngara Judit Polgár, de 44 anos, é emblemático em muitos


aspectos. Desafiando o regime comunista, que proibia o ensino domiciliar, seu pai decidiu
educá-la em casa e a treinou no jogo de xadrez desde os 5 anos. Em 1988, ela foi a
primeira mulher do mundo a vencer o campeonato mundial sub-12. Aos 15, ganhou o título
de mais jovem Grande Mestre Internacional de Xadrez em toda a história. Em 2002, venceu
o número 1 do mundo, Garry Kasparov, e permaneceu nas listas de melhores enxadristas

38
do planeta até anunciar seu afastamento dos campeonatos, em 2014, para dedicar-se aos
filhos.

No entanto, se alguém quiser um exemplo mais atual ainda, o melhor nome talvez
seja o do canadense Erik Demaine, 39 anos, professor de Ciência da Computação no MIT
(Massachusetts Institute of Technology), nos Estados Unidos. Ele passou a infância
viajando por toda a América do Norte com seu pai, um escultor e matemático por quem foi
educado na modalidade de homeschooling até entrar na universidade, aos 12 anos.
Concluiu a graduação dois anos depois, aos 14. Aos 20, recebeu seu primeiro diploma de
doutorado. Atualmente acumula dezenas de prêmios concedidos por instituições do Canadá
e dos Estados Unidos.

Encerro a lista por aqui para não deixá-la extensa demais, mas claro que não
esgotei os exemplos que poderiam ser dados. Agora, contudo, o leitor tem uma opção a
mais do que fazer quando se deparar com piadas infundadas sobre homeschooling nas
redes sociais: mostre esse artigo para o autor da insensatez e ajude-o a sair do poço de
ignorância no qual se encontra.

39
Por falta de lei, o Estado não sabe nada sobre o
ensino domiciliar brasileiro15

Quantas famílias são adeptas do ensino domiciliar no Brasil? Essa com certeza é a
pergunta mais frequente em qualquer reunião com autoridades e parlamentares que se
deparam com o tema pela primeira vez. A resposta, contudo, é de uma inexatidão frustrante
para todos os envolvidos na questão, desde as entidades que gostariam de ajudar o maior
número possível de famílias educadoras, até aqueles opositores que querem criticar a
modalidade com mais fundamento. Hoje, tudo o que temos são estimativas. Não há nenhum
número oficial obtido por levantamento do Poder Público, e isso é culpa da ausência de lei.

Atualmente, o ensino domiciliar no Brasil é um fato social óbvio, com milhares de


adeptos. Há comunidades de famílias que promovem eventos, produzem material didático,
formalizam associações e atuam junto às casas legislativas, pedindo urgência na
regulamentação. Há ainda personalidades que atuam no campo cultural, agregando
multidões de seguidores nas redes sociais e compartilhando suas práticas mais
bem-sucedidas. A demanda é tão real e crescente que, só nos últimos dois anos, apenas
para citar alguns dos fatos mais relevantes, o Supremo Tribunal Federal teve de se
manifestar sobre a questão em plenário, foi criada uma ​frente parlamentar na Câmara dos
Deputados dedicada exclusivamente à defesa do homeschooling com 240 congressistas –
quase a metade da Casa –, o governo federal encampou o tema, enviando para o
Congresso Nacional o próprio projeto de lei e propostas de regulamentação se
multiplicaram num ritmo impossível de ser acompanhado com precisão nos estados e
municípios.

Quantas realidades sociais com essas mesmas características encontram-se nessa


mesma situação, na qual o Poder Público não dispõe de nenhum dado oficial sequer? Pois
esse é o absurdo ponto ao qual chegamos devido à omissão do Legislativo em
regulamentar a prática. No papel, sem lei, pode-se dizer que o ensino domiciliar nem existe,
o que impede, por exemplo, que se inclua uma pergunta sobre o tema no Censo do IBGE,
ou que permita ao Ministério da Educação fazer esse levantamento. No mundo real,

15

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/por-falta-de-lei-o-estado-nao-sabe-nada-sobre-o-ensino-
domiciliar-brasileiro/

40
contudo, há grupos de pais e mães cada vez mais organizados e motivados a proteger sua
escolha, que é a de educar os próprios filhos em casa, nem que para isso sejam
injustamente perseguidas pelo Estado ou ​obrigadas a deixar o país​.

