Você está na página 1de 203

CARTOGRAFIAS IMAGINÁRIAS

O original está à venda na Amazon e no Google Play

ay
Pl
le
g
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play

ay
Renato Amado Peixoto

Pl
g le
oo
G
no
e
on
az
Cartografias Imaginárias
Am

Estudos sobre a construção da história do espaço


na

nacional brasileiro e a relação História & Espaço

2ª edição revista e ampliada


a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or

Natal
Edição do Autor
O

2019
O original está à venda na Amazon e no Google Play

ay
Pl
g le
oo
G
no
e
on
Capa: Mapa de Gerardus Mercator, “Septentrionalium Terrarum des-
az
criptio”, 1595.
Am

Colofão: Ilustração nº 18 do Rosarium Philosophorum, Special Collections


Department, University of Glasgow Library; MS Ferguson 210
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play

ay
Pl
Sumário

g le
oo
Apresentação................................................................................................8

G
no
Zona de confluxo:
a História dos Espaços no horizonte da aproximação

e
da História com a Geografia e a Cartografia........................................14

on
az
Enformando a Nação:
a construção da história do espaço nacional
Am

no projeto historiográfico do IHGB


e seu exame por meio do estudo cartográfico.......................................32
na

A lógica do sentido do espaço da Nação:


a

a produção do espaço da Nação e das protorregiões no


nd

Terceiro Conselho de Estado (1842-1848).............................................. 71


ve

Impertinentes, desinteressados ou sem escolha:


à

a produção no IHGB de uma história dos demarcadores


e das demarcações Portuguesas no Norte do Brasil ..........................90
á
st
le

O espelho do Jacobina:
a

uma discussão dos problemas de representação


do espaço da Nação por meio do estudo cartográfico..................... 106
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play

ay
O mapa antes do território:
o território do Javari como exemplo da construção

Pl
concorrencial de espaços ........................................................................... 131

g le
Os dromedários e as borboletas:

oo
uma análise da produção da espacialidade regional por meio da
‘Comissão Científica de Exploração’ do IHGB

G
(1855-1862)..................................................................................................... 149

no
Por uma análise crítica das políticas de espaço:

e
isto pode ser chamado de estudo do ‘Geopoder’?.............................. 161

on
az
Espaços imaginários:
o historiador dos espaços como cartógrafo.......................................... 177
Am

Referências..................................................................................194
na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
8 Cartografias Imaginárias

ay
Pl
Apresentação à segunda edição

g le
oo
Passados exatos dez anos da escrita deste livro, faz-se agora

G
necessária a publicação de uma segunda edição, por conta de há

no
muito se haverem esgotado os seus exemplares. Oferece-se, com
isso, a oportunidade de fazer pequenos reparos, acrescentar alguns

e
esclarecimentos, juntar mapas essenciais e, sobretudo, apresentá-

on
-los em cores.
az
Acho que é por demais evidente a importância de se poder con-
tar com o colorido no estudo dos mapas, mas quero acrescentar
Am

que este é um livro sobre a imaginação cartográfica e a Cartografia


imaginária. Nesse sentido, lembro que Matthew Edney, um dos
na

grandes estudiosos da História da Cartografia, disse numa con-


ferência que o seu interesse pelos mapas foi desencadeado justa-
a

mente pelas pequenas vinhetas coloridas da “Carta marina et des-


nd

criptio septentrionalium terrarum”, de Olaus Magnus (1539), e


ve

contou do seu desapontamento ao descobrir que esse mapa fora


colorido mais de quatrocentos anos depois de publicado.
à

Por outro lado, Edney realçava que, se o fac-símile colorido


á

havia se tornado famoso pelas vinhetas de serpentes e monstros


st

marinhos, as que lhe despertaram a atenção eram de outro tipo:


le

as que mostravam trenós repletos de pessoas festivas e pacíficas


a

cruzando da Finlândia até a Suécia através do Mar Báltico, os gru-


in

pos de guerreiros suecos e russos se enfrentando no meio do Golfo


ig

da Finlândia e as figuras de nativos finlandeses celebrando rituais


or

no antigo sítio pagão de Uppsala. E foram esses os sentidos que o


levaram até Brian Harley: a possibilidade de buscar estudar infor-
O

mações culturais e sociais nos mapas antigos (EDNEY, 2015).


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 9

ay
Nossa intenção, com a apresentação na capa desta segunda
edição do mapa “Septentrionalium terrarum descriptio”, de

Pl
Gerardus Mercator, guarda relação com a exposição feita por

le
Edney. Composto mais ou menos na mesma época que o de Olaus

g
Magnus, o mapa de Mercator foi a primeira tentativa de cartografar

oo
a região do Ártico; seus limites estão exatamente onde o mapa de
Magnus termina.

G
Em “Septentrionalium terrarum descriptio” não foram dese-

no
nhadas serpentes nem monstros marinhos, mas o mapa inclui des-
crições fascinantes de pigmeus e redemoinhos gigantes. Porém, do

e
mesmo modo que Edney, não foram os elementos em destaque

on
que me fascinaram, e sim a montanha que emerge de um lago no
az
centro do mapa, o “Polus Arcticus”.
Am

Essa vinheta provavelmente visa explicar o magnetismo que


atrai o ponteiro das bússolas através da disposição de uma mon-
tanha de ferro no alto do globo terrestre, assim como a disposi-
na

ção de pigmeus e redemoinhos gigantes visava explicar a presença


do povo esquimó e as violentas marés naquelas paragens. Nesse
a
nd

sentido, o que me atraía no estudo dos mapas era a vontade de


entender as racionalidades científicas, políticas e sociais, e as ideias
ve

por trás das disposições dos cartógrafos, algo que acredito ter sido
esboçado por Yi-Fu Tuan no livro Space and Place (2003).
à

Ora, nos dez anos que separam esta Apresentação da escrita


á
st

da primeira edição de Cartografias Imaginárias, muitas das minhas


le

ideias mudaram (para melhor ou pior, dependendo da perspectiva),


mas essa vontade permanece. Por conseguinte, o meu grande desa-
a

fio foi preservar nesta edição as questões e os posicionamentos de


in

2009, procurando aclarar certas questões que não foram bem colo-
ig

cadas e acrescentando pequenas colocações que o estado da arte da


or

pesquisa não permite ignorar.


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
10 Cartografias Imaginárias

ay
Contudo, quero dizer que não alterei as proposições teóri-
cas adotadas na primeira edição, deixando propositalmente de

Pl
acrescentar as muitas colocações acerca do Pós-Estruturalismo

le
e do legado de Brian Harley e dos cursos de Jaime Cortesão no

g
Ministério das Relações Exteriores que interessam diretamente

oo
aos conteúdos trabalhados naquela edição. Na verdade, pretendo
trabalhar essas questões noutro livro, mesmo porque não acredito

G
em obras acabadas e entendo que a transitoriedade é o estigma de

no
nossa lembrança: estou aqui porque fui assim, e minha confissão é
contraditória – deixo que o percebam.

e
Na feitura de Cartografias Imaginárias trabalhei uma das hipóte-

on
ses de minha tese de doutoramento (A Máscara da Medusa): a de que
az
é possível reconhecer uma partilha de interesses e de tarefas entre
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Ministério
Am

das Relações Exteriores (MRE) desde a década de 1830, capaz


de viabilizar uma produção continuada da História do Espaço da
na

Nação para consolidar a atuação do Estado e as posições dos diplo-


matas e dos historiadores reunidos em seu entorno. A partir dessa
a

hipótese, procuro explorar a ideia de que essa tarefa e os seus con-


nd

teúdos foram reapresentados na fabricação de outras espacialida-


ve

des (a região e os estados) e noutros ambientes políticos e sociais,


os do último quartel do século XIX e da República.
à

Meu propósito era contribuir para o debate no Programa de


á

Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal do


st

Rio Grande do Norte (UFRN), buscando aproximar o meu tra-


le

balho de doutoramento de demandas e interesses de alunos e


a

professores que então se concentravam na aproximação entre


in

a Literatura e a História dos Espaços. Então, inaugurei um pro-


ig

jeto para examinar as obras de dois autores estadunidenses, H. P.


or

Lovecraft e Robert E. Howard, nas proximidades daquilo que hoje


se denomina Geocrítica. Assim, as digressões desse projeto com-
O

parecem ao longo do livro; não se espantem disso. Por sua vez, o


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 11

ay
trabalho docente na graduação exigia o contato com os problemas
referentes à produção da Região (o Nordeste) e da identidade local

Pl
(a norte-rio-grandense), por isso eles se fizeram presentes.

le
Além disso, o livro visava apresentar as transformações de

g
minhas posições acerca de certas tomadas pós-estruturalistas e

oo
apontar para uma História dos Espaços gestada na autonomia do

G
confluxo da História com a Geografia, no horizonte daquilo que
Reinhart Koselleck, Yi-Fu Tuan e J. K. Wright trabalharam. Com

no
isso não pensava em me afastar do “giro pós-estruturalista” de
Brian Harley ou das colocações de Gilles Deleuze e Michel Foucault,

e
mas dialogar com questões resultantes de sua aplicação direta à

on
História da Cartografia e à História dos Espaços, as quais eu enten-
az
dia serem relacionadas à “Lógica do Sentido”, à “Heterotopia” e ao
arsenal interpretativo de Brian Harley.
Am

Em relação ao itinerário que percorremos no livro, devo apre-


sentar cada um de seus capítulos:
na

A primeira versão de “Zona de confluxo” saiu em 2011 na


a

Revista Porto e não fez parte da primeira edição de Cartografias


nd

Imaginárias, mas trabalha com conteúdos desenvolvidos no livro


os quais acredito serem necessários para aclarar nossas posições
ve

acerca da História dos Espaços.


à

“Enformando a Nação” foi escrito em 2008 para o livro e visa


á

apresentar a hipótese da “produção continuada e partilhada do


st

espaço da Nação” e o papel que a Cartografia desempenhava no


le

IHGB e no MRE, trazendo outro entendimento acerca da criação


do IHGB e explicitando a sua responsabilidade na reprodução do
a
in

que chamo de subalternidade continuada.


ig

O texto “A lógica do sentido do espaço da Nação” foi reescrito


or

para esta Edição e revisita um dos temas de A Máscara da Medusa, a


produção do espaço no Conselho de Estado, para relacionar o pro-
O

blema da Nação ao da Região. No caso, aponto que o discernimento


O original está à venda na Amazon e no Google Play
12 Cartografias Imaginárias

ay
das protorregiões ‘Norte’ e ‘Sul’ estava imbricado na compreensão
mesma do processo de construção do espaço da Nação e do papel

Pl
desempenhado pelos seus participantes.

le
A primeira versão de “Impertinentes, desinteressados ou

g
sem escolha” foi publicada em 2008 nos Anais do II Encontro

oo
Internacional de História Colonial, mas aqui se busca aproximar

G
a produção da história das demarcações no IHGB com a produção
cartográfica no MRE, procurando explicitar o papel nelas desempe-

no
nhado por Duarte da Ponte Ribeiro.

e
“O espelho do Jacobina” é um texto produzido para o livro,

on
porém desenvolve certos argumentos do artigo “A Carta Niemeyer
de 1846”, publicado na revista Anos 90 em 2004. Nesse capítulo
az
busco comparar o primeiro mapa do Brasil, produzido por Conrado
Am

Jacob de Niemeyer para o IHGB, com os mapas desenhados por


Duarte da Ponte Ribeiro para o MRE e para a Exposição Universal
de Viena de 1873.
na

A primeira versão de “O Mapa antes do Território” foi publi-


a

cada em 2002 na revista Trajetos e discorre sobre a transformações


nd

(ou não) da espacialidade na República, tomando como fio narra-


tivo a Cartografia acerca do Rio Javari, centro das discussões na
ve

“Questão do Acre” em 1903.


à

“Os dromedários e as borboletas” é um texto escrito para o


á

livro que discorre sobre os sucessos da Comissão de Exploração


st

do IHGB e relaciona os saberes nela produzidos com o surgimento


le

da regionalidade nordestina nas duas primeiras décadas do século


XX e com a minha hipótese da produção continuada do Espaço da
a
in

Nação.
ig

“Por uma análise crítica das políticas de espaço” foi escrito para
or

o livro e coloca a ideia da Geopolítica de Koselleck no horizonte da


produção foucaultiana, derivando-a para o que hoje reconhecemos
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 13

ay
como Geocrítica por meio de um caso de estudo no contexto da
República.

Pl
Finalmente, a primeira versão de “Espaços Imaginários” foi

le
publicada no livro Cartografias de Foucault em 2008 e revolve o con-

g
teúdo referente à ideia de “Cartografia imaginária” ou “Cartografia

oo
da imaginação”, apresentando-o na forma do que conhecemos hoje

G
enquanto “Cartografia literária”. Aqui questiono a apresentação do
termo “Cartografia” por Deleuze, através do exame daquilo que

no
esse autor retira da obra de Artaud para elaborar o seu AntiÉdipo, e
remeto o resultado a uma aproximação dos conteúdos de Foucault

e
e Derrida.

on
az
Renato Amado Peixoto.
Am

Capim Macio, fevereiro de 2019


na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
14 Cartografias Imaginárias

ay
Pl
Zona de confluxo:

g le
a História dos Espaços no horizonte da aproximação da

oo
História com a Geografia e a Cartografia

G
no
O objetivo deste capítulo é aclarar nossas posições acerca

e
da investigação da historicidade do espaço por meio de dois
textos fundamentais para a compreensão do afastamento da

on
História em relação à Geografia: “Espaço e História” de Reinhart
az
Koselleck (2001)1 e “O Tempo do Espaço e o Espaço do Tempo”
Am

de Immanuel Wallerstein (1998)2.


Com esse intuito, percorrerei o raciocínio de cada autor e,
sempre que se fizer necessário, acrescentarei exemplos a partir
na

de conteúdos que serão expandidos noutros capítulos deste livro.


a

Vale notar que esse exercício visa também defender uma maior
nd

aproximação entre historiadores e geógrafos, proposta que não


ve

1 O texto de Koselleck deve ser compreendido como parte de suas últimas investigações,
à

quando cuidava de pensar uma ‘antropologia das experiências do tempo histórico. Nesse
âmbito, foi escrito para ser apresentado como conferência ao final do Congresso de Histó-
á

ria de Trevéris, Alemanha, em 1986, permanecendo inédito até a publicação do livro Zeits-
st

chichten - Studien zur Historik, lançado pela editora Suhrkamp Verlag no ano de 2000.
Traduzido para o espanhol com o título de “Espacio e historia”, foi incluído na coletânea
le

Los estratos del tempo: estúdios sobre la historia, publicada pela editora Paidós em 2001.
2 O texto de Wallerstein foi escrito a partir da repercussão dos tomos I e II de sua obra principal,
a

O Sistema Mundial Moderno – respectivamente publicados em 1974 e 1980, por conta da


in

necessidade de aclarar certos problemas relativos à aplicação do conceito de TempoEspaço,


sobretudo o que se referia à proximidade com as colocações feitas por Fernand Braudel em
ig

‘O Tempo do Mundo’, o tomo III de Civilização Material, Economia e Capitalismo. Neste


or

sentido, Wallerstein cuidou de desenvolver e divulgar o seu conceito em conferências pro-


nunciadas entre os anos 1996 e 1998, na Inglaterra e Estados Unidos. Uma delas, ‘O Tem-
po do Espaço’ foi apresentada à Tyneside Geographical Society da University of Newcastle
O

upon Tyne em 1996, cabe notar, sob o patrocínio da Royal Geographical Society e do Ins-
titute of British Geographers, sendo publicada pela revista Political Geography em 1998.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 15

ay
faz parte do raciocínio de Koselleck ou de Wallerstein, embora
possa ser remetida à lógica de argumentação desses autores.

Pl
Saliento que este é um trabalho de compreensão e interpre-

le
tação de textos de diferentes afiliações teóricas e metodológi-

g
cas, condições que podem fazer diferir os resultados da análise

oo
por conta mesmo da formação ou da expectativa do examinador.

G
Assim, assumo a responsabilidade pelos exageros e omissões
e, notados estes, espero inclusive que novas leituras dos textos

no
sejam feitas, para que nosso debate se desenvolva.

e
on
Koselleck e a contradição entre a História e a Geografia
az
Em “Espaço e História”, Koselleck (2001) aponta que a con-
Am

tradição entre as categorias científicas e históricas do espaço e


tempo é moderna. À velha História, como ciência geral da expe-
na

riência humana, pertencia tanto a cronologia quanto o saber


acerca da natureza e a Geografia em seu sentido estrito. Pelo
a

menos até Kant e Herder, os historiadores declaravam normal-


nd

mente que seu trabalho tinha a ver com o tempo e com o espaço,
ve

referindo-se a um tempo histórico e a um espaço histórico no


horizonte da própria historicização.
à

Essa apreciação só mudaria a partir do século XIX, quando a


á

Geografia começou a definir-se enquanto ciência e a instituir-se


st

simultaneamente enquanto participante das Ciências Sociais e


le

do Espírito, e das Ciências da Natureza, desencadeando o pro-


a

blema de só poder ser definida adequadamente como uma ciên-


in

cia interdisciplinar.
ig

Os historiadores, compreendendo essa situação precária e a


or

sobreavaliação da marca temporal nos efeitos da modernidade,


O

passaram a considerar a Geografia como mera disciplina auxiliar


O original está à venda na Amazon e no Google Play
16 Cartografias Imaginárias

ay
e, diante da alternativa formal entre espaço e tempo, optaram
então por instruir a construção epistemológica da História por

Pl
meio da reificação do tempo e da subordinação do espaço. Esse

le
raciocínio é encadeado por Koselleck (2001, p. 97) a partir da

g
premissa de que a busca pelas novidades, pelas trocas, pelas

oo
modificações fazia parte dos interesses daqueles historiadores
“na medida em que se pergunta como se tem chegado à situação

G
atual que se contrapõe à anterior”. Mas os historiadores esta-

no
riam afetados pela experimentação de uma nova dinâmica do
tempo, explicitada na velocidade vertiginosa com que se desen-

e
rolavam os eventos e as transformações sociais e tecnológicas.

on
Além de optar pela preponderância teoricamente pouco fun-
az
damentada do tempo sobre o espaço, os historiadores cuidaram
de fundar o seu método baseando-se apenas na sucessão tempo-
Am

ral e afastando a ideia de se preceder à separação sistemática do


tempo. Uma vez constituída a ideia da unicidade do tempo, esta
na

permitiu a seus defensores discernir uma “Filosofia da História”


na qual se afirmaria que o exame da cronologia e das transfor-
a

mações no tempo era central para o descortinamento do mundo


nd

e a explicação dos seus habitantes


ve

De modo a salientar essa arrogância da História, Koselleck


lembra que os primeiros geógrafos, Humboldt, Ritter e Ratzel,
à

já não apontavam o espaço e o tempo apenas enquanto registros


á
st

da percepção cujos sistemas de signos descansavam no mundo


le

exterior, mas salientavam que as intervenções dos indivíduos na


História eram também capazes de produzir seus espaços e tem-
a

pos próprios. Contudo, mesmo diante de contribuições que reco-


in

locavam uma compreensão comum aos dois campos, a maioria


ig

dos historiadores, desconcertantemente, trabalharia a partir da


or

dedução de que uma sistemática baseada no espaço seria pouco


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 17

ay
importante ou menos frutífera que a sistemática centrada na
sucessão do tempo.

Pl
Assim, o raciocínio de Koselleck não apenas explicita a pre-

le
missa de que o espaço e o tempo pertencem igualmente às con-

g
dições de possibilidade da História, mas também endossa a ideia

oo
de que a dificuldade manifestada por alguns historiadores em

G
pensar ou mesmo considerar o espaço em suas reflexões deve-
ria ser entendida como resultante da permanência de um legado

no
que necessariamente deve ser repensado.

e
No Brasil, o desenvolvimento das atividades do Instituto

on
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) exemplifica de modo
admirável as incertezas e possibilidades percorridas pelo con-
az
curso de racionalidades ainda indecisas ante a separação ou a
Am

convergência entre a História e a Geografia. A fundação do IHGB


em 1838 decorreu exatamente da necessidade de se colocarem
os problemas acerca da constituição do território e da identidade
na

da Nação diante das demandas do Estado e, conforme as pre-


a

ocupações salientadas no Parlamento, no Conselho de Estado


nd

e na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (SENE),


predecessora do atual Ministério das Relações Estrangeiras, não
ve

havia Nação porque não se havia definido o seu território, e este


não podia ser bem defendido pelos agentes do Estado enquanto
à

inexistisse uma narração coerente da ocupação e da expansão no


á
st

espaço, reconhecida e acordada pelas elites que então reformu-


le

lavam o Estado.
Quero salientar que essa impossibilidade fundamental, o nó
a
in

górdio da Nação brasileira, foi parcialmente resolvida pelos his-


ig

toriadores brasileiros ainda na primeira metade no século XIX,


or

por meio do recurso a uma sistemática predominantemente


espacial na qual a escritura de uma “História das Fronteiras”
O

antecedeu a produção da História da Nação, tarefa de Varnhagen


O original está à venda na Amazon e no Google Play
18 Cartografias Imaginárias

ay
durante pelo menos dez anos. Refiro-me aqui à produção, sob a
liderança de José Feliciano Fernandes Pinheiro, da História do

Pl
espaço nacional no âmbito do IHGB, levada a cabo entre 1839 e

le
1841 a partir dos insumos recebidos da Secretaria de Estado dos

g
Negócios Estrangeiros, do Parlamento e do Conselho de Estado.

oo
Essa sistemática se desenvolveria durante a segunda metade

G
do século XIX por meio da ampla disponibilização dos conteú-
dos da Corografia e pela proliferação de suas obras, cuidando

no
da descrição dos espaços através de uma articulação cronoló-

e
gica que inscrevia o espaço no território do Estado cujo exame
não autoriza o discernimento de uma separação rigorosa entre a

on
História e a Geografia no Brasil até a segunda década do século
az
XX. Enquanto gênero narrativo, a Corografia possui uma his-
tória que remonta ao século XVI e, por conseguinte, várias das
Am

obras sobre o Brasil produzidas no período colonial tangencia-


ram esse gênero. Contudo, a divulgação dessas obras no século
na

XIX e a subsequente disseminação dos seus conteúdos nos tex-


tos históricos e geográficos devem ser investigadas no âmbito da
a

História das Fronteiras e da História da Nação, ligadas ao esforço


nd

do IHGB. Foi a revista do Instituto que publicou muitas dessas


ve

obras, algumas delas pela primeira vez, e deve-se notar que boa
parte delas foi coletada por Francisco Adolfo de Varnhagen. Por
à

sua vez, as corografias escritas a partir da década de 1850 par-


á

tilharam modelos e métodos consolidados paulatinamente nas


st

sessões do IHGB, sendo que a sua publicação muitas vezes foi


le

subvencionada pelo Estado e pelas Províncias, e a sua escrita


a

se tornou mesmo um capital simbólico no IHGB e nos insti-


in

tutos congêneres. Portanto, o exercício corográfico exemplifica


ig

não apenas o confluxo entre o pensamento histórico e geográfico


or

no pensamento social e político brasileiro, mas também a sua


permanência e pertinência enquanto material cognitivo dos seus
O

campos no século XX.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 19

ay
A sobrevivência da Corografia, a influência de suas obras e
autores e, sobretudo, a disseminação do seu conteúdo pela lite-

Pl
ratura e pelas ciências serviriam para ajudar a explicar a impor-

le
tância do espaço enquanto categoria que embasou as análises

g
feitas no âmbito do pensamento social e político brasileiro do

oo
século XX. Essa observação nos permite mesmo justificar a
necessidade de se constituir no Brasil um cânone da Historiografia

G
dos espaços mais dilatado, que junte as obras históricas aos trata-

no
dos estadísticos e às corografias.

e
Seguindo o argumento de Koselleck, a investigação da his-
toricidade do espaço não implica apenas recolocar o espaço

on
como categoria numa reorganização do método histórico que
az
visa o exame das modificações sociais, econômicas ou políticas;
entende-se que esse método também deve pressupor a impor-
Am

tância meta-histórica do espaço para a História. Assim, torna-se


necessário aclarar uma dupla condição de investigação e um duplo uso
na

da categoria “espaço”, de modo que se possam eliminar numero-


sas ambiguidades e confusões na abordagem histórica do espaço.
a
nd

A primeira condição de investigação do espaço para


ve

Koselleck a ‘história das concepções dos espaços’


à
á

Segundo Koselleck, em relação à dupla condição de inves-


st

tigação da historicidade do espaço deveríamos considerar, em


le

primeiro lugar, uma História das concepções do espaço, entendendo


o espaço como algo autônomo (ou próprio, se entendermos a
a
in

possibilidade de incluir aqui a ideia esposada pelos primeiros


ig

geógrafos). Sua lógica de investigação pressupõe a compreen-


or

são de uma História das representações de cada espaço que, por conta
de suas especificidades, poderia mesmo ser “posta pelos histo-
O

riadores na conta dos filósofos ou dos cientistas naturais” ou,


O original está à venda na Amazon e no Google Play
20 Cartografias Imaginárias

ay
acrescentaria eu, remetida pelos historiadores às suas condições
próprias de investigação, determinadas pela materialidade dos

Pl
objetos ou pelas racionalidades que envolveram sua produção.

le
Para verificarmos essas condições podemos recorrer à

g
composição do primeiro mapa do Estado brasileiro, a “Carta

oo
Corográfica do Império do Brasil”, também conhecida como

G
“Carta Niemeyer” por conta de seu autor ter sido o coronel de
engenheiros Conrado Jacob de Niemeyer. Sabemos que a com-

no
posição da Carta Niemeyer se desenvolveu em três passos:

e
no primeiro, retiraram-se as suas linhas gerais da “Carta da
América Meridional” publicada pela casa editorial Arrowsmith.

on
No segundo passo, foram acrescentados topônimos e acidentes
az
naturais recolhidos dos trabalhos geográficos apresentados às
reuniões do IHGB. No terceiro passo, as fronteiras do Brasil e os
Am

limites provinciais foram riscados a partir dos trabalhos editados


na revista do Instituto e das memórias da SENE. Finalmente,
na

num quarto passo, procurou-se imprimir o mapa no maior tama-


nho possível pelas condições técnicas disponíveis no Brasil.
a
nd

Ora, no primeiro passo Niemeyer se baseou numa carta


estrangeira reconhecida por seus padrões científicos, buscando
ve

credibilidade e reconhecimento internacional; no segundo


passo, inscreveu os elementos chancelados pelos consócios do
à

IHGB e representantes de órgãos governamentais neles repre-


á
st

sentados; no terceiro passo, inscreveu os territórios da nação


le

e das províncias acordados nas discussões das elites letradas e


políticas; no quarto passo, buscando imprimir o seu mapa na
a

maior dimensão física que a capacidade técnica da época permi-


in

tia, Niemeyer pretendia que ele pudesse ser facilmente visuali-


ig

zado nas paredes e murais das repartições públicas e dos esta-


or

belecimentos de ensino, alçando sua obra à posição de avatar do


O

Estado brasileiro. Finalmente, a Carta foi apresentada ao IHGB


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 21

ay
na sessão de 8 de maio de 1847, ocasião em que foi admirada e
aclamada pelos consócios, os quais decidiram premiar o esforço

Pl
de Niemeyer. Por conseguinte, podemos entender que o autor

le
da Carta Corográfica do Império do Brasil procurou, em cada

g
um dos passos, orientar a materialização do mapa por uma ideia

oo
do espaço nacional e, assim, falar de uma “operação” e um “pro-
cesso de produção” históricos de sua representação.

G
Como outro exemplo da premissa de Koselleck, examinemos

no
a relação literária experimentada por dois escritores estaduni-

e
denses, H. P. Lovecraft e Robert E. Howard, com foco na inven-
ção da personagem Conan.

on
Howard viveu na cidade de Cross Plains, situada no estado
az
do Texas, numa sociedade extremamente religiosa e conserva-
Am

dora, onde foi discriminado por suas ideias liberais, sua vivência
artística e sua ascendência irlandesa. Por um lado, a personagem
Conan incorpora em sua fabricação as condições que o autor
na

teve de experimentar, sendo reproduzida nessa composição a


a

figura do bárbaro solitário e contestado pela civilização, que


nd

vive por seus próprios códigos, os quais revelam um sentido de


humanidade mais agudo que o de qualquer civilizado – alter ego
ve

de Howard, a personagem Conan explicita uma subalternidade


vivida de fato.
à
á

Por outro lado, a personagem Conan foi composta no diá-


st

logo com H. P. Lovecraft; a ideia de barbárie se contrapunha à


le

afinidade de Lovecraft com o Fascismo, mas incorporava alguns


dos ingredientes mais geniais das obras do segundo, que seriam
a
in

depois juntados por Auguste Derleth no “Ctulhu Mythos” e, aju-


ig

daram Howard a constituir um universo fantástico próprio, a


or

“Hyboria”, emoldurado numa cartografia imaginária. Esse uni-


verso foi formulado a partir de uma narrativa baseada na teoria
O

da História cíclica – inspirada na Teosofia – e nos faz acreditar na


O original está à venda na Amazon e no Google Play
22 Cartografias Imaginárias

ay
convivência entre os espaços concretos e a Geografia não eucli-
diana: superfícies anormais e ângulos impossíveis com “locais e

Pl
dimensões repulsivas, diferentes dos nossos”, portanto incon-

le
cebíveis para a mente humana, como instrui Lovecraft (2000, p.

g
135) no conto “O chamado de Ctulhu”.

oo
Howard fabricou a personagem Conan em pleno contexto

G
da Depressão, em meio às crescentes dificuldades financeiras e
emocionais que o impeliram ao suicídio. Refletindo esse tempo

no
de extremos ideológicos e de embates sociais contínuos, o enredo

e
dos contos de Conan não é apenas violento e sensual, mas tam-
bém iconoclasta e herético. Civilizações, governos e deuses,

on
reais e imaginários, são atropelados pelo impulso de liberdade
az
e gozo que move o duplo Conan-Howard e, espelhando isso,
sua narrativa alterca com a História e a Geografia e flui descon-
Am

tínua, temporal e espacialmente. Uma narrativa tão inovadora


que foi capaz de inspirar, cinquenta anos depois, tanto os que se
na

moviam contra a Guerra do Vietnã quanto aqueles que produzi-


ram os primeiros role-playing games (RPGs).
a
nd

Por conseguinte, entendemos que Howard procurou orien-


tar a materialização de Conan por meio de concepções imaginá-
ve

rias de história e espaço, mas, como no caso da Carta Niemeyer,


podemos dizer, novamente, de uma ‘operação’ e um ‘processo de
à

produção’ históricos de sua representação.


á
st
le

A segunda condição de investigação do espaço para


Koselleck: a ‘história da produção das espacialidades’
a
in
ig

Koselleck, ao tratar da dupla condição de investigação do


or

espaço, apresenta-nos num segundo momento as possibilida-


des para problematizar uma História da produção das espacialida-
O

des, que investigaria as articulações de narrativas de ação e da


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 23

ay
transformação dos espaços das unidades territoriais que se for-
maram com a ascensão, na primeira modernidade, das unidades

Pl
estatais (o período que se estende até a Revolução Francesa).

le
Assim, o historiador dos espaços teria como tarefas examinar

g
as produções que relatam e cuidam da expansão do Estado e de

oo
seus meios e perscrutar o processo de inscrição de suas espacia-
lidades e territorialidades.

G
A lógica dessa investigação pressupõe que o historiador dos

no
espaços pense as articulações em torno dos projetos de Estado

e
e a produção dos trabalhos estadísticos (aqueles que se referem
ao governo, à governabilidade ou à governança) que então trata-

on
ram de construir “as chamadas realidades do passado sem tratar
az
de reconstruir as antigas concepções de espaço”. Para Koselleck
(2001, p. 97), isso instruiu um duplo uso da categoria espaço, por
Am

conta de ter instigado a “tensão produtiva entre geólogos e mor-


fólogos, por um lado, e [...] planejadores do espaço, por outro”,
na

problema que voltaremos a discutir mais adiante com o auxílio


do texto de Immanuel Wallerstein.
a
nd

Enquanto isso, é necessário fazer notar que nesse período se


constituiu um dos paradoxos com que o historiador dos espaços
ve

tem de lidar, e isso pode ser exemplificado na Cartografia his-


tórica, que construiu as imagens do passado dos Estados “sem
à

inserir os seus dados nas representações antigas de espaço, mas


á
st

desenhando mapas produzidos com os atuais procedimentos de


le

medida e anotando cientificamente as modificações geológicas


ou climáticas que o mundo antigo não conhecia” (KOSELLECK,
a

2001, p. 98). Desse modo, uma das tarefas do historiador dos


in

espaços é considerar a utilização de contramedidas investigati-


ig

vas, de modo a se ultrapassarem os saberes e a escrita cons-


or

tituídos, visando reconstruir historicamente as representações


O

espaciais de cada entidade territorial.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
24 Cartografias Imaginárias

ay
Trabalhando a partir do exemplo anterior, no caso do Brasil
na SENE e em instituições ligadas ao esforço de produção his-

Pl
toriográfico como o IHGB, a Cartografia histórica foi utilizada

le
como ferramenta para legitimar os pressupostos da inscrição de

g
uma narrativa espacial que se colava aos interesses do Estado.

oo
Essa narrativa possibilitou a enunciação da antiguidade da pre-
sença da elite intelectual no espaço nacional, inclusive pela ins-

G
crição de seus símbolos no território, como por exemplo a Linha

no
de Tordesilhas, representação, em última análise, da atividade
continuada de produção de um espaço da Nação e da reconstrução

e
periódica de sua narrativa, que implica a subalternização da maioria

on
dos seus integrantes. az
Ora, para desconstruir essa narrativa torna-se necessário
mesmo investir sobre a Cartografia histórica, erigida em meio
Am

às instâncias do Estado, formulando, como contramedida, um


estudo cartográfico que procure discernir a operação de inscri-
na

ção do espaço, cuidando de contextualizar as técnicas e esforços


cartográficos em relação às estratégias do Estado e às táticas dos
a

seus produtores. Em suma: deve-se rever a ideia da Cartografia


nd

como uma ciência em progresso para se poder atender às tarefas


ve

de desconstruir a narrativa histórica do espaço e reconstruir as


antigas concepções de espaço.
à

Continuando a desenvolver o raciocínio de Koselleck no que


á
st

diz respeito a aclarar as condições de investigação da História


le

da produção das espacialidades, ele distingue as especificidades


da segunda modernidade (aquela que se inicia com a Revolução
a

Francesa), que introduz outro paradoxo com que os historiado-


in

res dos espaços teriam de lidar. É a partir da segunda moderni-


ig

dade que se procura reconstruir o passado a partir das narrações


or

que instruem origens para o Estado-Nação e daí se desenvolvem


O

identidades por meio dos constructos elaborados nas tarefas de


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 25

ay
produção dessas narrações. Essas preocupações foram explicita-
das em uma nova espécie de trabalhos estadísticos, capazes de

Pl
tornar possível a lógica de deslizamento da Nação para escalas e

le
racionalizações identitárias menores: o regional, o estadual etc.

g
Segundo Immanuel Wallerstein (1998) em “O Tempo do

oo
Espaço e o Espaço do Tempo”, essa lógica se constituiria por

G
meio da Academia e pelo incentivo do Estado, quando se ins-
tituem os diferentes papéis que geógrafos e historiadores pas-

no
saram a assumir no século XIX. O afastamento que paulatina-

e
mente se constitui entre os métodos e os conteúdos da História
e da Geografia seria explicado pela interação das disputas por

on
espaço acadêmico com as especificidades de projeção, divulga-
az
ção e inscrição do Estado-Nação sobre o seu território e sobre o
globo.
Am

A partir dessa interação se estabeleceram três clivagens bási-


cas nas Ciências Sociais separando os seus domínios de conhe-
na

cimento: uma clivagem temporal (passado/presente) e duas cli-


a

vagens espaciais – a que separava o espaço euro-estadunidense


nd

do resto do mundo (civilizado/outro) e a que distinguia os


espaços hipotéticos que permeavam a Nação (mercado/Estado/
ve

sociedade).
à

Essas clivagens refletiam o contexto cultural da época, domi-


á

nado pela ideologia imperialista e pelo liberalismo, que fez


st

emergir seis disciplinas nas Ciências Humanas, distribuídas


le

por três campos de interesse: no primeiro campo, a História; no


segundo, a Antropologia e os Estudos Orientais; no terceiro, a
a
in

Economia, as Ciências Políticas e a Sociologia.


ig

Wallerstein observa que a Geografia quase desapareceu


or

enquanto campo de estudo separado, por conta de não se encai-


xar inteiramente em nenhuma das três clivagens das Ciências
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
26 Cartografias Imaginárias

ay
Sociais, mas, ao mesmo tempo, insistiu em concorrer com as
seis disciplinas principais em seus campos de interesse.

Pl
Nesse sentido, Wallerstein salienta que a Geografia só conse-

le
guiu sobreviver porque recebeu forte suporte de instituições não

g
ligadas à Academia, mas que estavam incluídas diretamente nos

oo
esforços do Estado, como por exemplo, no caso da Inglaterra,

G
da Royal Geographical Society. Além disso, a importância da
Geografia decorria do fato de ser ensinada nas escolas primárias,

no
prestando-se ao esforço de inculcar nos cidadãos a integridade

e
do território e a utilidade de todas as suas partes para a Nação.
Como a História, a Geografia servia diretamente aos interesses

on
do Estado-Nação, mas, frisa Wallerstein (1998, p. 76-79), como
az
a Geografia não se pretendia universal, podiam-se trabalhar por
meio dela certas demandas particulares do Estado.
Am

No Brasil, onde não havia ainda uma separação rigorosa entre


a História e a Geografia, a lógica de deslizamento da Nação em
na

escalas e racionalizações identitárias menores tornar-se-ia factí-


a

vel desde o último quartel do século XIX, com a decadência do


nd

acordo entre as elites locais. A regionalidade Nortista, por exem-


plo, podia ser enunciada a partir de um espaço já disponibilizado
ve

no saber geográfico desde a década de 1850, a partir da discussão


acerca da Comissão Científica de Exploração no IHGB, já que
à

seus temas podiam ser enfronhados junto à trama nacional.


á
st

No mesmo sentido, com a República, por conta do novo


le

acordo das elites em torno da arrumação e composição do


governo brasileiro, fez-se possível constituir e disponibilizar
a
in

pedagogicamente identidades estaduais capazes de resguardar


ig

os seus interesses no novo recorte territorial estadual.


or

O Rio Grande do Norte serve como um bom caso de estudo,


na medida em que não se considerava na construção de sua
O

identidade apenas o acordo nacional, mas também as diferentes


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 27

ay
porções do seu território. Além disso, de acordo com as tramas
estaduais e a nacional, foi possível aos seus políticos e intelec-

Pl
tuais produzir, por meio de uma terminologia melodramática,

le
novos espaços e identidades focados em interesses mais amplos,

g
como nos mostra a atuação de Tavares de Lyra no IHGB e de Eloy

oo
de Souza no Parlamento durante as duas primeiras décadas do
século XX, operando a transformação da regionalidade Nortista

G
em Nordestina.

no
e
O duplo uso da categoria espaço

on
Voltando ao raciocínio de Koselleck, a introdução do duplo uso
az
da categoria espaço pelos tratados estadísticos da primeira moder-
Am

nidade deveria ser enfrentada pelo historiador dos espaços a par-


tir da crítica à diferença instituída entre os espaços históricos da
organização humana e as condições espaciais meta-históricas.
na

Como por essas condições se podem inferir as possibilidades


da História que não estão ao alcance do homem, “mas que, ao
a
nd

mesmo tempo, como condições de nossa ação, se convertem em


desafios para a atividade humana”, transformam-se, consequen-
ve

temente, as condições meta-históricas em espaços históricos


(KOSELLECK, 2001, p. 99). Por conseguinte, se a investigação
à

dos espaços históricos da organização humana estivesse sempre


á

correlacionada com a investigação das condições meta-históricas


st

e se estas estivessem sempre em capacidade de transição, pode-


le

ríamos estabelecer esta seria a perspectiva do historiador dos


a

espaços (KOSELLECK, 2001, p. 102).


in
ig

Nesse ponto, os historiadores esbarram na dificuldade con-


or

ceitual e ética de pensar se o exame dessas relações foi instruído


na segunda modernidade em torno de um saber que pretendeu
O

para si o estatuto de ciência, a Geopolítica, constituída a partir


O original está à venda na Amazon e no Google Play
28 Cartografias Imaginárias

ay
das tensões e demandas do Imperialismo, e se esta teria servido
para sufragar suas pretensões expansionistas e, logo depois, para

Pl
justificar as demandas das ideologias totalitárias no século XX.

le
Entretanto, o caso do Brasil nos mostra que o saber geopolí-

g
tico teve grande aceitação e disseminação já no início do século

oo
XX, por conta da sobrevivência do espaço enquanto categoria de

G
possibilidade das análises feitas no âmbito do pensamento social
e político, e do forte legado da produção estadística Imperial

no
que, conectada com o espaço e o território, foi sublimada na

e
Primeira República por meio da atuação de Rio Branco, ministro
das Relações Exteriores e presidente do IHGB, e por influência

on
de um dos líderes do catolicismo, Everardo Backheuser.
az
A Geopolítica tornar-se-ia, em meados do século, a razão
Am

de existência de uma instituição, a Escola Superior de Guerra


(ESG), constituída para gerenciar a atividade de planejamento
do Estado e de coordenação dos esforços militares, políticos e
na

diplomáticos. Desde o Governo Vargas e durante a Ditadura


a

Militar, a Geopolítica norteou o planejamento e a territorializa-


nd

ção do Estado brasileiro, bem como lastreou os seus esforços


internacionais.
ve

Koselleck aponta que o erro da Geopolítica consiste em se


à

fazer uma ciência prática para a análise das ações sobre o espaço
á

histórico que pretende compreender as condições meta-históri-


st

cas para delas retirar as leis naturais ou ontológicas capazes de


le

guiar a História. No entanto, as questões e premissas formula-


das erroneamente pela Geopolítica assinalam condições de aná-
a
in

lise para o historiador dos espaços, as quais já estavam colocadas


ig

dentro das condições de possibilidade da História antes mesmo


or

da constituição desse saber (KOSELLECK, 2001, p. 104).


Neste sentido depois de eliminadas as ambiguidades e
O

confusões na abordagem histórica do espaço e esclarecidas as


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 29

ay
possibilidades de se trabalhar tanto a partir de uma História
das concepções do espaço quanto de uma História da produ-

Pl
ção das espacialidades, caberia também estabelecer e explorar

le
as condições que remeteriam a uma reflexão sobre a comple-

g
xidade da interação entre espaço e tempo. Koselleck (2001, p.

oo
105) insinua, nesse entendimento, que “a bela expressão espaço
de tempo” não seria só uma metáfora da cronologia e da classi-

G
ficação por épocas, mas ofereceria a possibilidade de investigar

no
a remissão recíproca do espaço e do tempo em suas concretas
articulações históricas.

e
A partir dessa insinuação, há que se considerar que, se o

on
espaço mesmo tem uma História, o tempo também não possui-
az
ria uma Geografia? Se o espaço é uma condição meta-histórica, o
tempo não seria também uma condição meta-geográfica?
Am

Conclusão
na

Na verdade, poderíamos dizer que o entrecorte meta-histó-


a

rico e meta-geográfico não pressupõe uma verdadeira interdisci-


nd

plinaridade, mas antes uma zona de confluxo, uma área de hachura


ve

onde o sentido mesmo do que poderia ser descrito como História


ou Geografia quase se esvanece. No caso dos historiadores, a
à

incompreensão dessa hachura produz uma tensão que se traduz


á

no afastamento em relação ao campo da Geografia em direção a


st

aproximações com domínios muito distantes das premissas his-


le

tóricas, como a Física Quântica, em busca de se refletir sobre o


a

“espaço do tempo”. E essa tensão se reflete inclusive na ambi-


in

guidade de tratamento dos objetos partilhados por geógrafos


ig

e historiadores, que, em vez de partilharem uma aproximação


or

fecundante, têm persistido na separação esterilizadora.


