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O original está à venda na Amazon e no Google Play
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Renato Amado Peixoto
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Cartografias Imaginárias
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Natal
Edição do Autor
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2019
O original está à venda na Amazon e no Google Play
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Capa: Mapa de Gerardus Mercator, “Septentrionalium Terrarum des-
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criptio”, 1595.
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Sumário
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oo
Apresentação................................................................................................8
G
no
Zona de confluxo:
a História dos Espaços no horizonte da aproximação
e
da História com a Geografia e a Cartografia........................................14
on
az
Enformando a Nação:
a construção da história do espaço nacional
Am
O espelho do Jacobina:
a
ay
O mapa antes do território:
o território do Javari como exemplo da construção
Pl
concorrencial de espaços ........................................................................... 131
g le
Os dromedários e as borboletas:
oo
uma análise da produção da espacialidade regional por meio da
‘Comissão Científica de Exploração’ do IHGB
G
(1855-1862)..................................................................................................... 149
no
Por uma análise crítica das políticas de espaço:
e
isto pode ser chamado de estudo do ‘Geopoder’?.............................. 161
on
az
Espaços imaginários:
o historiador dos espaços como cartógrafo.......................................... 177
Am
Referências..................................................................................194
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O original está à venda na Amazon e no Google Play
8 Cartografias Imaginárias
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Apresentação à segunda edição
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Passados exatos dez anos da escrita deste livro, faz-se agora
G
necessária a publicação de uma segunda edição, por conta de há
no
muito se haverem esgotado os seus exemplares. Oferece-se, com
isso, a oportunidade de fazer pequenos reparos, acrescentar alguns
e
esclarecimentos, juntar mapas essenciais e, sobretudo, apresentá-
on
-los em cores.
az
Acho que é por demais evidente a importância de se poder con-
tar com o colorido no estudo dos mapas, mas quero acrescentar
Am
ay
Nossa intenção, com a apresentação na capa desta segunda
edição do mapa “Septentrionalium terrarum descriptio”, de
Pl
Gerardus Mercator, guarda relação com a exposição feita por
le
Edney. Composto mais ou menos na mesma época que o de Olaus
g
Magnus, o mapa de Mercator foi a primeira tentativa de cartografar
oo
a região do Ártico; seus limites estão exatamente onde o mapa de
Magnus termina.
G
Em “Septentrionalium terrarum descriptio” não foram dese-
no
nhadas serpentes nem monstros marinhos, mas o mapa inclui des-
crições fascinantes de pigmeus e redemoinhos gigantes. Porém, do
e
mesmo modo que Edney, não foram os elementos em destaque
on
que me fascinaram, e sim a montanha que emerge de um lago no
az
centro do mapa, o “Polus Arcticus”.
Am
por trás das disposições dos cartógrafos, algo que acredito ter sido
esboçado por Yi-Fu Tuan no livro Space and Place (2003).
à
2009, procurando aclarar certas questões que não foram bem colo-
ig
ay
Contudo, quero dizer que não alterei as proposições teóri-
cas adotadas na primeira edição, deixando propositalmente de
Pl
acrescentar as muitas colocações acerca do Pós-Estruturalismo
le
e do legado de Brian Harley e dos cursos de Jaime Cortesão no
g
Ministério das Relações Exteriores que interessam diretamente
oo
aos conteúdos trabalhados naquela edição. Na verdade, pretendo
trabalhar essas questões noutro livro, mesmo porque não acredito
G
em obras acabadas e entendo que a transitoriedade é o estigma de
no
nossa lembrança: estou aqui porque fui assim, e minha confissão é
contraditória – deixo que o percebam.
e
Na feitura de Cartografias Imaginárias trabalhei uma das hipóte-
on
ses de minha tese de doutoramento (A Máscara da Medusa): a de que
az
é possível reconhecer uma partilha de interesses e de tarefas entre
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Ministério
Am
ay
trabalho docente na graduação exigia o contato com os problemas
referentes à produção da Região (o Nordeste) e da identidade local
Pl
(a norte-rio-grandense), por isso eles se fizeram presentes.
le
Além disso, o livro visava apresentar as transformações de
g
minhas posições acerca de certas tomadas pós-estruturalistas e
oo
apontar para uma História dos Espaços gestada na autonomia do
G
confluxo da História com a Geografia, no horizonte daquilo que
Reinhart Koselleck, Yi-Fu Tuan e J. K. Wright trabalharam. Com
no
isso não pensava em me afastar do “giro pós-estruturalista” de
Brian Harley ou das colocações de Gilles Deleuze e Michel Foucault,
e
mas dialogar com questões resultantes de sua aplicação direta à
on
História da Cartografia e à História dos Espaços, as quais eu enten-
az
dia serem relacionadas à “Lógica do Sentido”, à “Heterotopia” e ao
arsenal interpretativo de Brian Harley.
Am
ay
das protorregiões ‘Norte’ e ‘Sul’ estava imbricado na compreensão
mesma do processo de construção do espaço da Nação e do papel
Pl
desempenhado pelos seus participantes.
le
A primeira versão de “Impertinentes, desinteressados ou
g
sem escolha” foi publicada em 2008 nos Anais do II Encontro
oo
Internacional de História Colonial, mas aqui se busca aproximar
G
a produção da história das demarcações no IHGB com a produção
cartográfica no MRE, procurando explicitar o papel nelas desempe-
no
nhado por Duarte da Ponte Ribeiro.
e
“O espelho do Jacobina” é um texto produzido para o livro,
on
porém desenvolve certos argumentos do artigo “A Carta Niemeyer
de 1846”, publicado na revista Anos 90 em 2004. Nesse capítulo
az
busco comparar o primeiro mapa do Brasil, produzido por Conrado
Am
Nação.
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“Por uma análise crítica das políticas de espaço” foi escrito para
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ay
como Geocrítica por meio de um caso de estudo no contexto da
República.
Pl
Finalmente, a primeira versão de “Espaços Imaginários” foi
le
publicada no livro Cartografias de Foucault em 2008 e revolve o con-
g
teúdo referente à ideia de “Cartografia imaginária” ou “Cartografia
oo
da imaginação”, apresentando-o na forma do que conhecemos hoje
G
enquanto “Cartografia literária”. Aqui questiono a apresentação do
termo “Cartografia” por Deleuze, através do exame daquilo que
no
esse autor retira da obra de Artaud para elaborar o seu AntiÉdipo, e
remeto o resultado a uma aproximação dos conteúdos de Foucault
e
e Derrida.
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Renato Amado Peixoto.
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Zona de confluxo:
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a História dos Espaços no horizonte da aproximação da
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História com a Geografia e a Cartografia
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no
O objetivo deste capítulo é aclarar nossas posições acerca
e
da investigação da historicidade do espaço por meio de dois
textos fundamentais para a compreensão do afastamento da
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História em relação à Geografia: “Espaço e História” de Reinhart
az
Koselleck (2001)1 e “O Tempo do Espaço e o Espaço do Tempo”
Am
Vale notar que esse exercício visa também defender uma maior
nd
1 O texto de Koselleck deve ser compreendido como parte de suas últimas investigações,
à
quando cuidava de pensar uma ‘antropologia das experiências do tempo histórico. Nesse
âmbito, foi escrito para ser apresentado como conferência ao final do Congresso de Histó-
á
ria de Trevéris, Alemanha, em 1986, permanecendo inédito até a publicação do livro Zeits-
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chichten - Studien zur Historik, lançado pela editora Suhrkamp Verlag no ano de 2000.
Traduzido para o espanhol com o título de “Espacio e historia”, foi incluído na coletânea
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Los estratos del tempo: estúdios sobre la historia, publicada pela editora Paidós em 2001.
2 O texto de Wallerstein foi escrito a partir da repercussão dos tomos I e II de sua obra principal,
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upon Tyne em 1996, cabe notar, sob o patrocínio da Royal Geographical Society e do Ins-
titute of British Geographers, sendo publicada pela revista Political Geography em 1998.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 15
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faz parte do raciocínio de Koselleck ou de Wallerstein, embora
possa ser remetida à lógica de argumentação desses autores.
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Saliento que este é um trabalho de compreensão e interpre-
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tação de textos de diferentes afiliações teóricas e metodológi-
g
cas, condições que podem fazer diferir os resultados da análise
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por conta mesmo da formação ou da expectativa do examinador.