Os únicos números disponíveis sobre ensino domiciliar no Brasil hoje são os


apresentados pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), com base numa
coleta de informações feita em 2016​, na qual se chegou ao número de sete mil e quinhentas
famílias ou aproximadamente 15 mil estudantes. No entanto, a própria entidade reconhece
que o número tende a ser bem maior, já que é grande a quantidade de famílias que se
recusa a responder qualquer questionário sobre o assunto, dado o histórico de perseguição
contra a modalidade que foi disseminado no país.

Muitos pais e mães zelosos, responsáveis e capazes optam por se esconder, já que
não confiam na desejada sensatez de um eventual conselheiro tutelar, promotor ou juiz que
venha a tratar de seu caso. Enquanto não houver segurança jurídica para se exporem,
continuarão agindo como se vivêssemos num regime autoritário, no qual o Estado obriga
todos os pais a educarem seus filhos num único modelo permitido. Estão errados em seus
temores?

Só existe uma forma de acabar com essa cegueira estatal, essa completa ignorância
do Poder Público a respeito do ensino domiciliar brasileiro: dando à modalidade uma lei. Só
depois disso, e com as consequentes pesquisas por parte dos órgãos competentes para a
tarefa, é que se poderá falar com mais consistência sobre o perfil de quem opta por essa
forma de educação, suas motivações e suas necessidades. Da mesma forma, só com
esses dados é que se poderia falar com seriedade a respeito do impacto que o ensino
domiciliar tem no setor de escolas privadas ou na valorização da classe docente.

Sem lei, não há números confiáveis. Sem números confiáveis, a maior parte do que
se diz sobre essas questões é mero palpite.

41
Famílias ​homeschoolers:​ a minoria desprezada
por defensores de minorias16

Conforme ​mostrado estatisticamente em artigo anterior​, as famílias adeptas do


ensino domiciliar são minoria em qualquer país do mundo, inclusive naqueles onde a
modalidade é permitida há décadas. Há, portanto, evidências mensuráveis para se afirmar
que educar os filhos em casa, sem levá-los diariamente para uma escola, é sempre a opção
de poucos. Esse fato, somado à perseguição que enfrentam, à falta de apoio do Estado e
ao preconceito contra o qual lutam, torna possível enquadrar com perfeição essa parcela da
sociedade no já clássico conceito de minoria social. Apesar disso, constata-se com
facilidade que poucos grupos são tão desprezados – e às vezes odiados – por supostos
defensores de minorias como o das famílias ​homeschoolers​.

Parte dessa contradição pode ser explicada pela crença em ​estereótipos ideológicos
desprovidos de sólido fundamento​. Para a militância progressista mais dependente de
​ pauta conservadora, portanto,
aceitação no meio em que escolheu atuar, ​homeschooling é
deve ser combatida. As justificativas para tal posição vêm depois da decisão tomada. Se a
causa afeta direitos humanos fundamentais, isso não chega a gerar grande
constrangimento, já que, automaticamente, esse aspecto passa a ser visto como periférico
e administrável pelos produtores de narrativas.

Não há boas condições de diálogo com quem pensa dessa forma, pois não é a
razão o que norteia suas ações. Entre os autênticos defensores de minorias, contudo, há os
mais sensatos, os que não aderem, nem confrontam de forma robótica conjuntos de causas
previamente rotuladas. Para esses, que sentem legítima compaixão por quem tem direitos
negados, é preciso expor mais a realidade diária das famílias educadoras, enquanto minoria
indefesa e desprezada.