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
30 Cartografias Imaginárias

ay
De modo a pensar a História dos espaços a partir da imersão
na zona de confluxo, volto ao texto “O Tempo do Espaço e o

Pl
Espaço do Tempo” no ponto em que se explicita o conceito de

le
TempoEspaço [TimeSpace].

g
Na compreensão de Wallerstein, TempoEspaço seria uma cate-

oo
goria analítica que se apoia sobre os pressupostos hoje divididos

G
entre a História e a Geografia, na medida em que a fratura entre
História e Geografia deve ser explicada não apenas por meio da

no
opção dos historiadores entre o tempo e o espaço, mas também

e
como uma escolha dos historiadores e geógrafos por determina-
das formas de compreensão do tempo e do espaço. Raciocinando

on
por meio da tese de Wilhelm Windelband (1914), que expli-
az
cita que no final do século XIX as Ciências Sociais teriam sido
colhidas em uma controvérsia a respeito dos métodos a serem
Am

utilizados [Methodenstreit], Wallerstein entende que historia-


dores e geógrafos preferiram se organizar em campos opostos.
na

Enquanto os historiadores foram ao encontro do idiografismo


[idiographisch], se juntando àqueles que entendiam seus objetos
a

hermeneuticamente, empaticamente e focando nos particula-


nd

rismos, os geógrafos escolheram o nomotetismo [nomothetisch],


ve

buscando leis que pudessem traduzir a compreensão de uma


análise universal.
à

Segundo Wallerstein, a fratura entre a História e a Geografia


á
st

no que eram então as Ciências Sociais foi comparável à clivagem


le

das “Duas Culturas” [Two Cultures], as Artes ou Humanidades


de um lado e as Ciências de outro, enxergada por Charles Percy
a

Snow. Porém, na Methodenstreit, os historiadores e geógrafos não


in

gozaram de uma verdadeira autonomia de escolha, mas teriam


ig

sido levados às suas escolhas pela influência de correntes inte-


or

lectuais que se originaram em campos mais fortes. Diante disso,


O

caberia agora recolher as diferentes compreensões temporais e


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 31

ay
espaciais separadas desde a controvérsia, fazendo-as convergir
para a formulação de um novo conceito, o TempoEspaço, que pas-

Pl
saria doravante a embasar não apenas a História ou a Geografia,

le
mas todas as Ciências Humanas (WALLERSTEIN, p. 75-76).

g
Acredito que a categoria analítica de Wallerstein sinaliza

oo
a mesma constatação a que chegou Koselleck: a História dos

G
Espaços sempre esteve no horizonte de nossa disciplina e, por
conta disso, não precisa de novos modelos, mas antes deve ser

no
empreendida a partir do esforço de recuperação de antigos insu-

e
mos e do afastamento de novos preconceitos, de modo a não se
perder a oportunidade que variados enfoques e análises podem

on
oferecer, e a não se privar da colaboração com os geógrafos e os
az
cartógrafos naquilo que se poderia chamar de zona de confluxo: a
área de hachura que antes reunia, mas que hoje afasta e separa
Am

História, Geografia e Cartografia.


na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
32 Cartografias Imaginárias

ay
Pl
Enformando a Nação:

g le
a construção da história do espaço nacional no projeto

oo
historiográfico do IHGB e seu exame por meio do

G
estudo cartográfico

no
e
O IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem
sido consistentemente apontado por vários autores como o cen-

on
tro da produção de um projeto histórico que, no século XIX,
az
se constituiu em torno da questão nacional, destacando-se, em
Am

geral, que as particularidades dessa instituição guardavam pro-


fundas relações com a própria estrutura do Estado, com aque-
les grupos que o sustentavam e com um determinado contexto
na

histórico. Um destes autores, Manoel Luís Salgado Guimarães,


apontou que essa historiografia, homogeneizadora da visão das
a

elites, procurava definir a Nação e a identidade brasileira por


nd

meio do reconhecimento do legado da Metrópole e da continui-


ve

dade de sua tarefa civilizadora, constituindo daí uma dupla ideia


do outro, no caso, identificando-o externamente com as repúbli-
à

cas sul-americanas e internamente com os negros e indígenas.


á
st

A produção do IHGB seria reveladora das particularidades


le

que tensionaram o projeto histórico uma vez que esta, con-


forme a análise do conteúdo de sua Revista feita por Guimarães,
a

concentrou-se em torno de três temas, a saber, a problemática


in

indígena, o debate da história regional e as viagens e explora-


ig

ções científicas. Buscava-se fundamentalmente, por meio desses


or

temas, discutir a questão do trabalho indígena e escravo, cons-


O

truir uma harmonização das histórias regionais com a da nação e


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 33

ay
cuidar da descrição do território e das suas fronteiras, em suma,
refletir sobre os problemas agudos de viabilização de uma ordem

Pl
central e hierarquizadora.3

le
Considerando essa construção, poderíamos pensar que o

g
projeto histórico foi constituído a partir da premissa mesma de

oo
que certas noções de espaço haviam que ser discutidas e que por

G
meio destas discussões se estabeleceriam os pressupostos e as
condições para a construção de uma história da nação, tal como

no
a que foi levada a cabo por Varnhagen já na década de 1850, e

e
que a produção do IHGB poderia continuar revelando tensões e
ambiguidades em torno de certos pontos críticos da discussão.

on
A partir disto, podem-se desenvolver algumas reflexões: pri-
az
meiro, se estas discussões estavam já prometidas no projeto de
Am

constituição do próprio IHGB, uma vez que este havia sido con-
cebido a partir do entendimento de que os esforços da história e
geografia constituiriam dois momentos de um mesmo processo,
na

caberia pensar as razões a partir das quais este entendimento se


a

estabeleceu e as condições que permitiram estabelecer as pre-


nd

missas espaciais do projeto histórico do IHGB.


ve

Segundo, se o exame da produção do IHGB revelasse ten-


sões e ambiguidades em torno das elucubrações do espaço, essas
à

poderiam nos permitir ajudar a pensar as relações entre Estado,


á

Elites e Instituto como um processo descontínuo e heterogêneo,


st

onde a discussão em torno da produção do espaço seria estraté-


le

gica para as partes envolvidas.


a
in
ig
or

3 GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988. Este artigo e o livro Historiografia e
O

Nação no Brasil (2011), de Salgado são as referências a partir da quais construímos a


argumentação central deste livro.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
34 Cartografias Imaginárias

ay
Entendendo que as condições de integração das elites num
sistema institucional central e o reconhecimento mesmo da exis-

Pl
tência de um centro dependia da manutenção de uma afinidade

le
entre os vários grupos que residiam num território extenso, seria

g
razoável supor que o projeto histórico caminhasse pari passu com

oo
a constituição de um saber sobre o espaço que possibilitasse o
estabelecimento de um consenso acerca da identidade.

G
Nesse caso, o pensar o espaço permitiria determinar aque-

no
les com quem se poderia compartilhar um conjunto de crenças,

e
compatibilizando as demandas locais, regionais ou mesmo peri-
féricas em relação ao centro. Se pensarmos a ideia de centro não

on
enquanto um lugar geograficamente demarcável e único, mas
az
como um fenômeno pertencente à esfera da cultura, dos valo-
res e das crenças com uma racionalidade inerente a seu próprio
Am

modelo e suas conexões internas e que a própria integração


dos grupos no sistema institucional central seria heterogênea e
na

intermitente, poderíamos entender que o pensar o espaço per-


mitiria constituir uma reelaboração contínua do centro e das
a

relações entre este e as várias partes do espaço. Pensar, portanto,


nd

o regional ou o local seria uma tarefa imbricada numa operação


ve

do centro que se realizaria não apenas nas esferas da cultura, dos


valores e das crenças, mas que também transitaria para a esfera
à

da ação, absorvendo demandas ou contribuições para reinserir o


á

produto resultante na estrutura mesma do Estado.4


st
le

Nesse ponto, podemos entender que a tarefa de construir um


passado comum requeria a inscrição da Nação num território
a

reconhecido e recortado por limites bem conhecidos, não apenas


in

porque se delimitava o espaço do outro, mas também porque se


ig
or

4 Sobre os problemas da integração entre o centro da sociedade e suas partes, consul-


O

tar a obra Centro e Periferia, de Edward Shils. A obra oferece importantes subsídios
para se pensar uma relação entre a História e o espaço.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 35

ay
visava conjugar a relação dos grupos dispersos no território com
um espaço e um centro comum, buscando-se, assim, constituir

Pl
um sentido de afinidade mais amplo entre todos os grupos que

le
se julgavam poder reunir num dado momento. A ideia mesma de

g
afinidade seria adensada pela atribuição da ideia de transcendên-

oo
cia ao centro, a saber, pela construção de uma contiguidade ide-
alizada deste com outro centro e outro espaço muito afastado, a

G
antiga metrópole e a Europa Ocidental. Desse modo, a operação

no
do centro em direção a suas partes deixaria de ser apenas repre-
sentada, para ser também transubstanciada no espaço como

e
um dos elementos da construção mitológica de uma continui-

on
dade com um espaço e centro transcendente, o que conformaria
az
melhor a legitimidade do centro por torná-lo mais localizável
por meio da transcendência mesma do espaço e tempo.5
Am

Contudo, se entendermos que o pensar o espaço no IHGB foi


um processo de jogo e entrelaçamento entre o centro e as partes
na

que objetivava alcançar o acordo, poderíamos supor que a ope-


ração central necessitasse de um sentido de continuidade e de
a

certa liberdade criativa que lhe permitisse influir na tarefa maior


nd

que então se constituía no IHGB. Neste momento, é necessá-


ve

rio lembrar que parte das tensões e ambiguidades no Instituto


decorre justamente das disputas acerca do papel que este deveria
à

atribuir a si mesmo e desempenhar daí em doravante, seja como


á

instituição científica, seja enquanto instrumento do Estado. Por


st

conseguinte, seria no próprio aparelho de Estado, mais ao abrigo


le

de disputas, pressões e demandas que se poderia desenvolver


a

uma solução de continuidade em relação a esforços que obri-


in

gatoriamente já haviam sido realizados, uma vez que o Estado


ig
or

5 Sobre a ideia de espaço mítico e o problema da investigação da racionalidade ine-


rente aos seus modelos, ver a obra A Filosofia das formas simbólicas, de Ernst Cassirer.
O

O volume dois – ‘O pensamento mítico’ – é especialmente elucidativo a respeito dos


problemas da produção do espaço.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
36 Cartografias Imaginárias

ay
brasileiro já tivera anteriormente de responder a pressões e
demandas externas em relação ao território e ao sentido de sua

Pl
inserção num espaço verdadeiramente contíguo, a América. A

le
Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (SENE) foi o

g
lugar do Estado onde esses esforços seriam mais desenvolvi-

oo
dos, embora estes tivessem se originado, muito provavelmente,
das premissas desenvolvidas no Segundo Conselho de Estado e

G
no Parlamento, durante o reinado de D. Pedro I. Mas, como se

no
poderia pensar a relação mesma entre a produção do espaço na
SENE com a produção de um projeto histórico no IHGB?

e
Acreditamos que um sentido dessa relação poderia ser aven-

on
tado se entendermos o projeto histórico do IHGB como a tarefa
az
principal de um esforço que visava a produzir uma visão homo-
geneizadora das elites acerca da Nação e da identidade, mas
Am

que, por conta dos problemas inerentes à construção do pen-


sar o espaço, desdobrava-se para tarefas subsidiárias, na SENE
na

e no Conselho de Estado. Outro sentido da relação poderia ser


aventado se considerarmos a manutenção continuada de elos que
a

possibilitariam a integração tanto entre as tarefas quanto entre


nd

o centro e as partes, no caso, estes elos poderiam ser indivíduos,


ve

grupos ou institutos que partilhariam o sentido da integração


ainda que ao custo de um entendimento variado desta. Por este
à

raciocínio, por exemplo, poderíamos pensar a produção de uma


á

história das fronteiras na SENE concomitante à construção de


st

uma História da Nação no IHGB: em ambos os casos, um de seus


le

principais autores é Varnhagen, membro das duas instituições,


a

e o esforço da SENE poderia ser justificado enquanto parte da


in

operação do centro, na medida em que a construção de uma his-


ig

tória das fronteiras ora se articulava com a tarefa do IHGB ora


or

procurava mais ratificar o sentido de sua atuação enquanto parte


do Aparelho de Estado.
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 37

ay
Por último, depois de termos minimamente refletido sobre
o argumento proposto e apontado sua referência, como justi-

Pl
ficarmos uma aproximação em relação ao problema que é tão

le
circunstanciada pela discussão da produção do espaço?

g
As vantagens que julgamos poder resultar de uma aproxima-

oo
ção com o problema da produção do projeto histórico do IHGB

G
circunstanciada por essa aproximação seriam as seguintes: per-
mitir ligar as origens do IHGB aos esforços do Estado; apontar

no
as tensões e as ambiguidades da produção do IHGB em rela-

e
ção à produção do espaço; destacar no processo de produção do
projeto histórico do IHGB a importância da geografia; adensar

on
a participação atribuída a Varnhagen no processo de produção
az
do projeto histórico, lembrando ainda a importância de outros
personagens menos discutidos; finalmente, essa aproximação
Am

pode ser justificada na medida em que se necessita utilizar uma


abordagem historiográfica diferenciada, no caso, a do estudo
na

cartográfico. Esta necessidade se dá na medida em que tanto a


produção do espaço nacional dialoga com a cartografia quanto a
a

inscrição desse espaço se faz por meio da cartografia.


nd

Para que expliquemos essa premissa será preciso esclarecer


ve

alguns pontos de nossa compreensão, inclusive estabelecendo


algumas diferenças em relação a outras aproximações. O estudo da
à

cartografia histórica que na Europa, nos Estados Unidos e mesmo


á
st

no Brasil remonta ao século XIX, objetiva, quase sempre, o exame


le

dos produtos cartográficos e das técnicas de mapeamento. Essa


perspectiva se baseia na ideia da existência de um saber sobre o
a

espaço norteado pela ciência cartográfica, que desenvolveria pro-


in

gressivamente tecnologias de levantamento e de inscrição de um


ig

conhecimento geográfico adquirido e acumulado continuamente


or

sobre um meio legível, os mapas. Por conseguinte, o estudo da car-


O

tografia histórica visa a recolher e organizar os esforços da ciência


O original está à venda na Amazon e no Google Play
38 Cartografias Imaginárias

ay
cartográfica e compreender avanços, afastamentos e incompatibi-
lidades em relação à norma técnica. O estudo da cartografia his-

Pl
tórica, portanto, faria parte do discurso mesmo da cientificidade

le
em torno do qual se articulou progressivamente um saber sobre

g
o espaço desde os séculos XVII e XVIII, ao qual a produção his-

oo
toriográfica teve de se remeter em busca de sua própria legitimi-
dade. Seria por meio da utilização eficiente dessa perspectiva que,

G
por exemplo, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio

no
Branco, conseguiria fazer valer a pretensão brasileira nos litígios
de fronteira do Amapá e de Palmas.

e
Esta perspectiva se estabeleceu ao longo do século XVIII por

on
sobre o desenvolvimento de critérios de rigorosidade científica
az
que resultaram em adensar os padrões que regulavam a discus-
são geográfica: não bastava mais registrar o espaço por meio do
Am

mapa para legitimar a posse do território, este mapa tinha de ter


sido construído por meio de princípios reconhecidos pela ciên-
na

cia cartográfica. O espaço tinha de ter sido antes explorado por


especialistas, astrônomos e engenheiros que levantariam astro-
a

nômica e matematicamente certos pontos que permitiriam reu-


nd

nir as demais observações num todo articulado, o mapa. Por si


ve

só, estes padrões impunham uma tarefa que somente poderia


ser enfrentada pelos Governos que se dispusessem a constituir
à

uma estrutura muito dispendiosa e que demandava aprimora-


á

mentos e manutenção constantes. Em relação ao nosso caso de


st

estudo, se a produção historiográfica do IHGB podia ser incor-


le

porada sem muitas discussões a um processo que ganhava seus


a

contornos ainda no século XIX, a produção do espaço dependia


in

de um diálogo difícil com um saber já consolidado na Europa e


ig

nos Estados Unidos que divulgava espaços concorrenciais em


or

relação ao brasileiro. Essa divulgação era resultado do domínio


nesses países de um custoso e especializado processo gráfico e
O

técnico que somente se tornou mais acessível com a difusão da


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 39

ay
litografia em meados do século XIX. A cartografia era, pois, um
processo coletivo, qualificado e de múltiplas etapas que incluía

Pl
planejamento estratégico, execução no campo e confecção no

le
gabinete e atelier gráfico, realizado, muitas vezes, em conjunto

g
pelo Estado e pela iniciativa privada, dado o seu grau de com-

oo
plexidade. Portanto, o espaço nacional, no século XIX, teve de
ser discutido a partir de produtos estrangeiros e, muitas vezes,

G
contra esses produtos, necessitando de inscrever suas posições

no
através de mapas que tinham de ser produzidos a partir de certas
normas acreditadas.

e
O estudo cartográfico
on
az
Am

Por conseguinte, torna-se necessário explicitar sucintamente


o sentido do que chamamos de estudo cartográfico situando-o
como uma contrapartida a certas premissas prevalecentes nos
na

estudos de cartografia histórica. Em nosso entender, a natura-


lização de certas premissas pelo estudo da cartografia histórica
a
nd

e pela pesquisa histórica que nele se apoia, introduz uma cliva-


gem entre o método e a possibilidade de conhecimento histó-
ve

rico, na medida em que constitui, em primeiro lugar, uma reifi-


cação do produto cartográfico e do que poderíamos chamar de
à

‘fazer mapas’, ou seja, dos esforços diretos em torno da elabo-


á

ração dos mapas, em detrimento de uma contextualização das


st

técnicas e dos esforços em relação às estratégias do Estado e às


le

táticas dos seus produtores. Em segundo lugar, reduzir-se-iam


a

também as possibilidades de um exame hermenêutico do pro-


in

duto cartográfico, uma vez que preexistiria a este exame uma


ig

noção mesma da justa exação entre as técnicas cartográficas e o


or

conhecimento geográfico. Tal precondição, se por um lado, per-


O

mite aos estudiosos da cartografia histórica estabelecer através


O original está à venda na Amazon e no Google Play
40 Cartografias Imaginárias

ay
dos mapas uma relação retroativa da técnica mais avançada com
o conhecimento geográfico antigo nele representado (o que foi

Pl
muito explorado, por exemplo, nas discussões de litígio de fron-

le
teiras) por outro, não reconhece a possibilidade de uma investi-

g
gação iconológica ou semiológica do mapa. Em terceiro lugar, o

oo
estudo da cartografia história, constituído muitas vezes a partir
da engenharia, entende a cartografia enquanto uma ciência além

G
dos limites de inquirição histórica, desconstituindo, assim, a

no
construção de uma historicidade mesma de esforços capazes de
apontar suas incertezas, descontinuidades e irracionalidades. A

e
história apresenta-se nessa arrumação como um saber domado

on
e subsidiário das interpretações e legitimações de um saber que
az
não se desautoriza e que incorpora os historiadores mais como
mantenedores de uma memória corporativa e/ou organizadores
Am

de seu vasto arquivo material.


Por conseguinte, entendemos que o estudo cartográfico
na

deve: 1) Expor, investigar e questionar os processos cognitivos


e as relações de forças que constituem e resultam em determi-
a

nado saber cartográfico ou atividade cartográfica; 2) Entender


nd

esta atividade cartográfica não como um fim, mas enquanto um


ve

processo mesmo, que depende da formação de um saber sobre o


espaço e que se desdobra a partir de suas estratégias e táticas;
à

3) Compreender que a investigação da atividade cartográfica não


á

se resume ao trabalho sobre o mapa, mas que antes deve res-


st

gatar um regime da exequibilidade dos mapas que nos permite dis-


le

cernir certas continuidades ou descontinuidades, especialmente


a

no que tange ao agenciamento das técnicas e das condições da


in

escrita e à distribuição e atribuição de tarefas (por exemplo, por


ig

meio do exame das discussões acerca da projeção a ser utili-


or

zada, dos métodos de execução e do planejamento das ativida-


des, dos problemas e do processamento dos trabalhos de campo
O

e das características de composição artística, que se desdobra


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 41

ay
em trabalhos de gabinete, no atelier gráfico e na impressão); 4)
Analisar os produtos cartográficos cuidando de entender que

Pl
suas particularidades, estilos, especificidades técnicas e carac-

le
terísticas de mercado das quais se revestem ou são investidos

g
emprestam novos sentidos à compreensão desses produtos

oo
(São mapas manuscritos, gravados, litografados, impressos? Da
escola francesa ou alemã? Que projeção e escala utiliza? Fazem

G
parte de atlas, de folhetos, de livros? Em que tipo de livro estão

no
inseridos: didático, técnico ou de propaganda?); 5) Buscar uma
leitura hermenêutica dos produtos cartográficos por meio de

e
uma investigação semiológica ou iconológica dos elementos dis-

on
ponibilizados no mapa (símbolos, colorações, legendas etc.) e a
az
sua volta (decoração, ilustrações, grafismos etc.), considerando
o contexto cultural e social de seus produtores; 6) Entender o
Am

espaço registrado nos mapas como um campo sobre o qual são


rebatidos enunciados e discursos, que se revelam nos enquadra-
na

mentos utilizados (os quais denunciam a orientação do território


representado em relação a um espaço fora do mapa ou o privi-
a

légio de um certo recorte do espaço que foi inserido no mapa


nd

sobre o território representado), por meio das sentenças que se


ve

inserem nos conteúdos e símbolos gráficos, e nos silêncios ou


silenciamentos (os quais podem ser intuídos num símbolo carto-
à

gráfico inacabado ou incompleto ou num espaço vazio ou esva-


á

ziado de significação no mapa); 7) Procurar perscrutar os usos e


st

as funções que estes produtos assumem inclusive procurando-se


le

entender sua disseminação em outros produtos cartográficos ou


mesmo outros saberes, sua divulgação e sua circulação.
a
in

Por meio desses pressupostos, o estudo cartográfico nos


ig

permite explicitar que, no contexto do processo de produção


or

do projeto histórico do IHGB, os usos e as funções da ativi-


dade cartográfica adquiriram dois sentidos principais, por um
O

lado, os mapas políticos e históricos permitiram à produção


O original está à venda na Amazon e no Google Play
42 Cartografias Imaginárias

ay
historiográfica explicitar pedagogicamente tanto a unidade dos
diversos grupos dispersos pelo território com o Estado quanto à

Pl
identidade fundamental da Nação com um passado comum.

le
Por outro lado, as Cartas Gerais do Brasil estavam destinadas

g
a cumprir a função de tentar acomodar a visão sobre a Nação que

oo
então se construía com as visões sobre o Brasil que se faziam a

G
partir de fora, na medida em que a imagem da Nação inserida
num espaço transcendente ligado à Europa se desvanecia em

no
contato com as inscrições feitas por meio do molde que a ciên-
cia cartográfica oferecia cuja racionalidade intrínseca era oposta

e
ao esforço que impelia o projeto historiográfico. Na realidade,

on
outra pedagogia se insinuava até se entranhar mesmo no pro-
az
jeto do IHGB, a de uma subalternidade continuada em relação a um
espaço privilegiado que era capaz de demonstrar, inclusive, os
Am

limites do acordo interno – a representação do todo para si, ou


seja, da Nação para aqueles que irão integrá-la, rebate-se a partir
na

das representações de fora.


É, pois, nesse contexto amplo que se encerra a tarefa de pro-
a
nd

dução do espaço, num duplo pedagógico pelo qual se explicitam


relações descontinuadas de desconforto da elite com uma iden-
ve

tidade e com uma visão da Nação que resulta do acordo, mas


das quais se separa a partir de uma experimentação do espaço
à

e da visão de fora que a impele a se pensar a partir de fora sobre


á

os de dentro, num pensar iluminado pela força da ficção, mas


st

esbatido na realidade da força. Em outro trabalho, procuramos


le

mesmo justificar uma apreciação deste problema por meio da


a

metáfora da ‘Máscara da Medusa’: se a máscara de representação


in

mal oculta um olhar que sempre petrifica, sobra-nos apenas pro-


ig

curar imitar a jornada de Perseu.


or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 43

ay
Os insumos para a produção do espaço da Nação

Pl
Para ligarmos as origens do IHGB aos esforços do Estado e

le
a um debate sobre o espaço, torna-se necessário entender que,

g
se experimentação da soberania fornece subsídios para o debate,

oo
este se realiza a partir de insumos que o precedem.

G
Nos dezesseis anos que transcorrem desde a Independência
até a criação do Instituto, discute-se vivamente no Conselho de

no
Estado e no Parlamento a política externa, algumas vezes enre-

e
dada em problemas regionais. Afinal, havia-se experimentado o
medo de uma invasão restauradora por parte de Portugal e o

on
custoso tratado de reconhecimento da Independência; a intro-
az
missão da Santa Sé no direito nacional; a ingerência estrangeira
no Amazonas; a derrota na guerra contra as Províncias Unidas
Am

do Rio da Prata e a perda da Cisplatina; a imposição do paga-


mento pelas presas de guerra e os ‘Tratados Desiguais’; o humi-
na

lhante ultimato inglês de 1829 e a invasão francesa do Amapá;


a tentativa de secessão do Rio Grande do Sul e o surgimento de
a

lideranças agressivas e antagônicas nas fronteiras do Prata.


nd

Se tomarmos como ponto de aproximação os discursos e as


ve

ações dos indivíduos que podemos considerar elos de integração


entre as várias partes da sociedade na tarefa de construção do
à

espaço, como Raimundo José da Cunha Matos, podemos entre-


á
st

ver nas discussões do Parlamento a desilusão em relação ao que


le

se esperava das potências europeias, tanto por conta do sistema


de tratados, considerado injusto e opressivo, quanto por causa
a

da ação direta daqueles Estados que, inclusive, emprestavam


in

argumentos aos que entendiam ser inútil o esforço diplomático.


ig

Já em relação à América, o tom das discussões seria ambíguo,


or

uma vez que se existia uma simpatia para com a aproximação


O

privilegiada com o continente, esta derivava de uma análise da


O original está à venda na Amazon e no Google Play
44 Cartografias Imaginárias

ay
própria capacidade de projetação de poder, como considerava
Cunha Matos (BRASIL, 1827, p. 16): “É com as nações ame-

Pl
ricanas que devemos ter íntimas relações diplomáticas [...].

le
Na América, figuramos como potência de 1ª ordem, ao mesmo

g
passo, que no mundo antigo nos classificarão a par do rei de

oo
Sardenha” 6. O mesmo deputado também considerava que des-
ses países se devia esperar apenas hostilidade no tocante às ins-

G
tituições do Império, conforme salientava quando da guerra com

no
as Províncias Unidas do Prata:

e
Pelo que nós vemos nos papéis públicos de Buenos

on
Aires, aquele governo apresenta as mesmas idéias,
que outrora apresentara Catão a respeito da repú-
blica dos cartagineses – delenda est Carthago
az
– dizia Catão! [...] A guerra que nos faz Buenos
Aires não é para ganhar território, a maior guerra
Am

que nos faz é de opinião (BRASIL, 1827, p. 24).


na

Cunha Matos criticava também a desconexão do Governo


com um pensamento nativista que julgava ter sido ofendido por
a

sua pouca ou inadequada ação. Suas censuras visavam à atuação


nd

da SENE, considerada como prejudicial ou mesmo inimiga dos


interesses brasileiros:
ve

Desaprovei a convenção pecuniária de Portugal,


à

desaprovei a infame convenção com a Inglaterra


á

pela qual os cidadãos brasileiros foram entre-


st

gues ao cutelo britânico; desaprovei os tratados


feitos com a mesma Inglaterra, França, Prússia
le

e, sobretudo o das cidades hanseáticas [...] desa-


provo todos os tratados que agora estão na forja,
a

e dos quais, segundo dizem já chegou da Áustria,


in

e desaprovarei todos os outros, que debaixo dos


ig

mesmos auspícios se fizerem para o futuro com


or

6 Em relação a uma análise mais aprofundada das discussões no Parlamento,


O

ver CERVO, Amado Luiz. O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores


(1826-1889). Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 45

ay
qualquer nação do universo! E não devemos nós
todos lamentar os misérrimos tratados feitos pelo

Pl
ministério transato? Não devemos lamentar que o
atual ministro dos negócios estrangeiros [...] refe-

le
rendasse o absurdo tratado com a Prússia, e lhe
acrescentasse um artigo adicional, se não odioso,

g
ao menos tão impolítico como os dos seus ante-

oo
cessores? (BRASIL, 1828, p. 174).

G
Na mesma época, no Conselho de Estado, também trans-

no
pareciam, mesmo antes da abdicação de D. Pedro I, opiniões
semelhantes àquelas que eram expressas pelo Parlamento, como

e
no caso do exame das alternativas à usurpação do trono portu-

on
guês por D. Miguel quando o Conselho de Estado rejeitou todas
as proposições que diziam respeito à intromissão do Brasil na
az
questão; ou como no caso do exame da secessão da Cisplatina,
Am

cuja discussão iria desencadear a exoneração do conselheiro José


Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São Leopoldo, insa-
na

tisfeito com a política imperial.7


Conforme a análise de Cervo8, pode-se compreender que
a

as discussões sobre o espaço no Parlamento e no Conselho de


nd

Estado desencadeariam tomadas de posição favoráveis ao enten-


ve

dimento da necessidade de adensar o papel da Câmara e do


Senado na condução da política externa, de maneira a diminuir os
à

custos financeiros e políticos decorrentes do que era entendido


á

como uma excessiva centralização do processo. Neste sentido,


st

poder-se-iam compreender as sucessivas demandas parlamenta-


ale
in

7 ATAS do Conselho de Estado, Sessões de 12/03/1830 e 27/08/1828. In:


RODRIGUES, José Honório (Org.) Atas do Conselho de Estado, v. II. Brasília: Centro
ig

Gráfico do Senado, 1978. p. 33-34 e 101-103. Em relação à exoneração do Visconde


or

de São Leopoldo ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção


do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX.
2005. Tese-(Doutorado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005. p. 171-177.
O

8 CERVO, Amado Luiz. O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889).


Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
46 Cartografias Imaginárias

ay
res no período, como a exigência de que todos os tratados nego-
ciados pela SENE passassem antes pela aprovação da Câmara

Pl
dos Deputados e do Senado, uma conquista que somente seria

le
alcançada após a abdicação de D. Pedro I.

g
Essas discussões haviam sido grandemente subsidiadas por

oo
vários insumos, como a Política Externa Joanina e por certas

G
construções intelectuais como as de José Feliciano Fernandes
Pinheiro. No primeiro caso, a proposta de permuta do territó-

no
rio ao norte do Rio Negro e Amazonas pelo Uruguai, tal como

e
havia sido instruído o representante português, em 1818, revela
a existência de um sentido de privilegiamento do espaço que vai

on
ser ratificado pela ocupação da Cisplatina e depois legado à polí-
az
tica externa do futuro Estado brasileiro (AGUIAR, 1816). Do
mesmo modo, a recusa de se receberem enviados e plenipotenci-
Am

ários do continente africano pode ser entendida como o estabe-


lecimento de uma relação diferenciada com o espaço, utilizando
na

como modelo uma visão idealizada da Europa. Essa ideia pode


ser mais bem explicitada se observarmos a exemplar recepção de
a

D. Pedro I ao rei do Havaí, Kamehameha II, em 1824. Embora


nd

originário de um espaço tão ou mais bárbaro que a África aos


ve

olhos das elites, o havaiano foi recebido com todas as honras


por D. Pedro I, que o presenteou com uma espada e um anel
à

de brilhante. Contava mais que Kamehameha II, um convertido


á

ao protestantismo, estivesse então viajando para encontrar com


st

o rei da Inglaterra, após ter procurado ocidentalizar seu país e


le

nessa diligência, destruído o sistema religioso de seus ances-


a

trais. Mirava-se a Europa não apenas em busca das suas luzes,


in

mas também, procurava-se inflectir uma relação de força que


ig

o velho continente lhes demonstrara, reinserindo-a continuada-


or

mente sobre suas próprias instituições e indivíduos; cabia evi-


tar, nesse raciocínio, num misto de desdém e temor, aos que na
O

América e na África deveriam estar sujeitos a essa nova relação.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 47

ay
No segundo caso, José Feliciano Fernandes Pinheiro escreve-
ria, em 1807, a ‘História nova e completa da América’, privile-

Pl
giando o relato da construção de uma nova Nação no Continente,

le
os Estados Unidos, a partir do contributo europeu e do enrai-

g
zamento deste no território. Esta ideia precoce de uma ligação

oo
entre o tempo, a terra e o homem baseando a compreensão do
espaço seria depois adaptada ao contexto brasileiro por meio de

G
outra obra de sua autoria, os ‘Anais da Província de São Pedro’,

no
cuja primeira edição foi impressa entre os anos de 1819 e 1822.
Por meio desse livro, Fernandes Pinheiro defenderia que a con-

e
quista do território fora obra da força dos brasileiros e dos por-

on
tugueses residentes, no Brasil, os quais haviam destruído pela
az
guerra toda a possibilidade de retorno ao sistema antigo. Se a
força definia a posse do território, a ligação deste com os indi-
Am

víduos era descrita como uma relação ininterrupta e continuada


que poderia ser provada por meio do recurso ao documento, ao
na

testemunho e à tradição. Constituía-se, assim, por meio de uma


narrativa territorial, um modelo de espaço onde um indivíduo
a

plural, o brasileiro, era o ator principal: Nação e identidade fun-


nd

diam-se desde o início.


ve

Em 1827, dois meses antes de ser nomeado Conselheiro de


Estado, Fernandes Pinheiro procuraria construir mesmo uma
à

ligação permanente do Estado com o modelo de espaço que havia


á

prescrito nos Anais: ofereceu a D. Pedro I a ‘Memória acerca dos


st

Limites naturais’, um documento que deveria ser guardado no


le

Arquivo do Estado, “entre os seus segredos mais importantes”


a

e aberto apenas quando um novo Imperador subisse ao trono,


in

a fim de que pudesse então servir de guia ao futuro governante


ig

do Brasil. Na ‘Memória’, Fernandes Pinheiro formulou o que


or

pretendia que fosse o ‘Sistema Político’ do Brasil, a saber, “um


plano sempre uniforme de conservar-se e engrandecer-se”. Este
O

‘Sistema Político’ fundava-se sobre certos “interesses naturais


O original está à venda na Amazon e no Google Play
48 Cartografias Imaginárias

ay
imutáveis e indestrutíveis” que davam “um estado de Direitura
e estabilidade” à Nação: Fernandes Pinheiro considerava ser

Pl
de “opinião geral” a percepção de que a vocação do Brasil era a

le
de tornar-se uma “Grande Potência Marítima e Comerciante”.

g
Contudo, era necessário antes que seu território fosse “previa-

oo
mente circunvalado” a partir dos principais traços da natureza,
os ‘limites naturais’, para que a Nação se conservasse acober-

G
tada “das querelas e da fácil invasão de vizinhos” e, assim se

no
propiciasse um desenvolvimento seguro da sua população e da
sua riqueza. Esses seriam fatores indispensáveis para a forma-

e
ção de uma Marinha que se tornaria capaz de ativar “o círculo

on
de relações entre a Capital e as Províncias remotas” e de ser-
az
vir como “fortaleza volante”, levando “o ataque e a defesa onde
conviesse”. Segundo Fernandes Pinheiro, os ‘limites naturais’
Am

da Nação deveriam se alargar na fronteira meridional desde


as nascentes do rio Paraguai, passando pelo rio Paraná e pelo
na

rio Uruguai até o Rio da Prata, “em compensação dos custos e


perdas de uma guerra não provocada que vinha sendo movida
a

contra os brasileiros pelos espanhóis e seus sucessores há vinte


nd

anos” (PINHEIRO, 1827).


ve

As ‘Memórias’, que poderiam ser consideradas o primeiro


grande texto de geopolítica do Brasil, coincidiam sobremaneira
à

com o debate do final da década de 1820 e inclusive com as obras


á

de Cunha Matos que, por exemplo, na sua ‘Corografia de Minas


st

Gerais’ alertava:
ale

Os habitantes do Brasil têm o bom senso de


conhecerem que os nossos arquivos públicos
in

ainda agora começam a ser organizados, e que


ig

as memórias mais interessantes dos Fastos


or

Nacionais foram devoradas por insetos, acham-se


cobertos de poeira em poder de quem não sabe
apreciá-los, ou existem nas bibliotecas dos fidal-
O

gos, e Ministros portugueses, que governaram as


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 49

ay
Colônias. [...] Permita Deus que o Governo abra
enfim os olhos, e que o Brasil não censure o seu

Pl
desleixo quando vir tantos outros naturalistas
atravessando, esquadrinhando, e descrevendo

le
aquilo que não devemos ignorar; e que assim nos
lancem no rosto a nossa indiferença ou a nossa

g
barbaridade (MATOS, 1837).

oo
G
Distinguir as fronteiras e reconhecer o território era a precon-
dição para se concretizar um determinado sentido da Nação que

no
então se formava. Por conseguinte, entendemos que o debate no
Parlamento revelava um pensamento sobre o espaço capaz de

e
influenciar as demandas que resultariam nas grandes conquistas

on
da década de 1830, como a derrubada do Sistema de Tratados, a
az
tomada do poder de decisão na política externa e, muito prova-
velmente, também a ‘grande política americana’, como foi ape-
Am

lidada na Câmara dos Deputados, por volta de 1850, a busca


de soluções para as questões de fronteira e o estreitamento
na

de vínculos com os países americanos. Inclusive, repercutindo


este ajustamento político, na reativação do Conselho de Estado
a

a discussão da política externa seria feita antes em separado,


nd

na ‘Seção dos Negócios Estrangeiros’ onde em grande parte do


ve

tempo estiveram representadas as lideranças dos dois partidos


políticos do Império.
à

A ação da SENE seria mesmo norteada por uma política


á

que visava a responder as questões esboçadas pelo pensamento


st

sobre o espaço: em 1837, impulsionado pela expansão francesa


le

e inglesa nas Guianas, seu ministro, Antônio Carlos Maciel


a

Peregrino, nomearia Fernandes Pinheiro e Cunha Matos9 para a


in
ig
or

9 O diálogo com Fernandes Pinheiro na ‘Comissão Investigadora de Limites’ influencia-


ria mesmo a obra de Cunha Mattos, já que este autor endossaria as principais ideias
apontadas por Fernandes Pinheiro nos ‘Anais’ já em 1839, como, por exemplo, àquela
O

relativa à associação necessária do tempo e da terra com o homem por meio de uma
narrativa territorial: “o Sr. Visconde de São Leopoldo mostrou [...] que ora não estamos
O original está à venda na Amazon e no Google Play
50 Cartografias Imaginárias

ay
‘Comissão Investigadora dos Limites’ do Brasil,10 discernindo-a
como “uma das primeiras necessidades públicas”. Seriam então

Pl
atribuídas à ‘Comissão’ as tarefas de “determinar quais os limi-

le
tes do Sul e Oeste do Império do Brasil, à vista dos Tratados

g
e Convenções existentes” e definir “quais os limites, que se

oo
podem considerar como naturais, com relação às localidades, e
topografia do país.” 11 Portanto, entendia-se que os limites bra-

G
sileiros deveriam ser definidos por meio da ideia das ‘fronteiras

no
naturais’ esboçada por Fernandes Pinheiro. Sobre a base desse
entendimento, resultaram dois trabalhos distintos na ‘Comissão

e
Investigadora de Limites’, o primeiro, de José Saturnino da Costa

on
Pereira, senador e ex-presidente da província de Mato Grosso,
az
que fora autorizado a emitir um parecer em separado por conta
de seus problemas de saúde;12 e o segundo, assinado pelo presi-
Am

dente da Comissão, Fernandes Pinheiro.


Na primeira parte de seu trabalho, Costa Pereira versa sobre
na

a utilidade dos tratados do século XVIII para a determinação dos


limites, apontando os vícios e problemas decorrentes das suas
a

demarcações. Em relação aos limites naturais, Costa Pereira


nd

observaria, com pesar, que o Rio da Prata e o rio Uruguai seriam


ve
à

habilitados a escrever a história geral do Brasil, por nos faltarem muitos elementos
provinciais para isso necessários”. Ver MATOS, Raimundo José da Cunha. Dissertação
á

acerca do sistema de escrever a História Antiga e Moderna do Império do Brasil. Revista


st

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo XXVI, p. 122, 1863.


le

10 Embora não tenha sido denominada nos documentos oficiais, nosso trabalho ado-
tará, doravante, a denominação ‘Comissão Investigadora dos Limites’, a qual era
empregada por Duarte da Ponte Ribeiro, conforme anotação autógrafa à margem da
a

correspondência entre José Feliciano Fernandes Pinheiro e Antônio Peregrino Maciel


in

Monteiro. Ver AHI-Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5,
Documento 4.
ig

11 A ‘Comissão Investigadora de Limites’ foi nomeada diretamente pelo titular da


or

SENE, Antônio Peregrino Maciel Monteiro. Ver Relatório da Secretaria de Estado


dos Negócios Estrangeiros, 1838, p. 8.
12 Conforme carta de José Saturnino da Costa Pereira para Antônio Peregrino Maciel
O

Monteiro, de 26/10/1837. AHI- Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata


286, Maço 6, Documento 32.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 51

ay
as fronteiras mais próprias ao Brasil, evidenciando, assim, mais
uma vez, a influência dos ‘Anais da Província de São Pedro’

Pl
de Fernandes Pinheiro, obra, aliás, citada explicitamente por

le
Costa Pereira.

g
Na segunda parte, Costa Pereira aponta a impossibilidade de

oo
se analisarem os limites por meio do recurso aos tratados ante-

G
riores, uma vez que não existia nenhuma cópia do Tratado de
Santo Ildefonso nos arquivos da SENE. No caso, poder-se-iam

no
apenas fazer algumas conjeturas a respeito do Tratado de Santo

e
Ildefonso a partir do texto do Tratado de Madri. Mesmo assim,
não havia um conhecimento do território que permitisse uma

on
aproximação segura, haja vista que Costa Pereira foi obrigado a
az
utilizar um mapa inglês, a Carta da América Meridional, de John
Arrowsmith, como base de seu trabalho (PEREIRA, 1837).
Am

Já o trabalho de Fernandes Pinheiro limitou-se a reafirmar o


valor de sua ‘Memória’ como a melhor interpretação das frontei-
na

ras naturais, bem como da ideia da nulidade dos tratados ante-


a

riores que havia defendido nos ‘Anais’, contudo, faz a ressalva de


nd

que o Tratado de Madri era aquele que melhor se prestava para


os fins de delimitação do espaço nacional, justamente porque,
ve

como observado por Costa Pereira, era com o que se podia con-
tar.13 Coincidentemente, no ano seguinte, na Bolívia, após uma
à

troca comum de notas, os representantes daquele país fizeram


á
st

saber ao plenipotenciário brasileiro, Duarte da Ponte Ribeiro,


le

que o Tratado de Santo Ildefonso também não existia nos arqui-


vos de seu Governo e que, por conta disso, a Bolívia não mais o
a

reconheceria como base para a fixação de limites.14


in
ig
or

13 Correspondência do Visconde de São Leopoldo ao Ministro dos Negócios


Estrangeiros, 1837. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284,
Maço 5, Pasta 4, Documento 3.
O

14 Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 19 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios,


1838-1840.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
52 Cartografias Imaginárias

ay
Assim, após o término dos trabalhos da Comissão, se deci-
diu por uma extensa reforma na estrutura da SENE, de modo

Pl
a provê-la de recursos que melhor permitissem enfrentar esses

le
problemas. Constituiu-se um ‘Arquivo’, para onde seriam enca-

g
minhados os documentos e mapas referentes às questões de

oo
limites (que daria origem ao Arquivo do Itamaraty); e uma
‘Biblioteca Especial’, destinada a armazenar “todas as produ-

G
ções, que o desenvolvimento do espírito humano houver de dar

no
à luz no que respeita à marcha dos Governos, e às modificações,
que porventura se tenham de realizar nas relações das diversas

e
associações políticas.” 15

on
Por sua vez, Fernandes Pinheiro (1839) também apresen-
az
taria vários argumentos favoráveis à constituição de “um colé-
gio especial de literatos escolhidos, incumbidos de recolher e
Am

transmitir os feitos que constituem a vida das nações” conforme


seu prefácio à segunda edição dos ‘Anais da Província de São
na

Pedro’. Nesse, fazia ver a necessidade de que “se deputassem


literatos Brasileiros de conceito, que fielmente colhessem da
a

Torre do Tombo, e doutros Arquivos Nacionais, e copiassem os


nd

monumentos e escritos, que tivessem relação com a História


ve

do Brasil”,16 muito provavelmente influindo decisivamente para


que o ministro dos Negócios Estrangeiros Caetano Maria Lopes
à

Gama, indicasse Francisco Adolfo de Varnhagen como adido da


á

Legação brasileira em Lisboa, com a missão expressa de selecio-


st
le

15 Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1838, p. 18.


a

16 Faz-se necessário apontar que, embora a data de publicação da segunda edição dos
in

‘Anais’ seja posterior à fundação do IHGB, sua redação foi feita em data anterior,
constituindo-se possivelmente na primeira ata de intenções dessa instituição. Nesse
ig

sentido, dois fatos corroboram nossa hipótese: primeiro, o exame dos ‘Anais’ pelo
or

Instituto foi publicado já no primeiro número de sua revista, e seus pareceristas


identificam as intenções de Pinheiro com o IHGB. Segundo, o ‘Programa Geográfico’
de Pinheiro, uma obra posterior à redação da segunda edição dos ‘Anais’, foi lida no
O

IHGB já na sessão de 16 de fevereiro de 1839, o que por si só já recuaria a redação


dos ‘Anais’ para o ano anterior.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 53

ay
nar e copiar os “documentos que sirvam para a organização da
História do Brasil” (ADONIAS, 1984).