G
Assim, assumo a responsabilidade pelos exageros e omissões
e, notados estes, espero inclusive que novas leituras dos textos
no
sejam feitas, para que nosso debate se desenvolva.
e
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Koselleck e a contradição entre a História e a Geografia
az
Em “Espaço e História”, Koselleck (2001) aponta que a con-
Am
mente que seu trabalho tinha a ver com o tempo e com o espaço,
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cia interdisciplinar.
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e, diante da alternativa formal entre espaço e tempo, optaram
então por instruir a construção epistemológica da História por
Pl
meio da reificação do tempo e da subordinação do espaço. Esse
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raciocínio é encadeado por Koselleck (2001, p. 97) a partir da
g
premissa de que a busca pelas novidades, pelas trocas, pelas
oo
modificações fazia parte dos interesses daqueles historiadores
“na medida em que se pergunta como se tem chegado à situação
G
atual que se contrapõe à anterior”. Mas os historiadores esta-
no
riam afetados pela experimentação de uma nova dinâmica do
tempo, explicitada na velocidade vertiginosa com que se desen-
e
rolavam os eventos e as transformações sociais e tecnológicas.
on
Além de optar pela preponderância teoricamente pouco fun-
az
damentada do tempo sobre o espaço, os historiadores cuidaram
de fundar o seu método baseando-se apenas na sucessão tempo-
Am
ay
importante ou menos frutífera que a sistemática centrada na
sucessão do tempo.
Pl
Assim, o raciocínio de Koselleck não apenas explicita a pre-
le
missa de que o espaço e o tempo pertencem igualmente às con-
g
dições de possibilidade da História, mas também endossa a ideia
oo
de que a dificuldade manifestada por alguns historiadores em
G
pensar ou mesmo considerar o espaço em suas reflexões deve-
ria ser entendida como resultante da permanência de um legado
no
que necessariamente deve ser repensado.
e
No Brasil, o desenvolvimento das atividades do Instituto
on
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) exemplifica de modo
admirável as incertezas e possibilidades percorridas pelo con-
az
curso de racionalidades ainda indecisas ante a separação ou a
Am
lavam o Estado.
Quero salientar que essa impossibilidade fundamental, o nó
a
in
ay
durante pelo menos dez anos. Refiro-me aqui à produção, sob a
liderança de José Feliciano Fernandes Pinheiro, da História do
Pl
espaço nacional no âmbito do IHGB, levada a cabo entre 1839 e
le
1841 a partir dos insumos recebidos da Secretaria de Estado dos
g
Negócios Estrangeiros, do Parlamento e do Conselho de Estado.
oo
Essa sistemática se desenvolveria durante a segunda metade
G
do século XIX por meio da ampla disponibilização dos conteú-
dos da Corografia e pela proliferação de suas obras, cuidando
no
da descrição dos espaços através de uma articulação cronoló-
e
gica que inscrevia o espaço no território do Estado cujo exame
não autoriza o discernimento de uma separação rigorosa entre a
on
História e a Geografia no Brasil até a segunda década do século
az
XX. Enquanto gênero narrativo, a Corografia possui uma his-
tória que remonta ao século XVI e, por conseguinte, várias das
Am
obras, algumas delas pela primeira vez, e deve-se notar que boa
parte delas foi coletada por Francisco Adolfo de Varnhagen. Por
à
ay
A sobrevivência da Corografia, a influência de suas obras e
autores e, sobretudo, a disseminação do seu conteúdo pela lite-
Pl
ratura e pelas ciências serviriam para ajudar a explicar a impor-
le
tância do espaço enquanto categoria que embasou as análises
g
feitas no âmbito do pensamento social e político brasileiro do
oo
século XX. Essa observação nos permite mesmo justificar a
necessidade de se constituir no Brasil um cânone da Historiografia
G
dos espaços mais dilatado, que junte as obras históricas aos trata-
no
dos estadísticos e às corografias.
e
Seguindo o argumento de Koselleck, a investigação da his-
toricidade do espaço não implica apenas recolocar o espaço
on
como categoria numa reorganização do método histórico que
az
visa o exame das modificações sociais, econômicas ou políticas;
entende-se que esse método também deve pressupor a impor-
Am
são de uma História das representações de cada espaço que, por conta
de suas especificidades, poderia mesmo ser “posta pelos histo-
O
ay
acrescentaria eu, remetida pelos historiadores às suas condições
próprias de investigação, determinadas pela materialidade dos
Pl
objetos ou pelas racionalidades que envolveram sua produção.
le
Para verificarmos essas condições podemos recorrer à
g
composição do primeiro mapa do Estado brasileiro, a “Carta
oo
Corográfica do Império do Brasil”, também conhecida como
G
“Carta Niemeyer” por conta de seu autor ter sido o coronel de
engenheiros Conrado Jacob de Niemeyer. Sabemos que a com-
no
posição da Carta Niemeyer se desenvolveu em três passos:
e
no primeiro, retiraram-se as suas linhas gerais da “Carta da
América Meridional” publicada pela casa editorial Arrowsmith.
on
No segundo passo, foram acrescentados topônimos e acidentes
az
naturais recolhidos dos trabalhos geográficos apresentados às
reuniões do IHGB. No terceiro passo, as fronteiras do Brasil e os
Am
ay
na sessão de 8 de maio de 1847, ocasião em que foi admirada e
aclamada pelos consócios, os quais decidiram premiar o esforço
Pl
de Niemeyer. Por conseguinte, podemos entender que o autor
le
da Carta Corográfica do Império do Brasil procurou, em cada
g
um dos passos, orientar a materialização do mapa por uma ideia
oo
do espaço nacional e, assim, falar de uma “operação” e um “pro-
cesso de produção” históricos de sua representação.
G
Como outro exemplo da premissa de Koselleck, examinemos
no
a relação literária experimentada por dois escritores estaduni-
e
denses, H. P. Lovecraft e Robert E. Howard, com foco na inven-
ção da personagem Conan.
on
Howard viveu na cidade de Cross Plains, situada no estado
az
do Texas, numa sociedade extremamente religiosa e conserva-
Am
dora, onde foi discriminado por suas ideias liberais, sua vivência
artística e sua ascendência irlandesa. Por um lado, a personagem
Conan incorpora em sua fabricação as condições que o autor
na
ay
convivência entre os espaços concretos e a Geografia não eucli-
diana: superfícies anormais e ângulos impossíveis com “locais e
Pl
dimensões repulsivas, diferentes dos nossos”, portanto incon-
le
cebíveis para a mente humana, como instrui Lovecraft (2000, p.
g
135) no conto “O chamado de Ctulhu”.
oo
Howard fabricou a personagem Conan em pleno contexto
G
da Depressão, em meio às crescentes dificuldades financeiras e
emocionais que o impeliram ao suicídio. Refletindo esse tempo
no
de extremos ideológicos e de embates sociais contínuos, o enredo
e
dos contos de Conan não é apenas violento e sensual, mas tam-
bém iconoclasta e herético. Civilizações, governos e deuses,
on
reais e imaginários, são atropelados pelo impulso de liberdade
az
e gozo que move o duplo Conan-Howard e, espelhando isso,
sua narrativa alterca com a História e a Geografia e flui descon-
Am
ay
transformação dos espaços das unidades territoriais que se for-
maram com a ascensão, na primeira modernidade, das unidades
Pl
estatais (o período que se estende até a Revolução Francesa).
le
Assim, o historiador dos espaços teria como tarefas examinar
g
as produções que relatam e cuidam da expansão do Estado e de
oo
seus meios e perscrutar o processo de inscrição de suas espacia-
lidades e territorialidades.