Diferente da comunidade negra, de grupos LGBT ou de coletivos feministas, as


famílias adeptas do ensino domiciliar não podem simplesmente organizar grandes e
vistosas marchas com pautas de reivindicações. Algumas até o fazem em certa medida,

16

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/familias-homeschoolers-a-minoria-desprezada-por-defen
sores-de-minorias/

42
mas têm consciência de que, no dia seguinte, podem ser denunciadas a agentes públicos
dispostos a infernizar suas vidas, aproveitando-se da omissão do Poder Legislativo em
regulamentar a modalidade. As denúncias contra famílias ​homeschoolers​, sob a absurda
acusação de “abandono intelectual”, são uma constante faca no pescoço de quem tem
coragem – ou petulância, para os críticos – de pedir reconhecimento de direitos.
Ameaçadas, muitas optam por uma vida de reclusão, invisibilidade social ou saem do país.

Por serem uma minoria numericamente pequena inclusive entre minorias, as famílias
educadoras também são incapazes de garantir um volume de votos atraente para políticos
motivados por cálculos eleitorais. Além disso, não há nenhuma grande fundação, instituto
ou ONG com fartos recursos financeiros que tenha abraçado sua causa até agora. A
ausência desses fundos costuma ser um fator a mais para parlamentares e outras
autoridades eleitas desdenharem o tema, pois o atendimento da demanda não vai lhes
render grande prestígio, nem convites para palestrar em eventos glamourosos, nem
amizades convenientes que, quem sabe, resultem num eventual financiamento de
campanha no futuro.

A única alternativa restante para as famílias ​homeschoolers ​é o velho – e nem


sempre eficaz – convencimento das consciências. No caso dos políticos, uma a uma. Não
há truque, nem lobby poderoso, nem celebridades influentes por trás dessa minoria. Apenas
pais e mães sofrendo, que gostariam de viver suas vidas sem ter medo do que o vizinho ou
algum desafeto pode fazer contra a paz de seus lares.

43
No caso do ​homeschooling​, regulamentação é
liberdade17

Frequentemente, aqui neste espaço ou nas redes sociais, após a publicação de


algum artigo no qual eu defenda a urgência da regulamentação do ​homeschooling,​ surgem
manifestações contrárias, mas não apenas de críticos do ensino domiciliar. Algumas
famílias já adeptas da modalidade e outros entusiastas que se apresentam como libertários
repudiam a iniciativa, pois consideram que isso seria “mais Estado” e que uma lei colocaria
“amarras” na liberdade das famílias. Apesar da clara boa intenção, os dois grupos estão, na
verdade, atrasados no debate. Tais argumentos seriam consideráveis dois anos atrás, antes
do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), mas desde que a Corte falou, tudo
mudou.

Antes do julgamento de 2018​, fazia sentido falar em limbo jurídico e cogitar que a
prática não dependia de lei específica para ser aceita como legítima, pois o que havia era
uma disputa de interpretações, envolvendo o texto da Constituição, a Lei de Diretrizes e
Bases, o Estatuto da Criança e do Adolescente e tratados internacionais assinados pelo
Brasil. Os casos de famílias educadoras que chegavam à justiça eram julgados
isoladamente, com resultados muito variados, dependendo sobretudo da sensibilidade e
sensatez do juiz.

No entanto, com o julgamento em plenário por parte do STF, e principalmente após


a publicação do acórdão referente ao julgamento, o que ocorreu em março de 2019, a
situação do ensino domiciliar no Brasil ficou bastante clara. Os ministros decidiram que a
modalidade é compatível com a Constituição, sob determinadas condições. A mais
importante delas é a de que haja lei que a regulamente. É essa a decisão que qualquer juiz,
em todo o Brasil, obedece ao ter de julgar uma família denunciada.

Portanto, já não faz o menor sentido dizer que, com a lei do ​homeschooling,​ o
Estado entrará em nossas casas e aumentará seu poder opressor sobre as famílias. No
Brasil, ele já entrou e já tem um poder enorme, ao ponto de dizer que todo pai e mãe é
obrigado a enviar os filhos para a escola todos os dias, mesmo contra sua vontade, mesmo

17

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/no-caso-do-homeschooling-regulamentacao-e-liberdade/

44
que a família apresente todas as evidências possíveis de que poderia fornecer condições de
aprendizagem e socialização melhores se fossem eles próprios a assumir o protagonismo
educacional de suas crianças e adolescentes.