Pl
Portanto, a ‘Comissão Investigadora de Limites’ teve como

le
principal resultado admitir o desconhecimento do território e

g
a subsequente impossibilidade de se definir os limites brasilei-

oo
ros. Secundariamente, consagraram-se as ideias de Fernandes

G
Pinheiro, reconhecendo-se a necessidade de um esforço contínuo
que se destinasse a pensar o espaço e a embasar as negociações

no
com outros países suprindo-se o Estado de informações sobre o

e
seu próprio território e suas fronteiras. Estabelecer-se-ia, assim,
uma ponte definitiva entre a Geografia e a História e por meio

on
destas com uma produção do espaço nacional onde se salientava
az
a importância do Tratado de Madri, então a única fonte histórica
dos limites brasileiros.
Am

Provavelmente, a partir dos resultados da ‘Comissão’ cons-


tituiu-se um entendimento de que as demandas dos Negócios
na

Estrangeiros inflectiam sobre a própria manutenção e organi-


a

zação do Estado devendo, portanto, somar-se ao debate mais


nd

amplo que implicava então na fundação do IHGB. O peso deste


entendimento pode inclusive ser aventado a partir do exame do
ve

quadro de seus sócios fundadores, já que dentre eles figurava o


titular da pasta dos Negócios Estrangeiros e dois dos principais
à

formuladores do espaço, Fernandes Pinheiro e Cunha Matos,


á
st

escolhidos respectivamente para a presidência e vice-presidência


le

do Instituto.
a
in

A produção da história do espaço nacional no IHGB


ig
or

Ao discutirmos a produção do projeto histórico do IHGB


interessa-nos ressaltar certas continuidades e descontinuidades
O

em relação ao pensamento sobre o espaço que acreditamos ser


O original está à venda na Amazon e no Google Play
54 Cartografias Imaginárias

ay
esclarecedoras de um processo que envolve o Estado na cons-
tituição de uma história do espaço nacional e onde se eviden-

Pl
cia certos usos e funções da cartografia. No caso, fica claro que

le
as preocupações da ‘Comissão Investigadora de Limites’ foram

g
retomadas já na 5ª sessão do IHGB pela iniciativa do próprio

oo
Fernandes Pinheiro de instituir a seguinte diretriz de discussão
por meio da apresentação da memória ‘Programa Geográfico’:

G
no
Quais são os limites naturais, pactuados e necessá-
rios do Império do Brasil? Quando o Brasil aparece
em notória crise; quando por todos os lados é com-

e
primido, e estreitado em fôrma de bronze, e os escri-

on
tores do dia provocam e desafiam os literatos para
que instruam o Público, ávido de conhecer os títulos
az
da sua propriedade; o Instituto Histórico e Geográfico
do Brasil há de cruzar os braços, com indiferença e
Am

insensibilidade? (PINHEIRO, 1902a). 17

A argumentação do ‘Programa Geográfico’ derivava direta-


na

mente das conclusões da ‘Comissão’, buscando explicitar a argu-


mentação da nulidade de todos tratados anteriores através da
a

constituição de uma narrativa linear que ligava os vários trata-


nd

dos coloniais ao apontar sua contradição com os interesses da


ve

Nação brasileira. Contudo, destacava-se nessa narrativa a excep-


cionalidade do Tratado de Madri, por ser o mais vantajoso para
à

o Brasil e também o mais justo dentre todos os que haviam sido


á

acordados entre Portugal e Espanha, e que esta grandeza do


st

Tratado de Madri derivava do fato de ter sido planejado por um


le

brasileiro, Alexandre de Gusmão, injustamente desconhecido.18


a
in

17 O ‘Programa Geográfico’ foi lido na sessão do Instituto de 16/02/1839. Consultar a


ig

obra de Fernandes Pinheiro, 1902a.


or

18 Note-se que essa circunstância seria enfatizada também no ‘Programa Histórico’ do


IHGB: “Alexandre de Gusmão, que por incúria dos tempos escassamente é conhecido
por algumas cartas expedidas do gabinete de D. João V de Portugal, porém, que para
O

ser hoje admirado a par do Marquês de Pombal (não se me trate de exagerado, em


tempo o demonstrarei) só lhe faltou haver nascido além do Atlântico [...]: Gusmão
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 55

ay
Procurando melhor embasar os seus argumentos, Fernandes
Pinheiro buscou subsídios principalmente na cartografia, inven-

Pl
tariando a cada página do ‘Programa Geográfico’ os mapas e

le
cartas capazes de endossar ou esclarecer sua lógica.19 Portanto,

g
Fernandes Pinheiro foi o responsável por trazer a cartografia

oo
para o centro do debate do IHGB, acreditando-a como uma das
fontes principais da posse do território e da ligação do homem

G
com a terra, em razão da ausência então de outros documentos. Vale à

no
pena acrescentar, no sentido de demonstrar a importância que
Fernandes Pinheiro atribuía à cartografia, que a publicação da

e
segunda edição dos seus ‘Anais da Província de São Pedro’ foi

on
atrasada apenas para se poder encadernar nesta um mapa que
az
ainda aguardava sua gravação em Paris.
O ‘Programa Geográfico’ seria impresso à custa do IHGB e
Am

distribuído entre os seus sócios e correspondentes, rapidamente


atraindo as críticas de Manoel José Maria da Costa e Sá, membro
na

da Academia Real de Ciências de Lisboa, que acusaria aberta-


mente Fernandes Pinheiro de ter omitido, suprimido e distor-
a

cido a interpretação de diversos elementos de sua narrativa e em


nd

sua argumentação. Procurando exemplificar sua crítica, Sá inves-


ve

tiu pesadamente contra o tratamento dispensado ao Tratado de


Madri, insistindo que esse fora extremamente nocivo a Portugal
à

e, inclusive, lembrando que Alexandre de Gusmão havia caído


á
st
le

foi dotado de vistas mais vastas, de mais variados conhecimentos nas ciências [...] o
a

Brasil lhe deve em especial o plano e direção do mais vantajoso tratado de limites, o
in

de 1750”. Revista do IHGB. tomo I, trimestral, 1839, p. 62.


19 Consolida-se no IHGB uma sintonia com os trabalhos anteriores de Pimenta Bueno e
ig

de Duarte da Ponte Ribeiro na Secretaria de Negócios Estrangeiros, onde se defende


or

a ligação da construção do espaço com a prova histórica. Ver PEIXOTO, Renato


Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através
das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-(Doutorado em História)
O

- UFRJ, Rio de Janeiro, 2005. cap. VII. Em relação à construção do conceito do uti
possidetis na SENE ver cap. VIII.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
56 Cartografias Imaginárias

ay
em desgraça logo após sua assinatura, inclusive por ter pesado
contra ele a acusação de suborno (SÁ, 1902).20

Pl
Como as duras críticas de Sá desarticulavam completamente

le
a narrativa construída no ‘Programa Geográfico’, tornava-se

g
necessário, sobretudo pela insistência de D. Pedro II,21 contra-

oo
-argumentar com novos elementos. Fernandes Pinheiro escreve-

G
ria uma ‘Resposta’ às críticas de Costa e Sá, reafirmando perante
a assembleia do IHGB a argumentação da nulidade dos tratados,

no
desta vez ressaltando a transcendência mesma do tratado de

e
1750 para a formação da Nação brasileira, já que esta fora “enfor-
mada” em seu território pelo gênio de Alexandre de Gusmão, um

on
patriota antes de seu tempo, distinguindo-se, assim, o Tratado
az
como o marco inicial da história da nação (PINHEIRO, 1902b).
Am

Em 1841, Fernandes Pinheiro continuaria a articular as bases


de construção de uma história do espaço nacional no Instituto,
fazendo publicar os Diários das demarcações dos tratados do
na

século XVIII e apresentando ao IHGB a primeira biografia de


a

Alexandre de Gusmão, denominada ‘Da vida e feito de Alexandre


nd

de Gusmão e de Bartolomeu Lourenço de Gusmão’, também


impressa e distribuída à custa do Instituto. Esta biografia dos
ve

Gusmões, proposta por Pinheiro “para resgatá-los de um esque-


cimento, onde ficariam indignamente sepultados” (PINHEIRO,
à

1902c), já fazia parte de seus planos desde pelo menos 1838,


á
st

quando em uma viagem a Santos, sua cidade natal, colheu os


le

documentos para escrever sobre seus conterrâneos, então des-


conhecidos mesmo das elites letradas, mas cuja lembrança pro-
a

vavelmente fora cultivada e preservada pela memória local. Se


in
ig
or

20 Trata-se de breves anotações à Memória que o Ex. Sr. Visconde de São Leopoldo
escreveu.
O

21 Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro para Joaquim Caetano Fernandes


Pinheiro, em 15/09/1846, citada em Pinheiro, 1898.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 57

ay
no ‘Programa’ já se podia distinguir uma idealização da figura
e do saber de Alexandre de Gusmão, nesta biografia sua figura

Pl
seria mais aproximada do ideal romântico de herói, enriquecida

le
com a descrição de sua precocidade, de sua lealdade e de seu

g
desapego à riqueza ou a fama. Segundo este enredo, o Tratado de

oo
Madri devia ser compreendido como sua obra magna, uma faça-
nha capaz de lhe garantir a eternidade nos “Fastos do Brasil”. Já

G
para Bartolomeu, o irmão de Alexandre de Gusmão, Fernandes

no
Pinheiro reservaria a glória e a ventura de ter sido o inventor da
primeira máquina voadora, embora ressaltasse que a alcunha de

e
“os voadores” cabia a ambos os irmãos (PINHEIRO, 1902a).

on
Ainda no mesmo ano, o IHGB publicaria um opúsculo de
az
Varnhagen denominado ‘As primeiras negociações diplomáticas
respectivas ao Brasil’, onde através da concatenação da ideia da
Am

ação diplomática com a construção do espaço brasileiro se defen-


dia que a escrita da história deveria servir-se das mesmas fontes
na

que a diplomacia, circunstanciando-se, assim, a necessidade de


constituição de um arquivo comum,22 premissa a partir da qual
a

iria justificar a remessa de diversos documentos diplomáticos


nd

para o IHGB, em especial, a transcrição certificada do Tratado


ve

de Madri.
Igualmente podemos notar que a participação de Duarte da
à

Ponte Ribeiro no IHGB se dá concomitantemente ao início de


á
st

uma colaboração íntima deste com o então titular da SENE,


le

Paulino José Soares de Sousa, futuro visconde do Uruguai.


Fruto dessa interação excepcional surgiria então a ‘Memória
a

n° 12’ onde Ponte Ribeiro juntava ao argumento da nulidade


in

dos tratados o uti possidetis, conceito que havia sido construído


ig
or

22 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. As Primeiras Negociações Diplomáticas


O

Respectivas ao Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo


LXV, n° 105, parte I, p. 427-454, 1902.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
58 Cartografias Imaginárias

ay
nos anos anteriores na SENE de modo a poder justificar a com-
pensação ou a cessão de territórios a fim de cobrir a ‘fronteira

Pl
natural’, inclusive, preemptivamente, ou seja, visando a uma

le
definição futura dos limites.23 Para elucidar esta interpretação

g
Ponte Ribeiro fez desenhar um mapa que servia de contraponto

oo
à argumentação e como reforço da narrativa, tornando, de fato,
a cartografia inseparável do texto escrito e também um texto a

G
ser trabalhado: inaugurava-se, assim, um recurso que a história

no
do espaço nacional utilizaria inúmeras vezes, como no caso do
‘Mapa do Tratado de Tordesilhas’, que Varnhagen incorporaria a

e
sua História Geral do Brasil e onde, de modo a reforçar a polí-

on
tica de cessão de limites da SENE, grafava-se o meridiano de
az
Tordesilhas do modo mais desfavorável ao Brasil.
Esse raciocínio seria expresso diretamente por Varnhagen
Am

em 1850, quando foi chamado a participar enquanto consul-


tor da ‘Comissão de Limites’ constituída por Paulino Soares de
na

Souza, para elaborar uma ‘Memória’ que relacionasse e opinasse


sobre os mapas e outros documentos que pudessem ser utili-
a

zados nas negociações de limites. Nessa ‘Memória’, Varnhagen


nd

sugeriria que uma “História das Fronteiras” não se diferenciaria


ve

da história mesma do Brasil e que deveria alcançar até os “pri-


meiros anos de existência colonial”, remetendo a investigação
à

dos limites aos mapas e documentos que os originaram ou sobre


á

os quais se basearam. Por conseguinte, o Tratado de Tordesilhas


st

se impunha como o marco inicial da história do espaço nacional


le

e os pactos entre as Metrópoles constituíam-se também em bali-


a

zamentos da história da nação, uma vez que se poderia imprimir


in

por meio destes um vínculo com o passado e com a legitimação


ig
or

23 RIBEIRO, Duarte da Ponte. Memória sobre limites e negociações do Império do


O

Brasil com as Repúblicas do Peru, Bolívia e Paraguai. N° 12. AHI, Arquivo Particular
de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 2.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 59

ay
da soberania. Nesse sentido, Varnhagen se remetia à primitiva
construção de Fernandes Pinheiro, como pode ser compreen-

Pl
dido, por exemplo, na reiteração do julgamento do Tratado de

le
Madri: “ponto de partida para todas as futuras questões [...]

g
negociado com tanta sabedoria, tanta boa fé e lisura [...] que os

oo
negociadores de parte a parte se mostraram com ele superiores
ao seu século” (VARNHAGEM, 1851, p.1).

G
Portanto, a ação diplomática, a geografia e a história se fun-

no
diam num só esforço, propiciando uma relação direta dos inte-

e
resses do Estado com o que era produzido no Instituto, através
de uma história do espaço nacional já articulada no IHGB pelo

on
menos dez anos antes da feitura da ‘História Geral do Brasil’ de
az
Varnhagen.
Am

A cartografia e a construção do espaço nacional


na

Os mapas serviram então, indistintamente, enquanto fonte


a

qualificada, argumento de retórica e material de escrita numa


nd

verdadeira polissemia que pode ser inquirida com o objetivo


ve

de se entender a importância da cartografia para o projeto


historiográfico.
à

Podemos observar por meio de um ‘estudo da composi-


á

ção’24 de certos mapas produzidos então no IHGB e na SENE,


st

que a cartografia se prestou, por exemplo, à construção de uma


le

pedagogia da Nação, como na ‘Carta Corográfica do Império do


a

Brasil’, premiada em 1846 pelo IHGB, conforme pode ser obser-


in
ig
or

24 Entendemos que o estudo da composição dos mapas deve procurar elucidar as rela-
ções entre os processos externos e internos de sua produção, que grosseiramente
definiremos aqui como aqueles que dizem respeito, respectivamente, às estratégias
O

e táticas dos operadores da representação e às particularidades das técnicas e proce-


dimentos cartográficos.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
60 Cartografias Imaginárias

ay
vado a partir dos diferentes níveis de escolha que no processo
de sua composição relacionaram esse objetivo com as técnicas

Pl
e materiais disponíveis na época. O traçado geral da Carta foi

le
feito a partir de dois dos mapas estrangeiros mais conhecidos

g
de sua época, visando-se com isto a alcançar o reconhecimento

oo
da comunidade cartográfica internacional a partir de seus pró-
prios cânones. Este mesmo traçado foi complementado com os

G
trabalhos recolhidos ou reconhecidos pelo IHGB, procurando-se

no
assim instituir a centralidade do projeto historiográfico na dis-
cussão do espaço. Por fim, sua grande dimensão (1,5 m x 1,5 m),

e
objetivava impactar aqueles que a vissem; diminuir o problema

on
dos erros, pois se tornava possível dimensionar mais o desenho
az
dos rios; e direcionar a atenção sobre certos detalhes, especial-
mente, os limites com o Paraguai.
Am

Por sua vez, se estudarmos a composição do ‘Mapa do Rio


Grande’, desenhado por Duarte da Ponte Ribeiro para servir às
na

discussões do Conselho de Estado em 1840, podemos observar


que a cartografia foi utilizada tanto para disseminar o pensa-
a

mento constituído no projeto historiográfico quanto para servir


nd

de argumento a este nas discussões sobre o espaço. Para alcançar


ve

este efeito, escolheram-se técnicas capazes de ser trabalhadas


retoricamente sem perder sua eficácia cartográfica: a orientação
à

do Mapa foi deslocada do Norte para o Sul, literalmente inscre-


á

vendo o território nacional de ponta-cabeça (caso único na car-


st

tografia brasileira do período), procurando-se enfatizar com isto


le

a importância do espaço platino; a inscrição de certos elemen-


a

tos cartográficos como a toponímia foi feita de forma invertida,


in

tornando possível enfatizar uma relação mais destacada com o


ig

espaço externo, no caso, o Uruguai; a escala foi parcialmente


or

deformada em parte do mapa de forma a constituir uma ordem


de leitura mais favorável à argumentação da SENE; seleciona-
O

ram-se propositadamente certos elementos geográficos citados


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 61

ay
nos tratados do período colonial de modo que estes pudessem
ser comparados desvantajosamente com o argumento traçado

Pl
em colorido no mapa.

le
Em ambos os casos se verifica ainda, desta vez através de uma

g
investigação iconográfica e semiológica, que os mesmos mapas

oo
serviram como material para a escrita do projeto historiográ-

G
fico, como se pode verificar através do exame de seus elementos
estruturais, a saber: o Meridiano do Rio de Janeiro foi disponi-

no
bilizado como a origem do sistema de coordenadas, permitindo

e
explicitar-se assim a centralidade do Estado; a nomeação dos
espaços indígenas se dava a partir de citações que recordavam

on
sua hostilidade ao elemento branco e à civilização; a toponímia
az
foi acompanhada, muitas vezes, por citações que remetiam à
transcendência do espaço e de seu centro em relação à antiga
Am

Metrópole; o sertão era distinguido e demarcado enquanto um


local de barbárie e também como um espaço vazio destinado
na

a ser conquistado; o Prata foi representado como um território


contíguo, mas inimigo.
a
nd

Estes exemplos evidenciam o sentido muito amplo que a car-


tografia adquiriu para o projeto historiográfico, o que permite,
ve

inclusive, entender que certas tendências de representação nos


mapas podem revelar indícios das tensões e ambiguidades do
à

projeto, as quais podem ajudar a pensar as relações entre Estado,


á
st

Elites e Instituto como um processo descontínuo e heterogê-


le

neo, onde a discussão em torno da produção do espaço e de sua


representação seria estratégica para as partes envolvidas.
a
in

É possível discernir que, nos dois mapas, as províncias foram


ig

distinguidas por meio de uma combinação de técnicas ou de


or

elementos cartográficos que as destacam tanto ou mais que a


Nação. Ao examinarmos a ‘Carta Corográfica do Império do
O

Brasil’, podemos perceber que, além da utilização do colorido


O original está à venda na Amazon e no Google Play
62 Cartografias Imaginárias

ay
ter enfatizado mais os limites provinciais que a fronteira do
Império, as plantas topográficas das capitais das províncias de

Pl
São Paulo, do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, da Bahia, de

le
Pernambuco, Maranhão e Pará foram disponibilizadas em torno

g
da representação do Brasil, ou seja, na composição procurou-se

oo
literalmente ‘emoldurar a Nação’.

G
No ‘Mapa do Rio Grande’, embora o enfoque temático seja
o da discussão das fronteiras com o Uruguai, podemos observar

no
que a composição cartográfica visou a constituir esse enfoque

e
através do argumento de um esvaziamento material e humano
da Província em razão da permanência do envolvimento brasi-

on
leiro nos conflitos do Prata, uma vez que a SENE visava, então, a
az
alcançar um acordo político no Conselho de Estado em torno da
delimitação de fronteiras com o Uruguai. No caso, a combinação
Am

de uma deformação deliberada da escala com o maior dimensio-


namento e seleção dos elementos geográficos construiu no mapa
na

uma representação do esvaziamento e da drenagem do território


do Rio Grande do Sul em direção do Prata.
a
nd

Por conseguinte, entendemos que os produtos cartográficos


explicitavam tanto uma tensão em torno da questão provincial
ve

e regional quanto uma ambiguidade em torno do papel a ser


exercido pelo IHGB em relação ao Estado, questões estas que
à

podem ser mais bem avaliadas a partir de exemplos da discussão


á
st

do espaço no Instituto e que podem nos ajudar a discernir uma


le

separação de tarefas na produção historiográfica.


a
in

A censura na produção do espaço da Nação


ig
or

Em relação ao papel a ser exercido pelo IHGB, dois episódios


de censura na produção do Instituto nos permitem distinguir o
O

fechamento da construção do espaço nacional e o momento em


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 63

ay
que se processa uma separação das tarefas no projeto historio-
gráfico, com a SENE passando a se concentrar mais na produção

Pl
da história do espaço nacional e sua representação por meio da

le
cartografia. O primeiro destes episódios foi o dos ‘Apontamentos

g
Diplomáticos’ de Ernesto Ferreira França Filho, em 1849, e o

oo
segundo o da ‘Memória Histórica’ de Joaquim José Machado de
Oliveira em 1853.

G
Quando os ‘Apontamentos Diplomáticos’ foram apresenta-

no
dos por Ernesto Ferreira França Filho ao IHGB, esta obra foi logo

e
identificada pela Comissão de Geografia (dominada então pela
SENE), como um trabalho escrito pelo pai de Ernesto, antigo

on
ministro dos Negócios Estrangeiros. Na Memória, eram apre-
az
sentadas três diretrizes para a definição e defesa dos limites: pri-
meiro, a constituição de outra comissão que não a Geográfica
Am

para cuidar da confecção de uma série de mapas onde se repre-


sentassem os limites do Brasil a partir de certas normas fixas, tais
na

como a orientação pelo Meridiano do Rio de Janeiro; segundo,


que se estabelecesse um plano de ocupação e manutenção de
a

certos pontos estratégicos considerados essenciais para a ‘segu-


nd

rança e conservação dos direitos’ e que por este plano se orien-


ve

tasse a doutrina do uti possidetis; terceiro, aconselhava a consti-


tuição de um ramo especial do serviço público para cuidar da
à

segurança e da inviolabilidade das fronteiras.


á
st

Neste caso, se as sugestões dos ‘Apontamentos’ fossem apro-


le

vadas, diminuir-se-iam tanto as atribuições da SENE quanto


sua influência na condução do projeto historiográfico, inclu-
a

sive por desvincular desta instituição a produção cartográfica.25


in
ig
or

25 Os ‘Apontamentos Diplomáticos’ somente seriam publicados em 1870. Ver


FRANÇA FILHO, Ernesto Ferreira. Apontamentos Diplomáticos Sobre os Limites
O

do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXIII, n°


41, parte II, 1870.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
64 Cartografias Imaginárias

ay
Sintomaticamente, para o entendimento do desdobramento
subsequente das tensões no Instituto, deve-se esclarecer que a

Pl
Comissão Geográfica entendeu que não havia sequer necessi-

le
dade de apresentar um parecer sobre os ‘Apontamentos’, já que

g
o IHGB não possuía atribuição para tratar das questões ali dis-

oo
cutidas, não podia cogitar de divulgá-las e menos ainda fazer uso
de suas informações.26

G
Ao contrário do caso dos ‘Apontamentos’, a censura às

no
‘Memórias Históricas’ acarretou uma acalorada discussão que

e
colocaria, em xeque, o papel do IHGB em relação ao Estado,
uma vez que essa obra era um violento libelo contra a política

on
de limites e a utilização do uti possidetis pelo Governo, lançando
az
mão da discussão do Tratado de Limites com o Uruguai de 1851
para argumentar a favor do que considerava ser os “incontes-
Am

táveis direitos” à verdadeira “amplitude territorial do Brasil”


(OLIVEIRA, 1853).
na

Encaminhada conforme a praxe para a Comissão de


a

Geografia, as ‘Memórias Históricas’ seguiram o trâmite normal


nd

em direção ao veto, merecendo um parecer circunstanciado onde


se procurava negar tanto a ideia da cessão de território pela polí-
ve

tica de limites, quanto os “incontestáveis direitos” esgrimidos


por Machado de Oliveira em relação ao território que coubera
à

ao Uruguai. Ainda, a aplicação do conceito do uti possidetis foi


á
st

defendida pela Comissão de Geografia através de sua remissão


le

ao Tratado de Madri, apontando-se que a característica mais


marcante deste Tratado era justamente a de ter consolidado
a

uma expansão do território nacional em relação ao Tratado de


in

Tordesilhas. Mais importante: o parecer distinguia o Tratado de


ig
or

26 RIBEIRO, Duarte da Ponte. Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico


O

sobre limites, por Ernesto Ferreira França Filho. AHI-Arquivo Particular de Duarte
da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11, Documento 2.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 65

ay
Tordesilhas enquanto a origem dos limites brasileiros e escla-
recia que, ao contrário do que defendia Machado de Oliveira, o

Pl
Tratado de Tordesilhas havia sido muito mais desvantajoso ao

le
Brasil, segundo os cálculos mais precisos de que a Comissão

g
de Geografia dispunha. Por meio do recurso à cientificidade e a

oo
uma lógica inerente à História do espaço nacional, procurava-se
então desmontar uma argumentação expansionista que possuía

G
grande apelo para as elites e que estava sendo utilizada então

no
pelas elites gaúchas de encontro aos seus interesses.

e
Portanto, por meio de uma nova contribuição à História do
espaço nacional, negava-se terminantemente, a idéia da diminui-

on
ção do território brasileiro que então ganhava forças a partir do
az
próprio material juntado pelo Instituto.27
Am

A discussão resultaria na expressão pela plenária do desejo


de uma maior autonomia em relação ao Governo, rejeitando-
-se os pressupostos da Comissão de Geografia, inclusive, por
na

meio de uma proposição de se fazer rever a ‘Carta Corográfica


a

do Império’, o que colocava o Instituto em contraposição a uma


nd

Comissão de Limites recém-estabelecida na SENE. Seria tam-


bém aprovada a proposta de se buscar estabelecer uma cole-
ve

ção de tratados, criando-se, deste modo, condições para que se


pudesse organizar no IHGB uma base documental própria sobre
à

os limites e a política externa, expondo-se, com esta atitude, a


á
st

disposição de se discutir abertamente os problemas de Estado,


le

demonstrando-se, por conseguinte, a ambiguidade com que no


Instituto se entendia esta questão.28
a
in
ig

27 Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na
or

sessão do Instituto Histórico de 17 de Junho de 1853. Revista do Instituto Histórico


e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, p. 435, 1853.
28 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo XVII, n° 17, 1854, pp.
O

77-102. Para maiores esclarecimentos sobre estas questões ver PEIXOTO, Renato
Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através
O original está à venda na Amazon e no Google Play
66 Cartografias Imaginárias

ay
Finalmente, outro episódio, o debate acerca da Comissão
Científica de Exploração, permite-nos perscrutar mais de perto

Pl
a importância da tensão em torno da questão provincial e regio-

le
nal no IHGB que no caso anterior já pode ser aventada por conta

g
dos interesses da elite gaúcha.

oo
A Comissão Científica do IHGB resultaria das discussões

G
acontecidas a partir de 1854, quando se convergiria para uma
posição comum de rejeição aos relatos dos viajantes estrangei-

no
ros, acusados de falsificar e distorcer a verdade sobre o país, uma

e
leitura também condizente com o entendimento de que a coro-
grafia do território passava a ser então uma das prerrogativas do

on
IHGB, devendo-se, portanto, passar a assumir uma participa-
az
ção mais ativa em relação a sua exploração.29 Assim, aprovou-se
o envio de uma Comissão destinada a pesquisar “algumas das
Am

províncias menos conhecidas do Brasil” e formar uma coleção


de espécimes da fauna, da flora e da cultura indígena para enri-
na

quecer as coleções do Museu Nacional.30 Após inúmeros con-


tratempos, inclusive por conta do bloqueio de suas verbas no
a

Ministério dos Negócios do Império, somente em 1859, é que,


nd

a Comissão começaria a percorrer as províncias do Ceará, Piauí,


ve

Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, reunindo neste


esforço grande quantidade de espécimes e de informações.
à

Apesar disto, a Comissão seria ridicularizada no Ceará e na


á
st

Corte, atacada nos jornais e no Parlamento pela sua má con-


le

duta e desperdício do dinheiro público, terminando apelidada


de ‘Expedição Defloradora’ e ‘Comissão das Borboletas’. Quase
a

todas as suas coleções seriam dispersas e perdidas, metade dos


in
ig
or

das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-(Doutorado em História)


— UFRJ, Rio de Janeiro, 2005. cap. VIII.
29 Veja-se, por exemplo, o ataque de Manoel Ferreira Lagos à obra de Castelnau na
O

Revista do IHGB, suplemento ao Tomo XVIII, 1855, p. 28.


30 REVISTA DO IHGB. Rio de Janeiro: IHGB, Tomo XIX, 1856.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 67

ay
seus relatórios científicos nunca foi publicada e parte destes
acabaria censurada, omitindo-se mesmo a questão da seca de

Pl
seus preâmbulos e nem sequer o IHGB retornaria ao problema –

le
Como entender este desfecho?

g
O objetivo inicial da Comissão era observar a desertificação

oo
de certas áreas do Norte e estudar o melhor aproveitamento dos

G
seus recursos hídricos pela identificação das áreas onde melhor
conviesse o recurso à construção de grandes açudes, represas ou

no
de um sistema de poços artesianos, bem como de canais desti-
nados à irrigação dos campos. Buscava-se investigar as causas

e
da seca, estabelecer uma regularidade do fenômeno e a viabi-

on
lidade de se reflorestar a área. Entendia-se então que o Ceará
az
era a área mais atingida, deplorando-se a decadência provo-
cada pelo abandono da lavoura nessa província. Nos relatos dos
Am

sócios do Instituto, equiparava-se essa área a Argélia e ao Egito,


explicando-se assim ter a Expedição recorrido a experimentos já
na

testados nesses locais, daí, dentre outras providências, a ideia de


aparelhar militarmente a Expedição e a de utilizar dromedários
a

como meio de transporte, mandando-os trazer, junto com seus


nd

tratadores do norte da África.31


ve

Mas, na medida em que a Comissão Científica cumpria suas


funções, suas conclusões passavam a apontar o problema político
à

como o fato amplificador dos problemas atribuídos à seca: des-


á

caso público e mau emprego dos recursos técnicos, estes eram


st

os verdadeiros problemas da região aos olhos dos exploradores.


le

Tais críticas aos políticos provinciais e ao Governo imperial


a

colidiam com uma composição entre ambos que se fazia repre-


in

sentar em torno dos interesses comuns, que se explicitava por


ig
or

31 Ver: As bases das instruções para a Comissão Científica de Exploração. Revista do


IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, p. 70, 1856. Suplemento e Contribuições para as
O

instruções da Comissão Científica de Exploração. Revista do IHGB, Rio de Janeiro;


Tomo XIX, p. 76-82. 1856. Suplemento.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
68 Cartografias Imaginárias

ay
meio do uso de uma linguagem compartilhada e de um discurso
daí originado. Assim, se determinado argumento tal como a

Pl
metáfora da seca foi utilizado para fazer valer um sentido dife-

le
renciado de inserção no espaço nacional, era justamente porque

g
os interesses envolvidos precisavam ser harmonizados num

oo
saber sobre o espaço que se reconstituía constantemente, defi-
nindo domínios, estabelecendo fronteiras e articulando respon-

G
sabilidades – o pensar o espaço se constituiu a partir de uma

no
verdadeira tensão que era reelaborar permanentemente o acordo
sobre o espaço e sua territorialização com a subsequente afirma-

e
ção dos lugares de subalternidade.

on
az
Conclusão
Am

Constituídos todos os termos da história do espaço nacio-


nal, Varnhagen articularia a partir deles a sua ‘História Geral do
na

Brasil’, inclusive cuidando de utilizar a cartografia para ilustrar a


nova representação do Tratado de Tordesilhas, influenciando toda
a
nd

uma linhagem de narradores como Capistrano de Abreu (veja-se,


por exemplo, em seu ‘Capítulos de História Colonial’, a ‘Formação
ve

dos limites’), Pandiá Calógeras e o Barão do Rio Branco.


à

Por sua vez, separadas as tarefas do projeto historiográfico e


á

geográfico, a SENE cuidaria de manter a prerrogativa de produ-


st

zir os mapas que haveriam de representar a imagem da Nação,


le

tomando a antiga ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’ de


Conrado Jacob Niemeyer como modelo. Todas as Cartas Gerais
a
in

do Império seriam compostos a partir dos materiais resgatados


ig

ou produzidos pelo IHGB e pela SENE, por meio de uma bri-


or

colagem que permitia ao Governo tanto resguardar e explicitar


suas posições quanto continuar a participar do projeto centrado
O

no Instituto.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 69

ay
Os mapas tornar-se-iam menos um instrumento científico
que uma superfície de escrita, um avatar da Nação que tinha

Pl
de ser continuamente atualizado a partir dos insumos externos,

le
de modo a se poderem contrapor respostas às representações

g
concorrenciais que se faziam do território nacional e a melhor

oo
figurarem no lugar central das Exposições Universais em que o

G
Brasil participaria, emoldurando com sua presença nossas con-
tribuições a essas ‘Vitrines da Civilização’. Metáforas da cons-

no
trução continuada de nosso projeto de Nação, também as Cartas
Gerais, no contato com seus congêneres europeus, expunham às

e
nossas elites os limites de sua invenção, do mesmo modo como

on
foi impossível tirar do mármore um Lacoonte a gritar, ficava
az
explicitada por essa visão de fora a subalternidade e soía retornar
para dentro do espaço da Nação a sua pedagogia.
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
70 Cartografias Imaginárias

ay
Carta Corográfica do Império do Brasil

Pl
g le
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a

Fonte: NIEMEYER (1847)


nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 71

ay
Pl
A lógica do sentido do espaço da Nação:

g le
a produção do espaço da Nação e das protorregiões no

oo
Terceiro Conselho de Estado (1842-1848)

G
no
A proposta deste texto é trabalhar a ideia de que a tarefa de

e
produção do espaço da Nação no IHGB e na SENE se desen-
volveu em meio a certas dinâmicas, mecânicas e tensões, cujas

on
demandas implicaram na cognição de direções no espaço da
az
Nação, e, no discernimento de suas partes, as protorregiões ‘Sul’
Am

e ‘Norte’.
Entendemos ser possível trabalhar este problema a partir da
na

utilização da ‘metáfora do teatro’, com a identificação dos ‘pal-


cos’ de produção do espaço (o IHGB, a SENE, etc.) e de um
a

‘teatro’ que os reunia através da promoção de um ‘dispositivo


nd

de interlocução’, a lógica do sentido daquilo que era produzido e


daqueles que a produziam. No caso, para que o teatro de cons-
ve

trução do espaço da Nação existisse, pressupunha-se o enten-


à

dimento recíproco de sua importância e o acordo para que este


se firmasse continuamente como lugar de entendimento e per-
á
st

tencimento recíproco, onde o que fosse produzido se manifes-


le

tasse como objeto de elucubração, representação, repetição e


disseminação.
a
in

Pretendemos explicitar esta ideia por meio do estudo do


ig

Conselho de Estado, um dos palcos de produção que, junto


or

com o IHGB e a SENE, formavam o teatro de construção do


espaço da Nação no Segundo Reinado.
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
72 Cartografias Imaginárias

ay
O estudo do Conselho de Estado justifica-se mesmo em
razão do problema que é o estudo do Estado brasileiro no Segundo

Pl
Reinado, seja pela importância excepcional que essa instituição

le
política possuía como um lugar de construção e afirmação do

g
pensamento parlamentar, seja pelo pertencimento noutros pal-

oo
cos de produção do espaço, seja por conta da influência, cres-
cente no período estudado, sobre as ações do Estado e o fun-

G
cionamento cotidiano da Secretaria dos Negócios Estrangeiros.

no
Em razão desta complexidade e de certas particularidades de
nosso objeto de estudo a serem explicitadas, procuramos cir-

e
cunscrever este estudo a uma das seções que compunham o

on
Conselho de Estado, no caso, a ‘Seção de Negócios da Justiça e
az
dos Estrangeiros’ (doravante referida como SJNE) e ao período
entre 1842 e 1848, balizamento temporal que possibilita com-
Am

parar a produção do espaço no Conselho de Estado com as dis-


cussões ocorridas no IHGB. Assim, entendemos que esta abor-
na

dagem permite contribuir para o grande debate a respeito do


verdadeiro peso político do Conselho de Estado, debate este que
a

se iniciou ainda no século XIX a partir de várias análises de cará-


nd

ter administrativo e jurídico, como, por exemplo, aquelas feitas


ve

pelo Marquês de São Vicente em Direito Público Brasileiro e Análise


da Constituição do Império ou por Zacarias de Góes e Vasconcelos
à

em Da natureza e limites do Poder Moderador, encontrando continui-


á

dade nas obras de autores mais tardios como Tavares de Lyra,


st

José Honório Rodrigues e José Murilo de Carvalho.


le

Nosso estudo foi feito a partir das atas da SJNE, uma das
a

quatro seções que compunham o Terceiro Conselho de Estado32


in
ig
or

32 Em relação à denominação de ‘Terceiro Conselho de Estado’, utilizamos aqui a


distinção terminológica iniciada por José Honório Rodrigues que considerava o
Conselho de Procuradores de 1822-1823 e o Conselho de Estado de 1823-1834,
O

como, respectivamente, Primeiro e Segundo Conselhos. Ver RODRIGUES, José


Honório. Conselho de Estado: o quinto poder? Brasília: Senado Federal, 1978.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 73

ay
desde sua constituição (as outras seções eram a de Negócios do
Império, de Negócios da Fazenda e de Negócios da Guerra e da

Pl
Marinha). A favor dessa aproximação se torna necessário argu-

le
mentar contra a ideia comum de que o exame das atas das seções

g
possibilitaria apenas uma amostra muito reduzida do pensa-

oo
mento do Conselho de Estado tanto pelo pequeno número de
componentes das seções em relação ao Conselho Pleno quanto

G
pela fixidez organizativa das seções, que as subordinaria à orga-

no
nização mesma do Conselho.

e
No caso, o Conselho de Estado podia ser integrado por até
24 conselheiros, os quais eram escolhidos em caráter vitalí-

on
cio pelo Imperador dentre os mais proeminentes membros da
az
classe política do Império. Até 12 desses conselheiros podiam
ser nomeados como membros ordinários do Conselho e outros
Am

12 como membros extraordinários, sendo que os primeiros


diferenciavam-se dos segundos pela possibilidade de poderem
na

ser dispensados de suas funções por tempo indefinido, cabendo


aos membros extraordinários suprir dispensas, impedimentos
a

ou obedecer a determinadas convocações. Contudo, o total de


nd

conselheiros nunca chegou aos 24 previstos, tendo seu número


ve

médio oscilado durante o período de existência do Conselho


em torno de apenas 16, sendo que, no período estudado (1842-
à

1848), a SJNE nunca possuiu mais de três integrantes.