G
A lógica dessa investigação pressupõe que o historiador dos
no
espaços pense as articulações em torno dos projetos de Estado
e
e a produção dos trabalhos estadísticos (aqueles que se referem
ao governo, à governabilidade ou à governança) que então trata-
on
ram de construir “as chamadas realidades do passado sem tratar
az
de reconstruir as antigas concepções de espaço”. Para Koselleck
(2001, p. 97), isso instruiu um duplo uso da categoria espaço, por
Am
ay
Trabalhando a partir do exemplo anterior, no caso do Brasil
na SENE e em instituições ligadas ao esforço de produção his-
Pl
toriográfico como o IHGB, a Cartografia histórica foi utilizada
le
como ferramenta para legitimar os pressupostos da inscrição de
g
uma narrativa espacial que se colava aos interesses do Estado.
oo
Essa narrativa possibilitou a enunciação da antiguidade da pre-
sença da elite intelectual no espaço nacional, inclusive pela ins-
G
crição de seus símbolos no território, como por exemplo a Linha
no
de Tordesilhas, representação, em última análise, da atividade
continuada de produção de um espaço da Nação e da reconstrução
e
periódica de sua narrativa, que implica a subalternização da maioria
on
dos seus integrantes. az
Ora, para desconstruir essa narrativa torna-se necessário
mesmo investir sobre a Cartografia histórica, erigida em meio
Am
ay
produção dessas narrações. Essas preocupações foram explicita-
das em uma nova espécie de trabalhos estadísticos, capazes de
Pl
tornar possível a lógica de deslizamento da Nação para escalas e
le
racionalizações identitárias menores: o regional, o estadual etc.
g
Segundo Immanuel Wallerstein (1998) em “O Tempo do
oo
Espaço e o Espaço do Tempo”, essa lógica se constituiria por
G
meio da Academia e pelo incentivo do Estado, quando se ins-
tituem os diferentes papéis que geógrafos e historiadores pas-
no
saram a assumir no século XIX. O afastamento que paulatina-
e
mente se constitui entre os métodos e os conteúdos da História
e da Geografia seria explicado pela interação das disputas por
on
espaço acadêmico com as especificidades de projeção, divulga-
az
ção e inscrição do Estado-Nação sobre o seu território e sobre o
globo.
Am
sociedade).
à
ay
Sociais, mas, ao mesmo tempo, insistiu em concorrer com as
seis disciplinas principais em seus campos de interesse.
Pl
Nesse sentido, Wallerstein salienta que a Geografia só conse-
le
guiu sobreviver porque recebeu forte suporte de instituições não
g
ligadas à Academia, mas que estavam incluídas diretamente nos
oo
esforços do Estado, como por exemplo, no caso da Inglaterra,
G
da Royal Geographical Society. Além disso, a importância da
Geografia decorria do fato de ser ensinada nas escolas primárias,
no
prestando-se ao esforço de inculcar nos cidadãos a integridade
e
do território e a utilidade de todas as suas partes para a Nação.
Como a História, a Geografia servia diretamente aos interesses
on
do Estado-Nação, mas, frisa Wallerstein (1998, p. 76-79), como
az
a Geografia não se pretendia universal, podiam-se trabalhar por
meio dela certas demandas particulares do Estado.
Am
ay
porções do seu território. Além disso, de acordo com as tramas
estaduais e a nacional, foi possível aos seus políticos e intelec-
Pl
tuais produzir, por meio de uma terminologia melodramática,
le
novos espaços e identidades focados em interesses mais amplos,
g
como nos mostra a atuação de Tavares de Lyra no IHGB e de Eloy
oo
de Souza no Parlamento durante as duas primeiras décadas do
século XX, operando a transformação da regionalidade Nortista
G
em Nordestina.
no
e
O duplo uso da categoria espaço
on
Voltando ao raciocínio de Koselleck, a introdução do duplo uso
az
da categoria espaço pelos tratados estadísticos da primeira moder-
Am
ay
das tensões e demandas do Imperialismo, e se esta teria servido
para sufragar suas pretensões expansionistas e, logo depois, para
Pl
justificar as demandas das ideologias totalitárias no século XX.
le
Entretanto, o caso do Brasil nos mostra que o saber geopolí-
g
tico teve grande aceitação e disseminação já no início do século
oo
XX, por conta da sobrevivência do espaço enquanto categoria de
G
possibilidade das análises feitas no âmbito do pensamento social
e político, e do forte legado da produção estadística Imperial
no
que, conectada com o espaço e o território, foi sublimada na
e
Primeira República por meio da atuação de Rio Branco, ministro
das Relações Exteriores e presidente do IHGB, e por influência
on
de um dos líderes do catolicismo, Everardo Backheuser.
az
A Geopolítica tornar-se-ia, em meados do século, a razão
Am
fazer uma ciência prática para a análise das ações sobre o espaço
á
ay
possibilidades de se trabalhar tanto a partir de uma História
das concepções do espaço quanto de uma História da produ-
Pl
ção das espacialidades, caberia também estabelecer e explorar
le
as condições que remeteriam a uma reflexão sobre a comple-
g
xidade da interação entre espaço e tempo. Koselleck (2001, p.
oo
105) insinua, nesse entendimento, que “a bela expressão espaço
de tempo” não seria só uma metáfora da cronologia e da classi-
G
ficação por épocas, mas ofereceria a possibilidade de investigar
no
a remissão recíproca do espaço e do tempo em suas concretas
articulações históricas.
e
A partir dessa insinuação, há que se considerar que, se o
on
espaço mesmo tem uma História, o tempo também não possui-
az
ria uma Geografia? Se o espaço é uma condição meta-histórica, o
tempo não seria também uma condição meta-geográfica?
Am
Conclusão
na
ay
De modo a pensar a História dos espaços a partir da imersão
na zona de confluxo, volto ao texto “O Tempo do Espaço e o
Pl
Espaço do Tempo” no ponto em que se explicita o conceito de
le
TempoEspaço [TimeSpace].
g
Na compreensão de Wallerstein, TempoEspaço seria uma cate-
oo
goria analítica que se apoia sobre os pressupostos hoje divididos
G
entre a História e a Geografia, na medida em que a fratura entre
História e Geografia deve ser explicada não apenas por meio da
no
opção dos historiadores entre o tempo e o espaço, mas também
e
como uma escolha dos historiadores e geógrafos por determina-
das formas de compreensão do tempo e do espaço. Raciocinando
on
por meio da tese de Wilhelm Windelband (1914), que expli-
az
cita que no final do século XIX as Ciências Sociais teriam sido
colhidas em uma controvérsia a respeito dos métodos a serem
Am
ay
espaciais separadas desde a controvérsia, fazendo-as convergir
para a formulação de um novo conceito, o TempoEspaço, que pas-
Pl
saria doravante a embasar não apenas a História ou a Geografia,
le
mas todas as Ciências Humanas (WALLERSTEIN, p. 75-76).
g
Acredito que a categoria analítica de Wallerstein sinaliza
oo
a mesma constatação a que chegou Koselleck: a História dos
G
Espaços sempre esteve no horizonte de nossa disciplina e, por
conta disso, não precisa de novos modelos, mas antes deve ser
no
empreendida a partir do esforço de recuperação de antigos insu-
e
mos e do afastamento de novos preconceitos, de modo a não se
perder a oportunidade que variados enfoques e análises podem
on
oferecer, e a não se privar da colaboração com os geógrafos e os
az
cartógrafos naquilo que se poderia chamar de zona de confluxo: a
área de hachura que antes reunia, mas que hoje afasta e separa
Am
ay
Pl
Enformando a Nação:
g le
a construção da história do espaço nacional no projeto
oo
historiográfico do IHGB e seu exame por meio do
G
estudo cartográfico
no
e
O IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem
sido consistentemente apontado por vários autores como o cen-
on
tro da produção de um projeto histórico que, no século XIX,
az
se constituiu em torno da questão nacional, destacando-se, em
Am
ay
cuidar da descrição do território e das suas fronteiras, em suma,
refletir sobre os problemas agudos de viabilização de uma ordem
Pl
central e hierarquizadora.3
le
Considerando essa construção, poderíamos pensar que o
g
projeto histórico foi constituído a partir da premissa mesma de
oo
que certas noções de espaço haviam que ser discutidas e que por
G
meio destas discussões se estabeleceriam os pressupostos e as
condições para a construção de uma história da nação, tal como
no
a que foi levada a cabo por Varnhagen já na década de 1850, e
e
que a produção do IHGB poderia continuar revelando tensões e
ambiguidades em torno de certos pontos críticos da discussão.
on
A partir disto, podem-se desenvolver algumas reflexões: pri-
az
meiro, se estas discussões estavam já prometidas no projeto de
Am
constituição do próprio IHGB, uma vez que este havia sido con-
cebido a partir do entendimento de que os esforços da história e
geografia constituiriam dois momentos de um mesmo processo,
na
ay
Entendendo que as condições de integração das elites num
sistema institucional central e o reconhecimento mesmo da exis-
Pl
tência de um centro dependia da manutenção de uma afinidade
le
entre os vários grupos que residiam num território extenso, seria
g
razoável supor que o projeto histórico caminhasse pari passu com
oo
a constituição de um saber sobre o espaço que possibilitasse o
estabelecimento de um consenso acerca da identidade.
G
Nesse caso, o pensar o espaço permitiria determinar aque-
no
les com quem se poderia compartilhar um conjunto de crenças,
e
compatibilizando as demandas locais, regionais ou mesmo peri-
féricas em relação ao centro. Se pensarmos a ideia de centro não
on
enquanto um lugar geograficamente demarcável e único, mas
az
como um fenômeno pertencente à esfera da cultura, dos valo-
res e das crenças com uma racionalidade inerente a seu próprio
Am
tar a obra Centro e Periferia, de Edward Shils. A obra oferece importantes subsídios
para se pensar uma relação entre a História e o espaço.