A decisão do STF foi fatal para qualquer interpretação mais liberal de nossa
legislação sobre o tema. Se em outras áreas, a ausência de regulamentação é desejável,
por ser uma condição que favorece certa liberdade, no caso do ensino domiciliar, após o
julgamento, a existência de lei se tornou a única saída para garantir o direito de educar em
casa.

É bem verdade, contudo, que podia ter sido pior. O STF poderia ter destruído
qualquer esperança para as famílias adeptas da modalidade naquele julgamento, afirmando
que o ensino domiciliar é inconstitucional, mas não o fez. Escolheu passar a bola para o
Legislativo, mantendo um pouco de luz no fim do túnel, mas não sem consequências
drásticas para aqueles pais e mães que já haviam aderido à educação em casa.

Após um período em que todos os processos foram suspensos até que o julgamento
ocorresse, as ações voltaram a andar e uma nova temporada de caça às famílias
homeschoolers ​voltou com toda a força, motivada, sobretudo, por agentes públicos
obstinados em fazer o tema morrer no Brasil. Ao que tudo indica, fracassaram nessa tarefa,
mas a lei ainda não veio e a perseguição não acabou. Quando se tem conhecimento de
todo esse quadro é impossível invocar o mantra de que “sem lei é melhor” em pleno uso da
razão.

Só a lei permitirá às crianças e adolescentes educadas por ​homeschooling


usufruírem dos mesmos direitos aos quais os estudantes escolares já têm, como
certificação, por exemplo. Só a lei fará famílias educadoras pararem de ser taxadas como
infratoras, por terem coragem de fazer o que consideram melhor para seus filhos, mesmo
tendo de enfrentar uma situação bizarra de clandestinidade, produzida pela omissão de
parlamentares. Só a lei dará a todos que educam em casa condições reais de falar para
seus vizinhos, colegas de trabalho e familiares sobre o quão felizes estão com a opção que
fizeram, sem receio de que essas mesmas pessoas os denunciem por suposto abandono
intelectual no minuto seguinte à conversa.

Já não há outra saída. No Brasil, a liberdade para as famílias ​homeschoolers ​só será
obtida com lei.

45
​ Eles existem
Esquerda a favor do ​homeschooling?
e são mais comuns do que parece18

Todos que se interessam por ensino domiciliar (​homeschooling)​ , ainda que não o
pratiquem, em algum momento assistiram ou assistirão ao filme Capitão Fantástico (2016),
estrelado por Viggo Mortensen – o Aragorn, de O Senhor dos Anéis – e que retrata a
história de um casal que decidiu se afastar da sociedade e criar sua família no meio da
mata. Tiveram seis filhos e nenhum deles foi para a escola – foram educados pelos próprios
pais. Mesmo assim, receberam uma educação superior à oferecida em muitas escolas,
como o filme faz questão de destacar em várias cenas.

Quem para por aí na sinopse pode acabar supondo que se trata de uma obra
conservadora, afinal, trata-se de uma família numerosa adepta de ensino domiciliar, mas
estaria completamente errado. A família se afasta da sociedade por considerar que o modo
de vida capitalista é nocivo. O autor preferido do pai é Noam Chomsky, filósofo socialista a
quem celebram em substituição ao Natal. O cristianismo, aliás, é alvo frequente de
sarcasmo e o filho mais velho, em certo momento, admite ao pai que deixou de ser
trotskista e agora se declara maoísta.

Não pretendo enaltecer o filme com esse relato, mas penso que o enredo ilustra
muito bem o quão equivocado é rotular o ensino domiciliar como “pauta da direita”. Na
verdade, nem sequer é preciso apelar ao cinema para fundamentar essa afirmação. A
história recente do ​homeschooling ​no mundo está repleta de “progressistas” que defendem
a modalidade. Alguns, aliás, até foram educados por esse método.