á
st

Ainda, coloca-se que o trabalho das seções dependia de con-


le

sultas prévias que lhes eram endereçadas pelo Ministro de Estado


a cujo ministério a Seção estivesse relacionada, e a este Ministro
a

a Seção deveria oferecer um parecer que formalmente era apenas


in

circunscrito ao âmbito da consulta imperial, ou seja, oferecia-se


ig

ao Imperador um parecer que poderia ser acompanhado ou rejei-


or

tado. Para que esse parecer fosse elaborado, o ministro deveria


O

encaminhar à Seção correspondente uma minuta da consulta e


O original está à venda na Amazon e no Google Play
74 Cartografias Imaginárias

ay
designar dentre seus membros um Relator dentre os membros
da Seção, cabendo também ao Ministro presidir a reunião na

Pl
qual este parecer fosse debatido.

le
Contra isso, é preciso esclarecer que o chamado Conselho

g
Pleno se compunha pela reunião das Seções e que, portanto, a

oo
ação destas é que condicionava o funcionamento do Conselho

G
de Estado e ainda, que as Seções não eram de todo carentes
de iniciativa, podendo se reunir sem convocação para propor

no
ações dentre os assuntos que lhes eram relativos. Note-se que o

e
Ministro de Estado oferecia a minuta a ser considerada e presi-
dia a reunião de discussão, mas não tinha direito de veto sobre o

on
parecer, devendo considerar mesmo as opiniões discordantes da
az
maioria já que a minoria podia elaborar um ou mais parecer em
separado ao do Relator.
Am

Na prática, pudemos observar que a presença dos conselhei-


ros nas reuniões secionais e mesmo o seu pertencimento eram
na

bastante transitórios, fruto de uma mecânica de suplência ofi-


a

ciosa que foi adotada no Terceiro Conselho de Estado à margem


nd

do regimento. Assim, torna-se possível pensar as mudanças na


composição da SJNE dentro de um contexto de estratégias e/ou
ve

alianças que refletiam não só as transições de poder ou a predo-


minância de determinada corrente de pensamento político, mas
à

também a importância da Seção relativamente ao conjunto do


á
st

Conselho.
le

Por outro lado, observamos que se tornou comum reunirem-


-se outras Seções à SJNE, fazendo, deste modo, quase triplicar
a
in

em várias ocasiões o número formal de seus membros. Muitas


ig

vezes, inclusive, o número de conselheiros que participavam


or

das reuniões conjuntas com a SJNE ultrapassava o quantitativo


necessário à reunião do Conselho Pleno (eram necessários sete
O

conselheiros em exercício efetivo para que este se reunisse)


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 75

ay
deixando antever a projeção e o peso que teriam as discussões
ali travadas, se não bastasse o fato de que, em grande parte do

Pl
período estudado, os partidos estivessem representados direta-

le
mente na SJNE por seus líderes. Portanto, por conta de todas as

g
observações anteriores, as atas da SJNE possuem a vantagem de

oo
ser um material de análise, não apenas do pensamento político,
mas também das práticas do Terceiro Conselho de Estado e da

G
elite política do império.

no
Nesse sentido, também é possível balizar a influência e poder

e
da SJNE em relação a alguns dos ministérios a ela afetos, bem
como a reunião e o desenvolvimento das ideias que influíram

on
na construção do espaço nacional e nortearam as iniciativas de
az
política externa, inclusive através do estudo da precedência e
da importância que certos problemas ou materiais de consulta
Am

tiveram em relação aos demais porquanto uma das questões que


podem ser colocadas a partir desta pesquisa diz respeito ao real
na

poder do Conselho de Estado no Império.


a

Considerando que o Conselho de Estado foi constituído no


nd

decorrer da luta política que sinalizou a adoção da centraliza-


ção e da recuperação do Poder Moderador quando do chamado
ve

Regresso Conservador, a constituição inicial da SJNE tenderia


a refletir a predominância do Partido Conservador assim como
à

as suas sucessivas formações espelhariam a adesão do Partido


á
st

Liberal às regras do poder e sua importância no jogo político.


le

Conquanto essa formulação possa ser considerada verdadeira no


geral, já que no início do período estudado todos os membros
a

da SJNE pertenciam ao Partido Conservador ou a este eram sim-


in

páticos, o concurso de liberais à Seção foi muito tardio, dando-


ig

-se somente a partir de 1847.33 Mais, ainda que o problema da


or
O

33 Miguel Calmon du Pin e Almeida (Marquês de Abrantes) integraria a Seção a partir


de 1847 e Antônio Paulino Limpo de Abreu (Visconde de Abaeté) a partir de 1848.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
76 Cartografias Imaginárias

ay
influência dos partidos na tomada de decisões do Conselho de
Estado seja no mínimo discutível, haja vista que alguns autores

Pl
defendem mesmo uma independência tradicional dos conselhei-

le
ros em relação aos partidos,34 alguns dados desta pesquisa per-

g
mitem somar algumas reflexões à questão.

oo
Primeiramente, notamos que o predomínio conservador na

G
composição da SJNE foi contrabalançado, especialmente nos
anos de governo liberal (1844-1848), por meio de um meca-

no
nismo de suplência e de reunião das Seções que permitiu a pre-

e
sença de integrantes do Partido Liberal e, inclusive, dos líderes
dos dois partidos, na maioria das reuniões da SJNE.35

on
Em segundo lugar, e o que não é de modo algum novidade,
az
observamos que certos posicionamentos são mais comuns den-
Am

tre os membros de um partido do que no outro, mas, não iden-


tificamos em nenhuma das cento e quinze atas analisadas uma
oposição estrita entre membros dos dois partidos.
na

Em terceiro lugar, atentamos que o pensamento sobre o


a

espaço na SJNE foi construído mais através do debate e da apre-


nd

sentação de certas correntes de pensamento que estavam repre-


ve

sentadas no Parlamento e que perpassavam os dois partidos polí-


ticos do que por uma suposta independência dos conselheiros.
à

Em quarto lugar, os resultados de nossa pesquisa se contra-


á

põem à ideia de que a política externa era o ponto de consenso


st

entre os partidos,36 uma vez que, apesar do predomínio absoluto


a le
in

34 Veja-se, por exemplo, CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras: a política
imperial. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. p. 110-111.
ig

35 Verifica-se através desse mecanismo de suplência, a presença nas votações da SJNE


or

dos seguintes liberais: Antônio Paulino Limpo de Abreu (Visconde de Abaeté),


Francisco de Paula Sousa e Melo, Manuel Alves Branco (2º Marquês de Caravelas) e
José da Costa Carvalho (Marquês de Monte Alegre).
O

36 Alguns autores defendem ter havido “Conciliação” em política externa, decorrente


da consciência nacional e que teria precedido a conciliação interna, veja-se, por
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 77

ay
dos conservadores na Seção durante grande parte do período
pesquisado, o exame das Atas dá conta de um alto percentual de

Pl
discordâncias nas reuniões da Seção, em alguns anos apontando

le
praticamente o ponto de ruptura, conforme podemos apreciar

g
na Tabela 1.

oo
G
Tabela 1 - Divergências e convergências nas consultas da SJNE (1842-1848)

no
Ano Divergências Convergências % de Divergências

1842 0 7 0%

e
1843 3 2 60%

on
1844 7 11 39%
1845 8 18 31%
az
1846 15 28 35%
Am

1847 1 11 8%
1848 3 1 75%
Total 37 + 78 = 115 32%
na
a
nd

Observe-se que os anos de 1843 e 1848 são os que apresen-


tam o maior número de divergências no período, mas sucedendo
ve

aos anos de maior convergência e, ao mesmo tempo, de menor


número de consultas à SJNE.
à
á

Num primeiro momento de análise, sabe-se que o mês


st

de setembro de 1848 marca a retomada do governo pelos


le

Conservadores, marcando o fim de um período de grande ins-


tabilidade na Secretaria de Negócios Estrangeiros, quando cinco
a
in

titulares exerceram o ministério em menos de dois anos.37 Ao


ig
or

exemplo: CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as Relações Exteriores


(1826-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 11.
O

37 Passaram pela pasta dos Negócios Estrangeiros, de janeiro de 1847 até setembro de
1848, os seguintes ministros: Bento da Silva Lisboa (2º Barão de Cairu), Saturnino
O original está à venda na Amazon e no Google Play
78 Cartografias Imaginárias

ay
mesmo tempo, 1849 será o ano em que o Brasil começa a abando-
nar a estrita neutralidade no Prata e passa ao intervencionismo,

Pl
enquanto que se resolve pelo término do Tráfico de Escravos.

le
Nesse sentido, muitas vezes se tem argumentado, como exem-

g
plos de um diferencial entre os partidos em política externa,

oo
que a neutralidade e o fim do Tráfico foram defendidos com
mais afinco pelos liberais, enquanto que os conservadores eram

G
partidários do intervencionismo e da manutenção do Tráfico.

no
Entretanto, por que não se opuseram antes estes dois grupos na
SJNE, se ali estiveram representados os seus líderes e se este era

e
o lugar por excelência de discussão da política externa? Por que

on
o ano de 1847 apresentou apenas 8% de divergências? Por que
az
rareiam ainda as consultas a SJNE entre 1846 e 1848?
Para poder explicar tais fatos, mais o elevado quantitativo de
Am

divergências nos anos anteriores a 1847, seria necessário que


se aceitasse a existência de grupos, ou melhor, de correntes de
na

pensamento que se sobrepusessem aos partidos e que houvesse


alguma concorrência entre essas correntes. Acessoriamente, para
a

se explicar a diminuição abrupta das consultas à SJNE (90,7%


nd

entre 1846 e 1848) seria preciso que alguma mudança no rela-


ve

cionamento com a Secretaria dos Negócios Estrangeiros a impu-


sesse, já que esta decorreria da iniciativa ministerial.
à

Num segundo momento de análise, note-se que, entre 1842


á
st

e 1843, existe, na SJNE, um aumento no quantitativo de diver-


le

gências da ordem de 60%, ainda que, nesse momento, a predo-


minância conservadora fosse quase que absoluta. Neste raciocí-
a

nio, poder-se-ia entender este incremento como um indício de


in

que uma nova corrente de pensamento tivesse obtido represen-


ig

tação na SJNE, mesmo que formalmente não se tivesse alterado


or
O

de Sousa e Oliveira, José Antonio Pimenta Bueno, Antônio Paulino Limpo de Abreu
e Bernardo de Sousa Franco.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 79

ay
sua composição. Portanto, seria necessário que os mecanismos
de suplência e de reunião das seções do Conselho de Estado,

Pl
em função de algum arranjo interno, fossem os responsáveis por

le
esta mudança.

g
Examinando as Atas da SJNE, observa-se que novos conse-

oo
lheiros passaram a integrar as reuniões da Seção a partir desse

G
período, sendo que um destes, Bernardo Pereira de Vasconcelos,
se engajaria muito mais profundamente e com maior assiduidade

no
que os demais: Vasconcelos participou de praticamente todas as

e
reuniões da Seção até 1848, sendo que se pode traçar um esboço
dessa trajetória através dos dados organizados na Tabela 2.

on
az
Tabela 2 - Relatores das consultas da SJNE (1842-1848)
Am

Relatores 1842-45 1846-48 Total


Bernardo Pereira de
na

23 (41%) 37 (63%) 60 (52%)


Vasconcelos
Caetano Maria
14 (25%) 10 (17%) 24 (21%)
a

Lopes Gama
nd

Honório Hermeto
7 (13%) 8 (14%) 15 (13%)
Carneiro Leão
ve

José da Costa
7 (13%) 7 (6%)
Carvalho
à

José Cesário de
1 (2%) 1 (1%)
Miranda Ribeiro
á

Miguel Calmon du
st

2 (3%) 2 (2%)
Pin e Almeida
le

Antônio Paulino
2 (3%) 2 (2%)
Limpo de Abreu
a

Desconhecido 3 (5%) 3 (3%)


in

Total 56 (49%) 59 (51%) 115


ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
80 Cartografias Imaginárias

ay
A partir do exame da Tabela 2, podemos perceber que
Vasconcelos foi o relator de nada menos que 52% das consultas

Pl
no período 1842-1848, número este que sobe para 56% se con-

le
sideramos apenas a partir de 1843, quando Vasconcelos começa

g
a participar das reuniões da SJNE. Entre 1846-1848, Vasconcelos

oo
exerceria a função de relator em 63% das consultas, um número
impressionante, ainda mais se for considerada a sua progressiva

G
decadência física. Paralelamente a este engajamento progressivo

no
de Vasconcelos na Seção, passam a se reduzir as ocasiões em que
o D. Pedro II restitui a matéria de consulta ao exame do Conselho

e
Pleno,38 o que provavelmente é um indicador tanto do maior

on
prestígio da Seção como do alcance dos argumentos do Relator.
az
Neste processo, pode-se observar ainda uma mudança paula-
tina no relacionamento da SJNE com a SENE que irá se caracteri-
Am

zar pelo esvaziamento das funções diretivas e administrativas da


SENE e pela transferência de parte destas para a SJNE. Tais ocor-
na

rências desmentem a ideia de que o Conselho de Estado possui


apenas uma função consultiva e demonstram que efetivamente a
a

SJNE se torna um dos principais agentes da política externa bra-


nd

sileira transubstanciando o pensamento sobre o espaço ali pro-


ve

duzido em ação sobre o território enquanto política de Estado.


Ao iniciar as suas atividades, em 1842, a postura da SJNE
à

em relação à SENE era ainda a de mero organismo consultivo


á
st

e observador, sendo seus relatórios, então, praticamente inócu-


le

os.39 O começo dessa transformação já ser detectado em 1844,


quando os pedidos de instruções dos diplomatas estrangeiros
a
in
ig
or

38 REZEK, José Francisco. Prefácio do segundo volume. Conselho de Estado: 1842-


1889 - Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (v. II: 1846-1848). Brasília:
Câmara dos Deputados, p. 14.
O

39 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


11/03/1842.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 81

ay
passam a ser encaminhados pela SENE à SJNE,40 prosseguindo
pela emissão de pareceres que efetivamente instruem o início da

Pl
reorganização do serviço diplomático brasileiro, introduzindo os

le
princípios do mérito e da competência para a admissão na car-

g
reira diplomática e, mais importante, vinculando a demissão do

oo
pessoal da SENE à chancela e julgamento da SJNE.41 Já a partir
de 1845, também as instruções aos diplomatas seriam minucio-

G
samente fornecidas pela SJNE,42 que passaria também a opinar

no
mesmo sobre questões triviais do funcionamento da SENE, tais
como gratificações, emolumentos e regulamentos consulares.43

e
A mudança na interação entre os dois órgãos se tornaria

on
ainda mais aguda entre os anos de 1846 e 1847, quando a própria
az
estrutura da diplomacia do Império passaria a ser organizada a
partir de regulamentações e modificações urdidas no âmbito da
Am

SJNE. 44 Neste período também se elevou o tom das discussões


sobre estratégia, relações externas e o espaço nacional, e, sinto-
na

maticamente, Bernardo Pereira de Vasconcelos serviu como rela-


tor em praticamente todos os pareceres onde se alterou substan-
a

cialmente o poder e a influência da SJNE sobre a SENE.


nd

Portanto, constata-se que o engajamento de Vasconcelos


ve

coincide com uma mudança progressiva no relacionamento da


Seção com a Secretaria e poder-se-ia aventar que representaria a
à
á
st
le

40 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


28/06/1844.
a

41 Passariam a ser exigidas a fluência nas línguas francesa e inglesa, o conhecimento da


in

Geografia e da História do Brasil e do Direito. CONSELHO DE ESTADO. Seção de


Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas..., 10/07/1845.
ig

42 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


or

30/07/1845.
43 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
09/03/1847, 06/05/1847, 18/10/1847, 27/09/1848 e 13/12/1848.
O

44 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


11/02/1846 e 18/10/1847.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
82 Cartografias Imaginárias

ay
ascensão e o predomínio de uma determinada corrente de pen-
samento sobre o espaço no Conselho de Estado.

Pl
Em 1842, no Conselho de Estado, a principal corrente de

le
pensamento sobre espaço afirmava-se em torno das ideias da

g
afirmação da soberania e da construção econômica da nação,

oo
cujas origens derivavam da discussão dos problemas decorren-

G
tes dos tratados de comércio firmados nas décadas de 1820 e
1830. A maioria dos conselheiros entendia então que convinha

no
sacrificar parte da soberania em razão da grande necessidade de

e
capitais e de população que somente poderia ser satisfeita pela
imigração. Nesse período, embora houvesse quem defendesse a

on
reciprocidade e o fim dos privilégios,45 os pareceres foram, em
az
geral, complacentes em relação aos interesses dos países euro-
peus. No que diz respeito ao espaço nacional, a SJNE, como o
Am

restante do Conselho de Estado, reconhecia então desconhecer


o território da nação e seus limites, pelo que, então, passava-se a
na

justificar a recusa em celebrar tratados com os países limítrofes.


a

A partir de 1843, com Bernardo Pereira de Vasconcelos,


nd

começa a se consolidar um entendimento que passa a identifi-


car os interesses comerciais das potências mais com o engran-
ve

decimento de seu poder marítimo e militar, entendendo serem


estes negativos aos interesses nacionais.46 Defende-se especial-
à

mente uma nova relação do Brasil com as potências europeias:


á
st

os acordos que forem celebrados com estes países deveriam pos-


le

suir compensações reais e condições iguais para o país, jamais


tolhendo as iniciativas do Legislativo “na adoção de medidas
a

apropriadas ao desenvolvimento da indústria, bem-estar e pros-


in
ig
or

45 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


04/11/1842 e pareceres anexos de 20/12/1842 e 11/07/1843.
O

46 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


18/09/1843.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 83

ay
peridade do Brasil” (ATAS..., 1844a). Embora de certo modo essa
ideia já estivesse presente na repulsa aos tratados de comércio,

Pl
naquelas discussões ainda não era decisivo o argumento con-

le
correncial com os interesses da Nação. Este entendimento irá,

g
doravante, constituir o cerne de um pensamento da identidade

oo
nacional que se formará na Seção, ao qual será agregada a com-
preensão de um espaço que é remetido ao legado da metrópole

G
e que reflete as discussões das variáveis externas no Parlamento.

no
A animosidade contra a Inglaterra é um dos vetores dessa

e
produção, que contrapõe o estrangeiro ao nacional e onde se
advoga a resistência e a exaltação dos valores e instituições.47

on
Neste sentido, passa-se a identificar o nacional e a política
az
externa brasileira no legado das tradições portuguesas, resul-
tando, portanto, em considerar opostos ao Brasil todos aqueles
Am

que habitam as antigas colônias hispânicas, uma vez que são


considerados indistintamente espanhóis e possuidores de uma
na

rivalidade intransponível e rancorosa contra os portugueses.48


A antiga impressão portuguesa das fronteiras naturais é inter-
a

pretada então nesse contexto: recupera-se, por exemplo, a ideia


nd

da reincorporação da Cisplatina, que pertencera ao Brasil por


ve

“livre e espontânea vontade” e do qual fora separado graças ao


Imperador D. Pedro I ter cedido aos impulsos dos “sentimentos
à

liberais e generosos do seu coração.” (ATAS..., 1844b). 49


á
st

A essa argumentação irá contrapor-se outra corrente de pen-


le

samento, cujo maior expoente identificamos em Caetano Maria


a
in

47 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


23/02/1844.
ig

48 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


or

02/07/1844.
49 A ideia da independência da antiga Província Cisplatina nunca foi bem aceita por
determinados setores das elites. José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de
O

São Leopoldo, único Conselheiro de Estado a ser exonerado em toda a história do


Império, deveu sua exoneração justamente aos desdobramentos desse episódio.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
84 Cartografias Imaginárias

ay
Lopes Gama. Esta corrente era favorável a uma aproximação e
identificação com a Europa, culpando as divisões políticas e o

Pl
mau estado das finanças públicas pela situação nacional. Essa

le
fraqueza conjuntural fatalmente levaria à agressão externa e

g
ao consequente esfacelamento do território, tornando urgente,

oo
por conseguinte, incentivar e acelerar reformas internas que, ao
mesmo tempo, servissem para fortalecer a autoridade central e

G
proteger a propriedade. Essa corrente de pensamento conside-

no
rava ainda o tráfico de escravos como um elemento retardador
da indústria e da riqueza nacional, por inibir a imigração euro-

e
peia e inviabilizar o crescimento da população livre e o entendi-

on
mento com a Inglaterra.50 A continuação do Tráfico, além de esti-
az
mular a mistura de raças, poderia ser a ruína da Monarquia e das
elites, “o Cavalo de Tróia” que traria para o Brasil “os defensores
Am

das instituições do Haiti.” (ATAS...,1846). Quanto ao espaço


nacional, a região do Prata, por motivos políticos e econômicos,
na

era considerada prioritária e a intervenção, seja diplomática ou


militar, era advogada como um instrumento necessário, salien-
a

tando-se, porém, para essa ação, a necessidade do entendimento


nd

e mesmo do alinhamento do Brasil com a Europa.


ve

Diferentemente da argumentação de Lopes Gama, o pensa-


mento explicitado por Vasconcelos era pragmático, pois defendia
à

a neutralidade do Brasil nos conflitos do Prata ou na Amazônia


á

como um instrumento ditado pela ocasião para que se acumu-


st

lassem as forças materiais necessárias para um futuro confronto,


le

posto que fatal. A própria escravidão, se não o Tráfico, eram con-


a

siderados inevitáveis em função de um contexto que incluía a


in

falta de braços para a agricultura; as dificuldades na criação de


ig

leis para a venda de terras e imigração de colonos e pelo apoio


or
O

50 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


28/06/1844.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 85

ay
que o Tráfico possuía por parte das elites produtoras tanto no
próprio Parlamento quanto no nível local que, por conta da dire-

Pl
ção da eleição dos juízes de paz, garantia uma tolerância com-

le
pleta ao tráfico, especialmente nos locais de desembarque.51

g
O desconhecimento do espaço nacional não impedia que as

oo
visões dessas duas correntes de pensamento convergissem em

G
certos pontos. Os limites de 1777 eram rejeitados por ambas as
correntes,52 uma postura calculada para possibilitar uma futura

no
expansão brasileira, tanto pela interpretação que davam ao ins-

e
trumento jurídico do Uti Possidetis, tido como circunstancial e
positivo, quanto pela identificação com o antigo pensamento

on
estratégico português que priorizava a consolidação de posi-
az
ções em lugar de ocupação do território. A fronteira não era
entendida, portanto, como um limite reconhecido, delimitado
Am

e verificado, mas como um espaço granular, distendido e pro-


jetável. Entretanto, um dos motivos de distanciamento entre
na

as duas visões era a ideia de Vasconcelos de que os tratados


com os países vizinhos seriam possíveis na medida em que,
a

no interesse nacional, projetassem ou resguardassem a influ-


nd

ência brasileira. Nesse raciocínio, a SJNE, sob a liderança de


ve

Vasconcelos, tomaria a iniciativa de propor um Tratado de ami-


zade, comércio, navegação e limites com o Paraguai,53 assim
à

como a negociação de limites com a Venezuela, a fim de se


á
st
ale
in

51 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


ig

10/10/1846.
or

52 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros.


Atas..., 23/06/1845.
53 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
O

25/06/1845, note-se que não estavam presentes à reunião os representantes da posi-


ção contrária.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
86 Cartografias Imaginárias

ay
diminuir a pressão britânica e impedir a expansão territorial
daquela potência na Amazônia.54

Pl
Ainda uma terceira corrente de pensamento estaria também

le
representada na SJNE e tendo como maior expositor Francisco

g
de Paula Sousa e Melo. Para essa corrente, a neutralidade não era

oo
apenas uma condição para o crescimento do Brasil, mas como a

G
única postura possível diante da constatação da pouca impor-
tância do país nos cenários americano e mundial e dos insuces-

no
sos recentes e passados. Dadas estas condições, cabia ao Brasil

e
construir com os seus vizinhos as condições de convivência e
prosperidade material, inclusive no respeito ao território. Para

on
que fosse possível a resistência às pressões externas era ainda
az
necessário abrir novas vertentes diplomáticas, especialmente
estreitando-se as relações com os Estados Unidos e a Rússia,
Am

vistos como nações cujos interesses coincidiam com os do Brasil


e que seriam possuidores de peso e influência sobre a política
na

externa da Inglaterra.55 Ainda que esta corrente tenha origens


no movimento parlamentar antitratadista cujas ideias esposou e
a

defendeu, a Inglaterra não era vista como um concorrente, mas


nd

antes como um exemplo a ser copiado e um país com o qual o


ve

Brasil devia buscar a colaboração e o entendimento. De certo


modo, procurar-se-ia elaborar um pensamento que privilegiasse
à

as relações comerciais em lugar da diplomacia estrita e, por-


á

tanto, nesta ótica se considerava imperativo superar as dificul-


st

dades que a última traria à primeira.


le

As variáveis da política externa teriam também grande influ-


a

ência na produção do espaço e no desenvolvimento das tensões


in
ig
or

54 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


06/10/1846.
O

55 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


23/12/1845 e 23/06/1845.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 87

ay
e das relações entre as três correntes de pensamento. O aumento
das pressões inglesas correspondeu à tendência de aproximação

Pl
entre as correntes na SJNE. Por exemplo, entre novembro de

le
1844 e janeiro de 1845, produziu-se uma série rara de decisões

g
unânimes contra as posições inglesas, sobretudo no tocante

oo
às Comissões Mistas. Refletindo essa inclinação, a argumenta-
ção dos pareceres relativos à extinção das Comissões Mistas se

G
constituiria, em grande parte, no amálgama das principais ideias

no
esposadas pelas correntes. Seriam invocadas em sua defesa,
tanto a obstrução do comércio, quanto a soberania e a falta

e
de braços para a agricultura. Construção semelhante também

on
embasaria o progressivo abandono da ideia de neutralidade no
az
Prata – a necessidade de evitar o engrandecimento argentino,
evocada como um legado da estratégia portuguesa, misturava-
Am

-se numa argumentação que incluía o temor da possibilidade de


intervenção externa e fracionamento do território nacional e até
na

mesmo a concorrência comercial sofrida pelo Brasil.


O exercício dessas dinâmicas permitiria evitar o rompimento
a

de relações com a Inglaterra, o que chegou a ser posto em dis-


nd

cussão em determinados momentos, bem como lograria impedir


ve

o engajamento precoce no Prata. Ainda que não se consolidas-


sem as alternativas de Vasconcelos ao Tráfico56 e a estratégia do
à

Conselho de Estado fosse limitada pela incapacidade de reação


á

às agressões inglesas,57 o crescente isolamento frente às posições


st

europeias levaria à produção de um ideário nacionalista por meio


le

da identificação com o legado da Metrópole e com a afirmação e


a

diferenciação da Nação no cenário americano e mundial: o Brasil


in
ig
or

56 Através, por exemplo, e de acordo com o Zollverein ou da imigração chinesa.


Ver CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
17/03/1846 e 30/05/1846.
O

57 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,


11/04/1846 e seguintes.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
88 Cartografias Imaginárias

ay
era idealizado como “o supremo árbitro dos novos Estados da
América ex-espanhola e o rival da grande potência americana

Pl
outrora colônia inglesa.” (ATAS..., 1845). Estas ideias avança-

le
riam inclusive no sentido de se diferenciarem os interesses da

g
monarquia daqueles do Estado brasileiro: as ideias de reciproci-

oo
dade de tratamento e parentesco deveriam ser substituídas pelas
do realismo político e dos interesses comerciais. Inclusive, como

G
parte deste raciocínio estaria incluído dentre os deveres que

no
cabiam aos membros do corpo diplomático brasileiro no exterior,
“influir, e até dirigir a administração em benefício de sua nação,

e
sem que, contudo, de qualquer modo a comprometa, e lhe sus-

on
cite os menores embaraços e dificuldades” (ATAS..., 1847).
az
Por conseguinte, a produção do espaço no Conselho de
Estado durante o período 1846-1848 não deve ser analisada ape-
Am

nas através da ótica do pensamento Liberal ou Conservador, mas


no conjunto dos embates de várias influências que se sublima-
na

ram na SJNE. Parte destas ideias surgiram no Parlamento ainda


no Primeiro Reinado e encontraram seu desenvolvimento origi-
a

nal no exercício das questões concretas que se apresentaram ao


nd

Segundo Conselho de Estado.


ve

O discernimento de que o espaço da Nação deveria se orien-


tar pelo acordo entre as suas partes se deu a partir do sentido
à

tomado naquelas mesmas discussões: não foi à toa que nas pri-
á
st

meiras digressões sobre a guerra com as Províncias Unidas do


le

Prata se passasse a chamar a esta de ‘Guerra do Sul’; que nas


discussões sobre as províncias açucareiras fossem estas aclara-
a

das como ‘do Norte’; e, que o estabelecimento das Faculdades


in

de Direito no Brasil contemplasse, salomonicamente - segundo


ig

a proposta de Fernandes Pinheiro, as províncias de São Paulo e


or

Pernambuco - o Sul e o Norte.


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 89

ay
A Corte passou a ser chamada de ‘Município Neutro’ em
1834, se reconhecendo o local de reunião das elites provinciais

Pl
como o centro do acordo em torno da Nação, e isto estabelecia

le
a lógica do sentido do seu espaço: suas direções no espaço e o

g
discernimento das suas partes, as protorregiões Sul e Norte.

oo
Uma das suas resultantes seria um instrumento de expansão

G
do espaço nacional flexível, o Uti Possidetis e, a recusa dos trata-
dos firmados por Portugal decorreria exatamente das vantagens

no
enxergadas nesse processo.

e
Mas, a originalidade desta lógica do sentido vai além da busca

on
de uma representação do espaço da Nação, ou ainda da recusa
dos modelos estrangeiros e da sustentação da soberania: ela
az
transtorna a busca da identidade nacional e se torna um ônus
Am

recorrente para o pensamento e a consolidação do espaço da


Nação.
na

A partir do exame das correntes de pensamento no Terceiro


Conselho de Estado, compreendemos que a produção do espaço
a

da Nação se deu em meio às tensões e dinâmicas inerentes às


nd

características dessa instituição e que estas foram determinantes


ve

para a ressignificação do pensamento de espaço produzido na


SENE e no IHGB. Por conseguinte, a ideia de ‘palco de repre-
à

sentação’ estaria minimamente caracterizada e, a sua importân-


á

cia justificada, na medida em que pudemos compreender que


st

a constituição de uma dinâmica incomum na SJNE propiciou


le

demandas e interlocuções também incomuns junto à SENE. E,


tudo isto nos permite inferir, finalmente, que a consolidação de
a
in

um ‘teatro de construção do espaço’ dependeu da articulação de


ig

um ‘dispositivo de interlocução’ e que isto foi afinado nas atua-


or

ções e elaborações dos vários ‘palcos’.


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
90 Cartografias Imaginárias

ay
Pl
Impertinentes, desinteressados ou sem escolha:

g le
a produção no IHGB de uma história dos demarcadores e

oo
das demarcações Portuguesas no Norte do Brasil

G
no
Uma das propostas de Roger Chartier no seu livro ‘À Beira da

e
Falésia’ dizia respeito à constituição de uma aproximação da his-
tória em relação à filosofia e à crítica literária a fim de criar um

on
terreno comum, “aberto à análise epistemológica”, e um método
az
de análise que pressupusesse em seu centro os “dispositivos
Am

de representação que dão a ler ou a entender os textos (ou ver


as imagens)”, de modo a “compreender como as formas mate-
riais que sustentam os discursos contribuem para a significação
na

que os diferentes leitores – ou espectadores – lhes atribuem”


(CHARTIER, 2002).
a
nd

Nosso propósito, a partir deste texto, é desenvolver essa pro-


posta a partir de uma discussão epistemológica dos dispositivos
ve

que possibilitaram a produção de uma história do espaço da


à

Nação no século XIX, considerando que a aproximação defen-


dida por Chartier pode ser feita a partir de textos literários que
á
st

já considerem também uma interlocução com a filosofia. Essa


le

abordagem visa a incrementar tanto o que Chartier chama de


‘economia da escritura’, a saber, o exame da ‘materialidade’ dos
a

textos e da ‘socialidade’ dos traços impressos nas obras; quanto


in

tornar mais apurada uma ‘economia da escrita’, no caso, por


ig

meio de melhor entender os dispositivos de representação onde


or

deslizam as ‘diferenças’ a ação dos produtores da história e a


O

produção das fontes.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 91

ay
As limitações da operação historiográfica

Pl
Como vimos anteriormente, a construção historiográfica do

le
espaço nacional no IHGB trabalhou a ideia de uma construção

g
pretérita da nação e da identidade nacional, descrevendo por

oo
meio de suas narrativas a adesão de certos indivíduos, distin-
guidos por sua nobreza e abnegação a serviço do bem comum,

G
a uma ideia de nacionalidade que imprimia mesmo o sentido

no
de suas ações. Essas ações seriam justificadas pela clarividência
mesma desses indivíduos que sabiamente articulariam por meio

e
de seus esforços a ação do estado português em direção à cons-

on
trução do território brasileiro. az
Nesse sentido, a ação dos demarcadores dos limites do
Tratado de Santo Ildefonso foi construída no IHGB justamente de
Am

modo a consolidar a ideia de que a experiência das Demarcações


conectava-se a um esforço continuado da metrópole que se teria
na

iniciado já com o Tratado de Tordesilhas e que se encontrava


então inserido numa grande estratégia da administração pom-
a

balina que, além de redefinir, guarnecer, configurar e harmoni-


nd

zar as fronteiras no período colonial possibilitava inscrever no


ve

espaço o território do Brasil antes mesmo de sua independência.


Como essa construção historiográfica se consolida a partir
à

da articulação de dispositivos de representação que constituem


á
st

a construção pretérita do espaço nacional, valer-nos-emos de um


le

dos autores literários que melhor utilizou esses dispositivos, H.


P. Lovecraft, e de um texto onde esses dispositivos foram bem
a

constituídos. Essa escolha se justifica ainda na medida em que


in

Lovecraft foi sabidamente um dos leitores de Schopenhauer e que


ig

a influência desse filósofo se faz sentir no conjunto de sua obra.


or

No livro ‘O Caso de Charles Dexter Ward’, o personagem


O

principal do livro foi descrito como um antiquário jovem e


O original está à venda na Amazon e no Google Play
92 Cartografias Imaginárias

ay
inteligente que, obcecado pelo ocultismo, renega a universidade,
mas não o interesse pelo passado e que, em meio as suas novas

Pl
atividades, descobre ser possível restaurar literalmente uma

le
parte do passado, no caso, resgatando por meio de uma evocação

g
mágica a presença material de Joseph Curwen, um antepassado

oo
seu.

G
Podemos entender essa transição de Charles rumo ao ocul-
tismo como uma metáfora da própria concepção do ‘fazer a histó-

no
ria’ que, abandonando a articulação do passado proporcionada pela

e
coleção deixa de se subordinar a um sentido do tempo e espaço
imposto pela natureza, voltando-se para uma ação de produção

on
que visava a descortinar, subverter mesmo aqueles sentidos, por
az
conta de uma imprescindível necessidade de operar o passado e
“revolucionar da maneira mais profunda a atual concepção das
Am

coisas”. Esta necessidade é bem enfatizada por Lovecraft, con-


forme podemos observar na passagem do livro na qual se informa
na

que o interesse de Charles por seu antepassado foi desencadeado


justamente a partir da leitura de um trecho do diário de Joseph
a

onde estava transcrito o seguinte versículo bíblico: “Nos anos por


nd

vir aparecerá aquele que olhará para trás e usará os sais e a maté-
ve

ria dos sais que tu lhe deixares” (JÓ 14, 14 apud LOVECRAFT,
1997).
à

Contudo, ainda que o resgate de Joseph do esquecimento


á
st

constitua uma ação verdadeiramente prometeica, a metáfora do


le

ocultismo nos relembra a irracionalidade de sua origem: o afã do


conhecimento levaria à necessidade de se encontrar e se estabe-
a

lecer um começo, o primeiro abismo, o qual obrigatoriamente


in

não poderia existir independente do demiurgo. Assim, ainda que


ig

os atributos da narração e da representação tenham sido sepa-


or

rados por Lovecraft de uma razão e de uma consequência que


O

eram operados pela ação humana, consolidar-se-ia ainda mais


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 93

ay
a mesma ordem, uma vez que se constituía uma razão divina e
insondável como fundamento primeiro a ser perscrutado ou a

Pl
ser representado por meio dessa mesma ação.

le
O primeiro indício dessa questão surge para o leitor na

g
medida em que este descobre que o antepassado de Charles,

oo
ameaçado pela perseguição às bruxas, já havia feito no passado

G
outra operação mágica de modo a garantir sua ressurreição no
futuro. Como o sucesso da ressurreição de Joseph dependia

no
exclusivamente de que a evocação fosse feita por um seu des-

e
cendente, a operação mágica de Joseph consistia mais em cons-
truir o elo entre a ressurreição e esse descendente, ou seja, sem

on
que Charles soubesse, sua participação na evocação de Joseph
az
já havia sido garantida no passado por outra operação mágica.
Note-se, nesse ponto, a articulação narrativa e representacional
Am

constituída por Lovecraft: uma primeira operação é capaz de


condicionar e mesmo constituir outras operações.
na

Quando Joseph é materializado, Charles finalmente descobre


a

a operação anterior, apresentando-se para o leitor um segundo


nd

indício da questão: o sucesso final da operação, no caso, a per-


manência de Joseph no mundo real dependia da eliminação de
ve

Charles, situação que era muito facilitada pela incrível seme-


lhança física entre os dois personagens, assim, Charles pôde ser
à

friamente assassinado por Joseph, que passaria depois a assumir


á
st

integralmente a identidade de seu descendente.


le

A assunção de Joseph seria uma metáfora da atuação dos his-


toriadores na operação de articulação dos dispositivos de repre-
a
in

sentação, o que nos permite remeter essa metáfora à observação


ig

de Schopenhauer sobre o que ele chama de paradoxo da Razão


or

de Schelling: embora esta fosse desvinculada por Schelling da


Escolástica, voltava-se para a ideia do abismo valentiniano, da
O

profundidade sem fundo, do insondável abyssus que se reproduzira


O original está à venda na Amazon e no Google Play
94 Cartografias Imaginárias

ay
pela comunhão dos princípios opostos e que se constituía como
um mistério a não ser deslindado (SCHOPENHAUER, 1981, p.

Pl
47). Por meio disto, poderíamos compreender que o tempo e

le
espaço podem ser articulados não apenas enquanto elementos

g
da narração, mas também como materiais de sua própria repre-

oo
sentação, a qual pode ser instituída como um ‘momento eterno’,
uma fração de tempo e espaço operacionalizada, vinculada por

G
seus operadores a uma produção histórica.

no
Após o assassinato de Charles, um terceiro indício se apre-

e
senta ao leitor: a semelhança de Joseph com Charles não evita-
ria o seu desmascaramento pelos amigos do antiquário, uma vez

on
que esses perceberam que o passado era por demais “evidente
az
em cada palavra e gesto” de Joseph, ou seja, eram evidentes os
resquícios da operação. Contudo, não bastava o desmascaramento
Am

para que Joseph fosse derrotado, já que a evocação reificara a pre-


sença sobrenatural do velho bruxo e essa somente poderia ser
na

contrariada por mais uma operação mágica. Disto nos alertaria


Lovecraft: “não se tratava de uma simples dissolução, mas de uma
a

transformação ou recapitulação” (LOVECRAFT, 1997, p. 171).


nd

Restou aos amigos de Charles, na presença mesma de Joseph,


ve

refazer ao contrário a primeira operação mágica, ao fim da qual, e


não sem resistência, o velho bruxo jazia “espalhado sobre o chão
à

como uma leve camada de fino pó cinza-azulado”.


á
st

Por conseguinte, a metáfora da recapitulação nos instrui


le

tanto das limitações da operação historiográfica quanto de sua


força, estabelecida pela sua própria irracionalidade constitutiva:
a
in

ao final, somente o retorno à história permitiria dissolver o pas-


ig

sado já reificado como momento eterno.


or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 95

ay
O problema das Demarcações do
Tratado de Santo Ildefonso

Pl
le
Uma vez que não desejamos alongar este texto pela discus-

g
são da produção historiográfica do espaço nacional, no século

oo
XIX, centraremos seu argumento no problema das Demarcações
do Tratado de Santo Ildefonso, antecipando já que os resultados

G
dessas foram sobrevalorizados a partir dessa operação historio-

no
gráfica, assim como procuramos perscrutar os anseios e os inte-
resses dos demarcadores, já que estes têm sido interpretados

e
usualmente no sentido de ratificar tanto os resultados quanto a

on
construção mesma do espaço nacional.
az
Em primeiro lugar, é necessário salientar que a cartografia
portuguesa, nos séculos XVII e XVIII, já se encontrava comple-
Am

tamente decadente em relação aos avanços realizados na Europa:


se o segredo de cartografia impediu que a partir dos sucessos das
na

explorações do século XVI se estabelecesse uma escola cartográ-


fica dinâmica e aberta em Portugal, a união com a Espanha esva-
a

ziaria esses esforços em função de sua transferência de Lisboa


nd

para Madri. Com o subsequente desenvolvimento das técnicas


ve

de gravação em cobre e com a proliferação dos ateliers cartográ-


ficos no norte do continente, a cartografia manuscrita se tornaria
à

praticamente obsoleta e os processos cartográficos mais avan-


á

çados, por serem muito dispendiosos, tornariam a produção e


st

divulgação dos mapas um monopólio dos estados mais ricos de


le

seu tempo. A cartografia em Portugal, no século XVIII, tornou-


a

-se, por conseguinte, limitada à cópia dos mapas e atlas estran-


in

geiros ou a confecção de mapas topográficos. Este é o cerne do


ig

problema das demarcações; era necessário realizar observações


or

e cálculos científicos in loco que pudessem ser acreditados pela


comunidade cartográfica, uma vez que os mapas haviam se
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
96 Cartografias Imaginárias

ay
tornado incapazes de legitimar pretensões territoriais se não fos-
sem embasados por uma construção científica acreditada.

Pl
Para isso, tornou-se necessário designar oficiais de alta

le
patente, engenheiros militares e outros profissionais deslo-

g
cando os poucos elementos disponíveis no Império português

oo
para intermináveis comissões no interior do Brasil, praticamente

G
fixando-os à Colônia. Mas, mesmo assim, o pouco desenvolvi-
mento das ciências matemáticas e naturais em Portugal dificul-

no
taria o exercício dessa nova cartografia. Nesse sentido, a quase

e
totalidade dos autores portugueses58 considera que, após um
período de florescimento no século XVI, a matemática portu-

on
guesa teria entrado num período de decadência continuada. Esse
az
período seria, inclusive, caracterizado por alguns autores, como
um “deserto” intelectual que perduraria até 1760, quando, a par-
Am

tir da reforma pombalina da Universidade de Coimbra, nova-


mente a matemática alcançaria algum nível, mesmo assim, note-
na

-se que num período de vinte e oito anos (de 1772 até 1800)
foram concedidos apenas vinte graus de doutor em ciências
a

matemáticas, sendo que desses doutores, apenas dois eram bra-


nd

sileiros. Segundo essa mesma bibliografia, a decadência das ciên-


ve

cias matemáticas em Portugal teve várias causas, a saber, a pre-


dominância dos jesuítas na Educação secundária e universitária;
à
á
st

58 Veja-se o estudo de QUEIRÓ, João Filipe. A Matemática. In: História da Universidade


le

em Portugal. v.1. parte II. (1537-1771). Lisboa: Fund. Gulbenkian, 1993.; no qual
são citadas as seguintes obras sobre a história da Matemática em Portugal: ‘Ensaio
histórico sobre a origem e progressos das Matemáticas em Portugal’, de Francisco de
a

Borja Garção-Stockler, editada em Paris, no ano de 1819; ‘Memórias históricas sobre


in

alguns Matemáticos Portugueses, e Estrangeiros Domiciliários em Portugal, ou nas


Conquistas’, de Antônio Ribeiro dos Santos; ‘Les Mathématiques en Portugal’, edi-
ig

tada em Coimbra, no ano de 1909, de Rodolfo Guimarães; ‘História das Matemáticas


or

em Portugal’, de Francisco Gomes Teixeira, editada em Lisboa, no ano de 1934);


‘Memórias de Literatura Portuguesa’, publicadas pela Academia Real das Ciências
de Lisboa, tomo VIII, parte I, 1812, pp. 148-229; ‘Matemática e matemáticos em
O

Portugal’, de Luís de Albuquerque e ‘As Matemáticas em Portugal - da Restauração


ao Liberalismo’, de J. Tiago de Oliveira.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 97

ay
os privilégios concedidos à formação jurídica em detrimento do
estudo técnico; a atitude mental e cultural predominante em

Pl
Portugal no período, que opunha os interesses religiosos e polí-

le
ticos então predominantes às inovações científicas.

g
Tal contexto corroboraria, por conseguinte, a situação de

oo
penúria extrema da cartografia portuguesa no século XVIII, que

G
carecia de meios, pessoal e mesmo de obras: a própria cober-
tura topográfica e cartográfica de Portugal era extremamente

no
reduzida se comparada a de outros países, como, por exemplo,

e
a França, tendo começado a ser implementada somente a par-
tir de 1851, quando se criaram as condições de consenso polí-

on
tico e estabilidade institucional que permitiriam aprofundar os
az
esforços de modernização e de consolidação territorial do estado
português.59
Am

Ainda em 1780, segundo a análise do mais capacitado enge-


nheiro português da época, Francisco João Rocio, muito pouco
na

do que se havia produzido sobre o território da Metrópole podia


a

ser elevado à condição de Mapa, e mesmo assim, grande parte


nd

deste esforço se deveu ao empenho da iniciativa privada. Segundo


Rocio, somente haviam sido convenientemente mapeadas algu-
ve

mas propriedades rurais do Alto Douro e das margens do Tejo,


regiões econômicas ou politicamente mais importantes, com a
à

importante ressalva destes registros terem sido feitos sobre um


á
st

“terreno limpo, cultivado e ocupado”, ou seja, em áreas que ofe-


le

reciam menores dificuldades técnicas a atividade cartográfica.60


a
in
ig

59 CASTELO BRANCO, Rui Miguel. O mapa de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte,


or

2003. p. 13.
60 Ver Resposta à consulta de D. Maria I ao Ten. Cel Eng. Francisco João Rocio em
29/08/1780. IHGB, lata 69, documento 8; Tratado preliminar de limites entre
O

Portugal e Espanha [correspondência] dos vice-reis Marquês do Lavradio e Luiz


Vasconcellos e Souza com a Corte de Portugal. IHGB, Lata 110, Pasta 7.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
98 Cartografias Imaginárias

ay
Além disso, havia uma grande carência de pessoal capaz de
realizar no campo os cálculos e as observações necessários aos

Pl
levantamentos cartográficos, a saber, engenheiros, geógrafos e

le
astrônomos. Especialmente no que se refere aos últimos, este

g
problema pode ser exemplificado pela dificuldade na arregimen-

oo
tação de astrônomos para a demarcação dos limites referentes
ao Tratado de Madri: os estrangeiros ocuparam então a maioria

G
dos cargos técnicos e, inclusive, de comando, isto, saliente-se,

no
numa empresa de extrema importância estratégica para o Estado
português. Inclusive, em 1751, o posto mais alto da Comissão

e
Demarcatória, composta ainda por militares e por pessoal de

on
apoio, foi ocupado por um genovês, enquanto que a maioria
az
dos 27 técnicos empregados era composta por italianos e ale-
mães, sendo que destes apenas seis eram portugueses.61 Ainda
Am

em 1780, ou seja, trinta anos depois, o número de astrônomos


e geógrafos disponíveis era tão pequeno que as demarcações
na

decorrentes do Tratado de Santo Ildefonso tiveram de ser atrasa-


das em até dez anos. Além do mais, era praticamente inexistente
a

uma estrutura de apoio que propiciasse o transporte, a proteção


nd

e a substituição desse pessoal, especialmente no Mato Grosso e


ve

na Amazônia. Em 1792, quando o então Capitão General do Pará


Francisco de Souza Coutinho determinou que dois astrônomos
à

complementassem o trabalho iniciado pelos demarcadores da


á

década de 1780, o trabalho não pôde ser levado a cabo tanto por
st

falta de soldados que os protegessem quanto pela morte de um


le

dos astrônomos durante a viagem.


a

Mas, ainda existiria outro fator limitador, este de ordem


in

material e de custos: a falta de instrumentos para astrônomos


ig
or

61 Relação dos oficiais de guerra e mais pessoas que se acham nomeadas por Sua
O

Majestade para a expedição da América Portuguesa. AHI, Arquivo Particular Ponte


Ribeiro, Lata 290, Maço 3.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 99

ay
e geógrafos, uma vez que, dada a sua complexidade, eram então
importados a maioria dos instrumentos necessários para o tra-

Pl
balho de campo e a totalidade daqueles destinados à observação

le
dos fenômenos astronômicos, sendo a Inglaterra o seu principal

g
fornecedor.62

oo
Em segundo lugar, é preciso esclarecer que, em face da escas-

G
sez material e técnica da cartografia portuguesa, foram pouquís-
simos os indivíduos que participaram das atividades de demar-

no
cação no Brasil na década de 1780: somente cinco astrônomos

e
ficaram responsáveis pela cobertura da maior parte de todo o
território da América portuguesa: Antonio Pires da Silva Pontes

on
Leme, Francisco José de Lacerda e Almeida, estes dois brasilei-
az
ros, Francisco de Oliveira Barbosa, Bento Sanches e José Simões
de Carvalho.63
Am