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Renato Amado Peixoto 35
ay
visava conjugar a relação dos grupos dispersos no território com
um espaço e um centro comum, buscando-se, assim, constituir
Pl
um sentido de afinidade mais amplo entre todos os grupos que
le
se julgavam poder reunir num dado momento. A ideia mesma de
g
afinidade seria adensada pela atribuição da ideia de transcendên-
oo
cia ao centro, a saber, pela construção de uma contiguidade ide-
alizada deste com outro centro e outro espaço muito afastado, a
G
antiga metrópole e a Europa Ocidental. Desse modo, a operação
no
do centro em direção a suas partes deixaria de ser apenas repre-
sentada, para ser também transubstanciada no espaço como
e
um dos elementos da construção mitológica de uma continui-
on
dade com um espaço e centro transcendente, o que conformaria
az
melhor a legitimidade do centro por torná-lo mais localizável
por meio da transcendência mesma do espaço e tempo.5
Am
ay
brasileiro já tivera anteriormente de responder a pressões e
demandas externas em relação ao território e ao sentido de sua
Pl
inserção num espaço verdadeiramente contíguo, a América. A
le
Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (SENE) foi o
g
lugar do Estado onde esses esforços seriam mais desenvolvi-
oo
dos, embora estes tivessem se originado, muito provavelmente,
das premissas desenvolvidas no Segundo Conselho de Estado e
G
no Parlamento, durante o reinado de D. Pedro I. Mas, como se
no
poderia pensar a relação mesma entre a produção do espaço na
SENE com a produção de um projeto histórico no IHGB?
e
Acreditamos que um sentido dessa relação poderia ser aven-
on
tado se entendermos o projeto histórico do IHGB como a tarefa
az
principal de um esforço que visava a produzir uma visão homo-
geneizadora das elites acerca da Nação e da identidade, mas
Am
ay
Por último, depois de termos minimamente refletido sobre
o argumento proposto e apontado sua referência, como justi-
Pl
ficarmos uma aproximação em relação ao problema que é tão
le
circunstanciada pela discussão da produção do espaço?
g
As vantagens que julgamos poder resultar de uma aproxima-
oo
ção com o problema da produção do projeto histórico do IHGB
G
circunstanciada por essa aproximação seriam as seguintes: per-
mitir ligar as origens do IHGB aos esforços do Estado; apontar
no
as tensões e as ambiguidades da produção do IHGB em rela-
e
ção à produção do espaço; destacar no processo de produção do
projeto histórico do IHGB a importância da geografia; adensar
on
a participação atribuída a Varnhagen no processo de produção
az
do projeto histórico, lembrando ainda a importância de outros
personagens menos discutidos; finalmente, essa aproximação
Am
ay
cartográfica e compreender avanços, afastamentos e incompatibi-
lidades em relação à norma técnica. O estudo da cartografia his-
Pl
tórica, portanto, faria parte do discurso mesmo da cientificidade
le
em torno do qual se articulou progressivamente um saber sobre
g
o espaço desde os séculos XVII e XVIII, ao qual a produção his-
oo
toriográfica teve de se remeter em busca de sua própria legitimi-
dade. Seria por meio da utilização eficiente dessa perspectiva que,
G
por exemplo, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio
no
Branco, conseguiria fazer valer a pretensão brasileira nos litígios
de fronteira do Amapá e de Palmas.
e
Esta perspectiva se estabeleceu ao longo do século XVIII por
on
sobre o desenvolvimento de critérios de rigorosidade científica
az
que resultaram em adensar os padrões que regulavam a discus-
são geográfica: não bastava mais registrar o espaço por meio do
Am
ay
litografia em meados do século XIX. A cartografia era, pois, um
processo coletivo, qualificado e de múltiplas etapas que incluía
Pl
planejamento estratégico, execução no campo e confecção no
le
gabinete e atelier gráfico, realizado, muitas vezes, em conjunto
g
pelo Estado e pela iniciativa privada, dado o seu grau de com-
oo
plexidade. Portanto, o espaço nacional, no século XIX, teve de
ser discutido a partir de produtos estrangeiros e, muitas vezes,
G
contra esses produtos, necessitando de inscrever suas posições
no
através de mapas que tinham de ser produzidos a partir de certas
normas acreditadas.
e
O estudo cartográfico
on
az
Am
ay
dos mapas uma relação retroativa da técnica mais avançada com
o conhecimento geográfico antigo nele representado (o que foi
Pl
muito explorado, por exemplo, nas discussões de litígio de fron-
le
teiras) por outro, não reconhece a possibilidade de uma investi-
g
gação iconológica ou semiológica do mapa. Em terceiro lugar, o
oo
estudo da cartografia história, constituído muitas vezes a partir
da engenharia, entende a cartografia enquanto uma ciência além
G
dos limites de inquirição histórica, desconstituindo, assim, a
no
construção de uma historicidade mesma de esforços capazes de
apontar suas incertezas, descontinuidades e irracionalidades. A
e
história apresenta-se nessa arrumação como um saber domado
on
e subsidiário das interpretações e legitimações de um saber que
az
não se desautoriza e que incorpora os historiadores mais como
mantenedores de uma memória corporativa e/ou organizadores
Am
ay
em trabalhos de gabinete, no atelier gráfico e na impressão); 4)
Analisar os produtos cartográficos cuidando de entender que
Pl
suas particularidades, estilos, especificidades técnicas e carac-
le
terísticas de mercado das quais se revestem ou são investidos
g
emprestam novos sentidos à compreensão desses produtos
oo
(São mapas manuscritos, gravados, litografados, impressos? Da
escola francesa ou alemã? Que projeção e escala utiliza? Fazem
G
parte de atlas, de folhetos, de livros? Em que tipo de livro estão
no
inseridos: didático, técnico ou de propaganda?); 5) Buscar uma
leitura hermenêutica dos produtos cartográficos por meio de
e
uma investigação semiológica ou iconológica dos elementos dis-
on
ponibilizados no mapa (símbolos, colorações, legendas etc.) e a
az
sua volta (decoração, ilustrações, grafismos etc.), considerando
o contexto cultural e social de seus produtores; 6) Entender o
Am
ay
historiográfica explicitar pedagogicamente tanto a unidade dos
diversos grupos dispersos pelo território com o Estado quanto à
Pl
identidade fundamental da Nação com um passado comum.
le
Por outro lado, as Cartas Gerais do Brasil estavam destinadas
g
a cumprir a função de tentar acomodar a visão sobre a Nação que
oo
então se construía com as visões sobre o Brasil que se faziam a
G
partir de fora, na medida em que a imagem da Nação inserida
num espaço transcendente ligado à Europa se desvanecia em
no
contato com as inscrições feitas por meio do molde que a ciên-
cia cartográfica oferecia cuja racionalidade intrínseca era oposta
e
ao esforço que impelia o projeto historiográfico. Na realidade,
on
outra pedagogia se insinuava até se entranhar mesmo no pro-
az
jeto do IHGB, a de uma subalternidade continuada em relação a um
espaço privilegiado que era capaz de demonstrar, inclusive, os
Am
ay
Os insumos para a produção do espaço da Nação
Pl
Para ligarmos as origens do IHGB aos esforços do Estado e
le
a um debate sobre o espaço, torna-se necessário entender que,
g
se experimentação da soberania fornece subsídios para o debate,
oo
este se realiza a partir de insumos que o precedem.