No Brasil, penso que o caso mais simbólico é o de Luís Roberto Barroso, ministro do
STF, frequentemente acusado de praticar ativismo judicial em favor de pautas como aborto
e ideologia de gênero. Indicado ao cargo pela petista Dilma Roussef, é impossível vinculá-lo
ao conservadorismo, mesmo assim, Barroso assumiu o papel de defensor da
constitucionalidade do ensino domiciliar no julgamento sobre o tema, em 2018, e proferiu o
voto mais positivo de todos em favor das famílias ​homeschoolers​. E não foi só isso. Na

18

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/esquerda-a-favor-do-homeschooling-eles-existem-e-sao
-mais-comuns-do-que-parece/

46
condição de relator da ação, em 2016, ele suspendeu todos os processos movidos no Brasil
contra famílias que educavam em casa, até que o plenário julgasse o assunto. Com isso,
deu a centenas de pais e mães quase dois anos de paz para que prosseguissem educando
seus filhos da forma como considerassem melhor.

Saindo do Judiciário para o Legislativo, convém lembrar que um dos 15 projetos de


lei sobre ensino domiciliar que já passaram pelo Congresso Nacional foi de autoria de um
deputado federal do PT. Trata-se de Henrique Afonso (PT-AC), que protocolou a proposta
em 2008, durante o segundo mandato do presidente Lula. Aliás, a atual Frente Parlamentar
em Defesa do ​Homeschooling ​não é formada só por bolsonaristas e conservadores. Entre
os 240 parlamentares signatários, há deputados do PT, do PSB, do PDT e até do PCdoB.

Ainda na política, temos o caso de Rafael Correa, ex-presidente do Equador, um


bolivariano assumido, aliado de Hugo Chávez, Fidel Castro e Evo Morales. Após convocar
uma Assembleia Constituinte, Correa colocou o direito ao ensino domiciliar no texto da
Constituição, em 2008, e normatizou a prática em 2013.

No mundo das celebridades, podemos citar Emma Watson, a atriz que ficou famosa
como a Hermione, de Harry Potter, e que hoje desponta como garota propaganda do
feminismo global. Emma foi aluna ​homeschooler,​ educada por tutores contratados por seus
pais. Eles a acompanhavam durante os longos períodos de gravação, já que sua carreira de
atriz teve início aos 10 anos de idade, quando ela saiu do sistema escolar tradicional.

Ainda em Hollywood, falemos também de Ryan Gosling, o protagonista do musical


La La Land, indicado ao Oscar de melhor ator em 2017, e um dos principais apoiadores do
democrata Bernie Sanders nas duas últimas tentativas do esquerdista em disputar a
presidência dos Estados Unidos. Também aos 10 anos, ele parou de ir à escola porque sua
mãe estava preocupada com o bullying que o garoto sofria. Desde então, foi educado por
meio do ensino domiciliar.

Como esses, há numerosos outros exemplos, mas espero que os mencionados


sejam suficientes para convencer parlamentares de esquerda que não estarão traindo seu
espectro ideológico se decidirem, com base na razão e na própria consciência, por votar a
favor do ensino domiciliar. Trata-se de uma pauta de direitos humanos e, por mais variadas
que sejam as definições do que é esquerda política, nenhuma delas se opõe à proteção de
minorias perseguidas e discriminadas. Exatamente o caso das famílias ​homeschoolers.​

47
Por que a pandemia fez o interesse por
homeschooling c​ rescer tanto no mundo todo19

Muito já foi escrito na imprensa nacional e internacional sobre as consequências


permanentes que a pandemia deixará no mundo, como a massiva adesão de empresas ao
home office e o hábito de fazer videoconferências. No que diz respeito ao ​homeschooling​,
contudo, só agora começam a surgir dados mensuráveis de como cresceu o interesse das
famílias por educar em casa. Infelizmente, essas informações não são do Brasil, pois,
conforme aprofundei em artigo anterior​, graças à ausência de lei, o Estado brasileiro padece
de uma ignorância quase completa sobre esse fato social em seu próprio território.