Suas tarefas eram simplesmente gigantescas, mesmo para os


padrões atuais, já que foram designadas a eles todas as observa-
na

ções no que atualmente chamamos de Amazônia e no Centro-


a

Oeste, sendo que, nos rios Solimões, Jupará, Branco, Madeira,


nd

Guaporé e na maior parte do Mato Grosso, as medições foram


feitas por apenas três dos astrônomos citados, a saber: Simões,
ve

Lacerda e Pontes Leme. Mais, a repulsa das elites políticas


metropolitanas a esse Tratado e o fracasso das negociações pos-
à

teriores transformariam ainda as atividades daqueles indivíduos


á
st

destinando-os mais a coadjuvar as atividades militares, adminis-


le

trativas e comerciais da Colônia.


a
in
ig
or

62 PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro. 2.ed. Paris:
Typografia de Casimir, 1839. p. 181.
63 Tabuadas de longitudes e latitudes de grande parte do Brasil observadas pelos astrô-
O

nomos empregados na Demarcação. Revista do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro, tomo XLV, n° 64, 1882.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
100 Cartografias Imaginárias

ay
As exigências eram muitas vezes brutais: o astrônomo
Antonio Pires da Silva Pontes Leme, nascido em Mariana,

Pl
Província de Minas Gerais, no reconhecimento de rotas comer-

le
ciais e na demarcação de limites, cumpriu no conjunto de suas

g
comissões um périplo várias vezes maior que o de Humboldt,

oo
Condamine ou qualquer outro viajante do século XVIII, que tal-
vez só possa ser superado pelas grandes explorações da África

G
no século XIX. Outro daqueles astrônomos, José de Lacerda e

no
Almeida, nascido na cidade de São Paulo, após cumprir suas mis-
sões, no Brasil, recebeu ainda a duvidosa glória de tentar a tra-

e
vessia da África, de Moçambique para Angola, mesmo depois de

on
ter tido sua saúde minada por mais de um ano pelas febres tro-
az
picais no interior do Mato Grosso, vindo a falecer nesse esforço
no meio da selva africana, tudo para ser tardiamente reconhe-
Am

cido pela historiografia portuguesa como um “escravo do dever


e mártir da ciência” (EÇA, 1951).
na

Outro participante das atividades desse período, Ricardo


Franco de Almeida Serra, designado chefe dos Engenheiros
a

Militares na expedição de Antonio Pires da Silva Pontes Leme,


nd

comandou durante grande parte da sua comissão apenas um


ve

subordinado. Depois disso, Serra seria ainda designado para


várias comissões no interior da Província de Mato Grosso, pas-
à

sando a ser responsável pela confecção da maior parte dos pla-


á

nos e plantas topográficas da área Amazônica no período.


st
le

Em terceiro lugar, consideramos que mesmo a ideia de


demarcação das fronteiras tem de ser reconsiderada, uma vez
a

que o Tratado de Santo Ildefonso é extremamente vago ou dúbio,


in

especialmente no que se refere à atual Amazônia, reverberando


ig

a falta de conhecimento geográfico sobre a região nos dois paí-


or

ses signatários, ainda, a ideia de fronteira, no século XVIII, em


O

nada se assemelha a ideia que é manejada nos séculos XIX e XX.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 101

ay
Nesse sentido, o conceito de limite é mais apropriado, pois retém
a ideia de fluidez e incerteza que basearam a maior parte das ati-

Pl
vidades dos demarcadores. Por exemplo, nas medições relativas

le
às áreas do rio Branco e do Jupurá, os astrônomos portugueses

g
foram muito além do que seria razoável em termos do Tratado,

oo
podendo sua atividade ser mais bem enquadrada enquanto um
reconhecimento militar e comercial destinado a suportar uma

G
futura expansão territorial.

no
Grande parte das medições de longitude possuía pouca exa-
tidão pela exiguidade das condições e, na maioria das vezes, pre-

e
feriu-se medir-se apenas a latitude, cálculo bem mais rápido e de

on
menor complexidade, um problema que era reconhecido pelos
az
próprios membros da demarcação. O cálculo da longitude exigia
na época que se observasse o eclipse dos satélites de Júpiter,
Am

o que demandava observações e cálculos demorados além de


instrumentos acurados e em ordem, condição rara em meio à
na

floresta amazônica. Note-se, ainda, que em certas regiões e perí-


odos o planeta Júpiter não se mostra ao observador durante lon-
a

gos períodos, como foi o caso, a saber, de todas as observações


nd

do Mato Grosso, como pode ser comprovado pelo diário de via-


ve

gem de Pontes Leme.64


Finalmente, em relação ao modo como os demarcadores
à

eram vistos pela administração portuguesa no Brasil, a pesquisa


á
st

permite constatar que este difere muito do retrato que a his-


toriografia construiu a esse respeito, sendo essa diferença um
le

indício importante para a análise da sua operação.


a
in
ig
or

64 PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário histórico e físico da viagem dos oficiais da
demarcação que partiram do quartel general de Barcelos para a capital de Vila Bela da
O

Capitania de Mato Grosso em 1° de setembro de 1781. Revista do Instituto Histórico


e Geográfico Brasileiro, n° 262, Jan. - Mar 1964, p. 344-345.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
102 Cartografias Imaginárias

ay
Para isso é importante fazer notar que a primeira narrativa
das demarcações não foi constituída no IHGB, mas na Secretaria

Pl
dos Negócios Estrangeiros por Duarte da Ponte Ribeiro, um dos

le
seus principais funcionários em 1855. Somente muito depois

g
é que esta ‘História das Demarcações’ seria desenvolvida por

oo
Varnhagen nas ‘Biografias’ de Lacerda e Ponte Leme e publi-
cada na Revista do IHGB em 1873. Observe-se que em 1851

G
Varnhagen, também funcionário da Secretaria, havia defendido

no
em memorando interno a necessidade de se constituir uma
‘História das Fronteiras’ que concatenasse a atuação diplomática

e
com a construção da Pátria e defendendo que seu começo deve-

on
ria remontar aos primeiros tratados entre as metrópoles ou, pelo
az
menos ao Tratado de Tordesilhas, incorporando-a, depois a sua
‘História Geral do Brasil’.
Am

Por conseguinte, a história das demarcações estava conec-


tada ao projeto de construção do espaço nacional centralizado
na

no IHGB, mas apresentando características próprias, pois apenas


nas ‘Biografias’ é que dois dos participantes de uma das demar-
a

cações do século XVIII seriam alçados à condição de protago-


nd

nistas principais da construção. Nas ‘Biografias’ Antonio Pires


ve

da Silva Pontes Leme e Francisco José de Lacerda e Almeida,


demarcadores do Tratado de Santo Ildefonso, foram descritos
à

enquanto patriotas abnegados que enfrentaram grandes riscos


á

e sacrifícios para colaborar na ‘política de demarcação das fron-


st

teiras brasileiras’ [sic]. Naquelas, Varnhagen destacaria ainda a


le

fidelidade do paulista Lacerda à derradeira missão que lhe fora


a

designada, orgulhoso até o fim, de estar a serviço do Estado por-


in

tuguês, no afã de atravessar o Continente africano.


ig

Como podemos interpretar esse processo de seleção?


or

A escolha de Lacerda e Pontes Leme dentre outros participan-


O

tes das demarcações do século XVIII, atendia então a diversos


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 103

ay
propósitos: primeiramente, como os dois foram os únicos bra-
sileiros que receberam o grau de doutores em matemática pela

Pl
Universidade de Coimbra, visava-se a exaltar essa condição rela-

le
cionando-a com a ideia de construção pretérita da nacionalidade.

g
Em segundo lugar, procurava-se, através de seus exemplos,

oo
distinguir esse patriotismo na figura mesma dos demarcadores,

G
isto num momento em que novamente se procurava demarcar as
insalubres fronteiras amazônicas.

no
Por último, atendia-se aos interesses internos da própria

e
Secretaria dos Negócios Estrangeiros e ao corporativismo dos

on
diplomatas, já que o filho de Pontes Leme era então um dos seus
funcionários mais proeminentes.
az
Entretanto, as ‘Biografias’ acrescentariam ainda mais um
Am

elemento a uma verdadeira ‘mitologia do espaço nacional’, por


conta de se elidir o verdadeiro contexto das atividades de Lacerda
na

e Pontes Leme, já que muitos dos trabalhos destes não podiam


ser propriamente conectados a uma ‘política de demarcações’
a

e menos ainda a um ‘esquadrinhamento do espaço nacional’,


nd

como ecoaria mais tarde Sérgio Buarque de Holanda.65


ve

Nessa operação, Lacerda e Pontes Leme foram despidos


mesmo de suas vozes e impressões e isso se deve destacar, inclu-
à

sive, por conta de um resgate da memória dos astrônomos, uma


á

vez que a pesquisa permite apresentá-los enquanto críticos do


st

Estado português e da sociedade da época, sendo apenas tole-


le

rados pela raridade de seu saber. Exatamente por conta disso,


a

ambos eram mantidos sob a vigilância estreita das autoridades


in

locais, deslocados o maior tempo possível para atividades fora


ig

dos núcleos urbanos, mesmo que em trabalhos secundários.


or
O

65 HOLLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História Geral da Civilização Brasileira, Vol.


1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2003. p. 297-298. (Edição original – 1961).
O original está à venda na Amazon e no Google Play
104 Cartografias Imaginárias

ay
Eram então considerados enquanto impertinentes, descuida-
dos, pouco interessados no trabalho e no estudo, “mais amigos

Pl
do seu divertimento e comodidade, do que do desempenho das

le
obrigações.”66

g
Um dos poucos textos de Pontes Leme que sobraram nos

oo
serve para sublinhar os dispositivos narrativos de que se serviu

G
a operação de uma história das demarcações e para pelo menos
aventar os anseios daqueles indivíduos que cruzaram os oceanos

no
de água e selva à serviço do Estado e das demarcações:

e
[Ao nos retirar do Amazonas seguindo para o

on
Mato Grosso] Viam-se pelas barreiras de Barcelos,
chorando, algumas índias e mamelucas, e faziam
az
chorar a quem pensasse na grande miséria em que
vive esta gente toda, fazendo um jejum que passa
Am

de magno, ou abstinência de toda a carne, a ser


a xerofagia da Igreja Grega, não tendo mais que
beiju e pimentas para comer. Também os oficiais
na

que nos fizeram a honra de vir até a escada, mos-


travam sentimento, creio de nos verem apartar
e que desejavam vir também. Eu não pude ter a
a

mesma alegria de me ver fora de um cárcere do


nd

gênero humano, em que todos sofrem e muito


mais os índios que andam buscando tartaruga
ve

do rio Solimões e do rio Branco, e farinhas da


Cachoeira, para ter mão da vida dos que ali se
acham por mero capricho (PONTES, 1964).
à
á

Quando as ‘Biografias’ foram publicadas, exibia-se em


st

Viena, na Exposição Universal de 1873, o novo avatar do espaço


le

da Nação, a ‘Carta Geral do Brasil’, desenhada por Duarte da


a

Ponte Ribeiro, na realidade, apenas a atualização da velha ‘Carta


in

Corográfica do Império do Brasil’ de Conrado Jacob Niemeyer -


ig

com o aval da SENE.


or
O

66 Capitão-General Luis de Albuquerque com Martinho de Mello [correspondência]. 1787.


AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 266, Maço 1, Pasta 10.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 105

ay
Pl
le
Carta Geral do Brasil

g
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à

Fonte: RIBEIRO (1873).


á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
106 Cartografias Imaginárias

ay
Pl
O espelho do Jacobina:

g le
uma discussão dos problemas de representação do

oo
espaço da Nação por meio do estudo cartográfico

G
no
Como poderíamos ligar a ‘Carta Geral do Brasil’ de Ponte

e
Ribeiro à ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’, de Niemeyer?
Seria possível fazê-lo pelo estabelecimento de uma lógica do sen-

on
tido estabelecida noutro mapa? Num dos mais belos contos de
az
Machado de Assis, ‘O espelho’, o personagem Jacobina instruía
Am

que cada criatura humana trazia nada menos que duas almas
consigo, uma que olha de dentro para fora, outra que olha de
fora para dentro. Esta última alma seria mutável, de natureza
na

e de estado, mas, como as duas almas complementariam o


homem, quem perdesse apenas esta metade perderia natural-
a

mente metade da existência.


nd

A observação de Machado de Assis, carregada da sua leitura


ve

de Arthur Schopenhauer, permite-nos esboçar um tratamento


à

possível para um dos problemas do estudo do espaço, que vem


a ser a necessidade de alcançar um entendimento preciso do que
á
st

diz respeito àqueles mapas. No caso, acreditamos que não nos


le

basta apenas compreender a existência de uma episteme, mas


ainda buscar-se os particularismos, os idiomatismos que encer-
a

ram as referências necessárias para uma nova compreensão.


in
ig

No recorte que vimos trabalhando, o século XIX, a cartografia


or

é parte integrante da sintaxe da gramática do espaço, mas a ideia


de cartografia ou mesmo de mapa para aqueles que participam
O

do teatro de construção do espaço no Brasil é diferente daquela


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 107

ay
que é dominante, por exemplo, na Inglaterra, sendo mesmo esta
ideia diferente para cada um dos palcos de produção, ou seja,

Pl
existe diferença do que é apreendido no IHGB para o que apre-

le
endido na Secretaria dos Negócios Estrangeiros. A diferença

g
entre essas diferentes apreensões é esclarecedora do processo de

oo
construção do espaço e nos permite distinguir as representações
e as narrativas historiográficas que a partir daí são elaboradas

G
enquanto um jogo de tensões e contratensões, ou melhor, como

no
uma escritura em premente e permanente reelaboração.

e
Procuraremos, por conseguinte, trabalhar essa nossa ideia a
partir, primeiramente de uma explicitação do problema cartográ-

on
fico, depois pela sua exemplificação por meio do estudo da ‘Carta
az
Geral’, composta por um dos membros do IHGB, e do ‘Mapa do
Rio Grande’ composta na Secretaria dos Negócios Estrangeiros.
Am

A luta de representação
na
a

J. B. Harley foi um dos poucos autores a propor uma leitura


nd

dos produtos cartográficos capaz de ultrapassar os métodos e


ve

a interpretação costumeira dos historiadores da cartografia, os


quais visam, segundo esse autor, apenas a investigar e catalogar
à

os mapas segundo suas características técnicas e de produção. Tal


á

atitude, segundo Harley, refletiria a adesão de seus cultores a um


st

“positivismo cartográfico” que deveria ser confrontado e subs-


le

tituído por uma interpretação baseada, por sua vez, numa teo-
ria iconológica e semiológica da natureza dos mapas.67 Para esse
a
in

fim, Harley proporia a utilização dos conceitos anteriormente


ig

desenvolvidos por Erwin Panofsky para o estudo dos níveis dos


or

67 HARLEY, J.B. ‘Maps, Knowledge and Power’ e ‘Deconstructing the Map’ in: The New
O

Nature of Maps: Essays in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins
University Press, 2001.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
108 Cartografias Imaginárias

ay
temas ou significados na arte,68 visando, com estes, a identificar,
através dos elementos simbólicos e estruturais dos mapas, cer-

Pl
tas disposições qualificadas como “eminentemente retóricas”, as

le
quais seriam capazes de explicitar relações de “Poder e Saber”,

g
conforme a definição de Michel Foucault, bem como certos con-

oo
dicionamentos sociais.

G
Ainda que reconheçamos a pertinência da teorização de
Harley, acreditamos que, por conta da grande abertura e univer-

no
salidade de seus conceitos, esta deva ter seu uso condicionado a

e
análises e enfoques que, por sua vez, devam estar orientados e
direcionados por um método que permita perscrutar a inscrição

on
no mapa a partir de uma pesquisa do contexto que envolve a
az
composição cartográfica. Para isso, seria preciso entender a com-
posição cartográfica, a partir de Schopenhauer, como um ‘ato da
Am

representação’ que objetiva a Vontade de certos indivíduos ou


grupos.
na

Nesse sentido, o ato de representação está relacionado a


a

determinados propósitos, conveniências e circunstâncias depen-


nd

dentes de certas condições, ou seja, esse Ato objetiva-se atra-


vés da competição ou pelo ajustamento a outros Atos também
ve

objetivados por diferentes motivações, o que, por sua vez, leva


a estabelecer, para o historiador, novos lugares para a leitura de
à

contextos e referências.69
á
st

Para isso, será necessário compreender essas objetivações


le

da Vontade como uma disputa entre os indivíduos que visam a


expressar suas Ideias por meio de sua materialização. Como essa
a
in
ig
or

68 PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao Estudo da Arte da


Renascença. In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976.
69 Ver SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo. São Paulo: UNESP, 2003. cap.
O

2 e SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Rio de


Janeiro: Contraponto, 2001, § 56-57.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 109

ay
matéria será disputada com o mesmo fim por outros indivíduos,
todos tenderão continuamente a usurpá-la, possuindo-a, cada

Pl
um deles, apenas na medida do que puderam tomar dos outros:

le
constituir-se-á assim, em torno do ato de representação, uma

g
guerra eterna de vida ou de morte, quando o surgimento de obs-

oo
táculos e impedimentos à objetivação da Vontade se consubstan-
ciará no indivíduo através do sofrimento e da insatisfação.

G
O ato de representação dá-se então em meio a uma com-

no
petição contínua pela expressão da Ideia, interessando e emo-

e
cionando a Vontade, daí relacionar-se pela sua satisfação com
determinados propósitos, conveniências, eventos e circunstân-

on
cias. Por conseguinte, este mesmo ato da Vontade será objeti-
az
vado ainda que ao custo de sua transformação e do seu ajusta-
mento a outros atos da Vontade inclusive os alheios e vinculados
Am

a outras motivações, não sem lançar o indivíduo novamente no


sofrimento e na insatisfação que, por sua vez, o conduzirão a
na

novos atos de vontade, no estado que denominamos de luta de


representações.70
a
nd

Retomando o texto de Machado de Assis, observamos que o


autor reconhece a ideia da luta de representações, pois separa o
ve

Jacobina narrador, mais velho vinte anos, do Jacobina que cen-


traliza a narrativa. Este último, ao mirar-se no espelho se recom-
à

punha da solidão admirando a farda de Alferes, encontrando


á
st

sua alma exterior, mas o Jacobina mais velho “Não discutia


le

nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo


que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz
a

no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os


in

serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a


ig
or

70 SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003.


O

cap. 2. e SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Rio


de Janeiro: Contraponto, 2001, § 56-57.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
110 Cartografias Imaginárias

ay
perfeição espiritual e eterna.” (ASSIS, 1962, p.345) O Jacobina
narrador, separava-se pois do Jacobina jovem pela recusa de se

Pl
lançar à luta de representação.

le
Por outro lado, Machado reconhece também na alma exte-

g
rior a mutabilidade de natureza e de estado da alma exterior

oo
que completaria a alma interior. Por conseguinte, a investigação

G
do ato de representação remeteria não apenas à compreensão
de propósitos, conveniências e circunstâncias, mas também,

no
demandaria à compreensão dos processos de escolha do recorte

e
cartográfico e de seleção das mecânicas de composição e produ-
ção dos mapas. Para isso, seria necessário trabalharem-se não

on
apenas os mapas, mas também os textos que se referissem aos
az
processos de seleção e às mecânicas de composição e produção
cartográfica relacionando-os com os produtos finais, os mapas.
Am

Essa escolha possibilitaria leituras que não estão diretamente


relacionadas com a utilização do mapa ou com os efeitos de sua
na

divulgação, mas com os processos de composição mesma, mais


ligados, em nosso entender, à objetivação do ‘ato de representa-
a

ção’, permitindo ao historiador, por exemplo, inferir as diferenças


nd

em relação as outras apreensões ou à episteme citadas, pois que


ve

estas estão ligadas à composição mesma, conforme Machado de


Assis, a uma completude da alma, posta que contínua e mutável.
à

Finalmente, nessas leituras, as inscrições e as estruturas téc-


á
st

nicas dos mapas não seriam apenas entendidas como elemen-


le

tos ou etapas de um processo criativo, mas enquanto escolhas


conectadas diretamente à objetivação do ato de representação,
a

porquanto, para este método, o estudo do processo de composi-


in

ção do mapa pode ser tão ou mais significante que a interpreta-


ig

ção iconológica e semiológica dos mapas.


or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 111

ay
Processo interno e processo externo

Pl
Durante os séculos XVII e XVIII, por um lado, a cartografia

le
se converteu de uma tarefa quase solitária numa escrita coletiva

g
por excelência, dotada de práticas diversas e complexas, tornando

oo
necessário que a leitura do processo de composição dos mapas
fosse feita através da apreensão de sentidos e saberes que inclu-

G
íam tanto o agenciamento das técnicas e das condições da escrita

no
quanto à distribuição e atribuição de tarefas. Por outro lado, a
mesma cartografia tornou-se também o lugar por excelência de

e
inscrição da narração territorial dos Estados em centralização, o

on
que nos leva a ter de analisar os processos de escolha, produção,
reprodução e divulgação da cartografia enquanto sujeitos a usos
az
e estratégias por parte de seus autores.
Am

Portanto, entendemos ser necessário distinguir na produ-


ção dos mapas a existência simultânea de dois processos, um
na

relativo à natureza das apreensões locais, aos usos, formalização


das decisões, estratégias, táticas; e outro que diz respeito a uma
a

episteme e às práticas e procedimentos de um saber cartográfico,


nd

ou seja, das suas classificações, hierarquizações e divisões de tra-


ve

balho. Tendo-se em vista que seu produtor é sujeito e também


objeto dos processos, é necessário investigar a interação desses
à

processos cartográficos, interação esta que constitui um verda-


á

deiro sistema de relações entre estratos tão diversos como os de


st

recepção, compreensão e transformação que interagem nos pal-


le

cos de produção do espaço.


a

Esses dois processos simultâneos distinguir-se-iam do que


in

Harley definiu como poder interno e poder externo, entendidos por


ig

esse autor como a contraposição de uma instância de poder local


or

e descentralizado em relação a outra instância de poder centra-


O

lizada e concentrada, grosso modo, opondo produtores e Estado.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
112 Cartografias Imaginárias

ay
Para Harley, a convivência entre essas duas instâncias faria parte
das relações de poder que penetrariam os interstícios da prática

Pl
e da representação cartográfica, permitindo assim com que os

le
mapas pudessem ser lidos como textos que legitimariam a teori-

g
zação Poder-Saber de Foucault.71

oo
Já em nossa ideia de processo interno e processo externo enten-

G
demos que a produção do mapa esteja sujeita a ser modificada,
alterada ou limitada tanto por circunstâncias inerentes à com-

no
posição quanto por características e propriedades das técnicas e

e
procedimentos.

on
Por um lado, o agenciamento das técnicas por parte dos pro-
dutores faz parte de um processo de escolhas que não é apenas
az
objetivo, mas que também constitui um procedimento da repre-
Am

sentação da forma, ligado às estratégias e táticas dos produtores


da representação e que depende ainda de suas capacidades téc-
nicas ou operacionais. Nesse sentido, a utilização de uma determi-
na

nada técnica não significa que esta seja a melhor ou a mais tec-
a

nicamente apropriada, mas que sua escolha possibilita a entrada


nd

em cena do objeto no mundo da representação mesmo que por


dissimilação ou simulação de sua forma. Assim, podemos enten-
ve

der o medium como um facilitador da apreensão da Ideia pelos


outros e essa apreensão da Ideia será condicionada pela natureza
à

ou característica do medium e pelo gênio do operador.72


á
st

Por outro lado, esse mesmo medium pode ser condicio-


le

nado na medida em que o processo externo impuser restrições à


a
in

71 HARLEY, J.B. Power and legitimation in the english geographical atlases of the eigh-
ig

teenth century. In: The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography.
or

Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001. p. 111-113.


72 O gênio é entendido por Schopenhauer como uma capacidade de conhecimento inata e
que se encontra em diversos graus em todos os homens, o que pressupõem lhe serem
O

inerentes às habilidades da criatividade e do entendimento. Ver SCHOPENHAUER,


Arthur. A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 83-87.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 113

ay
representação pura da Ideia, a qual, em tese, deve ser comple-
mentada ou substituída por outras representações a partir das

Pl
táticas dos seus operadores, constituindo-se estas enquanto

le
uma objetividade imperfeita da Vontade.

g
Ainda, se as restrições exigirem um sacrifício da forma que

oo
vá além das capacidades, pode-se produzir uma alteração do

G
objeto não prevista pelos seus operadores, constituindo-se essa
alteração do objeto, ela mesma, como uma representação mais

no
ou menos independente da objetivação da Vontade.

e
Por conseguinte, entendemos por processo interno aquele que

on
diz respeito à objetivação da produção e processo externo aquele
que tem a ver com os condicionamentos e propriedades que
az
incidem sobre essa objetivação modificando-a, alterando-a
Am

ou limitando-a, logo, o mapa é sempre a resultante da luta de


representações.
na

Em respeito à importância do medium para a produção da


representação, podemos citar o adendo de Schopenhauer à céle-
a

bre discussão sobre a razão de não se representar o grito do


nd

personagem ferido no grupo escultural de Laocoonte. Enquanto


ve

Winckelmann e Lessing atribuíram tal característica, respectiva-


mente, ao estoicismo do personagem ou à incompatibilidade da
à

beleza com a dor, para Schopenhauer a ação de gritar não fora


á

representada “pela simples razão de que o grito é inteiramente


st

rebelde aos meios de imitação da escultura”. Portanto, para


le

Schopenhauer, era impossível tirar do mármore um Laocoonte


a gritar, entendendo assim, existirem limites para a representa-
a
in

ção, os quais estariam impressos nas possibilidades mesmas do


ig

medium (SCHOPENHAUER, 2001, § 46).


or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
114 Cartografias Imaginárias

ay
O medium cartográfico no XIX

Pl
Até o século XIX, o método usual para a reprodução de mapas

le
e de atlas era o da gravação em cobre: os mapas manuscritos

g
tinham seus detalhes copiados para uma placa desse material,

oo
na qual eram gravados em alto-relevo, gerando-se, assim, uma
matriz de impressão passível de receber alterações e capaz de

G
permitir seguidas reimpressões. Nesse sentido, estima-se que

no
uma matriz de cobre bem cuidada e que recebesse uma manu-
tenção regular do traçado de seu relevo podia ser utilizada até

e
três mil vezes, possuindo comumente uma durabilidade capaz

on
de ultrapassar a centena de anos.73 Entretanto, a gravação em
cobre era um processo caro, trabalhoso e altamente especiali-
az
zado e, por conta dessas características, a reprodução cartográ-
Am

fica em escala consolidou-se, nos séculos XVII e XVIII, apenas


onde o Estado fosse capaz de arcar com seus custos ou onde
na

existisse um mercado capaz de atrair empreendimentos particu-


lares que possibilitassem, sobretudo, a manutenção dos melho-
a

res profissionais.
nd

Nesse período, foi estabelecida uma nova tradição no pro-


ve

cesso cartográfico, com uma separação e uma estandardização


rigorosa das tarefas entre astrônomos, desenhistas, gravadores
à

e impressores, o que consolidou o controle da composição nas


á

mãos dos editores (o que pode ser exemplificado, inclusive,


st

através da prevalência do anonimato no processo cartográfico).74


le

Contudo, alguns cartógrafos, como Gerhard Mercator, John


a

Thornton e John Arrowsmith foram capazes de dominar todas


in

as instâncias do processo cartográfico, estabelecendo-se privati-


ig
or

73 VERNER, Coolie. Copperplate Printing. In: Five Centuries of Map Printing. Chicago:
University of Chicago Press, 1975. p. 72.
O

74 HARLEY, J.B The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography.
Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001. p. 113-115.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 115

ay
vamente e disputando o mercado de mapas e atlas com trabalhos
de sua autoria.75

Pl
Portanto, uma das principais características da produção car-

le
tográfica anterior ao século XIX é a existência de diferentes cen-

g
tros fora do controle direto do Estado, capazes de produzirem

oo
em escala e em disputa pelo controle de um mercado lucrativo.

G
A lucratividade desse mercado se devia ao fato de os produtos
cartográficos não serem apenas utilizados como fonte de infor-

no
mação para o Estado ou para o investidor, mas também como

e
estímulos de sociabilidade e artigos de uma cultura de consumo
que se estabeleceram no período. Tais eventos foram impulsio-

on
nados pelas transformações culturais decorrentes da difusão da
az
tipografia e pelas viagens transatlânticas, combinadas na grande
circulação de livros corográficos e de narrações de viajantes.76
Am

O desenvolvimento da gravação em cobre foi decisivo para


o estabelecimento das condições desse novo mercado, propi-
na

ciando que a cartografia se tornasse, durante o século XIX, parte


a

mesmo da cultura material, com seus produtos circulando sob


nd

as mais variadas formas, mesmo como elemento decorativo em


utensílios e vestimentas. Contudo, a verdadeira popularização
ve

dos produtos cartográficos e corográficos, que apenas faziam


parte de uma cultura de elites até o século XVIII, somente se
à

tornou possível pela apropriação, nas estratégias dos produto-


á
st

res, de uma técnica nova desenvolvida e divulgada nas primeiras


le

décadas do século XIX: a litografia.


a
in
ig

75 VERNER, Coolie. Copperplate Printing. In: Five Centuries of Map Printing. Chicago:
or

University of Chicago Press, 1975.p. 70.


76 Ver “Pictorial prints and the growth of consumerism: class and cosmopolitanism in
early modern culture” e “A new world picture: maps as capital goods for the modern
O

world system” in MUKERJI, Chandra. From graven images: patterns of modern


materialism, New York: Columbia University Press, 1983. p. 30-130.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
116 Cartografias Imaginárias

ay
A técnica litográfica consistia na escrita direta sobre uma
matriz de pedra calcária ou zinco ou no transporte dessa escrita

Pl
para a pedra através de uma folha especial, quando então se uti-

le
lizava um processo químico que tornava a superfície capaz de

g
permitir sucessivas impressões. Além de tornar a composição

oo
dos mapas mais rápida, pois exigia uma menor especialização
de tarefas, ao eliminar, por exemplo, a obrigação de que esses

G
fossem desenhados em reverso como na gravação em cobre, a

no
litografia também possibilitou uma diminuição acentuada dos
custos materiais na cartografia. Essas características tornaram

e
possível, no século XIX, disponibilizarem-se os produtos car-

on
tográficos a um público imensamente maior e mais diversifi-
az
cado que nos séculos anteriores, ao mesmo tempo em que per-
mitiriam que países sem tradição de produção cartográfica em
Am

escala, como era o caso de Portugal e depois do Brasil, pudessem


desenvolver uma incipiente produção cartográfica centralizada
na

no Estado.
a

A introdução da cartografia no Brasil


nd
ve

No Brasil, a criação do Arquivo Militar, já no mesmo ano


da chegada da Corte, serve-nos para aferir a existência de uma
à

percepção, no bojo da transferência do Estado português, de que


á

a produção cartográfica em escala poderia coadjuvar a ação do


st

Estado, trazendo vantagens administrativas e servindo como um


le

instrumento prático para a centralização da autoridade. Nesse


a

sentido, essa instituição teria duas funções: primeiro, centralizar


in

a guarda, a organização e a classificação dos produtos cartográ-


ig

ficos; segundo, a partir do arquivo formado e utilizando-se os


or

critérios da utilidade e da necessidade administrativa, escolher-


O

-se o material a ser vulgarizado.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 117

ay
No arquivo dessa instituição, visava-se a recolher todas as
cartas, mapas topográficos e planos iconográficos trazidos de

Pl
Portugal para que fossem juntados aos que se encontravam dis-

le
persos no Brasil entre várias repartições, acabando-se, assim,

g
com a descentralização documental que imperava até então nas

oo
secretarias de Estado portuguesas. Entretanto, essa iniciativa de
centralização cartográfica, no Brasil, estaria dada ao fracasso já

G
em seus primórdios, uma vez que grande parte da documentação

no
que fora reunida no Arquivo Militar retornou a Portugal junto
com D. João VI em 1821, sem que se distinguisse critério algum

e
nesse repatriamento, o que tanto acarretou a permanência, no

on
Brasil, de muitos produtos cartográficos relativos a Portugal
az
e seus domínios, quanto a ida para Portugal de muito do que
fora produzido sobre o Brasil, um problema que somente seria
Am

sanado, em 1867, a partir de uma permuta documental efetuada


pela Secretaria dos Negócios Estrangeiros.
na

Em relação à função de vulgarização cartográfica do Arquivo


Militar, pensava-se, quando de sua criação, em utilizar a grava-
a

ção em cobre, contudo, as vantagens da litografia impuseram-se,


nd

sobretudo pelo custo. Essa opção consolidou-se, na prática, com


ve

a criação, em 1825, da Oficina Litográfica do Exército, quando


se importaria todo o material necessário à sua operação junto
à

com dois técnicos estrangeiros responsáveis por sua operação,


á

os quais deveriam atuar, também, como professores junto a um


st

corpo de aprendizes composto por soldados do Exército.


le

Ainda que, com essas iniciativas, o Estado buscasse resguar-


a

dar para si e em uma só instituição a centralidade da produção


in

cartográfica, não foi possível consolidar essas opções, no Brasil,


ig

devido a se terem preservado certas condições tecnológicas e


or

culturais herdadas de Portugal. No caso, sustentava-se, ainda,


O

na antiga Metrópole, o prestígio da composição cartográfica


O original está à venda na Amazon e no Google Play
118 Cartografias Imaginárias

ay
manuscrita e a tradição de descentralização dos arquivos e da
produção cartográfica, uma vez que, nos séculos anteriores, não

Pl
se acompanhara o desenvolvimento do agenciamento das técni-

le
cas que resultaram na especialização, na estandardização e na

g
concentração das tarefas cartográficas.

oo
Em consequência, no Brasil, a composição cartográfica

G
manuscrita se impôs ao processo de produção, com suas carac-
terísticas de individualização, descentralização, sigilo e repeti-

no
ção de padrões, em que cada cartógrafo era, acima de tudo, o

e
membro de uma escola e um transmissor de padrões estabele-
cidos.77 Ainda, a antiga tradição de descentralização cartográfica

on
seria paulatinamente retomada no Brasil, resultando no esvazia-
az
mento do Arquivo Militar, mesmo em detrimento da iniciativa
particular, que atraía sua mão-de-obra especializada. Durante o
Am

Segundo Reinado, chegaram-se mesmo a constituir dois outros


grandes arquivos cartográficos além do Arquivo Militar, um na
na

Secretaria dos Negócios Estrangeiros e outro na Secretaria de


Obras Públicas. Instituições como a Secretaria dos Negócios
a

Estrangeiros jamais confiaram a composição de mapas a outros


nd

cartógrafos que não fossem os seus, nem deixaram de antagoni-


ve

zar a produção alheia. Por conta de tudo isso, a parte mais repre-
sentativa da reprodução em escala por meio da litografia foi com-
à

posta sob as técnicas da produção manuscrita, por conseguinte,


á

submetendo-se a produção cartográfica às regras, às limitações e


st

aos condicionamentos culturais do medium manuscrito.


a le
in
ig
or

77 A respeito da influência dos estilos e da transmissão de padrões na cartografia


O

manuscrita, ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. The dating of the oldest Portuguese
charts. Imago Mundi. vol. 41. 1989. p. 87-97.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 119

ay
A Carta Corográfica do Império do Brasil

Pl
Na década de 1840, a consolidação da discussão do espaço

le
nacional em palcos de produção bem definidos em torno do

g
IHGB, do Conselho de Estado e da Secretaria dos Negócios

oo
Estrangeiros, a descentralização do processo de produção carto-
gráfica e o esvaziamento das funções do Arquivo Militar contri-

G
buíram para que a primeira Carta Geral do Brasil não nascesse

no
a partir de uma iniciativa do Estado, mas de uma contribuição
para o debate da narrativa territorial no IHGB. Composta por

e
Conrado Jacob de Niemeyer durante os anos de 1842 a 1846,

on
a Carta Corográfica do Império do Brasil estabeleceu padrões
técnicos e estéticos que seriam endossados pelas Cartas Gerais
az
posteriores e mapas parciais do território.
Am

A composição da Carta de Niemeyer envolveu um procedi-


mento de escolha do padrão técnico que pode explicitar a rela-
na

ção entre o que denominamos de processo interno e processo


externo, a partir de sua delimitação em três níveis de apreen-
a

sões: o primeiro, do geral, relacionado à inserção no universo


nd

conhecido das representações cartográficas; o segundo, do parti-


ve

cular, relacionado à escolha do repertório das tradições das expe-


rimentações do território; o terceiro, do conceitual, relacionado
à

à divulgação e à consolidação das formas percebidas e extraídas


á

da intuição.78
st
le

Niemeyer procurou inicialmente basear sua representação


do território brasileiro sobre o que chamou de ‘Mapa Geral’,
a

no caso, o produto resultante da reunião dos traçados das duas


in

cartas estrangeiras mais bem reputadas no Brasil, a Carta da


ig
or

78 Essa ideia origina-se da relação estabelecida por Schopenhauer entre a música, a


O

realidade e os conceitos abstratos. Ver SCHOPENHAUER, Arthur A Metafísica do


Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 83-87.§52.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
120 Cartografias Imaginárias

ay
América Meridional, da casa editorial Arrowsmith, e a Carta da
Costa Brasileira, do Almirante Roussin. Em seguida, esse Mapa

Pl
Geral foi modificado e complementado através da consulta a

le
diversos mapas, roteiros, memórias e descrições produzidos por

g
brasileiros, sendo que, dentre esses, Niemeyer utilizou prin-

oo
cipalmente os trabalhos de Cerqueira e Silva, Cunha Mattos e
Aires de Casal, não por acaso, todas essas eram obras acredi-

G
tadas pelo debate no IHGB.79 Finalmente, as fronteiras nacio-

no
nais foram inscritas sobre o produto resultante das operações
anteriores a partir do estabelecido no ‘Programa Geográfico’

e
de José Feliciano Fernandes Pinheiro, presidente do IHGB e os

on
limites da divisão provincial foram desenhados de acordo com a
az
‘Corografia Brasílica’, de Aires de Casal.
Já o processo de escolha do padrão estético da Carta deri-
Am

vou da decisão de se compor o ‘Mapa Geral’ a partir da redu-


ção e transformação da sua base de dados à escala 1:3.000.000,
na

capaz de viabilizar a composição da Carta Geral em quatro folhas


iguais, de acordo com a maior capacidade de impressão da oficina
a

mais bem aparelhada, no Brasil, naquele momento, a Litografia


nd

Rensburg, possibilitando assim que se atingisse o tamanho de


ve

1,50 m de altura por 1,50 m de largura. A decisão de orientar


todo o projeto cartográfico da Carta de 1846 pelo tamanho da
à

maior folha que fosse possível imprimir foi tomada por Niemeyer
á

em função de três objetivos: primeiro, tornar certos detalhes dis-


st

tinguíveis em relação a outros e “dignos de atenção”, especial-


le

mente aqueles relativos aos limites com o Paraguai; segundo,


a
in

79 Respectivamente, a ‘Corografia Paraense’, a ‘Corografia histórica da província de Goiás’


ig

e a ‘Corografia Brasílica’. Ver: SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Corografia Paraense


or

ou Descrição física, histórica e política da Província do Grão-Pará. Salvador: Tipografia


do Diário, 1833; MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da Província
de Goiás. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 37, Tomo 48, 1874;
O

CASAL, Manoel Ayres de. Corografia Brasílica ou Relação Histórico-geográfica do Brasil,


II vols. São Paulo: E. e H. Laemmert, 1817; Edições Cultural, 1943.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 121

ay
diminuir o problema dos erros, através do maior dimensiona-
mento dos elementos geográficos, especialmente da hidrografia;

Pl
terceiro e mais importante, equiparar a representação cartográ-

le
fica do espaço nacional às cartas de grande dimensão impres-

g
sas na Europa,80 cujos modelos eram as grandes cartas gravadas

oo
pela casa editorial Arrowsmith, as quais chegavam a medir até
dois metros de altura por um metro e quarenta de largura que,

G
emolduradas, eram expostas sobre grandes paredes, geralmente

no
em órgãos públicos e escolas. Portanto, Niemeyer buscava não
apenas construir uma representação do espaço nacional brasi-

e
leiro, mas ainda inscrever a presença, centralidade e monumen-

on
talidade do Estado nas relações do indivíduo com o meio social.
az
Finalmente, podemos observar que a Carta Geral resulta das
estratégias e táticas desenvolvidas na relação entre o processo
Am

externo e o processo interno por meio de uma leitura semio-


lógica e iconológica que considera a historicidade da inscri-
na

ção e da negação de inscrição81 dos elementos que podem ser


identificados objetivamente enquanto “alegorias” e “represen-
a

tações simbólicas” pertinentes à representação cartográfica.82


nd
ve

80 Carta de Conrado Jacob de Niemeyer ao IHGB oferecendo a Carta Corográfica


do Império Brasileiro. IHGB, Lata 510, Pasta 5, 1846; Nota de Conrado Jacob de
à

Niemeyer, dizendo estar quase pronta a carta corográfica do Império do Brasil IHGB,
Lata 142, Pasta 49, 1844 e Carta de Jacob de Niemeyer para o Visconde de São
á

Leopoldo em 20/9/1843. In: PAUWELS, Geraldo José. Algumas notas sobre a gênese
st

dos números para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre: Tipografia do
le

Centro, 1924, p. 7-8.


81 A ideia de ‘negação da inscrição’ corresponde aproximadamente ao que Harley deno-
mina de ‘Silêncios’ [Silences]: para este autor, o espaço vazio nos mapas estaria
a

ligado a um discurso político e à legitimidade de seu status, enquanto que em nossa


in

ideia da negação da inscrição, o ‘Silêncio’ não corresponderia a um vazio, mas a um


espaço preenchido por uma continuação ou um desdobramento daquele discurso. Ver
ig

HARLEY, J. B. Silences and Secrecy. In: The new nature of maps: essays in the History
or

of Cartography. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p. 99-100.


82 Arthur Schopenhauer identifica a historicidade das “alegorias” e “representações
simbólicas” como parte mesmo do problema da compreensão da Representação. Ver
O

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro:


Contraponto, 2001. § 50.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
122 Cartografias Imaginárias

ay
Acreditamos, assim, que a leitura semiológica e iconológica
deva ser entronizada num método que dê conta dos processos

Pl
de objetivação do ato de representação. Em razão disso, sugeri-

le
mos que a leitura semiológica e iconológica dos produtos carto-

g
gráficos deve se basear o quanto possível nos problemas perce-

oo
bidos por meio do estudo das relações entre o processo interno
e o processo externo, conforme apontaremos a seguir a partir

G
da Carta Geral.

no
Em primeiro lugar, o meridiano que passa pela cidade do Rio

e
de Janeiro é utilizado como origem de todo o sistema de coorde-
nadas da Carta Geral, ao invés dos outros mapas, que utilizavam

on
o meridiano de Paris ou o meridiano de Londres. Essa opção
az
de Niemeyer derivava justamente do debate então travado no
IHGB e que dizia respeito às questões da construção da Nação,
Am

da Nacionalidade e da centralidade do Estado: o Rio de Janeiro


era o centro da Nação e elemento coordenador não apenas do
na

espaço nacional, mas deste em relação aos demais Estados.


a

Em segundo lugar, o destaque dado à divisão provincial pela


nd

utilização do colorido quase que equipara estes limites aos da


divisão internacional. Esse destaque pode ser entendido por
ve

conta mesmo da sobrevivência e da importância da questão


provincial em meio ao debate da construção do nacional. Nesse
à

sentido, observe-se também que, na Carta Geral, as plantas das


á
st

capitais das províncias do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de


le

Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará e a


planta da Corte foram inseridas no mapa ao redor do território
a

nacional, verdadeiramente emoldurando a Carta.


in
ig

Finalmente, através do estudo dos elementos utilizados para


or

descrever o território, podemos compreender as distintas impli-


cações sociais e políticas da inscrição do Estado no território,
O

considerada então no IHGB enquanto uma missão civilizadora.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 123

ay
Nesse caso, a Carta Geral é prolífica em exemplos como: “Gentio
Jacundá tratável e que fala a língua geral”; “Sertão ainda desco-

Pl
nhecido e sem cultura”; “Terrenos inteiramente desconhecidos e

le
ocupados por diversas tribos de índios selvagens que embaraçam

g
a navegação fluvial” e “Paritins, Andiras, Araras, Mundrucus e

oo
outras nações – Em grande parte domesticados”.