G
Nos dezesseis anos que transcorrem desde a Independência
até a criação do Instituto, discute-se vivamente no Conselho de
no
Estado e no Parlamento a política externa, algumas vezes enre-
e
dada em problemas regionais. Afinal, havia-se experimentado o
medo de uma invasão restauradora por parte de Portugal e o
on
custoso tratado de reconhecimento da Independência; a intro-
az
missão da Santa Sé no direito nacional; a ingerência estrangeira
no Amazonas; a derrota na guerra contra as Províncias Unidas
Am
ay
própria capacidade de projetação de poder, como considerava
Cunha Matos (BRASIL, 1827, p. 16): “É com as nações ame-
Pl
ricanas que devemos ter íntimas relações diplomáticas [...].
le
Na América, figuramos como potência de 1ª ordem, ao mesmo
g
passo, que no mundo antigo nos classificarão a par do rei de
oo
Sardenha” 6. O mesmo deputado também considerava que des-
ses países se devia esperar apenas hostilidade no tocante às ins-
G
tituições do Império, conforme salientava quando da guerra com
no
as Províncias Unidas do Prata:
e
Pelo que nós vemos nos papéis públicos de Buenos
on
Aires, aquele governo apresenta as mesmas idéias,
que outrora apresentara Catão a respeito da repú-
blica dos cartagineses – delenda est Carthago
az
– dizia Catão! [...] A guerra que nos faz Buenos
Aires não é para ganhar território, a maior guerra
Am
ay
qualquer nação do universo! E não devemos nós
todos lamentar os misérrimos tratados feitos pelo
Pl
ministério transato? Não devemos lamentar que o
atual ministro dos negócios estrangeiros [...] refe-
le
rendasse o absurdo tratado com a Prússia, e lhe
acrescentasse um artigo adicional, se não odioso,
g
ao menos tão impolítico como os dos seus ante-
oo
cessores? (BRASIL, 1828, p. 174).
G
Na mesma época, no Conselho de Estado, também trans-
no
pareciam, mesmo antes da abdicação de D. Pedro I, opiniões
semelhantes àquelas que eram expressas pelo Parlamento, como
e
no caso do exame das alternativas à usurpação do trono portu-
on
guês por D. Miguel quando o Conselho de Estado rejeitou todas
as proposições que diziam respeito à intromissão do Brasil na
az
questão; ou como no caso do exame da secessão da Cisplatina,
Am
ay
res no período, como a exigência de que todos os tratados nego-
ciados pela SENE passassem antes pela aprovação da Câmara
Pl
dos Deputados e do Senado, uma conquista que somente seria
le
alcançada após a abdicação de D. Pedro I.
g
Essas discussões haviam sido grandemente subsidiadas por
oo
vários insumos, como a Política Externa Joanina e por certas
G
construções intelectuais como as de José Feliciano Fernandes
Pinheiro. No primeiro caso, a proposta de permuta do territó-
no
rio ao norte do Rio Negro e Amazonas pelo Uruguai, tal como
e
havia sido instruído o representante português, em 1818, revela
a existência de um sentido de privilegiamento do espaço que vai
on
ser ratificado pela ocupação da Cisplatina e depois legado à polí-
az
tica externa do futuro Estado brasileiro (AGUIAR, 1816). Do
mesmo modo, a recusa de se receberem enviados e plenipotenci-
Am
ay
No segundo caso, José Feliciano Fernandes Pinheiro escreve-
ria, em 1807, a ‘História nova e completa da América’, privile-
Pl
giando o relato da construção de uma nova Nação no Continente,
le
os Estados Unidos, a partir do contributo europeu e do enrai-
g
zamento deste no território. Esta ideia precoce de uma ligação
oo
entre o tempo, a terra e o homem baseando a compreensão do
espaço seria depois adaptada ao contexto brasileiro por meio de
G
outra obra de sua autoria, os ‘Anais da Província de São Pedro’,
no
cuja primeira edição foi impressa entre os anos de 1819 e 1822.
Por meio desse livro, Fernandes Pinheiro defenderia que a con-
e
quista do território fora obra da força dos brasileiros e dos por-
on
tugueses residentes, no Brasil, os quais haviam destruído pela
az
guerra toda a possibilidade de retorno ao sistema antigo. Se a
força definia a posse do território, a ligação deste com os indi-
Am
ay
imutáveis e indestrutíveis” que davam “um estado de Direitura
e estabilidade” à Nação: Fernandes Pinheiro considerava ser
Pl
de “opinião geral” a percepção de que a vocação do Brasil era a
le
de tornar-se uma “Grande Potência Marítima e Comerciante”.
g
Contudo, era necessário antes que seu território fosse “previa-
oo
mente circunvalado” a partir dos principais traços da natureza,
os ‘limites naturais’, para que a Nação se conservasse acober-
G
tada “das querelas e da fácil invasão de vizinhos” e, assim se
no
propiciasse um desenvolvimento seguro da sua população e da
sua riqueza. Esses seriam fatores indispensáveis para a forma-
e
ção de uma Marinha que se tornaria capaz de ativar “o círculo
on
de relações entre a Capital e as Províncias remotas” e de ser-
az
vir como “fortaleza volante”, levando “o ataque e a defesa onde
conviesse”. Segundo Fernandes Pinheiro, os ‘limites naturais’
Am
Gerais’ alertava:
ale
ay
Colônias. [...] Permita Deus que o Governo abra
enfim os olhos, e que o Brasil não censure o seu
Pl
desleixo quando vir tantos outros naturalistas
atravessando, esquadrinhando, e descrevendo
le
aquilo que não devemos ignorar; e que assim nos
lancem no rosto a nossa indiferença ou a nossa
g
barbaridade (MATOS, 1837).
oo
G
Distinguir as fronteiras e reconhecer o território era a precon-
dição para se concretizar um determinado sentido da Nação que
no
então se formava. Por conseguinte, entendemos que o debate no
Parlamento revelava um pensamento sobre o espaço capaz de
e
influenciar as demandas que resultariam nas grandes conquistas
on
da década de 1830, como a derrubada do Sistema de Tratados, a
az
tomada do poder de decisão na política externa e, muito prova-
velmente, também a ‘grande política americana’, como foi ape-
Am
relativa à associação necessária do tempo e da terra com o homem por meio de uma
narrativa territorial: “o Sr. Visconde de São Leopoldo mostrou [...] que ora não estamos
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50 Cartografias Imaginárias
ay
‘Comissão Investigadora dos Limites’ do Brasil,10 discernindo-a
como “uma das primeiras necessidades públicas”. Seriam então
Pl
atribuídas à ‘Comissão’ as tarefas de “determinar quais os limi-
le
tes do Sul e Oeste do Império do Brasil, à vista dos Tratados
g
e Convenções existentes” e definir “quais os limites, que se
oo
podem considerar como naturais, com relação às localidades, e
topografia do país.” 11 Portanto, entendia-se que os limites bra-
G
sileiros deveriam ser definidos por meio da ideia das ‘fronteiras
no
naturais’ esboçada por Fernandes Pinheiro. Sobre a base desse
entendimento, resultaram dois trabalhos distintos na ‘Comissão
e
Investigadora de Limites’, o primeiro, de José Saturnino da Costa
on
Pereira, senador e ex-presidente da província de Mato Grosso,
az
que fora autorizado a emitir um parecer em separado por conta
de seus problemas de saúde;12 e o segundo, assinado pelo presi-
Am
habilitados a escrever a história geral do Brasil, por nos faltarem muitos elementos
provinciais para isso necessários”. Ver MATOS, Raimundo José da Cunha. Dissertação
á
10 Embora não tenha sido denominada nos documentos oficiais, nosso trabalho ado-
tará, doravante, a denominação ‘Comissão Investigadora dos Limites’, a qual era
empregada por Duarte da Ponte Ribeiro, conforme anotação autógrafa à margem da
a
Monteiro. Ver AHI-Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5,
Documento 4.
ig
ay
as fronteiras mais próprias ao Brasil, evidenciando, assim, mais
uma vez, a influência dos ‘Anais da Província de São Pedro’
Pl
de Fernandes Pinheiro, obra, aliás, citada explicitamente por
le
Costa Pereira.
g
Na segunda parte, Costa Pereira aponta a impossibilidade de
oo
se analisarem os limites por meio do recurso aos tratados ante-
G
riores, uma vez que não existia nenhuma cópia do Tratado de
Santo Ildefonso nos arquivos da SENE. No caso, poder-se-iam
no
apenas fazer algumas conjeturas a respeito do Tratado de Santo
e
Ildefonso a partir do texto do Tratado de Madri. Mesmo assim,
não havia um conhecimento do território que permitisse uma
on
aproximação segura, haja vista que Costa Pereira foi obrigado a
az
utilizar um mapa inglês, a Carta da América Meridional, de John
Arrowsmith, como base de seu trabalho (PEREIRA, 1837).