Os dados mais precisos, como sempre, vêm dos Estados Unidos, onde a
modalidade é legalizada há 48 anos, e onde ​coexistem dezenas de legislações diferentes
sobre a mesmo tema​, variando de estado para estado. De acordo com o ​National Home
Educators Research Institute (NHERI), uma das principais entidades de pesquisa
relacionadas ao ​homeschooling ​no país, o aumento nos pedidos de registro como família
adepta de ensino domiciliar é enorme. Se no último levantamento o número de estudantes
​ o país era de 2,5 milhões, a previsão é de que neste ano o resultado seja
homeschoolers n
de, pelo menos, 10% maior.

Só no estado de Nebraska, por exemplo, o número de famílias educadoras


cadastradas junto às autoridades estaduais era de 2.800 antes da pandemia. Em julho,
esse número já havia saltado para 3.400. Lembrando de que estamos falando de
homeschooling ​mesmo, e não do ensino remoto improvisado, ao qual os estudantes
escolares tiveram de se submeter em todo o mundo.

Outra entidade, a ​National Home School Association,​ ​relatou a uma reportagem da


Associated Press que chegou a receber 3.400 pedidos de informação sobre a modalidade
em um único dia. Antes do coronavírus, a média era de 20 mensagens diárias.

No Reino Unido, a realidade é a mesma. ​Uma pesquisa feita em março revelou que
o número de estudantes educados em casa cresceu 119% em relação ao mesmo período

19
https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/pandemia-interesse-homeschooling-mundo/

48
no ano anterior. Notícias muito semelhantes tratam do mesmo fenômeno ocorrendo na
Austrália​ e na ​África do Sul​.

As causas para o crescimento são fáceis de deduzir, mas também constam nas
pesquisas citadas acima. Ocorre que durante a pandemia, ainda que tenham sido obrigados
a se isolar com os filhos em casa, pela primeira vez, muitos pais tiveram a oportunidade de
encarar o desafio de ensinar por conta própria, usando como auxílio apenas recursos
digitais. Para alguns, foi terrível, mas para outros, uma grata surpresa, pois perceberam que
conseguem e que os filhos gostaram. Em muitos casos, aliás, as famílias constataram que
os resultados em aprendizagem foram objetivamente melhores do que aqueles que
costumavam ver quando confiavam apenas no sistema escolar.

Há também uma outra motivação, essa sim, diretamente vinculada ao atual contexto,
e que tem aparecido com frequência em questionários sobre esse súbito aumento de
interesse pelo ​homeschooling​. Com o retorno gradual das aulas presenciais, mesmo antes
de uma vacina que imunize a população, muitos pais temem que seus filhos sejam
infectadas pela Covid-19. Apesar das inúmeras promessas de precaução feitas pelas
autoridades públicas, nem todas as famílias estão dispostas a apostar a saúde ou a vida de
seus filhos com base nas falas de políticos. Preferem abrir mão de uma renda, sacrificar seu
tempo e empenhar esforços inéditos, assumindo o protagonismo na educação de suas
crianças.

Trata-se de um direito que, ao menos segundo a legislação vigente, os pais e mães


brasileiros ainda não têm, e os principais culpados são os parlamentares do Congresso
Nacional, ​em especial aqueles que controlam a pauta de votações​. Por motivos obscuros,
esses senhores insistem em prolongar sua irresponsável omissão em regulamentar a
modalidade.

49
O bom momento político para aprovação do
ensino domiciliar20

Não existe uma fórmula infalível capaz de prever quando e se uma proposta sobre
homeschooling ​será aprovada pelo Congresso Nacional, mas, na grande maioria das
votações bem sucedidas, alguns elementos políticos estão sempre lá. É por isso que
qualquer analista atento e honesto que se dê ao trabalho de investigar as chances de
sucesso da regulamentação do ensino domiciliar no Brasil, hoje, dará uma resposta otimista
às famílias que aguardam pela lei com tanta ansiedade.