G
O Mapa do Rio Grande

no
e
Já a composição do ‘Mapa do Rio Grande’ decorreu da par-

on
ticipação de Duarte da Ponte Ribeiro em certas discussões do
Terceiro Conselho de Estado durante a década de 1840, onde
az
atuaria enquanto consultor da Seção de Justiça e Negócios
Am

Estrangeiros. Nessas discussões, debater-se-ia especificamente


a questão de limites com o Uruguai e coube a Duarte da Ponte
Ribeiro, após reunir as opiniões dos conselheiros que com-
na

punham a Seção, elaborar sobre essas um documento ao qual


integrou seus conhecimentos sobre a questão. Ribeiro redigi-
a
nd

ria, então, o ‘Memorando 37’, para servir como orientação à


Secretaria dos Negócios Estrangeiros para as conversações de
ve

limites com os representantes da República do Uruguai, ao qual


seria anexado um mapa, denominado de ‘Mapa do Rio Grande’,
à

onde as apreensões acerca do espaço foram inscritas por meio de


á

certos símbolos e recursos retóricos que na verdade tornavam a


st

leitura do Memorando propositalmente dependente da consulta


le

ao ‘Mapa do Rio Grande’ (Figura 2).


a
in

Podemos observar a partir de sua comparação com a Carta


ig

Arrowsmith (Figura 1), então uma das peças cartográficas mais


or

citadas nas discussões do Conselho de Estado e no IHGB, que o


território mapeado foi representado segundo técnicas inusitadas
O

para a época. No mapa de Duarte da Ponte Ribeiro, a orientação


O original está à venda na Amazon e no Google Play
124 Cartografias Imaginárias

ay
do mapa contraria a norma cartográfica; as escalas foram des-
locadas a partir de utilização de procedimentos pouco usuais;

Pl
certos elementos geográficos menos relevantes seriam proposi-

le
talmente destacados; finalmente, alguns topônimos foram regis-

g
trados através da utilização de rotinas anormais.

oo
A orientação do Mapa do Rio Grande, ao contrário de prati-

G
camente todas as outras cartas do século XIX, não foi feita pelo
norte, mas pelo sul, representando-se, no caso, o espaço nacio-

no
nal literalmente de ponta-cabeça. E, essa opção do cartógrafo

e
somente pode ser compreendida se pudermos admitir a existên-
cia de uma apreensão particular do espaço que é compartilhada

on
pelos conselheiros do Conselho de Estado a despeito de sua irri-
az
são em relação à norma cartográfica. Podemos colocar que se
pode verificar uma leitura semelhante àquela realizada por Ponte
Am

Ribeiro em relação à sua composição da ‘Carta geral do Brasil’


em 1873’. E, analisando-se o ‘Mapa do Rio Grande’ a partir desta
na

lógica do sentido, pode-se entender que a intelecção do Conselho


de Estado relacionaria, pela orientação e pelo enquadramento,83 o
a

espaço não inscrito com o território mapeado, ou seja, a região


nd

do Prata com a província do Rio Grande do Sul, por conseguinte,


ve

pode-se deduzir que a relação entre esses dois espaços e a impor-


tância desta relação para o espaço nacional foram as razões que
à

então nortearam as discussões e subsequentemente condiciona-


á

ram a composição do mapa.


st
a le

83 O enquadramento é compreendido aqui como um recorte da superfície terrestre dispo-


in

nibilizado para a leitura através de uma determinada perspectiva possibilitada pelo


emolduramento do mapa. Nesse sentido, os paralelos e meridianos que estabelecem
ig

esse recorte da superfície terrestre são instrumentos que possibilitam, num primeiro
or

nível, instituir relações de pertencimento e exclusão e, num segundo nível, organizar


uma estrutura territorial que dê sentido e referências à construção do espaço. Ver
PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacio-
O

nal brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-
(Doutorado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 125

ay
Figura 1 – Detalhe da Carta Arrowsmith

Pl
le
g
oo
G
no
e
on
az
Am

Detalhe ampliado do mapa do Brasil de Jonh Arrowsmith.


na

Fonte: ARROWSMITH (1844).


a

Em relação às escalas, veja-se que o espaço da República do


nd

Uruguai foi representado com uma superfície bem menor da que


ve

era usual por meio de uma deformação das escalas que acentuava
tanto a curvatura do Rio Uruguai quanto a inclinação da costa
à

em direção ao interior. Nesse sentido, embora a acentuação da


á

inclinação da costa sul do Brasil fosse um problema comum na


st

cartografia do início do XIX por conta do problema da medição


le

das longitudes, esse exagero não se justificaria na medida em


que o modelo da composição, a Carta Arrowsmith, não apresen-
a
in

tava uma deformação tão acentuada. No caso, essa diferença do


ig

‘Mapa do Rio Grande’ em relação à ‘Carta Arrowsmith’ pode ser


or

analisada levando-se em conta dois argumentos: primeiro, que


a acentuação da inclinação no mapa tornaria possível represen-
O

tar no mapa a ideia então presente nas discussões do Conselho


O original está à venda na Amazon e no Google Play
126 Cartografias Imaginárias

ay
de Estado de que a questão de limites poderia degenerar numa
possível secessão do território do Rio Grande do Sul. O artifício

Pl
da deformação do desenho do território permite tornar visível o

le
desligamento do Brasil dos territórios uruguaio e gaúcho suge-

g
rindo não apenas a ideia da continuidade espacial, mas também

oo
uma ação centrífuga com origem no Prata. Segundo, a diferença
poderia ser interpretada como uma alteração do objeto não pre-

G
vista pelo seu operador que seria fruto de uma contingência

no
sofrida pela cartografia brasileira que era a influência do medium
cartográfico manuscrito: como essa deformação era muito mais

e
comum nos mapas manuscritos, poderia haver uma tendência

on
inconsciente de reproduzi-la. az
Am

Figura 2 – Mapa do Rio Grande


na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in

Fonte: PEIXOTO (s.d.).


ig
or

O desenho de um dos elementos cartográficos do Mapa, o


O

Rio Negro, seria exageradamente dimensionado tanto na sua


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 127

ay
largura quanto no seu prolongamento, tendência repetida tam-
bém para os seus afluentes. Uma leitura possível dessa diferença

Pl
em relação às produções cartográficas de seu tempo, é que, a

le
deformação deliberada do elemento geográfico estaria em conso-

g
nância com as já citadas ideias de secessão do território gaúcho

oo
e da importância da questão de limites. No caso, se levarmos em
conta essas discussões, a deformação do desenho do Rio Negro

G
e de seus afluentes permitiria transmutar a ideia da drenagem

no
fluvial do território condizente com o elemento geográfico numa
ideia de direcionamento em função do espaço platino, que orga-

e
niza o território uruguaio e penetra e absorve o espaço brasileiro

on
por meio de seus afluentes.
az
Em relação aos topônimos, uma leitura apresenta-se ainda
mais clara, a partir também das discussões no Conselho de
Am

Estado: certos topônimos foram registrados no mapa numa evi-


dente quebra da rotina cartográfica, a saber, foram registrados ao
na

contrário da orientação do mapa, de cabeça para baixo. Este regis-


tro inusitado foi justamente o das áreas que alguns conselheiros
a

haviam entendido fazer parte do espaço brasileiro recorrendo ao


nd

instrumento jurídico do uti possidetis, sugestão essa que acabou


ve

sendo descartada pela maioria dos conselheiros. No caso, a leitura


possível da diferença é a de que Duarte da Ponte Ribeiro registra-
à

ria, conforme os costumes do Conselho de Estado, todas as apre-


á

ciações mesmo que em desacordo com o parecer final, reservada


st

a licença de diferenciá-las da opinião da maioria. Contudo, existe


le

um complicador: dois dos topônimos que deveriam ter acompa-


nhado a quebra da rotina cartográfica foram registrados conforme
a
in

a rotina, a saber, o registro no território uruguaio das cidades de


ig

Bagé e Alegrete foi feito de cabeça para cima. Por conseguinte,


pode-se compreender que Ribeiro sugeriu através da composição
or

do mapa que a opinião minoritária seria a mais sensata, devendo-


O

-se manter esta área no território nacional.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
128 Cartografias Imaginárias

ay
Duarte da Ponte Ribeiro inscreveu, também, no mapa as
sugestões de limites que haviam predominado na discussão do

Pl
Conselho de Estado e seu desenho foi feito pela utilização de duas

le
linhas coloridas, uma vermelha, outra azul, as quais foram liga-

g
das ao registro de uma linha de pequenas elevações, a “Cuchilera

oo
Geral do Rio Grande”, e a dois minúsculos elementos geográficos,
as ilhas de Castilhos Grandes e as de Castilhos Pequenos.

G
Num primeiro momento, ao comparar-se o texto do

no
Memorando 37 com o desenho, percebe-se que a sugestão mais

e
apreciada por Duarte da Ponte Ribeiro foi desenhada em azul,
enquanto que a outra foi desenhada em vermelho, logo parece

on
satisfatório supor que houve uma utilização deliberada da cor
az
para impactar a audiência do mapa, sugerindo uma apreciação
negativa pelo vermelho.
Am

Num segundo momento, percebe-se que as duas sugestões de


limites estavam claramente ligadas a uma escolha dos elementos
na

geográficos registrados no mapa. Nesse sentido, o registro de


a

dois conjuntos de ilhas que normalmente não seriam grafadas


nd

no mapa em razão de sua pequenez, remetia a uma represen-


tação da memória das antigas reivindicações portuguesas, que
ve

estavam relacionadas à linha costeira e a esse grupo de ilhas. Por


outro lado, o registro da ‘Cuchilera Geral’, elevações de escassa
à

importância do ponto de vista geográfico, remetia a uma repre-


á
st

sentação da interpretação do limite mais natural do território que,


le

no caso, carecia justamente de marcos geográficos que pudes-


sem ser utilizados para registrar essa interpretação. Poderíamos
a

entender que Duarte da Ponte Ribeiro interpôs esse registro


in

às sugestões do Conselho de Estado, parecendo esclarecer que


ig

essas sugestões, apesar de remeterem às antigas reivindicações


or

portuguesas, contrariariam o sentido dos limites naturais, que


O

considerava mais útil à defesa do território.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 129

ay
Ainda, outra leitura seria possível a partir do resgate de
todos os elementos e sua ligação com as discussões subsequen-

Pl
tes: estar-se-ia assistindo a exibição de uma nova apreensão

le
do espaço, essa ligada, por sua vez, a Secretaria dos Negócios

g
Estrangeiros. Nessa apreensão, o Prata era tomado como um

oo
espaço além das possibilidades brasileiras e, contrária às posi-
ções defendidas no Conselho de Estado onde muitas vezes se

G
levantavam vozes a favor da reincorporação da Cisplatina, enten-

no
dia-se que estas pretensões minavam os recursos de um territó-
rio maior, o do Rio Grande do Sul, em detrimento de um menor,

e
o do Uruguai. Assim, dever-se-ia privilegiar, nas futuras discus-

on
sões de limites, uma interpretação mais coerente com os esfor-
az
ços de consolidação do Estado nacional, mesmo que ao preço
da cessão de território, iniciativa essa consolidada por meio da
Am

reelaboração do conceito do uti possidetis.


na

Conclusão
a
nd

Machado de Assis lança mão de um artifício para aumentar


o impacto do conto ‘O espelho’: o texto termina, abruptamente,
ve

com o Jacobina narrador não se despedindo dos seus ouvintes,


estes apenas percebem, como que acordados de um transe, que
à

o narrador os havia abandonado. “Tinha descido a escada”, a


á

expressão utilizada por Machado nos recorda que a opção do


st

Jacobina de se negar a representar é de todo modo impossível,


le

porque nos remete ao ideal do anacoreta que, abandonando o


a

lugar em que vivia, em solidão, vai viver a vida contemplativa.


in
ig

Sem o mesmo talento (e também sem pretensão para isso),


or

resolvemos fechar este estudo a respeito da ligação entre a


‘Carta Geral do Brasil’ de Ponte Ribeiro e a ‘Carta Corográfica do
O

Império do Brasil’, de Niemeyer, apenas remetendo a outra lição


O original está à venda na Amazon e no Google Play
130 Cartografias Imaginárias

ay
de Machado de Assis: se o espelho é a metáfora utilizada para
nos fazer melhor entender a ideia da alma externa, será pela dife-

Pl
rença em relação ao lugar e ao tempo que ele nos leva a perceber

le
que aquele era o espelho apenas do outro Jacobina.

g
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 131

ay
Pl
O mapa antes do território:

g le
o território do Javari como exemplo da construção

oo
concorrencial de espaços

G
no
Pode-se dizer que mapear o território significa inscrevê-lo

e
num determinado espaço e, ao mesmo tempo, possibilitar que a
escrita desse território possa transformar o mapa. O exame dessa

on
construção verdadeiramente recíproca permite identificar certos
az
processos de formação da identidade, clarificando suas estraté-
Am

gias e táticas, considerando para isso que o ato de mapear um


território envolve um esforço continuado (explorar, descrever,
cartografar, divulgar) de constante articulação e diálogo. Nesse
na

sentido, pode-se entender que quando um indivíduo ou um


grupo inscreve um território por meio do mapa suas impressões
a

e suas descrições de si mesmos são participantes desse processo,


nd

portanto, poder-se-ia dizer mesmo que o mapa é construído, a


ve

priori, no conjunto das representações culturais dos narradores


e está sujeito a constantes reinvenções, que são também reela-
à

borações de sua identidade. Nesse processo, os produtos carto-


á

gráficos e geográficos participam da interação e competição com


st

outros espaços e identidades, muitas vezes através da concor-


le

rência com outras operações que não podem, do mesmo modo,


a

serem concebidas sem que um território específico as situe e


in

lhes dê raízes e limites.


ig

A mecânica da concorrência com outros espaços estabelece


or

uma luta de representações que possibilita estimular a coesão


O

interna e promover a diferenciação externa e que, por outro


O original está à venda na Amazon e no Google Play
132 Cartografias Imaginárias

ay
lado, exige que o território seja definido tão preciso e completa-
mente até que não haja dúvida da sua singularidade. Por conta

Pl
disso, as cartas e as representações geográficas, por interagirem

le
diretamente com o território, podem tornar-se instrumentos de

g
articulação e estratégia que permitem construir e promover um

oo
consenso acerca do espaço e da identidade.

G
Na lógica do centro, quanto mais precisa fosse a imagem do
território nacional, maiores seriam as chances de se afirmar a

no
singularidade do espaço, mas, num paradoxo, para que se afirme

e
o consenso em torno do local, muitas vezes, torna-se necessário
abstrair-se o todo dessa mesma precisão.

on
Se a construção da identidade coletiva redefine ou reconcei-
az
tua um território, a mudança da escala altera o que é visto e o
Am

modo como os achados serão organizados: a concorrência espa-


cial pode se estabelecer no nível local e construir no interior
do território nacional outro território tão referenciado por sua
na

perspectiva própria que essa exija uma mudança de articulação e


a

de estratégia da perspectiva central.


nd

Para que se possa aprofundar essas questões e as relacionar


ve

com o problema da construção do espaço nacional, será utilizado


o caso do rio Javari.
à
á

As origens da presença portuguesa no Javari


st
le

Na fronteira militar portuguesa, a ação humana era deter-


a

minante para a indefinição dos limites, como, aliás, verifica-


in

-se ainda no léxico do início do século XIX: o ‘Fronteiro’ era


ig

o “Capitão da praça, que está nas rayas, e fronteira inimiga”.


or

A palavra ‘Fronteira’ também podia significar “Expedição con-


O

tra terra de inimigos” e tinha como principal definição a palavra


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 133

ay
‘Confins’, que possuía então a característica de expressar não
somente uma zona larga, profunda, mas também indefinida: “Os

Pl
Confins, s.m. pl. rayas, extremos, fronteiras de Terra estrangeira:

le
os confins da Terra”.84

g
Assim, a fronteira seria uma área que constantemente pode-

oo
ria ser movida para a frente, contra o inimigo, depois do territó-

G
rio parcialmente conhecido, o Sertão. Nesse sentido, nas narrati-
vas portuguesas sobre o Brasil, a linha da fronteira é vista como

no
delimitando simultaneamente o ponto onde cultura e natureza

e
se cruzam: é o ponto de encontro entre a selvageria e a civiliza-
ção. Veja-se a descrição do território do rio Javari:

on
az
Em ambos os rios laterais se criam os mesmos pei-
xes do Solimões; ambos oferecem extensa nave-
Am

gação para transporte das produções do país às


margens do que os recolhe. Nas adjacências dum
e outro há salsaparrilha, e também cacaueiros. Os
confluentes, que os engrossam, são-nos incóg-
na

nitos. Os seus extensos bosques, onde se cria e


perde preciosa madeira, são povoados de porcos,
a

antas, veados e outras raças miúdas, geralmente


nd

perseguidas por várias nações ainda selváticas


[...], os Maiurunas, que fazem uma coroa no mais
ve

alto da cabeça, e deixam tomar aos cabelos todo


o seu crescimento. Tem muitos furos no nariz e
beiços, em que metem espinhos compridos; nos
à

cantos da boca trazem penas de arara. No lábio


á

inferior, na extremidade do nariz e das orelhas,


st

penduram rodelinhas de conchas. São antropó-


fagos; e quando os mesmos parentes adoecem
le

gravemente, matam-nos, para os comer antes que


emagreçam com a moléstia [...](CASAL, 1943).
a
in
ig
or

84 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza recopilado dos vocá-


O

bulos impressos até agora, e nesta segunada edição novamente emendado, e muito
accrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813. p. 442.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
134 Cartografias Imaginárias

ay
Dos seus costumes, dizem que são mui bárba-
ros, sendo mesmo antropófagos não só para com

Pl
os inimigos, como para com os de sua própria
nação que estão muito doentes ou muito velhos,

le
tomando parte nos banquetes os próprios filhos
e pais dos que foram mortos. [...] Que eles são

g
ferozes, que matam seus inimigos sem perdão e

oo
que com os ossos das canelas fazem ornamentos
[...] (MARAJÓ, 1895).

G
no
Observe-se a presença na descrição do léxico ‘Nação’ para
designar “Raça, casta, espécie” e não “A gente de um país, ou

e
região, que tem Língua, Leis, e Governo a parte,” ‘País’ tinha

on
então o significado tão-somente de “Terra, região”.85 O território
do Javari foi descrito, portanto, nos confins do espaço português,
az
a partir da ótica mercantil da Metrópole, de acordo com as possi-
Am

bilidades de exploração econômica das quais os indígenas eram


um fator impeditivo, mas aos indígenas seria reconhecido um
estatuto próprio.
na

Especificamente no caso do Javari, este rio era, ao mesmo


a

tempo, o único limite natural da Amazônia e o marco mais oci-


nd

dental da fronteira portuguesa, o qual somente se alcançava após


ve

uma jornada de oitenta e sete dias de canoa a partir de Belém do


Pará. Por que se estabeleceria como limite natural uma parte tão
à

remota do espaço português, fora do circuito de expansão mer-


á

cantil e dos interesses estratégicos, como explicar essa excentri-


st

cidade no modelo de espaço?


le

No século XVIII, após terem sido desalojados de suas


a

pretensões no alto Solimões, os portugueses aquartelaram


in

na foz do Javari a sua última guarnição antes dos territórios


ig
or

85 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza recopilado dos vocá-


O

bulos impressos até agora, e nesta segunada edição novamente emendado, e muito
accrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813, p. 442.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 135

ay
espanhóis e esta, por sua vez, foi transferida por causa dos
ataques dos índios e das péssimas condições do terreno para

Pl
um lugar duas léguas acima do Solimões, onde já estava esta-

le
belecido um posto de inspeção.86 Ali foi fundado o presídio

g
de São Francisco Xavier de Tabatinga, num sítio mais amplo e

oo
de melhor posição estratégica, sobre um barranco de onde se
avistava tanto a foz do Javari, quanto os territórios espanhóis

G
limítrofes.87 Entretanto, ainda que Tabatinga passasse a partir

no
desse momento a abrigar a derradeira presença portuguesa
na Amazônia ocidental, o abandonado rio Javari se susten-

e
taria enquanto marco natural na fronteira amazônica, sendo

on
reconhecido enquanto tal pela Coroa espanhola através da
az
linha provisória demarcada, em 1751, e posteriormente rati-
ficada em 1777.
Am

Ainda que os Tratados de Madrid e Santo Ildefonso tivessem


sido repudiados por Portugal e depois pelo Brasil, o Javari jamais
na

deixaria de ser considerado tanto pela Espanha como pelos


Estados que a sucederam como o limite natural com o Brasil.
a

Entretanto, o Javari escapava mesmo da estratégia da fronteira


nd

militar portuguesa, pois não tinha importância para a navegação,


ve

não apresentava nenhum interesse para a penetração dos interes-


ses mercantis, não se prestava à catequese nem ao aldeamento
à

dos índios, nem havia perspectiva para o seu povoamento: numa


á

fronteira móvel, destinada a penetração, o território do Javari era


st

a própria materialização da inércia.


le

O espantoso, é que no caso do rio Javari, ao contrário do rio


a

Madeira, a presença portuguesa continuaria apenas simbólica,


in
ig
or

86 PINTO, Alfredo Moreira. Apontamentos para o dicionário geográfico do Brasil (III).


Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
O

87 SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Corografia Paraense ou descrição física, histórica


e política da província do Grão-Pará. Salvador: Typografia do Diário, 1833. p. 309-310.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
136 Cartografias Imaginárias

ay
uma vez que o seu “sinuoso e lentíssimo curso,” como era des-
crito na época, era despovoado e, sobretudo, desconhecido,

Pl
devido às dificuldades reais ou imaginárias.88

g le
As explorações do século XIX

oo
G
No decorrer do século XIX, o território do rio Javari passaria

no
a ser descrito diferentemente do período colonial: a cristalização
da nação se impunha por meio da racionalização que conquista e

e
bane o mistério, nega e extirpa outros povos. Paisagem e popu-

on
lação passariam a ser classificadas e analisadas, não apenas em
função da utilidade mercantil, mas em termos de quantidade,
az
qualidade e diversidade. Os indígenas veriam desaparecer gradu-
Am

almente seus atributos de diferenciação, uma vez que, no novo


discurso da fronteira cristalizado pela doutrina do uti possidetis, o
sujeito ativo era usualmente negado. Sublinhar-se-ia nos indíge-
na

nas apenas a circunstância de seu não pertencimento à civiliza-


ção e de participação numa nova ordem da qual os exploradores
a
nd

tinham o controle e de onde, inclusive, poderiam adquirir novas


qualidades:
ve

Alguns [indígenas eram] inteiramente brancos [...]


à

as mulheres [...] não pintavam o corpo e eram esbel-


tas e elegantes [...] Eram ousados e valentes, ata-
á

cando o civilizado de frente e não por traição [...]


st

casavam-se na idade própria, por amor e inclinação


le

[...] eram antropófagos mesmo entre si, não pou-


pando os próprios parentes, salvo se a morte tivesse
a
in

88 Símbolo dessas dificuldades, é que ainda em março de 1903, 60 fuzileiros navais


ig

embarcaram no Cruzador Barroso e seguiram para Tabatinga, na Amazônia, onde,


or

estacionados, velariam pela neutralidade brasileira no conflito Peru-Colômbia. Em


quatro meses, uma febre equatorial dizimou o contingente, regressando para o Rio
de Janeiro, como sobreviventes, um sargento, dois cabos e três soldados. MARTINS,
O

Hélio Leôncio. Poderes Combatentes. In: História Naval Brasileira 5 Tomo I B,. Rio
de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1997. p. 91.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 137

ay
sido provocada por veneno ou moléstia epidêmica.
Não poupavam os inimigos, matando-os sem pie-

Pl
dade, e de maneira atroz [...] o prato predileto nos
canibais festins, [eram] os miolos e as mãos das

le
vítimas, apreciando em demasia as dos homens civi-
lizados. Dos ossos, dentes, etc. faziam troféus de

g
guerra, conservando alguns a cabeça da vítima na

oo
frente de suas malocas, espetada na própria lança do
guerreiro que a matou (CUNHA GOMES, 1898).89

G
Note-se que, apesar da diferença em relação às narrativas

no
coloniais, essas descrições do território do Javari eram apenas

e
reelaborações das primeiras, uma vez que poucos homens bran-
cos se aventuraram a percorrer o rio Javari antes do boom da

on
borracha.90 Esses homens, demarcadores e exploradores, pres-
az
sionados pelas dificuldades materiais do empreendimento, pro-
Am

duziram os mais duvidosos e desencontrados relatos, os quais


contribuiriam para tornar o Javari o “rio misterioso” das narrati-
vas do século XIX e induzir em erro toda a cartografia da época.
na

Por exemplo, a comissão de demarcação portuguesa de 1781


a

calculou haver descido 210 milhas do rio, estimando que seu


nd

curso se estendesse para noroeste até atingir 5° 36’ de latitude Sul


e inscreveu os dados obtidos num mapa que foi manuscrito em
ve

1786. 91 Nesse mapa, dois símbolos topográficos foram assinala-


à

dos no curso médio do Javari, indicando-se a existência de duas


‘Vigias’, termo que, segundo o vocabulário da época, poderia sig-
á
st

nificar a existência de bancos de areia ou, menos possivelmente,


ale
in

89 Relatório da exploração do Rio Javari por Cunha Gomes ao Ministro das Relações
Exteriores. In: Relatório do Ministro das Relações Exteriores, 1898. p. 247.
ig

90 “[...] nenhum explorador ou flibusteiro conseguira navegar [o rio Javari] por mais
or

de três dias sem ser massacrado” TEFFÉ, Tetrá. Barão de Teffé - Militar e cientista.
Biografia do Almirante Antonio Luiz von Hoonholtz. Rio de Janeiro: Serviço de
Documentação Geral da Marinha, 1977. p. 239.
O

91 Carta do rio Javari até a latitude meridional 5° 36’ pelos Engenheiros José Joaquim
Victorio da Costa e Pedro Alexandrino de Souza, 1787.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
138 Cartografias Imaginárias

ay
locais onde houvessem sido instaladas sentinelas às margens do
rio.

Pl
Décadas depois, o plenipotenciário brasileiro quando da nego-

le
ciação de limites com o Peru, Duarte da Ponte Ribeiro, relataria

g
estupefato que os representantes daquele país reconheceram de

oo
pronto a posse brasileira de todo o território do Javari apenas

G
baseados no fato de seus próprios mapas registrarem duas povo-
ações brasileiras no curso médio do rio.92 Provavelmente, este

no
grave erro da diplomacia peruana se deveu ao fato de se terem

e
consultado mapas cujos autores haviam copiado os dados do
mapa de 1786 e, mal interpretando o significado das ‘Vigias’,

on
transcreveram-nas como duas localidades.93 az
Depois disso, o Javari somente seria navegado nas décadas de
Am

1840 e 1850, dessa vez, pelos exploradores W. L. Herdon e F. L.


Castelnau, o primeiro dos quais havia recebido da Marinha ame-
ricana a missão de explorar o vale do Amazonas, enquanto que
na

o segundo estava executando a viagem por ordem do Governo


a

francês, num roteiro que ia do Rio de Janeiro até Lima e daí


nd

novamente até Belém. Estas duas expedições, que já se inserem


no âmbito da produção de espaço concorrencial, produziriam
ve

resultados bastante diversos em relação ao Javari: Herdon diria


ter reconhecido 183 Km do rio, enquanto que Castelnau alegaria
à

ter penetrado profundamente o Javari por 270 milhas estabele-


á
st

cendo assim a direção de seu curso em leste-oeste!94


le

Alguns anos depois, em 1866, uma expedição conjunta bra-


sileiro-peruana destinada a verificar a fronteira entre os dois
a
in
ig
or

92 Protocolo da Negociação do Tratado de Limites com o Peru, concluído em 23 de


outubro de 1851. Acesso em AHI - Arq. Part. Ponte Ribeiro.
93 Um desses exemplos é a carta Leme. Ver LEME, Antonio Pires da Silva Pontes. Carta
O

da Nova Lusitânia. Lisboa: [s.n.]. 1798.


94 Castelnau navegou o Javari entre os anos 1843-1847 e Herdon em 1854.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 139

ay
países (posteriormente denominada expedição Soares Pinto
– Paz Soldán), tentou determinar a nascente do Javari, mas foi

Pl
arrasada pelos indígenas na latitude 6° 50’ Sul tendo falecido ali o

le
Capitão-tenente Soares Pinto, considerado então um dos maio-

g
res hidrógrafos e astrônomos brasileiros.

oo
Somente em julho de 1874, seria designada um nova comis-

G
são para verificar as origens do Javari, dessa vez sob o comando
de Antônio Luiz von Hoonholtz, professor de hidrografia da

no
Escola de Marinha desde 1857, autor da primeira obra em língua

e
portuguesa sobre hidrografia e do mapa da Ilha de Santa Catarina
que foi incluído no prestigioso Atlas Mouchez. Na sua narrativa,

on
Hoonholtz assinalava que “ninguém havia ultrapassado impu-
az
nemente a foz do rio Galvez” e que ele mesmo só havia conse-
guido determinar a nascente do Javari em 7° 06’ depois de ter
Am

travado duas dificílimas batalhas com os indígenas e após cortar


176 grossos troncos de árvore que serviam de ponte àqueles (os
na

troncos estavam atravessados de margem a margem do Javari


impedindo a navegação).
a
nd

O relato sublinha ainda que a nascente do rio Javari foi deter-


minada com o auxílio apenas do último dos nove cronômetros
ve

com que iniciara a jornada e que morreram nesse esforço 23 dos


seus 82 homens (notícias posteriores deram conta de 53 mor-
à

tos, dentre os quais o próprio irmão do explorador), ainda que


á
st

tivessem navegado em canoas protegidas por uma grossa tela de


le

arame e praticamente não houvessem desembarcado.


As memórias dessa viagem exploratória, publicadas na
a
in

França por Alfred Marc, têm o título de “Um explorador brasi-


ig

leiro, dois mil quilômetros de navegação em canoas através de


or

um rio inexplorado e completamente dominado por selvagens


ferozes e indomáveis.” Sugestivamente, ainda que por conta
O

desse feito Hoonholtz tenha sido agraciado com o título de


O original está à venda na Amazon e no Google Play
140 Cartografias Imaginárias

ay
Barão, o explorador não quis que o título se referisse ao Javari,
preferindo ser reconhecido como o Barão de Tefé, lugar onde a

Pl
jornada terminou.

le
Entretanto, ao contrário do que seria de se esperar, a con-

g
clusão dessa expedição seria muitíssimo mal recebida por seus

oo
compatriotas, uma vez que, por conta dos padrões de limites que

G
haviam se estabelecido através dos atlas, a soberania brasileira
sobre a área incluiria não só o Javari, mas ainda todo o território

no
à leste desse rio, já que se traçava, na maioria das representações

e
cartográficas estrangeiras, uma reta de sua nascente até encon-
trar o rio Madeira, logo, quanto maior fosse a extensão do rio

on
Javari, maior seria o território pertencente ao Brasil.
az
Am

O Javari na cartografia
na

Ainda que ao início do século XIX, a Corografia Brasílica hou-


vesse localizado as nascentes do rio Javari em 7° 30’, (quase o
a

mesmo valor que é atribuído atualmente, aproximadamente


nd

7° 01’), os mapas portugueses e atlas estrangeiros, como o La


ve

Rochette de 1807 (desenhado em grande parte sobre as mesmas


cartas), passariam a prolongar a extensão do rio Javari até 10º
à

20’, valor este que em que chegaria mesmo a 12º no Atlas Balbi-
á

Monlon.95 No entanto, ainda que essa representação cartográfica


st

prevalecesse nos atlas estrangeiros, outros padrões de limites


le

que negavam aquele território ao espaço brasileiro também pas-


saram a ser divulgados surgindo, para o Brasil, a necessidade de
a
in

se construir uma visão cartográfica oficial.


ig
or
O

95 BALBI, A.; MONLON, Emile. Atlas da Geographia Universal. Paris: J. P. Aillaud


Monlon e Cª, 1858.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 141

ay
As iniciativas governamentais tardariam, tomando mais
ímpeto apenas na década de 1870, a partir da necessidade de

Pl
embasar a presença brasileira nas Exposições Universais, sendo

le
então estabelecidas várias comissões destinadas a elaborar a

g
Carta Geral do Brasil, resultando destas, após inúmeros adia-

oo
mentos e contratempos, duas Cartas oficiais do Império Brasil,
as de 1873 e 1874, apresentadas respectivamente na Exposição

G
Universal de Viena em 1873 e na Exposição Nacional de 1875.

no
De todo modo, algumas outras iniciativas esparsas se fizeram
sentir, como, por exemplo, a concessão do primeiro prêmio geo-

e
gráfico no IHGB para o autor de uma carta do Império já em

on
1846 e a organização do Atlas Almeida, “destinado à instrução
az
pública no Império com especialidade à dos alunos do imperial
Colégio de Pedro II” (ALMEIDA, 1868).
Am

No que se refere particularmente ao rio Javari, as obras


resultantes do esforço nacional endossariam a posição brasileira
na

corrente até o ano de 1875, quando da publicação da ‘Carta do


Império do Brasil’, onde a pretensão de soberania total sobre o
a

território do Javari foi subitamente abandonada.


nd

Por que uma mudança tão repentina após quase cem anos de
ve

narrativas geográficas e registros cartográficos noutro sentido?


à

Esta mudança da posição oficial foi realizada por razões de


á

estado: em 1867, durante a Guerra do Paraguai, com o obje-


st

tivo de garantir a neutralidade da Bolívia no conflito, o Brasil


le

assinaria com este país o Tratado de Ayacucho, no qual, pela


primeira vez, o Governo brasileiro admitia abrir mão da sobe-
a
in

rania integral sobre o Javari: caso algum dia se constatasse que


ig

esse rio ultrapassava o paralelo de 10º 20’, seu curso inferior


or

passaria a pertencer à Bolívia, ou numa hipótese mais preju-


dicial ainda ao Brasil, se a cabeceira do rio fosse localizada em
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
142 Cartografias Imaginárias

ay
uma latitude inferior, o território entre essa e o referido para-
lelo seria boliviano.

Pl
A partir da expedição de Hoonholtz, e por uma via tortuosa,

le
já que a missão exploratória se destinava a balizar os limites

g
do Brasil com a república do Peru, ficaria confirmada a segunda

oo
conjetura e o Brasil perderia a maior parte do território naquela

G
área, já que o misterioso rio Javari encolheria substancial e
subitamente.

no
Entretanto, esta representação do espaço brasileiro que se con-

e
solidava através de instrumentos jurídicos internacionais não havia

on
contemplado uma articulação com as elites regionais que incluísse
suas expectativas em relação à construção local de espaço.
az
Am

As lutas pela representação do Javari


na

A província do Amazonas experimentaria um intenso desen-


volvimento a partir dos meados da década de 1860, fruto da
a

migração nordestina e dos altos lucros provenientes da exporta-


nd

ção de um produto, a borracha, que seria responsável pela pro-


ve

dução de uma forte identidade local:


à

A província do Amazonas, assim como a sua limí-


á

trofe do Pará, são as duas que oferecem um futuro


mais grandioso em todo o Império. Apesar do seu
st

desenvolvimento se ter feito lenta e parcamente,


le

por circunstâncias especiais da sua situação nos


confins do litoral marítimo e da metrópole, a
a

riqueza espontânea de seu imenso território, a


in

opulência das numerosas artérias fluviais e a pro-


ximidade dos muitos estados e colônias estrangei-
ig

ras, hão de necessariamente dar-lhe um impulso


or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 143

ay
vigoroso e constituir uma nação rica, forte e colos-
salmente grandiosa.96

Pl
Esta identidade divergiria da construção historiográfica idea-

le
lizada no IHGB, uma vez que não era construída em relação com

g
oo
a tradição, mas com o novo, comprometendo-se com a abertura
a outras culturas e a uma conexão com outros países que quase

G
substituía a ligação com o centro. O Amazonas, segundo essa

no
construção, seria o país do futuro, uma terra de oportunidades,
habitado em sua grande maioria por migrantes e estrangeiros,

e
aos quais os naturais já estavam integrados, preenchido por uma

on
natureza prestes a ser submetida pelo progresso e pela civiliza-
ção trazida pela opulência: az
As febres intermitentes, que podem ser contraí-
Am

das por impureza das águas, não são endêmicas e


quase nunca atacam as pessoas que filtram o pre-
cioso líquido para bebê-lo, andam calçadas e con-
na

fortavelmente vestidas, evitando os banhos fora


das horas matinais (GONÇALVES, 1904).
a
nd

Nesse contexto, também a noção dos limites territoriais


dessa nova identidade não coincidiria mais com as cartas ofi-
ve

ciais que, cada vez mais desacreditadas, não impediram que em


Manaus se passasse a conceder lotes de terras com títulos defini-
à

tivos de posse no rio Acre, muito ao sul da fronteira estabelecida


á
st

pelo governo central, por exemplo, a constituição da comarca


le

amazonense de Antimary excederia até os padrões de limites


anteriores a expedição de Hoonholtz, ultrapassando muito o
a

paralelo de 10º 20’.


in
ig

No entanto, essa divergência não se limitava à região do


or

Javari. Segundo uma corografia divulgada no Estado, que


O

96 SILVA, Viriato Augusto da. Corografia do Brasil. Lisboa: D. Corazzi, 1882. p. 38.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
144 Cartografias Imaginárias

ay
inclusive ainda mantinha inclusa a carta oficial do Brasil, o limite
do Amazonas com a Colômbia seria o antigo rio dos Enganos,

Pl
o que permitia estender o espaço local até os contrafortes da

le
Cordilheira dos Andes. A própria exploração comercial da região

g
que o Javari delimitava passou a ser incentivada pelo governo

oo
estadual, apoiada na lógica de que a metade da sua produção de
borracha provinha daquela área.

G
Concomitantemente, diversos geógrafos e militares no Rio

no
de Janeiro passaram a contestar a perspectiva de espaço central,

e
posicionando-se contra a cessão do território do Javari com argu-
mentos que reinventavam os padrões de limites, no caso, argu-

on
mentando que as nascentes do Javari só poderiam estar onde
az
sempre estiveram: “pelo menos, na altura de 10° 20’, isto é, no
paralelo do Madeira.”
Am

A luta de representações se intensificaria com a República,


estendendo-se então ao próprio Ministério das Relações
na

Exteriores, que emprestaria credibilidade a estas suposições ao


a

constituir duas novas expedições com o propósito explícito de


nd

determinar as nascentes do Javari, nos anos de 1897 e 1902.


Contraditoriamente, entre os anos de 1895 e 1899, também
ve

seriam tomadas uma série de providências destinadas a defender


a soberania da Bolívia sobre a área pretendida pelo Amazonas,
à

reconhecendo-se como ilegais os decretos de Manaus, autorizan-


á
st

do-se a criação de uma alfândega e demais repartições bolivianas


le

na região e instalando-se um consulado brasileiro na povoação


de Porto Alonso, centro do território disputado.
a
in

A reação do governo amazonense e dos comerciantes locais,


ig

contando com o apoio popular, foi incentivar a desobediência às


or

diretrizes do Rio de Janeiro e apoiar a guerrilha contra as auto-


ridades bolivianas:
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 145

ay
[...] àquela porção de brasileiros, que em zona
longínqua, regam com seu sagrado sangue a idéia

Pl
patriótica de fazer permanecer brasileira a larga
faixa de terra ora ocupada pelo estrangeiro, ao sul

le
da chamada linha Cunha Gomes, que o governo
vê-se obrigado a respeitar por força de um tra-

g
tado. Por mais ilegal que pareça este proceder dos

oo
insurretos, traduz um belo movimento de patrio-
tismo e os sentimentos apurados do direito de

G
propriedade que, no dizer de von Thering, é um
prolongamento da personalidade mesma, parte

no
integrante do indivíduo, porque é a sua condição
de coexistência social. Homens que, arriscando

e
a vida, conseguiram construir habitação, consti-
tuir um lar, fundar uma propriedade em territó-

on
rios inexplorados, que possuíam como pedaços
da pátria, a cujas leis eram obedientes, não se
az
podem conformar a ver, de um momento para o
outro, perdidos todos os seus esforços inteligen-
Am

tes, passando a leis diversas em estranha pátria


(GONÇALVES, 1904).
na

Já em 1900, a eleição para o governo do Amazonas seria ganha


por Silvério Nery, cuja principal plataforma de governo era
a
nd

a idéia de despertar, por todos os meios justos e


legais, a atenção dos poderes públicos da União
ve

para uma ação comum, tendente a reivindicação


do Acre [onde] o estrangeiro, tendo invadido, com
à

o assentimento do governo federal, uma parte do


território amazonense, parecia zombar de nossos
á

direitos (GONÇALVES, 1904).


st
le

Iniciar-se-ia, em seguida, uma campanha de imprensa e


a

intensas pressões no Congresso com vistas a defender os inte-


in

resses de Manaus, onde o ex-ministro das Relações Exteriores


ig

tentaria negar autoridade à visão local de espaço:


or

[...] [esta] questão que não existe [...] esta ques-


O

tão [a do Acre] que nasceu nas praças comerciais


de Belém e Manaus, de lá subiu ao palácio do
O original está à venda na Amazon e no Google Play
146 Cartografias Imaginárias

ay
governo do Amazonas, daí se propagou aos serin-
gais do Acre, fosse agitada na imprensa diária, até

Pl
que vieram morrer suas ondas na outra casa do
Congresso (CERQUEIRA, 1901).

g le
No centro de toda a controvérsia, encontrar-se-ia de novo

oo
o rio Javari: de supetão, as discussões se encaminhariam nos
meios geográficos até que se tornasse majoritária a ideia que o

G
rio explorado por Hoonholtz não era o Javari, mas apenas um

no
braço deste, o Jaquirana, sendo necessário, portanto, prosseguir
no esforço de encontrar o fugidio rio.

e
Sob tais circunstâncias, Dionysio Cerqueira, o ministro das

on
Relações Exteriores, enunciaria a posição do Governo em um
az
pronunciamento estranho e, no mínimo, enigmático:
Am

Vou demonstrar que a fronteira do Brasil com a


Bolívia, entre os rios Madeira e Javari, é a linha
geodésica que liga a foz do Beni à nascente do
na

Javari, e não uma linha, que não é linha, mas um


ângulo formado de duas linhas, ou uma linha que
a

é constituída por dois lados de um ângulo, cujo


nd

vértice é o ponto de intercessão do meridiano


que passa pela cabeceira do Javari, e pelo para-
lelo que passa pela boca do Beni, e cujos extre-
ve

mos são as cabeceiras do Javari e a boca do Beni


(CERQUEIRA, 1901).
à
á

A partir desse momento, toda a questão fora remetida ao


st

marco zero, uma vez que o rio Javari, o qual balizara as frontei-
le

ras do Brasil desde o século XVIII, simplesmente desaparecera,


a

permitindo-nos parodiar o que certa vez disse o próprio Barão


in

de Tefé: “[...] escondia-se a fonte desse rio misterioso, quase


ig

encantado” (VIANA FILHO, 1959).


or

A confusão se transformaria ainda numa questão da cam-


panha presidencial capaz de mudar os rumos da eleição:
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 147

ay
acompanhando a tendência do eleitorado, Rodrigues Alves pas-
saria a demonstrar simpatia pelos chamados “combatentes do

Pl
Acre”. Eleito, este reconstruiria a articulação do centro com a

le
periferia designando para o Ministério das Relações Exteriores

g
um indivíduo já reconhecido por suas ligações com as questões

oo
de limites: Rio Branco. Este, em 18 de Janeiro de 1903, faria um
comunicado à Bolívia no qual se informava que o Brasil passa-

G
ria a sustentar o que considerava a verdadeira interpretação do

no
Tratado de Ayacucho: a fronteira brasileira era o mítico nasce-
douro do Javari, “o paralelo de dez graus e vinte minutos”.

e
Remate de Males
on
az
Am

Depois da compra do Acre, o Javari já estava aberto à nave-


gação comercial até a sua principal povoação, denominada então
Remate de Males, localizada na confluência com o rio Itecuaí e
na

ainda em vapores e lanchas até a confluência com o rio Curuçá.