Am
como observado por Costa Pereira, era com o que se podia con-
tar.13 Coincidentemente, no ano seguinte, na Bolívia, após uma
à
ay
Assim, após o término dos trabalhos da Comissão, se deci-
diu por uma extensa reforma na estrutura da SENE, de modo
Pl
a provê-la de recursos que melhor permitissem enfrentar esses
le
problemas. Constituiu-se um ‘Arquivo’, para onde seriam enca-
g
minhados os documentos e mapas referentes às questões de
oo
limites (que daria origem ao Arquivo do Itamaraty); e uma
‘Biblioteca Especial’, destinada a armazenar “todas as produ-
G
ções, que o desenvolvimento do espírito humano houver de dar
no
à luz no que respeita à marcha dos Governos, e às modificações,
que porventura se tenham de realizar nas relações das diversas
e
associações políticas.” 15
on
Por sua vez, Fernandes Pinheiro (1839) também apresen-
az
taria vários argumentos favoráveis à constituição de “um colé-
gio especial de literatos escolhidos, incumbidos de recolher e
Am
16 Faz-se necessário apontar que, embora a data de publicação da segunda edição dos
in
‘Anais’ seja posterior à fundação do IHGB, sua redação foi feita em data anterior,
constituindo-se possivelmente na primeira ata de intenções dessa instituição. Nesse
ig
sentido, dois fatos corroboram nossa hipótese: primeiro, o exame dos ‘Anais’ pelo
or
ay
nar e copiar os “documentos que sirvam para a organização da
História do Brasil” (ADONIAS, 1984).
Pl
Portanto, a ‘Comissão Investigadora de Limites’ teve como
le
principal resultado admitir o desconhecimento do território e
g
a subsequente impossibilidade de se definir os limites brasilei-
oo
ros. Secundariamente, consagraram-se as ideias de Fernandes
G
Pinheiro, reconhecendo-se a necessidade de um esforço contínuo
que se destinasse a pensar o espaço e a embasar as negociações
no
com outros países suprindo-se o Estado de informações sobre o
e
seu próprio território e suas fronteiras. Estabelecer-se-ia, assim,
uma ponte definitiva entre a Geografia e a História e por meio
on
destas com uma produção do espaço nacional onde se salientava
az
a importância do Tratado de Madri, então a única fonte histórica
dos limites brasileiros.
Am
do Instituto.
a
in
ay
esclarecedoras de um processo que envolve o Estado na cons-
tituição de uma história do espaço nacional e onde se eviden-
Pl
cia certos usos e funções da cartografia. No caso, fica claro que
le
as preocupações da ‘Comissão Investigadora de Limites’ foram
g
retomadas já na 5ª sessão do IHGB pela iniciativa do próprio
oo
Fernandes Pinheiro de instituir a seguinte diretriz de discussão
por meio da apresentação da memória ‘Programa Geográfico’:
G
no
Quais são os limites naturais, pactuados e necessá-
rios do Império do Brasil? Quando o Brasil aparece
em notória crise; quando por todos os lados é com-
e
primido, e estreitado em fôrma de bronze, e os escri-
on
tores do dia provocam e desafiam os literatos para
que instruam o Público, ávido de conhecer os títulos
az
da sua propriedade; o Instituto Histórico e Geográfico
do Brasil há de cruzar os braços, com indiferença e
Am
ay
Procurando melhor embasar os seus argumentos, Fernandes
Pinheiro buscou subsídios principalmente na cartografia, inven-
Pl
tariando a cada página do ‘Programa Geográfico’ os mapas e
le
cartas capazes de endossar ou esclarecer sua lógica.19 Portanto,
g
Fernandes Pinheiro foi o responsável por trazer a cartografia
oo
para o centro do debate do IHGB, acreditando-a como uma das
fontes principais da posse do território e da ligação do homem
G
com a terra, em razão da ausência então de outros documentos. Vale à
no
pena acrescentar, no sentido de demonstrar a importância que
Fernandes Pinheiro atribuía à cartografia, que a publicação da
e
segunda edição dos seus ‘Anais da Província de São Pedro’ foi
on
atrasada apenas para se poder encadernar nesta um mapa que
az
ainda aguardava sua gravação em Paris.
O ‘Programa Geográfico’ seria impresso à custa do IHGB e
Am
foi dotado de vistas mais vastas, de mais variados conhecimentos nas ciências [...] o
a
Brasil lhe deve em especial o plano e direção do mais vantajoso tratado de limites, o
in
- UFRJ, Rio de Janeiro, 2005. cap. VII. Em relação à construção do conceito do uti
possidetis na SENE ver cap. VIII.
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56 Cartografias Imaginárias
ay
em desgraça logo após sua assinatura, inclusive por ter pesado
contra ele a acusação de suborno (SÁ, 1902).20
Pl
Como as duras críticas de Sá desarticulavam completamente
le
a narrativa construída no ‘Programa Geográfico’, tornava-se
g
necessário, sobretudo pela insistência de D. Pedro II,21 contra-
oo
-argumentar com novos elementos. Fernandes Pinheiro escreve-
G
ria uma ‘Resposta’ às críticas de Costa e Sá, reafirmando perante
a assembleia do IHGB a argumentação da nulidade dos tratados,
no
desta vez ressaltando a transcendência mesma do tratado de
e
1750 para a formação da Nação brasileira, já que esta fora “enfor-
mada” em seu território pelo gênio de Alexandre de Gusmão, um
on
patriota antes de seu tempo, distinguindo-se, assim, o Tratado
az
como o marco inicial da história da nação (PINHEIRO, 1902b).
Am
20 Trata-se de breves anotações à Memória que o Ex. Sr. Visconde de São Leopoldo
escreveu.
O
ay
no ‘Programa’ já se podia distinguir uma idealização da figura
e do saber de Alexandre de Gusmão, nesta biografia sua figura
Pl
seria mais aproximada do ideal romântico de herói, enriquecida
le
com a descrição de sua precocidade, de sua lealdade e de seu
g
desapego à riqueza ou a fama. Segundo este enredo, o Tratado de
oo
Madri devia ser compreendido como sua obra magna, uma faça-
nha capaz de lhe garantir a eternidade nos “Fastos do Brasil”. Já
G
para Bartolomeu, o irmão de Alexandre de Gusmão, Fernandes
no
Pinheiro reservaria a glória e a ventura de ter sido o inventor da
primeira máquina voadora, embora ressaltasse que a alcunha de
e
“os voadores” cabia a ambos os irmãos (PINHEIRO, 1902a).
on
Ainda no mesmo ano, o IHGB publicaria um opúsculo de
az
Varnhagen denominado ‘As primeiras negociações diplomáticas
respectivas ao Brasil’, onde através da concatenação da ideia da
Am
de Madri.
Igualmente podemos notar que a participação de Duarte da
à
ay
nos anos anteriores na SENE de modo a poder justificar a com-
pensação ou a cessão de territórios a fim de cobrir a ‘fronteira
Pl
natural’, inclusive, preemptivamente, ou seja, visando a uma
le
definição futura dos limites.23 Para elucidar esta interpretação
g
Ponte Ribeiro fez desenhar um mapa que servia de contraponto
oo
à argumentação e como reforço da narrativa, tornando, de fato,
a cartografia inseparável do texto escrito e também um texto a
G
ser trabalhado: inaugurava-se, assim, um recurso que a história
no
do espaço nacional utilizaria inúmeras vezes, como no caso do
‘Mapa do Tratado de Tordesilhas’, que Varnhagen incorporaria a
e
sua História Geral do Brasil e onde, de modo a reforçar a polí-
on
tica de cessão de limites da SENE, grafava-se o meridiano de
az
Tordesilhas do modo mais desfavorável ao Brasil.
Esse raciocínio seria expresso diretamente por Varnhagen
Am
Brasil com as Repúblicas do Peru, Bolívia e Paraguai. N° 12. AHI, Arquivo Particular
de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 2.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 59
ay
da soberania. Nesse sentido, Varnhagen se remetia à primitiva
construção de Fernandes Pinheiro, como pode ser compreen-
Pl
dido, por exemplo, na reiteração do julgamento do Tratado de
le
Madri: “ponto de partida para todas as futuras questões [...]
g
negociado com tanta sabedoria, tanta boa fé e lisura [...] que os
oo
negociadores de parte a parte se mostraram com ele superiores
ao seu século” (VARNHAGEM, 1851, p.1).
G
Portanto, a ação diplomática, a geografia e a história se fun-
no
diam num só esforço, propiciando uma relação direta dos inte-
e
resses do Estado com o que era produzido no Instituto, através
de uma história do espaço nacional já articulada no IHGB pelo
on
menos dez anos antes da feitura da ‘História Geral do Brasil’ de
az
Varnhagen.