Vários desses elementos reveladores puderam ser constatados no ​Simpósio Online


sobre Ensino Domiciliar​, ocorrido na última terça-feira (22), na Câmara dos Deputados.
Promovido pela Frente Parlamentar em Defesa do ​Homeschooling,​ o evento deu voz,
principalmente, aos parlamentares, e com isso expôs o consenso em torno da urgência do
tema na Casa.

Fator essencial para a celeridade na tramitação de matérias que dependem do


plenário é a anuência de líderes partidários. No simpósio, três participaram na condição de
palestrantes. Paulo Ganime (Novo), Enrico Misasi (PV) e Ricardo Barros (PP), líder do
governo. Esse último, aliás, foi quem fez as afirmações mais assertivas no que diz respeito
à prioridade que o governo Bolsonaro dá ao tema.

“Eu acredito que as famílias que desejam utilizar essa forma de educar os filhos, que
não é inovadora, que já existe em outros países, terão a oportunidade de assim fazê-lo”,
afirmou Barros, que fez questão de comparecer pessoalmente ao evento, mesmo havendo
a possibilidade de participar de forma remota. Em seguida, completou: “É nossa obrigação
legislar para estabelecermos regras que a sociedade brasileira ache adequadas, por meio
de sua representação no Congresso Nacional”.

A fala de Barros merece destaque. O deputado não pertence à ala dos


parlamentares explicitamente vinculados à bandeira do ​homeschooling​. Ele estava lá na
condição de líder do governo, cargo ao qual foi recentemente alçado, em muito, devido à

20

https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/o-bom-momento-politico-para-aprovacao-do-ensino-dom
iciliar/

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sua reputação como alguém que entrega resultados. Condição semelhante à de Arthur Lira,
líder do PP e candidatíssimo à sucessão de Rodrigo Maia na presidência da Câmara dos
Deputados. Não há registro de que Lira já tenha usado a tribuna ou suas redes sociais para
falar em defesa do ensino domiciliar, mesmo assim, a força de sua assinatura foi
fundamental para tornar válido e agregar apoio ao requerimento de urgência apresentado
em julho pelo então líder do governo, deputado Major Vitor Hugo. O fato de dois gigantes da
articulação política adotarem publicamente ações que favorecem o avanço da matéria é um
sinal muito promissor para as famílias educadoras.

Por falar em Vitor Hugo, ex-líder do governo e amigo do presidente Bolsonaro, o


deputado também fez uma revelação animadora durante sua fala. Segundo o relato, três
semanas antes de sair da liderança do governo, o deputado se encontrou com Maia, falou
sobre a pauta do ​homeschooling​, e o presidente da Câmara, por sua vez, “sinalizou
positivamente para essa votação”. Poucos dias antes do evento, uma reportagem da Folha
de S. Paulo confirmava a boa vontade do parlamentar carioca com o tema, para quem o
assunto “não é restrito à pauta de costumes”.

Ao conjunto de fatores que tornam o momento político para o ​homeschooling ​muito


oportuno, soma-se o tamanho da frente parlamentar criada em 2019 especificamente para
apoiar o tema. Presidida pelo deputado cearense Doutor Jaziel (PL), o total de signatários
chega a 240 deputados, maior, portanto, do que a frente evangélica, com 195, e quase
equivalente à frente ruralista, com 243.

Por fim, a mais recente boa notícia para as famílias perseguidas, que aguardam por
uma lei capaz de tirá-las da clandestinidade, são os ​índices de popularidade do governo do
presidente Bolsonaro​. De acordo com a CNI-Ibope21, o número de brasileiros que
consideram a atual gestão boa ou ótima subiu para 40% ante os 29% registrados em
dezembro. Tradicionalmente, um governo popular tende a atrair a adesão dos
​ pauta do governo Bolsonaro.
parlamentares para suas pautas, e ​homeschooling é

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Metodologia da pesquisa: A CNI-Ibope ouviu 2 mil pessoas entre 17 a 20 de setembro de 2020 em
127 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos e a
confiança, de 95%.

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