A companhia de navegação que prestava esse serviço era inglesa,
a
nd

a The Amazon Steamship N. Company, Ltd. e navegava uma vez por


mês esse percurso. Remate de Males possuía naquele ano mais de
ve

1.000 habitantes e contava com uma escola pública mantida pelo


governo do estado do Amazonas.97
à
á

Consta que o nordestino que lançou os fundamentos dessa


st

povoação chegou à Amazônia fugindo da seca depois de haver


le

experimentado todo tipo de dificuldade: lá se tornaria ainda


mais infeliz, perdendo o que lhe havia sobrado da família e os
a
in
ig
or
O

97 GONÇALVES, Lopes. O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o


ano de 1903. New York: Hugo J. Hanf, 1904. p.72-73.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
148 Cartografias Imaginárias

ay
últimos recursos conseguidos. Em seu leito de agonia, desani-
mado, resolveu batizar a localidade de Remate de Males.98

Pl
Após a reinvenção do espaço nacional e depois de finalmente

le
se haver descoberto que o rio Javari não estivera onde se acredi-

g
tara houvesse existido, Remate de Males mudaria de nome: passa-

oo
ria a se chamar Benjamim Constant, um dos patronos da República

G
– do Brasil.

no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in
ig
or

98 BITTENCOURT, Agnelo. A psicologia nos nomes geográficos do Amazonas. In:


O

Mosaicos do Amazonas - Fisiografia e demografia da região. Manaus: Edições


Governo do Estado do Amazonas, 1966. p. 128.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 149

ay
Pl
Os dromedários e as borboletas:

g le
uma análise da produção da espacialidade regional por

oo
meio da ‘Comissão Científica de Exploração’ do IHGB

G
(1855-1862)

no
e
Uma das características da construção do espaço nacional, no
século XIX, é que ela propicia as condições para a integração das

on
elites num sistema institucional central, uma vez que o reconhe-
az
cimento mesmo da existência do centro dependia da manuten-
Am

ção da afinidade entre os vários grupos que residiam no territó-


rio. Assim, o projeto histórico caminhou, num jogo de tensões e
contratensões, pari passu com a constituição de um saber sobre o
na

espaço que possibilitou o estabelecimento do consenso acerca da


identidade. Este processo descontínuo e heterogêneo pode ser
a

revelado pelo exame das iniciativas e da produção sobre o espaço


nd

do período, uma vez que sua discussão mesma seria estratégica


ve

para as partes envolvidas. Um dos lugares estratégicos para esta


investigação é o IHGB, uma vez que seus mecanismos internos
à

estimularam a manutenção continuada de elos entre o centro e as


á

partes, numa colaboração acentuada pelo pertencimento de seus


st

membros a outras instituições. O exame de uma de suas iniciati-


le

vas, a Comissão Científica de Exploração, se torna estratégico na


a

medida em que seus resultados interessavam simultaneamente


in

tanto ao centro quanto às elites regionais e acabariam expondo


ig

os limites entre a tensão e o entendimento.


or

Alguns autores têm apontado os anos setenta do século XIX


O

como o início da chamada diferenciação regional no Brasil, quando


O original está à venda na Amazon e no Google Play
150 Cartografias Imaginárias

ay
se teria constituído uma argumentação que passava a dissociar
claramente os espaços norte e sul do Brasil. Evaldo Cabral de

Pl
Mello discerniu-a nos discursos das elites políticas do final do

le
Império, entendendo que teria sido motivada pela modificação

g
do equilíbrio inter-regional e intrarregional.99 Rosa Maria Godoy

oo
entenderia, por sua vez, que, a partir desta argumentação, fun-
damentar-se-ia uma identidade regional e uma narrativa territo-

G
rial nortista que se consolidaria a partir dos acontecimentos que

no
desencadearam o Congresso Agrícola do Recife de 1878.100 Nesse
raciocínio, a identidade nortista seria então caracterizada pela

e
perspectiva que a classe dominante teria do processo como um

on
todo, o que teria levado à elaboração de uma narrativa que articu-
az
lava o discurso regional à narrativa da unidade nacional enquanto
parte de uma estratégia que visava à manutenção de seus pri-
Am

vilégios. Por sua vez, os elementos que constituíam o discurso


da regionalidade resultariam de uma perspectivação do espaço
na

regional como um domínio das antigas práticas e lugares sociais.


Por meio do raciocínio dos dois autores, poderíamos enten-
a

der que o espaço nortista foi constituído numa tensão entre a


nd

estratégia inter-regional e a reafirmação da inscrição intrarregio-


ve

nal, tensão essa que teria se inflectido na elaboração do discurso


nortista, uma vez que sua estrutura narrativa articulou metáforas
à

claramente opostas na busca de uma unidade de sentido. Em


á

relação ao tema do espaço, por exemplo, as metáforas através


st

das quais o Norte é descrito enquanto uma região superior às


le

demais, seja em cultura seja em produção, convivem com metá-


a

foras que o identificam como um território abandonado ou per-


in

manentemente vitimado por acontecimentos naturais fora do


ig
or

99 MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império, 1871-1889. 2. ed. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1999.
O

100 SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. O Regionalismo Nordestino: Existência e Consciência


da Desigualdade Regional. São Paulo: Editora Moderna, 1984.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 151

ay
seu controle. Do mesmo modo, o tema da identidade se com-
põe tanto por metáforas que fazem referência a valentia, capa-

Pl
cidade de luta e a vontade de independência contra o coloni-

le
zador, contra Palmares, contra o Governo Central, quanto pela

g
uma generosidade e capacidade de convivência com as chamadas

oo
‘Províncias irmãs’. Portanto, a semântica do discurso nortista ou
pernambucanista evidenciaria uma retórica que conjuga a inserção

G
diferenciada no espaço nacional com um sentido de arrumação

no
regional preciso.

e
Neste estudo, pretendemos observar que o sucesso do dis-
curso regional não se deu a despeito dessa tensão evidente na

on
estrutura narrativa, mas porque essa tensão foi capaz de se arti-
az
cular com outras metáforas mais antigas que compunham um
saber sobre o espaço cuja semântica era partilhada e compre-
Am

endida tanto pelas elites que organizavam um espaço nacional


centralizado no Rio de Janeiro quanto por aquelas elites que se
na

tornariam agentes e recipientes da construção regional. Nesse


sentido, entendemos que vários dos elementos utilizados na ela-
a

boração do discurso regionalista, na década de 1870, já eram


nd

de uso corrente na linguagem sobre o espaço desde pelo menos


ve

vinte anos antes e serviam então para constituir certas represen-


tações que inscreviam o território e seus habitantes no espaço
à

nacional. Contudo, essa inscrição não deve ser compreendida


á

como tendo sido feita do centro do espaço contra sua periferia,


st

mas pela recepção da periferia no centro do espaço e pela coadu-


le

nação de interesses e demandas. A inscrição da região e de seus


a

habitantes no espaço nacional se deu, portanto, em meio de uma


in

operação que também os instituía como operadores junto a uma


ig

simbolização das representações já constituídas.101


or
O

101 Quanto à idéia de simbolização, representação e operação Ver CASSIRER, Ernst.


A Filosofia das formas simbólicas. II – O pensamento mítico. São Paulo: Martins
O original está à venda na Amazon e no Google Play
152 Cartografias Imaginárias

ay
Examinaremos com o objetivo de articular esta operação com
a construção do território e da identidade nortista os discursos

Pl
acerca da instalação e dos resultados da ‘Comissão Científica

le
de Exploração do IHGB’, que percorreu as províncias do Ceará,

g
Piauí, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte entre 1859

oo
e 1861. O exame desses discursos se torna relevante na medida
em que nos permite observar as transformações da semântica e

G
da retórica que constituíram as metáforas utilizadas na inscri-

no
ção da Região em meio à operação da territorialização de seus
domínios na construção do espaço nacional, já que os discursos

e
foram emitidos em meio a sua produção e por meio dessa produção, o

on
que nos permite inferir que a transformação metafórica foi uma
az
resultante do acordo entre as partes.
Am

A Comissão Científica de Exploração do IHGB


na

A Comissão Científica de Exploração nasceu das discussões


que dividiram o Instituto entre 1853 e 1854, e que consistiram
a
nd

essencialmente na disputa acerca da delimitação das atribui-


ções do IHGB, no caso, opondo aqueles que entendiam que o
ve

Instituto deveria manter-se enquanto um mero aparelho legiti-


mador do Estado e os que pensavam que o IHGB deveria assumir
à

na íntegra suas funções enquanto sociedade científica. Embora


á

o segundo grupo vencesse a disputa, ele acabaria convergindo,


st

por conta dos argumentos nacionalistas esgrimidos na querela,


le

para uma posição comum de rejeição aos relatos dos viajantes


a

estrangeiros, acusados de falsificar e distorcer a verdade sobre


in

o país, numa leitura condizente com o entendimento de que a


ig
or

Fontes, 2004. Em relação à conexão dessas ideias com a construção do espaço nacio-
nal brasileiro ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção
O

do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX.


2005. Tese – (Doutorado em História) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 153

ay
corografia do território passava a ser então uma das prerrogati-
vas do Instituto e que esse deveria passar a assumir uma partici-

Pl
pação mais ativa em relação à questão.102

le
Assim, em 1856, no bojo de mais um debate a respeito dos

g
trabalhos dos viajantes estrangeiros, seria possível formular-

oo
-se a proposta da formação de uma “comissão de engenheiros

G
e de naturalistas nacionais” que deveria ser destinada a explo-
rar “algumas das províncias menos conhecidas do Brasil”, tendo

no
ainda a missão complementar de formar uma coleção de espéci-

e
mes da fauna, da flora e da cultura indígena para enriquecer as
coleções do Museu Nacional.103

on
Por conseguinte, a proposta de formação da Comissão se
az
amparava num entendimento comum à maioria de seus mem-
Am

bros, mas como essa iniciativa dependia dos recursos do Estado


para efetivar-se, a busca de um estatuto científico por parte do
IHGB passou a depender das reviravoltas da política.
na

Embora o aceite do Governo e a nomeação dos membros da


a

Comissão pelo Ministro dos Negócios do Império tenham sido


nd

comunicados ao IHGB já na sessão de 25 de julho de 1856,104 a


ve

Comissão somente começaria seus trabalhos três anos depois.


Isto pode ser explicado por meio de um remetimento ao próprio
à

caráter da composição do Instituto que, por conta de seus prin-


á

cípios de recrutamento, fazia reunir, muitas vezes na mesma


st

Seção, aqueles que se revezavam numa só função do aparelho


le

de Estado. O fato é que as desavenças surgidas durante as dis-


cussões de 1853 e 1854 haviam tornado os chefes da Comissão
a
in

desafetos dos que se encontravam a frente do Ministério dos


ig
or

102 Veja-se, por exemplo, o ataque de Manoel Ferreira Lagos à obra de Castelnau: Revista
do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XVIII, 1855. p. 28. Suplemento.
O

103 REVISTA DO IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 11-12. Suplemento.
104 REVISTA DO IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 21. Suplemento.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
154 Cartografias Imaginárias

ay
Negócios do Império, problema este que se refletiu no corte de
suas verbas, causando os sucessivos adiamentos dos preparati-

Pl
vos para a viagem.105

le
Por conta disso, a Comissão Científica de Exploração somente

g
conseguiria chegar a Fortaleza em 1859, quando inauguraria uma

oo
atuação que seria depois lembrada pelos episódios escandalosos

G
ou cômicos, os quais, tornando-se destaque nos mexericos da
Província e da Corte, acabariam por lhe indispor o Governo e o

no
Parlamento.

e
No Senado, referia-se a ela como a ‘Comissão das Borboletas’,

on
lamentando-se a insensatez de se gastar tanto dinheiro público
apenas para que se juntassem tais insetos. Em Fortaleza apeli-
az
daram-na de ‘Expedição Defloradora’, entendendo ser o desre-
Am

gramento o objetivo central de seus membros. Salientava-se o


despudor de seus membros ao circular pela cidade de bermudas
e em fraldas de camisa. Falar-se-ia também do desatino de seus
na

integrantes, capazes de, em suas viagens pelo interior da pro-


a

víncia, usar chapéus cujo preço equivalia ao de dez bois. Ficaria


nd

registrado no folclore da cidade o dia em que a população assistiu


embasbacada ao desembarque de quatorze dromedários junto
ve

com seus tratadores argelinos, providência que, comentava-se,


não teve nenhuma serventia. Dir-se-ia, ainda, que os chefes da
à

Comissão teriam afundado propositalmente o navio que levava


á
st

parte do material coletado de modo que não lhes pudesse ser


le

cobrada a falta de resultados.106


Não faz parte de nosso objetivo reconstituir o cotidiano da
a
in

Comissão, mesmo porque as fontes disponíveis para tal são


ig
or

105 Correspondência entre Guilherme Schüch de Capanema e Gonçalves Dias. IHGB,


Lata 216, Pasta 50.
O

106 BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]: Imprensa


Universitária do Ceará, 1962.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 155

ay
muito exíguas, mas cotejar o discurso de suas desventuras por
meio das suas metáforas dominantes, com outros discursos

Pl
acerca da Comissão feitos antes e após sua expedição.107 Desse

le
modo, entendemos ser possível reconstituir uma linguagem

g
sobre o espaço compreendida e manejada por certos falantes ide-

oo
ais os quais territorializavam seus domínios inscrevendo-os por
meio de suas gramáticas.108

G
Observe-se, como chave de compreensão que, mesmo sendo

no
cobrada a responsabilidade de seus integrantes, metade dos rela-

e
tórios científicos da Comissão jamais foi publicada, enquanto a
parte restante acabaria sendo censurada. Do mesmo modo que,

on
apesar de se alardear o custo da Expedição ou a exiguidade de
az
seus resultados, quase todos os espécimes coletados ficaram
abandonados no Museu Nacional, todo o material geográfico
Am

foi disperso e mesmo no IHGB, a Comissão passaria como que


despercebida.
na

Ao analisarmos o discurso das desventuras da Comissão,


a

podemos notar duas metáforas centrais construídas ao redor das


nd

figuras dos dromedários e das borboletas, as quais denotam a


distância entre a letra do texto e seu sentido virtual, conotando-
ve

-se assim todo um regime cultural, pois os desvios do discurso


à
á

107 Referimo-nos aos seguintes documentos: AS BASES DAS instruções para a


st

Comissão Científica de Exploração In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX,
le

1856, p. 42-84. Suplemento.; CONTRIBUIÇÕES para as instruções da Comissão


Científica de Exploração. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856,
p. 76-82. Suplemento.; TRABALHOS DA Comissão Científica de Exploração. In:
a

BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]: Imprensa


in

Universitária do Ceará, 1962.; INSTRUÇÕES gerais para a Comissão Científica


encarregada de explorar o interior de algumas províncias do Império menos conhe-
ig

cidas. In: BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]:


or

Imprensa Universitária do Ceará, 1962.; RELATÓRIOS da Comissão Científica


Exploradora. In: BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração.
[S.l.]: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.
O

108 A respeito da definição de falantes ideais, ver CHOMSKY, Noam. Rules and repre-
sentations. New York: Columbia University Press, 1978.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
156 Cartografias Imaginárias

ay
traem-se nessas metáforas e revelam seu sentido, “tal como o
inconsciente se revelaria num sonho ou num lapso”, como Paul

Pl
Ricoeur assinalou.109

le
A metáfora do dromedário foi constituída a partir de figuras

g
que evocam o desconhecimento e a inadaptação dos integrantes

oo
da Comissão ao espaço que buscam explorar, num sentido que

G
destitui de razão suas ações, remetendo-as ao domínio do desa-
tino, da loucura. Afinal, o dromedário era mesmo um animal

no
desconhecido nessa região e agredia a compreensão dos seus

e
naturais, sinuoso, espalhafatoso, estrangeiro. Se aproximarmos
essa metáfora aos discursos acerca da constituição da Comissão,

on
veremos que no IHGB, em 1856, quando se procuraram esta-
az
belecer os seus objetivos, acordou-se que estes deveriam girar
essencialmente em torno do problema da seca.
Am

A tônica da discussão no IHGB era que a “desertificação”


de certas áreas do Norte tornava-as comparáveis à Argélia e ao
na

Egito, daí ser possível explicar o recurso da Expedição a expe-


a

rimentações já testadas nesses locais, uma delas a utilização de


nd

dromedários como meio de transporte.


ve

Explicava-se que o Ceará era a área mais atingida por esse


fenômeno, deplorando-se a decadência provocada pelo abandono
à

da lavoura nessa província e esperava-se que a Comissão fosse


á

capaz trazer subsídios para seu restabelecimento, pesquisando


st

um melhor aproveitamento dos recursos hídricos, identificando


le

as áreas onde melhor conviesse o recurso à construção de gran-


des açudes, represas, sistemas de poços artesianos ou canais
a
in

destinados à irrigação dos campos. Entendia-se que a Comissão


ig

deveria também investigar as causas da seca, estabelecendo uma


or
O

109 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 228-229.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 157

ay
regularidade do fenômeno e, inclusive, estudando a viabilidade
do reflorestamento de certas áreas.

Pl
Assim, podemos entender que o saber sobre a região com-

le
preendia duas leituras, a primeira, concatenando o problema da

g
seca com a compreensão de um território cujo centro era o Ceará;

oo
a segunda, perspectivando o problema da seca a partir de uma

G
dimensão externa, o norte da África. Portanto, duas dinâmicas
de territorialização se sobrepunham, a primeira, depreendendo-

no
-se de uma perspectivação, por assim dizer, local, garantindo que

e
a Comissão já estivesse, desde sua origem, destinada a percor-
rer o itinerário do “flagelo da seca devastadora”. Por sua vez, a

on
segunda dinâmica decorria de uma perspectivação do centro, que
az
trai uma visão quase ultramarina ou colonial do território, com-
preensão esta que se adensa quando é sabida a preocupação dos
Am

exploradores em armar e municiar a expedição, providência que


inclusive lhe valeu ácidas críticas da imprensa cearense, que se
na

referindo à Expedição, insinuava: “a Comissão vem de cangaço”


(RELATÓRIO..., 1962).
a
nd

Entretanto, se pensarmos que havia uma tensão entre as


duas perspectivações, como explicar que o discurso das desven-
ve

turas da Comissão fosse acreditado tanto na província como na


Corte? Para entendermos esse problema é necessário considerar
à

os relatórios da Expedição.
á
st

Curiosamente, Gonçalves Dias, o responsável pela reda-


le

ção de seus preâmbulos, escreve que inicialmente não havia


a intenção de dirigir a expedição para o Ceará e que, quando a
a
in

decisão foi tomada, essa teria se devido, pasmem, à vontade de


ig

buscar naquela província os grandes depósitos de metais pre-


or

ciosos que nela se julgavam existir! A questão da seca foi com-


pletamente omitida!
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
158 Cartografias Imaginárias

ay
Essa questão fica mais clara na medida em que sabemos que
o preâmbulo de Gonçalves Dias fora anteriormente censurado

Pl
por conter várias críticas à Pasta do Império. A partir da leitura

le
dos relatórios das várias Seções da Comissão, podemos aventar

g
em que direção a tesoura da censura havia cortado: praticamente

oo
todos os relatórios apontam o problema político como o fato
amplificador dos problemas atribuídos à seca – descaso público,

G
mau emprego dos recursos técnicos – estes eram os verdadeiros

no
problemas da região.

e
Tais críticas aos políticos provinciais e ao governo imperial
provinham de uma casa, o IHGB, que há poucos anos havia dis-

on
cutido a contingência de se manter ou não atrelada à política
az
imperial e que finalmente optara por buscar se conformar aos
moldes de um instituto científico. Fora desse palco, os que se
Am

julgavam atingidos, buscaram desqualificar moral e intelectual-


mente os integrantes da Comissão.
na

Por sua vez, a metáfora da borboleta foi constituída a partir


a

de figuras que participam o logro perpetrado pelos integrantes


nd

da Comissão, um sentido que busca dar conta da tentativa des-


tes de transgredir ou subverter os lugares aos quais não se con-
ve

formavam, afinal, as borboletas esvoaçam sem rumo, sugam o


pólen das flores em que pousam, maculam e defloram. Se buscar-
à

mos aproximar esta metáfora dos discursos acerca da Comissão,


á
st

veremos que a alcunha de ‘Expedição Defloradora’ pode ter se


le

originado dos mesmos preceitos científicos que orientaram os


integrantes da Comissão a coletar espécimes de insetos. A ins-
a

trução principal da seção encarregada da etnografia dizia res-


in

peito à coleta de dados para distinguir as diferentes raças ou


ig

indivíduos que habitavam a área:


or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 159

ay
Particularmente às mulheres, não se olvidará
apanhar a forma geral e constante dos músculos

Pl
externos que revestem o sacro e a bacia, porque
na forma dos glúteos há diferenças notáveis nas

le
raças, assim como na dos seios e sua colocação
mais aproximada ao externo, e mais vizinha das

g
clavículas: cumpre estudar as mudanças destes

oo
órgãos, que têm tão íntima relação com todos os
fenômenos de sua vida física (AS BASES...., 1856).

G
no
Ao mesmo tempo, como vimos, uma das principais orienta-

e
ções da Comissão dizia respeito à escrita de uma corografia que

on
pudesse ser contraposta aos relatos dos viajantes estrangeiros.
Nesse sentido, dever-se-ia avaliar a prosperidade ou decadência
az
das povoações e terrenos, recolher cópias de documentos, com-
Am

pilar dados de cartórios, arquivos, secretarias e de particulares,


atividades que somadas às medições topográficas realizadas pela
na

Seção de Geografia, provavelmente provocaram a desconfiança


local em relação aos verdadeiros interesses da expedição
a
nd

Voltando com o nosso argumento inicial, podemos perceber


que não havia propriamente uma oposição entre as diferentes
ve

perspectivações sobre a região, mas uma tensão capaz de possibili-


à

tar a composição em torno dos interesses comuns e que se expli-


citava por meio de uma linguagem que se buscava compartilhar
á
st

e pelo discurso dela originado. Assim, se argumentos como a


le

metáfora da seca ou o sentido para a inserção diferenciada no


espaço nacional foram utilizados na elaboração do discurso nor-
a

tista, foi justamente porque estes argumentos já estavam dispo-


in

nibilizados desde a década de 1850.


ig
or

Mesmo o discurso das desventuras da Comissão possui uma


unidade metafórica que é a delimitação de domínios, veja-se
O

bem, domínios que não se excluem e se revelam na medida em


O original está à venda na Amazon e no Google Play
160 Cartografias Imaginárias

ay
que convergem para a condenação da Comissão. Perversão, cor-
rupção, incompetência, malícia, malversação dos bens e interes-

Pl
ses públicos – a operação conjugada destes sentidos somente se

le
tornou possível porque os interesses envolvidos estavam harmo-

g
nizados num saber sobre o espaço que definia domínios nítidos,

oo
estabelecia suas fronteiras e definia suas responsabilidades – um
Saber construído a partir da verdadeira tensão entre a inscri-

G
ção dos lugares do acordo e a territorialização dos lugares da

no
subalternidade.

e
Subalternidade esta que no último quartel do século XIX e
no alvorecer da República se explicitaria na produção de novas

on
espacialidades - as Regiões e os Estados, interligadas à Nação.
az
Não seria por acaso que numa das províncias do Norte as elites
políticas e intelectuais desenvolveriam uma digressão a partir do
Am

saber sobre o espaço inaugurado pela Comissão Exploradora e,


consagrariam a nova região, o Nordeste, simultaneamente à sua
na

produção da estadualidade, no Rio Grande do Norte.


a

No caso, a produção da estadualidade norte-rio-grandense uni-


nd

ficava os interesses locais em torno de uma articulação que pos-


sibilitava legitimar e manter os seus interesses.110 Dois de seus
ve

protagonistas, Eloy de Souza e Augusto Tavares de Lyra - na sua


época um dos sócios mais destacados e respeitados do IHGB,
à

seriam exatamente os responsáveis por consolidar o Nordeste


á
st

como tema de discussão no Parlamento, criar a proposta de um


le

Dicionário do Nordeste e, entronizar esta Região como tema de pes-


quisa histórica e geográfica nos Congressos de História Nacional
a

promovidos pelo IHGB, e, tudo isto ainda nos primeiros vinte


in

anos do século XX.


ig
or

110 PEIXOTO, Renato Amado. ‘Espacialidades e estratégias de produção identitária no Rio Grande
O

do Norte no início do século XX’. In: Peixoto, Renato Amado. (Org.). Nas trilhas da represen-
tação: trabalhos sobre a relação história, poder e espaços. 1ed.Natal: EDUFRN, 2012, p. 11-36.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 161

ay
Pl
Por uma análise crítica das políticas de espaço:

g le
isto pode ser chamado de estudo do ‘Geopoder’?

oo
G
Em meados da década de 1970, Michel Foucault enveredaria

no
por uma série de investigações que tinham como fim compreen-
der as formas de experiência e de racionalidade a partir das quais

e
se teria organizado, no Ocidente, um poder sobre a vida, sobre a

on
população e os vivos, que denominaria de Biopoder e que corres-
az
ponderia, mais diretamente, aos seus trabalhos sobre a história
da sexualidade. Contudo, cabia naquele momento situar e arti-
Am

cular este novo esforço em respeito aos seus estudos anteriores


acerca das técnicas e tecnologias de vigilância e punição que lhe
na

haviam permitido enunciar um ‘poder disciplinar’ que se apli-


cava sobre os corpos e sobre eles se afirmava. Nesse sentido, os
a

cursos ‘Em defesa da sociedade’ e ‘Segurança, território e popu-


nd

lação’, respectivamente lecionados no Collège de France em


ve

1975-76 e 1977-78, teriam sido trabalhados por Foucault com o


fim de permitir a constituição de uma ‘genealogia do Biopoder’.
à

Ao mesmo tempo, a questão do poder será tratada por


á
st

Foucault por meio de uma análise que se remete ao diálogo


com Freud e Marx, dado o contexto histórico em que foi escrita.
le

Assim, se nos cursos citados a genealogia do Biopoder é traba-


a

lhada por sobre uma análise do governo e do Estado relacionada


in

à questão do liberalismo ou da passagem e articulação com este,


ig

serão bem ressaltadas nesta análise questões como as das resis-


or

tências e dos processos de produção do poder. Este tratamento


O

da questão do poder possibilitou a Foucault constituir a hipótese


O original está à venda na Amazon e no Google Play
162 Cartografias Imaginárias

ay
do Biopoder como a insinuação de um contra-poder possível em
meio e a despeito de posições que se enunciavam no mesmo diá-

Pl
logo, como, por exemplo, àquelas defendidas por Gilles Deleuze.

le
Por conseguinte, os trabalhos de Foucault não pretendiam

g
compreender uma análise geral das estratégias de poder, mas

oo
antes perscrutar condições e problemas que teriam engendrado

G
mecanismos e que teriam possibilitado a sociedade instituir cer-
tas espécies e relações de poder. No que isto diz respeito à hipó-

no
tese do Biopoder, Foucault o faz a partir de um trabalho no qual

e
procuraria reconstituir, minimamente, uma história das tecnolo-
gias de segurança e uma história da governabilidade. Poder-se-ia

on
entender mesmo que a hipótese do Biopoder surgiria como um
az
deslizamento e consequente desraizamento de uma análise do
poder que se voltaria cada vez mais para um exame das suas
Am

relações com o sujeito e sua ética. Nesse raciocínio, fazia sen-


tido buscar entender um discurso histórico e político das lutas
na

das raças e um discurso histórico-político diplomático-militar,


no qual se salientava que “o poder seria essencialmente o que
a

reprime” – aquilo que reprime as classes, os instintos, mas tam-


nd

bém os indivíduos e a natureza.111


ve

Nesse ponto, entendo que deva situar este trabalho: a hipó-


tese do Biopoder de Foucault constitui-se por meio de uma aná-
à

lise sobre o poder que explicita a ideia da relação de força e de


á
st

uma função continuada do político de reinseri-la internamente


le

nas sociedades ocidentais, ou seja, “nas instituições, nas desi-


gualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e
a

outros”. Sobre essa consideração paira aquilo que para Foucault


in

seria essencial, a constatação que, a partir do século XVIII, essas


ig

mesmas sociedades “voltaram a levar em conta o fato biológico


or
O

111 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 21.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 163

ay
fundamental que o ser humano constitui uma espécie humana”
(FOUCAULT, 2008, p. 3).

Pl
Por conseguinte, embora esta análise parta do pressuposto

le
da instituição de subalternidades e para explicá-la busque tra-

g
balhar a construção histórica de discursos e narrativas de um

oo
racismo biológico-social e a constituição da política como uma

G
forma de guerra continuada por meio da construção de um dis-
positivo diplomático-militar concomitante ao da polícia, ela não

no
considera uma função continuada do político de inscrever e rein-

e
serir externamente à sociedade ocidental as relações de força esta-
belecidas. Nesse sentido, o desdobramento da análise a partir

on
de certa relação de força estabelecida, em dado momento, his-
az
toricamente precisável, na guerra e pela guerra, o Imperialismo,
simplesmente não era relevante para o constructo analítico de
Am

Foucault. Note-se que esta função da inscrição e reinserção


externa das relações de força pode ser pensada enquanto lógica
na

se observarmos que a mesma análise considera elementos como:


a racionalidade governamental; a ideia da conservação do Estado
a

numa ordem geral; a concorrência entre Estados; uma estraté-


nd

gia da concorrência; a ideia da busca de uma posição dominante


ve

dentre os Estados; de uma noção de força do Estado; de técnicas


de tipo diplomático-militares, ou seja, o emprego de elementos que
à

tratam de dar sentidos a concorrência e ao equilíbrio espacial dos Estados.


á
st

Nesse ponto e, em benefício da justificativa deste traba-


le

lho, acreditamos que tal opção (ou ‘esquecimento’) tenha sido


devido justamente ao que já foi anteriormente colocado: por um
a

lado, a análise de Foucault não se pretendia geral nem instru-


in

mental, por outro, ela se constituía estrategicamente em relação


ig

ao contexto em que se inscrevia. Se desdobrada, a hipótese do


or

Biopoder poderia se perder tanto por diluição quanto ao conte-


O

údo tanto por seu enquadramento em relação as outras posições


O original está à venda na Amazon e no Google Play
164 Cartografias Imaginárias

ay
que então se constituíam na década de 1970 como contrapode-
res. Portanto, se este trabalho pretende aventar um desdobra-

Pl
mento possível da análise foucaultiana, isso se faz porque acre-

le
ditamos que ela possa ser útil para o trabalho com a hipótese do

g
Biopoder, na medida que a investigação de uma função continu-

oo
ada do político de inscrever e reinserir externamente à sociedade
ocidental as relações de força, permite discutir também uma

G
genealogia desta função, inclusive, entendendo que se vão se

no
constituir mecanismos, poderes disciplinares e saberes que se
dobram para o interior das sociedades ocidentais, articulando-se

e
com aqueles expostos pela hipótese do Biopoder.

on
No século XIX, a partir dos insumos que geram o Imperialismo,
az
como, por exemplo, o racismo, o nacionalismo e a dinamização
dos dispositivos diplomático-militares, estabelecem-se sabe-
Am

res que permitem ao Estado produzir continuamente políticas


de espaço. Genericamente denominados de Geopolítica, esses
na

saberes distinguem novas espacialidades e escalas, redefinem


territórios, articulam políticas de espaço, constroem razões de
a

convivência não apenas dos entes políticos, mas também dos


nd

coletivos populacionais que habitam os espaços distinguidos,


ve

inclusive, os instituindo ou eliminando enquanto atores.


Constituir-se-ia, então, o que podemos definir grosseira-
à

mente como uma coligação diplomático-militar em cada um dos


á
st

invólucros nacionais, ao mesmo tempo concorrente e aliada.


le

Cada uma dessas se radicularia por instituições, corporações,


agentes do governo que reverberariam saberes, mecanismos,
a

poderes disciplinares cujo principal atributo seria remeter a


in

lógica da subalternidade contínua a uma operação da espacialidade.


ig

Discursos e narrativas mítico-históricas serviriam então para


or

constituir uma subalternidade continuada dos habitantes e espa-


O

ços extraeuropeus e estadunidense, permitindo aos dispositivos


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 165

ay
diplomático-militares, em cada um dos seus invólucros nacio-
nais, constituir razões de reprodução e disseminação destes

Pl
discursos sobre a própria sociedade. Falamos aqui não apenas

le
uma de uma nova reprodução, mas também de uma continuação

g
dos mecanismos descritos por Foucault no curso ‘Em defesa da

oo
sociedade’. Se esta continuidade foi tornada factível e operável
no exterior da sociedade, também as novas razões espaciais da

G
subalternidade seriam tornadas factíveis e operativas para o inte-

no
rior da sociedade.

e
Portanto, seria necessário, primeiro, entender a geopolí-
tica além daquilo com que esta se define a si mesma, ou seja, é

on
necessário entendê-la como um saber sobre o espaço e fazer uma
az
genealogia desses saberes que comporte tanto a sua escrita como
também sua inscrição. Segundo, é necessário estender o próprio
Am

entendimento da ‘geopolítica’ para que neste se comporte tam-


bém as políticas de espaço dela derivadas, ou seja, é necessário
na

entender uma geografia que comporte sua extensão. Terceiro,


deve-se também procurar articular esses saberes sobre o espaço
a

e essas políticas de espaço com os elementos que Foucault tra-


nd

balha na hipótese do Biopoder. Quarto, é preciso constituir uma


ve

cartografia desses saberes e de suas políticas do espaço articula-


dos que não seja apenas uma superposição de seus mapas, mas
à

que dê conta da cognição e construção desses mesmos mapas


á

e que os entenda enquanto composições independentemente


st

engendradas por meio de uma linguagem original e com uma


le

lógica inerente a esta originalidade.


a

Cabe aqui uma observação: este seria verdadeiramente um


in

desdobramento da hipótese do Biopoder e que, por analogia,


ig

poderia ser chamado de Geopoder, ou seria apenas adensa-


or

mento do Biopoder exercido a partir do governo e do Estado sobre os


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
166 Cartografias Imaginárias

ay
indivíduos que se desdobra para uma ressignificação dos usos e
invenções do cotidiano?

Pl
De todo modo, permitimo-nos observar que um campo

le
próprio de investigação poderia ser atribuído a este desdobra-

g
mento ou adensamento da hipótese citada, no caso, o estudo

oo
de dinâmicas de espaço desencadeadas a partir do governo, por

G
agentes do Estado, por integrantes da coligação diplomático-
-militar ou por institutos, organizações, grupos ou elemen-

no
tos que articulam ou exercem políticas de poder baseadas nos

e
saberes sobre o espaço.

on
Assim, primeiro, poder-se-ia investigar o saber sobre o
espaço em si, inquirindo o modo como este se legitima e se
az
institui, no caso, procurando entender as práticas e estratégias
Am

por detrás da operação e construção de uma narrativa mitoló-


gica do Estado, do território ou da identidade e que pode tam-
bém desencadear suas contranarrativas. Caberia aqui discutir a
na

construção/inscrição do território e da identidade por meio de


a

produções culturais e/ou instrumentos culturais, como a lite-


nd

ratura, a pintura, a poesia, etc.; a investigação de sua operação/


divulgação por meio de práticas e políticas culturais, como, por
ve

exemplo, os monumentos, o cinema, as novelas de televisão, os


quadrinhos etc.
à
á

Segundo, a partir da investigação das performances do


st

Estado, das instituições ou dos organismos e grupos que lhe


le

estão vinculados a estudar o que diz respeito à construção e a


operação do espaço, ou seja, as práticas espaciais, materiais e
a
in

representacionais operadas a partir do Estado ou sob sua influ-


ig

ência, por exemplo, o estudo das práticas sobre o espaço a partir


or

de instituições/organismos ligados ao governo ou Estado, como:


as forças armadas, os ministérios das relações exteriores, os par-
O

tidos políticos, os institutos históricos e geográficos etc.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 167

ay
Esse ponto, ainda, poderia ser mais afinado se considerado
o discernimento das relações localizadas de produção de

Pl
um certo pensamento em relação a uma dada performance,

le
considerado seu recorte espacial ou contexto histórico. Por

g
exemplo, a adoção de um pensamento sobre o espaço que possi-

oo
bilitou o plano naval dos grandes navios de batalha na Marinha
do início do século; a constituição do binômio segurança-desen-

G
volvimento na ESG da década de 1950; as inflexões na produção

no
do plano diretor de Natal, em 2007, se examinadas as discussões
e votações na sua Câmara dos Vereadores etc.

e
Terceiro, como uma investigação das práticas e estraté-

on
gias de inscrição das fronteiras e dos limites, englobando-
az
se aí tanto as disputas por território ou por uma territorializa-
ção de determinados espaços geográficos quanto às políticas de
Am

delimitação ou estabelecimento de fronteiras, limites, exclusões


ou inclusões sociais e culturais, o que permitiria estabelecer ou
na

constituir cartografias dessas políticas, como, por exemplo, uma


cartografia da pobreza, uma cartografia da discriminação, uma
a

cartografia da fome etc.


nd

Quarto, como a análise crítica de produções plurais sobre


ve

uma dada espacialidade, no caso, privilegiando o estabele-


cimento de raciocínios que articulem esta pluralidade ou que
à

procurem entender as distinções teóricas que considerem uma


á
st

dada multiplicidade. Por exemplo, a análise das diferenças entre


le

as versões populares, práticas e formais de um mesmo espaço;


a transposição do erudito/formal para o popular; a divulgação/
a

disseminação/inscrição diferenciadas da produção do espaço na


in

cultura erudita e popular etc.


ig
or

Quinto e último, a investigação do pensamento e/ou pla-


nejamentos a respeito de circunstâncias tecnológicas e sociais
O

que visem ao desenvolvimento e/ou usos do espaço e/ou do


O original está à venda na Amazon e no Google Play
168 Cartografias Imaginárias

ay
território, por exemplo, o planejamento da ligação entre espaços
ou da incorporação de espaços; o pensamento e atividades liga-

Pl
das à centralização do poder, construção e mudança de capitais;

le
a análise das relações entre um centro e suas periferias; o estudo

g
dos movimentos e das descontinuidades estruturais sobre o

oo
espaço (fluxos econômicos, fluxos demográficos, movimentação
de capitais, tráfico de drogas, disseminação de doenças, fluxo

G
turístico) etc.

no
Em defesa deste campo de investigação do que gostaríamos

e
agora de chamar provisoriamente de Geopoder e de uma análise
crítica do espaço que considere os pressupostos antes alinhados,

on
repetindo, o discernimento de um saber sobre o espaço, a exten-
az
são desse discernimento às práticas derivadas deste e a sua arti-
culação com a hipótese do Biopoder, buscaremos agora trabalhar
Am

um caso de estudo.
na

A viagem do encouraçado São Paulo à Bélgica


a
nd

Em 1920, o presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, pronunciou


ve

um discurso de despedidas para a tripulação do encouraçado São


Paulo, dias antes deste zarpar para o porto belga de Zeerbruge,
à

onde os soberanos desse país seriam embarcados rumo ao Rio


á

de Janeiro.
st

Em sua fala, Epitácio destacou a importância fundamental


le

da missão, salientando ser essa a primeira visita de um Chefe


a

de Estado ao Brasil desde a Independência e, ressaltava que não


in

se buscaria qualquer um, mas o Rei Alberto I “aquele que, nos


ig

momentos mais sombrios da história,” havia sabido “defen-


or

der com brio e denodo a fé dos tratados e a integridade de sua


pátria” e que “nos momentos mais críticos deu ao mundo um
O

atestado veemente de sua energia e patriotismo”. Afinal, o São


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 169

ay
Paulo abrigaria aquele a quem a imprensa internacional havia
cognominado de ‘Rei Herói’, ‘Rei Cavaleiro’.

Pl
Ainda, segundo Epitácio, outro aspecto aumentava a “delica-

le
deza da missão”: cabia à guarnição do São Paulo “levar a longes

g
terras e a estranhas gentes uma impressão de nossa cultura e de

oo
nossa educação militar”. Ora, o São Paulo não serviria simples-

G
mente como o transporte dos soberanos da Bélgica, mas deveria
constituir-se também numa embaixada da pátria, representando

no
uma porção de sua identidade, porventura a mais elevada.

e
Assim, a tripulação do São Paulo deveria “demonstrar tudo

on
de excelente e nobre”, o que, segundo Epitácio Pessoa, não se
resumia apenas aos tesouros de cultura e aos predicados morais,
az
mas deveria incorporar também “o tato, a finura, as delicadezas
Am

do coração, os hábitos da boa sociedade, uma prova de sua civili-


zação e adiantamento” (UMA VISITA..., 1920, p. 13).
na

Chegando a Zeerbruge no final de agosto de 1920, o coman-


dante do São Paulo, Tancredo de Gomensoro, verifica que o navio,
a

um dos maiores de sua época, não poderia atracar no porto


nd

devido ao seu grande calado. Portanto, seria necessário trans-


ve

portar os reis belgas de bote desde o cais até o São Paulo, já que
se encontrava fundeado ao largo do porto, para depois fazê-los
à

subir ao navio por meio de uma escada de cordas.


á

Considerando que tal procedimento seria indigno da estatura


st

do Rei Herói, Tancredo de Gomensoro, reunido com a oficiali-


le

dade, concebe outro esquema, uma verdadeira façanha: ao custo


a

de perder o próprio São Paulo, um dos navios mais caros de sua


in

época, decide atracar de ré no porto para que assim se pudesse


ig

estender uma rampa desde o cais até a popa do navio, por onde
or

o Rei Cavaleiro e sua consorte desfilariam.


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
170 Cartografias Imaginárias

ay
Concluída a arriscadíssima manobra, diga-se de passagem,
contra o conselho dos próprios belgas, Tancredo voltou ao Rio

Pl
de Janeiro conduzindo Alberto I para receber o seguinte elogio

le
do Ministro da Marinha:

g
oo
Da ordem do Sr. presidente da República, reco-
mendo seja em ordem do dia desse Estado Maior,

G
elogiado, nominalmente, o capitão de mar e
guerra Tancredo de Gomensoro, comandante do

no
encouraçado ‘São Paulo’ [...]. A maneira superior-
mente distinta, o brilho incontestável, a disciplina
irrepreensível com que se conduziram oficiais e

e
marinheiros, para orgulho e satisfação do governo

on
brasileiro; não podiam ser de maior correção a
inteligência e a habilidade do comandante do
az
São Paulo e seus distintos comandados durante
a viagem de Ss. Mm. os reis dos belgas, gesto
Am

que tanto nos cativou e muito concorreu para o


prestígio internacional de nossa pátria [...] (LIGA
MARÍTIMA, 1921, p. 12).
na

Em relação à análise desse caso, entendemos que a fala inicial


de Epitácio Pessoa sublima uma construção do espaço brasileiro
a
nd

que o situa de costas para a maioria dos indivíduos que o habi-


tam e de frente para a Europa. O espaço europeu é um espaço de
ve

mimesis, não apenas de imitação, mas também de drama: imita-


ção porque se tentam implantar hábitos e cultura desejados, mas
à

que, muitas vezes, não deixam de ser mais do que maneirismos;


á
st

drama porque a todo o momento se constata sua impossibili-


dade, seu anacronismo, sua inadaptabilidade, mas, ainda assim,
le

tentada implantar a todo custo porque permitia inscrever e jus-


a

tificar fronteiras sociais e culturais no espaço brasileiro e manter


in

certas relações de força e subalternidade.


ig
or

Sobretudo, a fala de Epitácio Pessoa não traduzia apenas uma


imagem que a elite política brasileira fazia de si mesma que, num
O

jogo de espelhos com a figura do soberano belga, se amalgamava


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 171

ay
na figura do ‘cavalheirismo’, mas também o que se reproduzia
continuamente na Marinha enquanto ideal de formação, perpas-

Pl
sando a educação formal dos aspirantes a oficiais, mantido pelo

le
recurso a uma cultura regimental e pelas rigorosas normas de

g
ingresso na Escola Naval, conforme ratificado pelo discurso do

oo
então Ministro da Marinha.

G
Essas normas, encimadas por impedimentos de ordem mone-
tária, fizeram possível que a Escola Naval permanecesse, mesmo

no
na República, enquanto um lugar de prestígio, e que o oficialato

e
da Marinha, através da cultura regimental, reverberasse con-
ceitos e ideias próprias. Mas esta cultura regimental, legado da

on
marinha portuguesa ao Império, fora reformada na República
az
por meio da constituição de uma narrativa mitológica que refor-
çaria o élan corporativo da Marinha. Nessa narrativa, enaltecia-
Am

-se o martírio de um oficial/cavalheiro, o Almirante Saldanha da


Gama, Diretor da Escola Naval durante a Revolta da Armada.
na
a

O almirante Saldanha da Gama


nd
ve

Segundo a narrativa, Saldanha da Gama era um oficial unica-


mente devotado ao seu ofício de Diretor da Escola Naval, sendo
à

que, por esse amor aos alunos, se engajaria na Revolta, já que


á

a maioria daqueles escolhera o partido dos revoltosos, contra o


st

jacobinismo e a truculência de Floriano Peixoto. Saldanha, exí-


le

mio chefe militar, agora junto ao grosso de sua Corporação, pas-


saria naturalmente a comandar os sublevados. Resiste ao poder
a
in

maior do Governo, mas a vileza de Floriano, que não hesita nem


ig

dividir a Marinha, oferecendo privilégios aos trânsfugas, nem em


or

envolver os estrangeiros na peleja, obriga-o a retirar-se.