Am
24 Entendemos que o estudo da composição dos mapas deve procurar elucidar as rela-
ções entre os processos externos e internos de sua produção, que grosseiramente
definiremos aqui como aqueles que dizem respeito, respectivamente, às estratégias
O
ay
vado a partir dos diferentes níveis de escolha que no processo
de sua composição relacionaram esse objetivo com as técnicas
Pl
e materiais disponíveis na época. O traçado geral da Carta foi
le
feito a partir de dois dos mapas estrangeiros mais conhecidos
g
de sua época, visando-se com isto a alcançar o reconhecimento
oo
da comunidade cartográfica internacional a partir de seus pró-
prios cânones. Este mesmo traçado foi complementado com os
G
trabalhos recolhidos ou reconhecidos pelo IHGB, procurando-se
no
assim instituir a centralidade do projeto historiográfico na dis-
cussão do espaço. Por fim, sua grande dimensão (1,5 m x 1,5 m),
e
objetivava impactar aqueles que a vissem; diminuir o problema
on
dos erros, pois se tornava possível dimensionar mais o desenho
az
dos rios; e direcionar a atenção sobre certos detalhes, especial-
mente, os limites com o Paraguai.
Am
ay
nos tratados do período colonial de modo que estes pudessem
ser comparados desvantajosamente com o argumento traçado
Pl
em colorido no mapa.
le
Em ambos os casos se verifica ainda, desta vez através de uma
g
investigação iconográfica e semiológica, que os mesmos mapas
oo
serviram como material para a escrita do projeto historiográ-
G
fico, como se pode verificar através do exame de seus elementos
estruturais, a saber: o Meridiano do Rio de Janeiro foi disponi-
no
bilizado como a origem do sistema de coordenadas, permitindo
e
explicitar-se assim a centralidade do Estado; a nomeação dos
espaços indígenas se dava a partir de citações que recordavam
on
sua hostilidade ao elemento branco e à civilização; a toponímia
az
foi acompanhada, muitas vezes, por citações que remetiam à
transcendência do espaço e de seu centro em relação à antiga
Am
ay
ter enfatizado mais os limites provinciais que a fronteira do
Império, as plantas topográficas das capitais das províncias de
Pl
São Paulo, do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, da Bahia, de
le
Pernambuco, Maranhão e Pará foram disponibilizadas em torno
g
da representação do Brasil, ou seja, na composição procurou-se
oo
literalmente ‘emoldurar a Nação’.
G
No ‘Mapa do Rio Grande’, embora o enfoque temático seja
o da discussão das fronteiras com o Uruguai, podemos observar
no
que a composição cartográfica visou a constituir esse enfoque
e
através do argumento de um esvaziamento material e humano
da Província em razão da permanência do envolvimento brasi-
on
leiro nos conflitos do Prata, uma vez que a SENE visava, então, a
az
alcançar um acordo político no Conselho de Estado em torno da
delimitação de fronteiras com o Uruguai. No caso, a combinação
Am
ay
que se processa uma separação das tarefas no projeto historio-
gráfico, com a SENE passando a se concentrar mais na produção
Pl
da história do espaço nacional e sua representação por meio da
le
cartografia. O primeiro destes episódios foi o dos ‘Apontamentos
g
Diplomáticos’ de Ernesto Ferreira França Filho, em 1849, e o
oo
segundo o da ‘Memória Histórica’ de Joaquim José Machado de
Oliveira em 1853.
G
Quando os ‘Apontamentos Diplomáticos’ foram apresenta-
no
dos por Ernesto Ferreira França Filho ao IHGB, esta obra foi logo
e
identificada pela Comissão de Geografia (dominada então pela
SENE), como um trabalho escrito pelo pai de Ernesto, antigo
on
ministro dos Negócios Estrangeiros. Na Memória, eram apre-
az
sentadas três diretrizes para a definição e defesa dos limites: pri-
meiro, a constituição de outra comissão que não a Geográfica
Am
ay
Sintomaticamente, para o entendimento do desdobramento
subsequente das tensões no Instituto, deve-se esclarecer que a
Pl
Comissão Geográfica entendeu que não havia sequer necessi-
le
dade de apresentar um parecer sobre os ‘Apontamentos’, já que
g
o IHGB não possuía atribuição para tratar das questões ali dis-
oo
cutidas, não podia cogitar de divulgá-las e menos ainda fazer uso
de suas informações.26
G
Ao contrário do caso dos ‘Apontamentos’, a censura às
no
‘Memórias Históricas’ acarretou uma acalorada discussão que
e
colocaria, em xeque, o papel do IHGB em relação ao Estado,
uma vez que essa obra era um violento libelo contra a política
on
de limites e a utilização do uti possidetis pelo Governo, lançando
az
mão da discussão do Tratado de Limites com o Uruguai de 1851
para argumentar a favor do que considerava ser os “incontes-
Am
sobre limites, por Ernesto Ferreira França Filho. AHI-Arquivo Particular de Duarte
da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11, Documento 2.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 65
ay
Tordesilhas enquanto a origem dos limites brasileiros e escla-
recia que, ao contrário do que defendia Machado de Oliveira, o
Pl
Tratado de Tordesilhas havia sido muito mais desvantajoso ao
le
Brasil, segundo os cálculos mais precisos de que a Comissão
g
de Geografia dispunha. Por meio do recurso à cientificidade e a
oo
uma lógica inerente à História do espaço nacional, procurava-se
então desmontar uma argumentação expansionista que possuía
G
grande apelo para as elites e que estava sendo utilizada então
no
pelas elites gaúchas de encontro aos seus interesses.
e
Portanto, por meio de uma nova contribuição à História do
espaço nacional, negava-se terminantemente, a idéia da diminui-
on
ção do território brasileiro que então ganhava forças a partir do
az
próprio material juntado pelo Instituto.27
Am
27 Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na
or
77-102. Para maiores esclarecimentos sobre estas questões ver PEIXOTO, Renato
Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através
O original está à venda na Amazon e no Google Play
66 Cartografias Imaginárias
ay
Finalmente, outro episódio, o debate acerca da Comissão
Científica de Exploração, permite-nos perscrutar mais de perto
Pl
a importância da tensão em torno da questão provincial e regio-
le
nal no IHGB que no caso anterior já pode ser aventada por conta
g
dos interesses da elite gaúcha.
oo
A Comissão Científica do IHGB resultaria das discussões
G
acontecidas a partir de 1854, quando se convergiria para uma
posição comum de rejeição aos relatos dos viajantes estrangei-
no
ros, acusados de falsificar e distorcer a verdade sobre o país, uma
e
leitura também condizente com o entendimento de que a coro-
grafia do território passava a ser então uma das prerrogativas do
on
IHGB, devendo-se, portanto, passar a assumir uma participa-
az
ção mais ativa em relação a sua exploração.29 Assim, aprovou-se
o envio de uma Comissão destinada a pesquisar “algumas das
Am
ay
seus relatórios científicos nunca foi publicada e parte destes
acabaria censurada, omitindo-se mesmo a questão da seca de
Pl
seus preâmbulos e nem sequer o IHGB retornaria ao problema –
le
Como entender este desfecho?
g
O objetivo inicial da Comissão era observar a desertificação
oo
de certas áreas do Norte e estudar o melhor aproveitamento dos
G
seus recursos hídricos pela identificação das áreas onde melhor
conviesse o recurso à construção de grandes açudes, represas ou
no
de um sistema de poços artesianos, bem como de canais desti-
nados à irrigação dos campos. Buscava-se investigar as causas
e
da seca, estabelecer uma regularidade do fenômeno e a viabi-
on
lidade de se reflorestar a área. Entendia-se então que o Ceará
az
era a área mais atingida, deplorando-se a decadência provo-
cada pelo abandono da lavoura nessa província. Nos relatos dos
Am
ay
meio do uso de uma linguagem compartilhada e de um discurso
daí originado. Assim, se determinado argumento tal como a
Pl
metáfora da seca foi utilizado para fazer valer um sentido dife-
le
renciado de inserção no espaço nacional, era justamente porque
g
os interesses envolvidos precisavam ser harmonizados num
oo
saber sobre o espaço que se reconstituía constantemente, defi-
nindo domínios, estabelecendo fronteiras e articulando respon-
G
sabilidades – o pensar o espaço se constituiu a partir de uma
no
verdadeira tensão que era reelaborar permanentemente o acordo
sobre o espaço e sua territorialização com a subsequente afirma-
e
ção dos lugares de subalternidade.
on
az
Conclusão
Am
no Instituto.