No episódio final da saga, um Saldanha da Gama exilado,
O

mas altivo e sem medo, lideraria seus comandados na invasão


O original está à venda na Amazon e no Google Play
172 Cartografias Imaginárias

ay
dos pampas gaúchos, quando, montado a cavalo e à frente de
suas tropas, morreu heroicamente em batalha pela honra da

Pl
corporação, transpassado pela lança de um estrangeiro, que não

le
hesitaria mesmo em profanar o seu cadáver.

g
Tal narrativa permitiria Rui Barbosa bradar, já em 1896:

oo
Saldanha da Gama, “o herói dos heróis, [...], o homem mais

G
completo e o caráter mais extraordinário que já conheci nesta
terra” (BARBOSA, 1946, p. 6).

no
Observe-se que as palavras ‘cavaleiro’, ‘cavalheiro’ e ‘herói’

e
utilizadas na descrição do martírio de Saldanha da Gama repe-

on
tem-se no núcleo do tema mitológico que fora construído pela
imprensa internacional à volta de Alberto I: este Rei, comandante
az
máximo das tropas belgas, para incutir bravura às suas tropas,
Am

visitava o fronte da 1ª Guerra montado a cavalo e arriscando-se


a ser morto por qualquer soldado.
na

Por uma razão de honra, altivez e patriotismo não aceita o


ultimato da Alemanha e, apesar da discrepância militar contra
a

si, luta até o fim. Pode-se, portanto, pressupor a constituição


nd

de elos de ligação entre os dois mitemas e mesmo uma ‘seme-


ve

lhança de famílias’ entre as palavras utilizadas, a partir da qual,


poder-se-ia instituir tanto uma topografia gramatical quanto
à

uma geografia das palavras cuja organização e compreensão nos


á

permitiriam aventar uma representação perspícua, ou seja, uma


st

‘observação’ dessas conexões.


le

Note-se que existe uma semelhança de família entre os ter-


a

mos que remetem às palavras cavaleiro e cavalheiro nos dois mite-


in

mas e na fala de Epitácio Pessoa, mas que, ao mesmo tempo,


ig

insisto, essa semelhança não impede que diferentes saberes e


or

práticas de espaço possam ser distinguidos a partir de cada um


dos exemplos.
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 173

ay
Logo, para se evitar uma conclusão sinóptica ou desenvolvi-
mentista se faz necessário investigar suas representações perspí-

Pl
cuas, superando-se as aparências da linguagem não por meio de

le
uma geologia lógica e integradora das palavras, mas através de

g
uma geografia lógica das palavras, que consistiria exatamente na

oo
investigação das suas conexões.

G
Segundo Wittgenstein, a explicação histórica como hipó-
tese de desenvolvimento seria apenas um modo de juntar os

no
dados: uma sinopse. Seria igualmente possível ver os dados em

e
sua relação mútua e sintetizá-los em um modelo geral sem que
isso tenha a forma de uma hipótese sobre o desenvolvimento

on
temporal. Contudo, faltar-nos-ia tanto uma compreensão de sua
az
gramática quanto uma ‘visão sinóptica’ [Übersich], uma visão
global do uso de nossas palavras.
Am

Para isso, seria necessário buscarmos, inicialmente, uma com-


preensão clara, nítida das construções e das utilizações daque-
na

las palavras, problema enfeixado no conceito de ‘representação


a

perspícua’ [übersichtliche Darstellung]. Neste conceito, seria de


nd

uma importância fundamental buscar superar as aparências da


linguagem não por meio de uma geologia lógica das palavras,
ve

mas através de uma geografia lógica das palavras, que consistiria


exatamente na investigação das suas conexões, daí a importância
à

de se procurar ou inventar cadeias e casos intermediários.


á
st

O trabalho sobre essas hipotéticas cadeias e casos intermedi-


le

ários permitiria entrever as semelhanças, os nexos entre os fei-


tos, não para afirmar que estes haveriam se desenvolvido a partir
a
in

de um lugar comum, mas para tornar mais aguda nossa observa-


ig

ção frente sua relação formal. Portanto, este trabalho não visaria
or

a caracterizar os fenômenos, mas determinar um esquema possí-


vel para concebê-los. Por isso, buscar-se-ia substituir, na medida
O

do possível, a explicação pela descrição e reflexão a partir das


O original está à venda na Amazon e no Google Play
174 Cartografias Imaginárias

ay
conexões entre casos históricos procurando uma representação
perspícua do uso das palavras que nos permita oferecer uma

Pl
alternativa possível à ideia do desenvolvimento e da evolução

le
histórica para o estudo de certos problemas.

g
Por conseguinte, no caso das falas de Epitácio Pessoa e do

oo
Ministro da Marinha, pode-se perceber que coexistem dois jogos

G
de linguagem em relação às palavras apontadas, o primeiro
expressando a relação de uma imagem que a elite brasileira faz

no
de si com o seu lugar na sociedade; o segundo, sobrepondo ao

e
primeiro uma relação desta elite com os oficiais da Marinha, reco-
nhecendo um grupo que lhe está ligado e suas especificidades.

on
Já no caso do mitema do rei Alberto essas palavras relacio-
az
nam um jogo de linguagem complexo onde a ideia de Nação e o
Am

conceito de soberania estão interligados à figura reguladora de


um soberano por meio da qual se permite expressar uma ideia
da identidade.
na

Por conseguinte, se a estratégia de aproximação através


a

da semelhança de família das palavras busca elidir diferenças


nd

em relação às diferentes enunciações, deve-se reparar que o


ve

esquema de construção do mitema de Saldanha da Gama se faz


por meio de uma elisão no nível do sistema de escolha dos ele-
à

mentos, no caso se faz a aproximação pela elisão dos elementos


á

fracos, ou seja, aqueles que seriam capazes de tornar ineficaz o


st

esquema de partilha de significações estabelecido por meio da


le

semelhança de família.
a

Um desses elementos fracos é justamente o da condição de


in

amotinado de Saldanha da Gama, haja vista que a hierarquia é


ig

um dos princípios básicos da organização militar e sua quebra


or

vai de encontro à própria cultura regimental. Outro elemento


fraco é a sua condição de experto na arte militar, já que é um
O

completo contrassenso imaginar marinheiros combatendo em


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 175

ay
terra e a cavalo contra elementos especialistas no mesmo tipo de
luta. Também a dedicação a vida militar deixa de ser questionada

Pl
na medida em que não se discute o engajamento pregresso de

le
Saldanha na vida militar.

g
A partir das várias biografias de Saldanha, depreende-se um

oo
indivíduo dominado pela figura paterna, condição esta que se

G
sobrepõe a sua dedicação à Marinha conforme pode ser enten-
dido pela quantidade de sinecuras desfrutadas e barganhadas

no
por Saldanha em nome da pretensão de atender aos anseios de

e
seu pai, como era, por exemplo, o caso da disputa por comendas
e pelo privilégio de acompanhar as missões oficiais do governo

on
brasileiro na Europa. az
No mesmo sentido, Saldanha se fez capaz de abandonar a
Am

mulher amada e o seu lar, unicamente pelo argumento paterno


de que estes não faziam jus a sua posição social: abandonado à
tediosa tarefa de se construir social e idealmente como a imagem
na

de seus pares, Saldanha transforma seu corpo num simulacro de


a

si mesmo – o mesmo corpo-simulacro que será retalhado pelos


nd

seus opositores ao fim da batalha.


ve

Ainda, a elisão desses elementos fracos no mitema se torna


ainda mais evidente se procurarmos entender a ação dos oficiais
à

que comandavam o São Paulo e o desfecho da missão a partir do


á

lugar de discurso de Epitácio Pessoa.


st

O bom uso do bem público e de um meio de guerra carís-


le

simo, cede vez a uma prática destinada apenas a legitimar a ideia


a

que parte da instituição fazia de si e, que procurava coadunar


in

esses integrantes no lugar mítico da identidade da nação. Se a


ig

narrativa buscava construí-los enquanto guerreiros-poetas, a


or

investigação os revela apenas cidadãos-eunucos brandindo suas


palavras-espada.
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
176 Cartografias Imaginárias

ay
Finalmente, no caso do mitema de Saldanha da Gama, resta
apontar que as palavras-núcleo estão também ligadas à constru-

Pl
ção de um espaço de solidariedade corporativa decorrente tanto

le
do desfecho da Revolta da Armada quanto a uma fronteira de

g
disputa da identidade que se devia definir exatamente no mesmo

oo
local: o São Paulo era o mesmo navio que menos de dez anos antes
fora considerado o mais poderoso barco de guerra do mundo e

G
onde, ainda assim, grassara a Revolta da Chibata.

no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 177

ay
Pl
Espaços imaginários:

g le
o historiador dos espaços como cartógrafo

oo
G
Pensar o espaço não é apenas entender sua representação,

no
considerar sua inscrição, perscrutar sua construção; é também

e
necessário buscar suas conexões. Não custa relembrar que o sen-
tido atribuído por Deleuze à afirmação de Foucault: “eu sou um

on
cartógrafo” (DELEUZE, 1988, p. 53),112 decorre da concepção de
az
uma cartografia extensiva a todo o campo social, no que se resul-
Am

taria expor as relações de força que constituem o poder. Nesse


entendimento, essa cartografia não seria bem grafada através de
um único mapa, mas por um atlas que em permanente composi-
na

ção fosse integrado por inúmeros mapas superpostos.


a

Entretanto, se por um lado, essa metáfora do mapa resolve


nd

o problema da compreensão de um método foucaultiano, por


outro, ela também nos impele a considerar a cartografia enquanto
ve

um processo cuja racionalidade já está predefinida, sem aten-


à

tar que a cartografia mesma é parte também de um conjunto


complexo de cognições que a faz diferir de outras escritas. Essa
á
st

utilização da metáfora do mapa refletiria alguns dos principais


le

problemas da análise foucaultiana do espaço, a saber, primeiro, a


inexistência de uma clara e rigorosa distinção de certos elemen-
a

tos básicos para sua compreensão, como ‘lugar’, ‘espaço’, ‘locali-


in

zação’, ‘local’. Segundo, a inexistência de uma crítica da ideia de


ig

‘local’, embora grande parte da pesquisa de Foucault possa ser


or
O

112 DELEUZE, Gilles. Um novo cartógrafo. In: Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
178 Cartografias Imaginárias

ay
caracterizada como um investimento em torno da exploração de
temas que contextualizem a perspectiva poder/conhecimento a

Pl
partir de uma definição do que poderíamos chamar de contralo-

le
cais. Terceiro, um desgaste da proposta foucaultiana de histori-

g
cização do espaço, na medida em que um dos princípios mesmo

oo
do que podemos chamar de ‘heterotopologia’, o estudo das hete-
rotopias, é o universalismo, que, a nosso ver, iria de encontro à

G
própria premissa histórica, condicionando-a e restringindo-a.113

no
Talvez a chave para se ultrapassar aquela compreensão e

e
minimizar os problemas da análise foucaultiana do espaço seja,
primeiro, contextualizar a questão do espaço em relação à pró-

on
pria obra de Foucault; segundo, a partir dessa contextualização,
az
buscar, em seus escritos e observações, um viés conceitual alter-
nativo que reoriente a compreensão daquela análise.
Am

No primeiro caso, cabe observar que em relação aos mapas


não existiu uma exclusão total da desrazão, se tomarmos esse
na

conceito tal como Foucault observou em sua ‘História da


a

Loucura’ ou em relação à Literatura desde a época clássica até a


nd

modernidade. Desde o século XVII, muitos mapas se afastaram


dos princípios de razão ou verdade enfeixados nos saberes car-
ve

tográficos e geográficos sendo mesmo organizados em torno de


um princípio de desrazão que foi o elemento essencial de sua
à

organização, construção e disseminação. A sobrevivência desse


á
st

princípio de desrazão pode ser minimamente explicada se consi-


le

derarmos que não acontecem na cartografia nem rupturas nem


cercamentos da linguagem, ao contrário, a experimentação de
a

linguagens é uma de suas tônicas. Ainda, mesmo que a geogra-


in

fia ou os métodos cartográficos constituíssem modelos racionais


ig
or

113 Veja-se, por exemplo, a análise da compreensão foucaultiana de espaço de Edward S.


O

Casey. CASEY, Edward S. The fate of place. Berkeley: University of California Press,
1998, p. 296-301.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 179

ay
para essa escrita, não existiu um consenso a respeito de contro-
les que desclassifiquem ou excluam obras ou sujeitos, ou seja,

Pl
pode-se dizer que existiam outras razões possíveis. Desse modo,

le
é possível observar, desde o século XVII, a inserção mesma

g
dessa experimentação da desrazão ou de razões outras na carto-

oo
grafia e a possibilidade de inscrição, validação e disseminação
do que poderíamos chamar de geografias pessoais e mapas da

G
imaginação.

no
No segundo caso, entendemos que a problematização de

e
uma discussão em torno da cartografia deve ser feita menos em
função da sua escritura e mais em torno dos processos cogniti-

on
vos que a originam e dos métodos em que se investe sua ins-
az
crição. Para se pensar um espaço é necessário considerar antes
um espaço imaginário onde se produz uma linguagem através de
Am

múltiplas experiências de outras linguagens; é preciso pensar os


pressupostos que possibilitaram as condições de composição da
na

gramática e da sintaxe dessas linguagens; entender cada um dos


mapas das imaginações e das geografias pessoais que extrapo-
a

laram em um dado momento seus limites para constituir uma


nd

gramática e uma sintaxe cartográfica. Pensar o espaço significa


ve

investigar uma construção humana que só existe enquanto parte


de um campo de forças no qual a energia é o falante e a lin-
à

guagem seu gerador – como Antonin Artaud entendia a ence-


á

nação, é necessário considerar essa linguagem sob a forma de


st

encantamento,114 uma linguagem que visa a encerrar e utilizar a


le

extensão e fazê-la falar.115 Uma linguagem que Foucault entende-


a

ria ser tanto um exercício de autonomia quanto um exercício de


in

decomposição da individualidade, um entendimento que pode


ig
or

114 ARTAUD, Antonin. A encenação e a metafísica. In: O teatro e seu duplo. São Paulo:
Max Limonad, 1984, p. 62.
O

115 ARTAUD, Antonin. Cartas sobre a linguagem. In: O teatro e seu duplo. São Paulo:
Max Limonad, 1984, p. 141-142.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
180 Cartografias Imaginárias

ay
ser acompanhado através das investigações da relação entre a
literatura e a linguagem feitas por Foucault e, especialmente,

Pl
pelo remetimento dessas às suas observações sobre a vida e obra

le
de Antonin Artaud.

g
oo
As referências a Artaud na obra de Foucault

G
no
As referências a Artaud abrangem um longo período de pelo
menos dezessete anos, desde 1961 até 1978, podendo ser encon-

e
tradas em vários dos artigos e conferências de Foucault assim

on
como em algumas de suas principais obras, especialmente em
‘As palavras e as coisas’, na ‘História da Loucura’ e em ‘O nasci-
az
mento da clínica’. Como essas referências acompanham o deslo-
Am

camento temático e teórico das pesquisas de Foucault, pudemos


nos servir delas para inferir certas transformações pontuais no
seu entendimento da obra de Artaud. Mas essa transformação
na

do entendimento de Foucault está conectada também com uma


recepção renovada das principais obras de Artaud na França:
a
nd

novas edições de ‘Heliogabalo ou o anarquista coroado’, ‘O tea-


tro e seu duplo’ e ‘Van Gogh, o suicidado pela sociedade’, foram
ve

lançadas na França a partir de meados da década de 60. Afinal


de contas, Artaud abordava em cada uma dessas obras temas
à

caros ao próprio pensamento foucaultiano, como o homossexua-


á

lismo, a linguagem e a loucura. Além disso, não se deve também


st

descartar a renovação do interesse em torno da obra de Artaud


le

provocado pela radiodifusão em 1973 de ‘Para acabar com o jul-


a

gamento de Deus’, após nada menos que vinte e cinco anos de


in

censura. Finalmente, devemos considerar um certo desencanto


ig

de Foucault pela literatura, que provavelmente guiou-o a uma


or

nova observação de certas categorias artaudianas, como o ‘atle-


O

tismo afetivo’ e o ‘teatro da crueldade’.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 181

ay
A primeira referência a Artaud já é um termômetro seguro
da importância que Foucault lhe atribui, uma vez que o insere

Pl
junto a Nerval no restrito rol dos criadores que através da lin-

le
guagem romperam com uma tradição de racionalidade ao refazer

g
a experiência da loucura.116 Essa importância seria ainda mais

oo
alargada na medida em que a obra de Artaud, juntamente com a
de Nietzsche, foi entendida como um dos marcos delimitadores

G
da clivagem entre Razão e desrazão na cultura ocidental.117 Mais,

no
o centro mesmo do argumento final da ‘História da Loucura’ se
constituiria em torno da tensão entre a arte e a loucura na obra

e
de Artaud, definida pela expressão “palavras jogadas contra a

on
ausência fundamental da linguagem [...]”, servindo ainda para
az
alicerçar o conceito de “ausência de obra” que Foucault utilizaria
para melhor exemplificar a ideia de ruptura.118
Am

Entre 1963 e 1966, acompanhando o deslocamento da pes-


quisa em torno de ‘O nascimento da clínica’ e ‘As palavras e
na

as coisas’ a obra de Artaud passaria a ser entendida a partir da


relação que faz das chamadas ciências empíricas com a con-
a

cepção filosófica do conhecimento. Assim, Foucault passaria


nd

a entendê-la também enquanto uma experimentação119 conec-


ve

tada mais à ideia da construção da linguagem, acenando um


afastamento da ideia da “ausência de obra”, como assinalaria
à

Foucault em 1964: “Artaud pertencerá ao solo de nossa lingua-


á

gem e não a sua ruptura”.120


st
ale

116 FOUCAULT, Michel. La folie n’existe que dans une societé. 1961 In: ________. Dits
in

et écrits. Tomo I. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p.167.


117 FOUCAULT, Michel. Préface; Folie et Déraison. 1961. In: _____. Dits et écrits. Tomo
ig

I. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p. 161.


or

118 FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Pespectiva, 1978, pp. 528-530.
119 FOUCAULT, Michel. Guetter le jour qui vient. 1963, in ______. Dits et écrits. Tomo
I. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p. 266.
O

120 FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence d’ouvre. 1964. In: Dits et écrits. Tomo I.
Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 412-413.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
182 Cartografias Imaginárias

ay
Esse entendimento da obra de Artaud enquanto uma lin-
guagem em movimento, uma “linguagem experimentada e per-

Pl
corrida como linguagem”, consolidar-se-ia em ‘As palavras e

le
as coisas’ quando Foucault a discerniria como “uma espécie de

g
contradiscurso”, junto a outras obras nas quais julgava poder

oo
discernir uma “autonomia literária” capaz de impelir “às mar-
gens onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue”.121

G
Entretanto, na obra de Artaud, mais do que em outros autores,

no
essa linguagem era entrevista como uma ação, um ato perigoso,
“recusada como discurso e retomada na violência plástica do

e
choque e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade

on
do pensamento, à carne”.122 Por conseguinte, a transformação do
az
pensamento seria operada por uma sublimação da energia mate-
rial, capaz de sufocar a linguagem discursiva e aniquilar o sujeito
Am

ele-mesmo e engendrar a nova linguagem.123 A materialização de


uma “linguagem do pensamento” passaria então a ser compre-
na

endida tanto como o exercício de uma autonomia linguística124


quanto como um processo de decomposição da individualidade
a

(no caso, se observada a associação da obra de Artaud com a


nd

esquizofrenia125 ou pela relação que Foucault estabelece entre


ve

uma literatura da peste e ‘O teatro e seu duplo’126).


à

121FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tomo I. São Paulo: Martins Fontes,


á

1995. p. 60-400.
st

122FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tomo I. São Paulo: Martins Fontes,


1995, p. 400.
le

123FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, 1966. In: _____. Dits et écrits. Tomo I.
Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 522; 525.
a

124FOUCAULT, Michel. De l’archéologie à la dynastique, 1972. In: _______. Dits et


in

écrits. Tomo II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 412-413; Ver o paralelo entre
Freud e Artaud em FOUCAULT, Michel. Theatrum philosophicum, 1970. In: ______.
ig

Dits et écrits. Tomo II. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p.80.


125FOUCAULT, Michel. La folie et la sociéte, 1970. In: ______. Dits et écrits. Tomo II.
or

Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 132.


126‘O teatro e seu duplo’ está considerado dentro de uma linhagem literária que
O

remonta a Tucidídes. Ver FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins


Fontes, 2001. p. 58; 68.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 183

ay
A cartografia dos espaços de Artaud

Pl
Por conseguinte, a materialização da linguagem do

le
pensamento se constitui num espaço de contínua tensão entre

g
a razão e a desrazão que pode ser problematizada por meio da

oo
metáfora cartográfica. Neste sentido, é necessário centralizar
nosso argumento sobre uma das proposições iniciais deste ensaio,

G
de modo a exemplificá-la, no caso, a ideia de que nos mapas

no
não existiu uma exclusão total da desrazão, tal como Foucault
observou na sua ‘História da Loucura’ ou em relação à Literatura

e
desde a época clássica até a modernidade, mas a convivência de

on
várias razões.127 Para isso nos valeremos de alguns exemplos
selecionados de modo a cobrir alguns elementos essenciais
az
tanto para a compreensão do espaço como para a construção
Am

cartográfica. Esses exemplos visarão a constituir, a partir do


viés interpretativo da ‘linguagem artaudiana’, elementos para a
na

minimização dos problemas da análise foucaultiana do espaço.


Pesquisada a cartografia dos séculos XVI e XVII, podemos
a

observar que a existência de modelos cuja cientificidade, esté-


nd

tica e acuidade geográfica eram amplamente reconhecidas, não


ve

impede o surgimento e a aceitação de mapas absolutamente


divergentes em relação àqueles. No século XVI, por exemplo,
à

as cartas baseadas na projeção de Mercartor dividiram o espaço


á

editorial com o modelo cartográfico de John Ogilby que diferia


st

abruptamente tanto no que diz respeito à orientação quanto à


le

construção dos mapas.


a

No modelo de Ogilby, os mapas eram projetados sobre per-


in

gaminhos imaginários que dividiam entre si a extensão da folha.


ig
or

127 Ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacio-
O

nal brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-
(Doutorado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
184 Cartografias Imaginárias

ay
Cada pergaminho destinava-se a permitir o acompanhamento
de um itinerário, que partia de uma cidade ou povoado situado

Pl
sempre na parte de baixo no extremo esquerdo da folha. Essa

le
rota ascendia então ao topo do pergaminho para reaparecer na

g
parte de baixo do pergaminho seguinte, daí ascendendo nova-

oo
mente e continuando sucessivamente, até terminar no topo do
pergaminho situado no extremo da página direita.

G
no
Mapa Ogilby

e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
le

Fonte: OGILBY (1675).


a
in
ig

A partir desse exemplo, também podemos utilizar a ideia


or

da linguagem artaudiana para problematizar o espaço enquanto


uma produção ao mesmo tempo autônoma e múltipla. Ao con-
O

trário da cartografia achatada e estática de Mercartor, sempre


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 185

ay
orientada para o norte, em Ogilby cada pergaminho imaginário
possuía uma orientação diferente, novamente transformada nos

Pl
pergaminhos seguintes. Cada um desses pergaminhos imaginá-

le
rios buscava detalhar os elementos que podiam servir enquanto

g
marcos para suas narrativas peculiares: alguns enfatizavam as

oo
estradas, outros destacavam os montes, rios, florestas e pontes,
outros ressaltavam ainda cidades e vilas. O modelo de Ogilby

G
não revelava apenas fragmentos do espaço, mas, através da uti-

no
lização do mistério e do suspense, elaborava espaços em perma-
nente fruição.

e
A ideia de uma produção do espaço autônoma e múltipla

on
pode ser mais aprofundada se entendermos ainda a existência de
az
‘lugares’ produzidos, os ‘espaços imaginários’, e as ‘localizações’
que interagiriam com aquele através de sua inscrição no mapa.
Am

A ‘produção’ e a ‘inscrição’ desses ‘lugares’ e ‘locais’ remetem,


portanto, à investigação de um processo de composição onde
na

é necessário delimitar diferentes instâncias: a composição pro-


priamente dita, seu projeto e construção, a inscrição e a sua dis-
a

seminação. Nesse sentido, continuando a utilizar a metáfora do


nd

mapa, poderíamos exemplificar a constituição de diferentes con-


ve

dições da composição de suas gramáticas e sintaxes.


à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
186 Cartografias Imaginárias

ay
Mapa da Nova Harmonia

Pl
g le
oo
G
no
e
on
az
Fonte: WEINGARTNER (1832).
Am

Se tomarmos um novo exemplo, o ‘Mapa da nova harmo-


nia’, podemos observar que esse pode ser lido a partir de qual-
na

quer posição: alto-baixo, esquerda-direita, etc. Esta caracterís-


tica somente pode ser explicada se for entendido que o ‘Mapa
a
nd

da nova harmonia’ foi confeccionado, nos Estados Unidos, por


dissidentes da Igreja Luterana, seguindo os padrões já utiliza-
ve

dos nos mapas de outra denominação protestante, os ‘Shakers’.


No caso, o ‘Mapa da nova harmonia’ segue uma linhagem que
à

‘localiza’ através da própria inscrição um ‘lugar’ de composição,


á

representando um ‘espaço’ da experiência, a saber, a persegui-


st

ção religiosa sofrida e o desejo de possibilitar o exercício de


le

diferentes interpretações. O ‘lugar’ seria, portanto a expressão


a

aceita pelos falantes ideais de uma dada comunidade linguística


in

em certo momento, que poderia, ou não, conviver com outras


ig

expressões, mas que poderia a partir daí constituir ‘locais’, os


or

quais só podem ser bem entendidos a partir das leituras feitas


O

por meio da escrita que os inscreveu no mapa.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 187

ay
Veja-se este exemplo: no mapa ‘Neu-York’ de Melissa Gould,
os topônimos da cidade de Nova Iorque estão grafados em ale-

Pl
mão e a partir deste são ‘localizados’ no mapa da cidade cer-

le
tos lugares típicos da Alemanha do Entre-guerras. No caso, a

g
autora, filha de judeus austríacos que haviam se exilado nos

oo
Estados Unidos na década de 1930, pretende partilhar a vivência
do preconceito que experimentou durante sua residência de dois

G
anos na Berlim dos anos 80 e com isso motivar os judeus de

no
Nova Iorque para ações junto à opinião pública que informem
a sobrevivência daquilo que motivou a imigração de seus pais e

e
também o Holocausto.

on
az
Mapa ‘Neu-York’
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O

Fonte: GOULD (1991).


O original está à venda na Amazon e no Google Play
188 Cartografias Imaginárias

ay
Por outro lado, o mapa ‘A New Yorker’s idea of United States
of America’, produzido para a Feira Mundial de Nova Iorque de

Pl
1939 explora o provincianismo dos nova-iorquinos através de

le
uma distorção que enfatiza os espaços mais valorizados por eles

g
e da inscrição de nomes incorretos ou fictícios, por exemplo,

oo
‘Mineápolis’ e ‘Indianápolis’ são grafadas nesse mapa como ‘The
twin cities’. Se no primeiro exemplo, a transliteração pode ser

G
entendida enquanto a inscrição de um lugar, um ‘espaço da ima-

no
ginação’ resultante da autonomização da linguagem, no segundo,
a transliteração pode ser entendida como a representação de um

e
espaço pela disseminação dos mapas das imaginações e das geo-

on
grafias pessoais que em um dado momento extrapolaram seus
az
limites para constituir uma gramática e uma sintaxe cartográfica.
‘Local’, ‘Lugar’ e ‘Espaço’ resultariam, portanto, de uma con-
Am

tínua tensão entre autonomia e multiplicidade onde o exercício


da cartografia significaria reconhecer não apenas os interstícios
na

e as margens que permitiram a construção dos mapas, mas tam-


bém uma economia de suas linguagens que remete à investi-
a

gação de sua produção e de sua reelaboração. Afinal, retiradas


nd

as convenções cartográficas, resta-nos não mais um mapa, mas


ve

apenas uma folha em branco que, esvaziada de suas fruições,


pode ser preenchida por razões outras às da sua linguagem.
à
á
st
a le
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 189

ay
Mapa ‘A New Yorker’s Idea of United States’

Pl
gle
oo
G
no
e
on
az
Am
na

Fonte: WALLINGFORD (1939).


a

Seria nesse sentido que Lewis Carrol, em ‘The hunting of


nd

the Snark’ utiliza também a metáfora cartográfica e mesmo um


ve

mapa em branco para ilustrar o episódio em que os protago-


nistas, de barco, preparavam-se para cruzar o oceano e iniciar a
à

caçada aos ‘Snarks’, seres imaginários, fugidios, múltiplos.


á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
190 Cartografias Imaginárias

ay
Mapa do Oceano

Pl
g le
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve

Fonte: HOLIDAY (2007).


à
á

“Ele [o Capitão-sineiro] tinha trazido um grande


st

mapa representando o mar,


le

Sem o mínimo vestígio de terra:


a

E a tripulação ficou muito agradecida quando desco-


in

briu que aquele era


ig

Um mapa que todos poderiam entender.


or

Para que servem os Pólos Norte e os Equadores de


O

Mercator,
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 191

ay
Trópicos, Zonas, e Linhas de Meridiano?
Então o Sineiro gritou: e a tripulação responderia

Pl
‘Eles são apenas sinais convencionais!

g le
Outros mapas são do mesmo formato, com suas

oo
ilhas e cabos!
Mas nós temos nosso bravo Capitão para agradecer:

G
(E a tripulação protestaria) Ele nos trouxe o melhor –

no
Um perfeito e absoluto vazio!

e
Isto era maravilhoso, sem dúvida; Mas eles rapida-

on
mente descobriram az
Que o Capitão que eles acreditavam tanto
Tinha apenas uma noção para cruzar o oceano,
Am

E esta era o tilintar de seu sino.128


na

Se considerarmos a cartografia enquanto o experimento


resultante de uma linguagem múltipla e autônoma, a afirmação
a

de Foucault “eu sou um cartógrafo” ganharia outros sentidos.


nd

Utilizando novamente a metáfora dos mapas, esta cartografia


ve

constituiria uma crítica à linguagem achatada e inerte das cartas,


remetendo-nos ao estudo de uma construção que se efetuaria
à

pelas margens e nos interstícios, atravessando organizações gra-


á

maticais, léxicas e sintáticas, para compreender sua deformação a


st

partir do exercício da constituição de um sujeito-esquizofrênico,


le

múltiplo, multiplicado, mas multiplicador. Afinal, para Artaud,


a

a linguagem emergiria em um estado de putrefação pura do ser,


in

como uma linguagem do pensamento, capaz de engendrar, como


ig

a peste, o outro que seria o sujeito mesmo. Contudo, essa estética


or
O

128 The Bellman’s Speech. In: CARROLL, Lewis. The Hunting of the Snark: An Agony
in Eight Fits. Adelaide: The University of Adelaide Library, 2007.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
192 Cartografias Imaginárias

ay
da crueldade estaria ligada a uma ética da crueldade, onde caberia a
cada um a invenção de uma linguagem própria e múltipla, lapi-

Pl
dada por meio de uma boca-ânus que suga e esvazia. Ao car-

le
tógrafo caberia, portanto, a tarefa de investigar a invenção de

g
uma linguagem que constrói espaços por meio do excremento,

oo
espaços-sêmen que engendram e se multiplicam – espaços imagi-
nários – ao mesmo tempo que mergulha e bebe desses líquidos.

G
Foucault (1994, p. 762), aquele que fala sobre espaços sepa-

no
rados, as ‘heterotopias’, talvez ecoando Lewis Carroll, escreveria

e
no final de seu famoso texto sobre o espaço que, “nas civiliza-
ções sem barcos os sonhos se escoam”.

on
No final de outro texto, igualmente famoso, Antonin Artaud
az
descreve um espaço igualmente separado: seu corpo.
Am

“O espaço do infinito
na

Não sei
Mas
a

Sei que
nd

o espaço
ve

o tempo
a dimensão
à

o devir
á

o futuro
st

o destino
le

o ser,
o não-ser,
a
in

o eu,
ig

o não-eu
or

nada são para mim;


mas há uma coisa
O

que é algo,
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 193

ay
uma só coisa
que é algo

Pl
e que sinto

le
por ela querer

g
SAIR:

oo
a presença
da minha dor

G
do corpo,

no
a presença
ameaçadora

e
infatigável

on
do meu corpo.”129 az
E este não é o corpo sem órgãos de que nos fala Gilles
Deleuze, pois a linguagem de Artaud - entrevista por Foucault
Am

e Derrida, é uma geografia dos sonhos; o seu espaço - nossos


corpos e mentes, um barco sempre pronto a zarpar.
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O

129 ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: ______. Escritos de
Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 157-158.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
194 Cartografias Imaginárias

ay
Pl
Referências

g le
oo
AS BASES das instruções para a Comissão Científica de

G
Exploração. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX,

no
1856.

e
AGUIAR, Marquês de. Documentos relativos às questões de

on
limites do Império do Brasil ventiladas no Congresso de Paris
em 1818. [S.l.]: IHGB, Lata 79, Documento 9, 16/06/1816.
az
Am

ALMEIDA, Candido Mendes de. Atlas do Império do Brazil.


Rio de Janeiro: Litografia do Instituto Philomathico, 1868.
na

ARROWMITH, John. Brazil. In: The London Atlas of Universal


Geography. Londres: J. Arrowsmith, 1844.
a
nd

BARBOSA, Rui. Obras Completas, Vol. XXIII, Tomo I, 1896.


ve

Cartas de Inglaterra. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e


Saúde, 1946.
à
á

BRASIL.Câmara dos Deputados. Anais..., sessão de 2/07/1827.


st
le

BRASIL. Câmara dos Deputados. Anais..., sessão de


a

21/06/1828.
in
ig

CAPITANIA de Mato Grosso em 1° de setembro de 1781.


or

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 262, p.


344-345, Jan. 1964.
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 195

ay
CASAL, Manoel Ayres de. Corografia brasílica ou relação
histórico-geográfica do Brasil. Coleção de Obras Raras, Tomo

Pl
II, 2. ed. São Paulo: Edições Cultural, 1943. p. 248-249.

g le
CASSIRER, Ernst. A Filosofia das formas simbólicas. Martins

oo
Fontes: São Paulo, 2004.

G
CERQUEIRA, Dionysio. Discursos. In: AZEVEDO, Gregório

no
Thaumaturgo de. O Acre - Limites com a Bolívia. Artigos publi-
cados na imprensa - 1900-1901. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal

e
do Commercio, 1901.

on
CEZAR, Temístocles. Historiografia e escrita da história. Ágora,
az
Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 1, p. 5-12, jan./jun. 2005.
Am

CHARTIER, Roger. À beira da Falésia: A história entre certezas


e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
na
a

CONSELHO DE ESTADO, Seção de Justiça e Negócios


nd

Estrangeiros. Atas...[s.l.]: Consulta de 16/09/1844a.


ve

CONSELHO DE ESTADO, Seção de Justiça e Negócios


Estrangeiros. Atas...[s.l.]: Consulta de 05/07/1844 e
à

29/07/1844b
á
st

CONSELHO DE ESTADO, Seção de Justiça e Negócios


le

Estrangeiros. Atas...[s.l]: Consulta de 10/08/1846.


a
in

CONSELHO DE ESTADO, Seção de Justiça e Negócios


ig

Estrangeiros. Atas...[s.l.]: Consulta de 30/07/1845.


or

CONSELHO DE ESTADO, Seção de Justiça e Negócios


O

Estrangeiros. Atas...[s.l]: Consulta de 18/10/1847.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
196 Cartografias Imaginárias

ay
DELEUZE, Gilles. Um novo cartógrafo. In: Foucault. São Paulo:
Brasiliense, 1988.

Pl
le
DRUMMOND, Antônio Menezes de Vasconcelos [carta] 06

g
jun. 1839, 14 dez. 1839 [para] Gama, Caetano Maria Lopes.

oo
Ofícios de Lisboa, AHI, In: ADONIAS, Isa. O acervo de docu-
mentos do Barão da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: [s.n]: 1984.

G
no
EÇA, Filipe Gastão de Moura Coutinho Almeida de. Lacerda
e Almeida, escravo do dever e mártir da ciência (1753-1798)

e
- apontamentos históricos, biográficos e genealógicos, com

on
algumas notícias e documentos inéditos... Lisboa: [s.n.], 1951.
az
EDNEY, Matthew. Maps and Memory. Presentation at the
Am

Osher Map Library and Smith Center for Cartographic


Education, University of Southern Maine, on the occasion
na

of the opening of the exhibition, “Masterpieces at USM: An


Exhibit Celebrating Five Centuries of Rare Maps & Globes at
a

the Osher Map Library,” curated by Ian Fowler (November


nd

2015 – March 2016). 19 de nov. 2015.


ve

FOUCAULT, Michel. Des espaces autres, 1984. In: _______.


à

Dits et écrits. Tomo IV. Paris: Éditions Gallimard, 1994.


á
st

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População: curso


le

dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins


Fontes, 2008.
a
in

GONÇALVES, Lopes. O Amazonas - Esboço histórico, corográ-


ig

fico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J. Hanf,


or

1904.
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 197

ay
GOULD, Melissa. Neu-York. [s.d.]. Disponível em <http://
www.megophone.com/neuyork.html.>. Acesso em: 2 mar.

Pl
1991.

g le
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos

oo
Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o
Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de

G
Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988.

no
HOLIDAY, Henry. Ocean Chart. In: CARROLL, Lewis. The

e
Hunting of the Snark an agony in eight fits. eBooks@Adelaide,

on
2007. Disponível em: http://ebooks.adelaide.edu.au/c/carroll/
lewis/snark/. Acesso em: 2 fev. 2009.
az
Am

JUNG, Carl G. Psicologia e Alquimia, Obras Completas, Vol.


XII. Petrópolis: Vozes, 1994.
na

KOSSELECK, Reinhardt. ‘Espacio e Historia’ In. Los estratos


a

del tiempo. Barcelona: Paidós, 2001.


nd

LIGA MARÍTIMA. Rio de Janeiro, n. 4, jan. 1921.


ve

LOVECRAFT, H. P. O Caso de Charles Dexter Ward. Porto


à

Alegre: L&PM, 1997.


á
st

MARAJÓ, Barão de. As regiões Amazônicas. Lisboa: Imprensa


le

de Libanio da Silva, 1895.


a
in

MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia Histórica da


ig

Província de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1837.


or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
198 Cartografias Imaginárias

ay
NIEMEYER, Conrado Jacob de. Carta Corográfica do Império
do Brasil. Rio de Janeiro, 1847. Acervo da Mapoteca da.

Pl
Biblioteca Nacional.

g le
OGILBY, John. Atlas Britannia. London: National Art Library

oo
pressmark 51.C.1, 1675.

G
OLIVEIRA, Joaquim José Machado de. Memória histórica sobre

no
a questão de limites entre o Brasil e Montevidéu. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3,

e
1853.

on
PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: A construção
az
do espaço nacional brasileiro através das corografias e da car-
Am

tografia no século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. 427 f. Tese


(Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em
na

História, Faculdade de História, Universidade Federal do Rio de


Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
a
nd

PEIXOTO, Renato Amado. Reprodução do mapa anexo ao


memorando 37. AHI-Arquivo Particular de Duarte da Ponte
ve

Ribeiro, Lata 284, Maço 4, Pasta 3.


à

PEREIRA, José Saturnino da Costa. Memória sobre os limites


á
st

do Brasil ao Sul e Oeste. AHI, Arquivo Particular de Duarte da


le

Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, 1837.


a

PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. História nova e completa


in

da América. Lisboa: Fr. José Mariano Velloso, 1807.


ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 199

ay
PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Memória acerca dos
naturais limites do Brasil. [S. l.]: IHGB, Lata 421, Pasta 16,

Pl
18/03/1827.

g le
PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de

oo
São Pedro. 2. ed. Paris: Tipografia de Casimir, 1839. p. VIII-IX.

G
PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Apontamentos bio-

no
gráficos sobre o Visconde de São Leopoldo. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIX, n° 21, 1898.

e
on
PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Programa geográfico
- Quais são os limites naturais, pactuados e necessários do
az
Império do Brasil?. Revista do IHGB, tomo LXV, n° 105, parte I,
Am

p. 397-398, 1902a.

PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Resposta às breves


na

anotações que a Memória do Visconde de S. Leopoldo sobre


a

os Limites do Brasil fez o Sr. Conselheiro Manoel José Maria


nd

da Costa e Sá. Revista do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, p. 398-399, 1902b.
ve

PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Da vida e feitos de


à

Alexandre de Gusmão e Bartolomeu Lourenço de Gusmão.


á
st

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo


le

LXV, n° 105, parte I, p. 399-400, 1902c.


a

PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário histórico e físico da


in

viagem dos oficiais da demarcação que partiram do quartel


ig

general de Barcelos para a capital de Vila Bela da Capitania de


or

Mato Grosso em 1° de setembro de 1781. Revista do Instituto


O

Histórico e Geográfico Brasileiro, n° 262, p. 344-345, jan. 1964.


O original está à venda na Amazon e no Google Play
200 Cartografias Imaginárias

ay
RELATÓRIO seção de zoologia. In: BRAGA, Renato. História
da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]: Imprensa

Pl
Universitária do Ceará, 1962.

g le
RIBEIRO, Duarte da Ponte. Carta Geral do Brasil. Rio de

oo
Janeiro, 1873. Acervo da Mapoteca da Biblioteca Nacional.

G
SÁ, Manoel José Maria da Costa e. Quais são os limites atu-

no
rais, pactuados, e necessários do Império do Brasil? Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105,

e
parte I, 1902.

on
SCHOPENHAUER, Arthur O Mundo como vontade e represen-
az
tação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
Am

SCHOPENHAUER, Arturo. De La Cuadruple Raiz del Principio


de Razon Suficiente. Madrid: Gredos, 1981
na
a

SHILS, Edward. Centro e Periferia. Lisboa: Difel Editorial,


nd

1992.
ve

TUAN, Yi-Fu. Space and Place. Minneapolis: University of


Minnesota Press, 2003.
à
á

UMA VISITA ao couraçado S. Paulo. Liga Marítima. Rio de


st

Janeiro, n. 22, jul. 1920.


a le

VARNHAGEM, Francisco Adolfo de. Memória sobre os tra-


in

balhos que se podem consultar nas negociações de limites do


ig

Império, escrita por ordem do Conselheiro Paulino José Soares


or

de Sousa. IHGB, Lata 340, Pasta 6. p. 1, 1851.


O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 201

ay
VIANA FILHO, Luiz. A vida do Barão do Rio Branco. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959.

Pl
le
WALLERSTEIN, Immanuel. ‘The Time of Space and the Space

g
of Time: The Future of Social Science’ In Political Geography,

oo
XVII, 1, p. 71-82, 1998.

G
WALLINGFORD, Daniel. A New Yorker’s Idea of the United

no
States of America. Boston: [s.n.], 1939. 9.5 x 7.5 polegadas.

e
WEINGARTNER, Walrath. Map of Harmony on the Wabash,

on
1814-1825. Economy, Pa., 1832.
az
WINDELBAND, Wilhelm. History of Philosophy. 2ª edição.
Am

London: The MacMillan Company, 1914.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis:


na

Vozes, 2005.
a
nd

WITTGENSTEIN, Ludwig. Observaciones a la Roma Dorada de


Frazer. Madri: Tecnos, 2001.
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play
202 Cartografias Imaginárias

ay
Pl
Sobre o autor

g le
oo
Renato Amado Peixoto é Professor Associado na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Doutor em História

G
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

no
Líder da Rede de Pesquisa História e Catolicismo no Mundo
Contemporâneo (RHC), dos grupos de pesquisa História,

e
Catolicismo e Política no Mundo Contemporâneo (UFMT)

on
e Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços
az
(UFRN). Integrado enquanto pesquisador à Red de Estudios
de Historia de la Secularización y la Laicidad (REDHISEL/
Am

Argentina) e associado da Sociedade Brasileira de Teoria e


História da Historiografia (SBTHH) e da International Network
na

for Theory of History (INTH/Bélgica).


Autor de ‘Cartografias Imaginárias: estudos sobre a cons-
a
nd

trução do espaço nacional brasileiro e a relação História &


Espaço’ (2011, 1ª edição) e co-organizador das obras ‘Nas tri-
ve

lhas da representação’ (2012); ‘Olhares sobre os catolicismos no


Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil’ (2016); e ‘Política e
à

Cultura no Catolicismo Contemporâneo’ (2018).


á
st

Desenvolve investigações na aproximação História e Espaço


le

pesquisando teoricamente e metodologicamente as relações de


produção de espacialidades, temporalidades e identidades no
a
in

campo político, cultural e religioso.


ig
or
O
O original está à venda na Amazon e no Google Play

ay
Pl
le
g
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O

Você também pode gostar