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Renato Amado Peixoto 69
ay
Os mapas tornar-se-iam menos um instrumento científico
que uma superfície de escrita, um avatar da Nação que tinha
Pl
de ser continuamente atualizado a partir dos insumos externos,
le
de modo a se poderem contrapor respostas às representações
g
concorrenciais que se faziam do território nacional e a melhor
oo
figurarem no lugar central das Exposições Universais em que o
G
Brasil participaria, emoldurando com sua presença nossas con-
tribuições a essas ‘Vitrines da Civilização’. Metáforas da cons-
no
trução continuada de nosso projeto de Nação, também as Cartas
Gerais, no contato com seus congêneres europeus, expunham às
e
nossas elites os limites de sua invenção, do mesmo modo como
on
foi impossível tirar do mármore um Lacoonte a gritar, ficava
az
explicitada por essa visão de fora a subalternidade e soía retornar
para dentro do espaço da Nação a sua pedagogia.
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
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70 Cartografias Imaginárias
ay
Carta Corográfica do Império do Brasil
Pl
g le
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
ay
Pl
A lógica do sentido do espaço da Nação:
g le
a produção do espaço da Nação e das protorregiões no
oo
Terceiro Conselho de Estado (1842-1848)
G
no
A proposta deste texto é trabalhar a ideia de que a tarefa de
e
produção do espaço da Nação no IHGB e na SENE se desen-
volveu em meio a certas dinâmicas, mecânicas e tensões, cujas
on
demandas implicaram na cognição de direções no espaço da
az
Nação, e, no discernimento de suas partes, as protorregiões ‘Sul’
Am
e ‘Norte’.
Entendemos ser possível trabalhar este problema a partir da
na
ay
O estudo do Conselho de Estado justifica-se mesmo em
razão do problema que é o estudo do Estado brasileiro no Segundo
Pl
Reinado, seja pela importância excepcional que essa instituição
le
política possuía como um lugar de construção e afirmação do
g
pensamento parlamentar, seja pelo pertencimento noutros pal-
oo
cos de produção do espaço, seja por conta da influência, cres-
cente no período estudado, sobre as ações do Estado e o fun-
G
cionamento cotidiano da Secretaria dos Negócios Estrangeiros.
no
Em razão desta complexidade e de certas particularidades de
nosso objeto de estudo a serem explicitadas, procuramos cir-
e
cunscrever este estudo a uma das seções que compunham o
on
Conselho de Estado, no caso, a ‘Seção de Negócios da Justiça e
az
dos Estrangeiros’ (doravante referida como SJNE) e ao período
entre 1842 e 1848, balizamento temporal que possibilita com-
Am
Nosso estudo foi feito a partir das atas da SJNE, uma das
a
ay
desde sua constituição (as outras seções eram a de Negócios do
Império, de Negócios da Fazenda e de Negócios da Guerra e da
Pl
Marinha). A favor dessa aproximação se torna necessário argu-
le
mentar contra a ideia comum de que o exame das atas das seções
g
possibilitaria apenas uma amostra muito reduzida do pensa-
oo
mento do Conselho de Estado tanto pelo pequeno número de
componentes das seções em relação ao Conselho Pleno quanto
G
pela fixidez organizativa das seções, que as subordinaria à orga-
no
nização mesma do Conselho.
e
No caso, o Conselho de Estado podia ser integrado por até
24 conselheiros, os quais eram escolhidos em caráter vitalí-
on
cio pelo Imperador dentre os mais proeminentes membros da
az
classe política do Império. Até 12 desses conselheiros podiam
ser nomeados como membros ordinários do Conselho e outros
Am
ay
designar dentre seus membros um Relator dentre os membros
da Seção, cabendo também ao Ministro presidir a reunião na
Pl
qual este parecer fosse debatido.
le
Contra isso, é preciso esclarecer que o chamado Conselho
g
Pleno se compunha pela reunião das Seções e que, portanto, a
oo
ação destas é que condicionava o funcionamento do Conselho
G
de Estado e ainda, que as Seções não eram de todo carentes
de iniciativa, podendo se reunir sem convocação para propor
no
ações dentre os assuntos que lhes eram relativos. Note-se que o
e
Ministro de Estado oferecia a minuta a ser considerada e presi-
dia a reunião de discussão, mas não tinha direito de veto sobre o
on
parecer, devendo considerar mesmo as opiniões discordantes da
az
maioria já que a minoria podia elaborar um ou mais parecer em
separado ao do Relator.
Am
Conselho.
le
ay
deixando antever a projeção e o peso que teriam as discussões
ali travadas, se não bastasse o fato de que, em grande parte do
Pl
período estudado, os partidos estivessem representados direta-
le
mente na SJNE por seus líderes. Portanto, por conta de todas as
g
observações anteriores, as atas da SJNE possuem a vantagem de
oo
ser um material de análise, não apenas do pensamento político,
mas também das práticas do Terceiro Conselho de Estado e da
G
elite política do império.
no
Nesse sentido, também é possível balizar a influência e poder
e
da SJNE em relação a alguns dos ministérios a ela afetos, bem
como a reunião e o desenvolvimento das ideias que influíram
on
na construção do espaço nacional e nortearam as iniciativas de
az
política externa, inclusive através do estudo da precedência e
da importância que certos problemas ou materiais de consulta
Am
ay
influência dos partidos na tomada de decisões do Conselho de
Estado seja no mínimo discutível, haja vista que alguns autores
Pl
defendem mesmo uma independência tradicional dos conselhei-
le
ros em relação aos partidos,34 alguns dados desta pesquisa per-
g
mitem somar algumas reflexões à questão.
oo
Primeiramente, notamos que o predomínio conservador na
G
composição da SJNE foi contrabalançado, especialmente nos
anos de governo liberal (1844-1848), por meio de um meca-
no
nismo de suplência e de reunião das Seções que permitiu a pre-
e
sença de integrantes do Partido Liberal e, inclusive, dos líderes
dos dois partidos, na maioria das reuniões da SJNE.35
on
Em segundo lugar, e o que não é de modo algum novidade,
az
observamos que certos posicionamentos são mais comuns den-
Am
34 Veja-se, por exemplo, CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras: a política
imperial. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. p. 110-111.
ig
ay
dos conservadores na Seção durante grande parte do período
pesquisado, o exame das Atas dá conta de um alto percentual de
Pl
discordâncias nas reuniões da Seção, em alguns anos apontando
le
praticamente o ponto de ruptura, conforme podemos apreciar
g
na Tabela 1.
oo
G
Tabela 1 - Divergências e convergências nas consultas da SJNE (1842-1848)
no
Ano Divergências Convergências % de Divergências
1842 0 7 0%
e
1843 3 2 60%
on
1844 7 11 39%
1845 8 18 31%
az
1846 15 28 35%
Am
1847 1 11 8%
1848 3 1 75%
Total 37 + 78 = 115 32%
na
a
nd
37 Passaram pela pasta dos Negócios Estrangeiros, de janeiro de 1847 até setembro de
1848, os seguintes ministros: Bento da Silva Lisboa (2º Barão de Cairu), Saturnino
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78 Cartografias Imaginárias
ay
mesmo tempo, 1849 será o ano em que o Brasil começa a abando-
nar a estrita neutralidade no Prata e passa ao intervencionismo,
Pl
enquanto que se resolve pelo término do Tráfico de Escravos.
le
Nesse sentido, muitas vezes se tem argumentado, como exem-
g
plos de um diferencial entre os partidos em política externa,
oo
que a neutralidade e o fim do Tráfico foram defendidos com
mais afinco pelos liberais, enquanto que os conservadores eram
G
partidários do intervencionismo e da manutenção do Tráfico.
no
Entretanto, por que não se opuseram antes estes dois grupos na
SJNE, se ali estiveram representados os seus líderes e se este era
e
o lugar por excelência de discussão da política externa? Por que
on
o ano de 1847 apresentou apenas 8% de divergências? Por que
az
rareiam ainda as consultas a SJNE entre 1846 e 1848?
Para poder explicar tais fatos, mais o elevado quantitativo de
Am
de Sousa e Oliveira, José Antonio Pimenta Bueno, Antônio Paulino Limpo de Abreu
e Bernardo de Sousa Franco.
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Renato Amado Peixoto 79
ay
sua composição. Portanto, seria necessário que os mecanismos
de suplência e de reunião das seções do Conselho de Estado,
Pl
em função de algum arranjo interno, fossem os responsáveis por
le
esta mudança.
g
Examinando as Atas da SJNE, observa-se que novos conse-
oo
lheiros passaram a integrar as reuniões da Seção a partir desse
G
período, sendo que um destes, Bernardo Pereira de Vasconcelos,
se engajaria muito mais profundamente e com maior assiduidade
no
que os demais: Vasconcelos participou de praticamente todas as
e
reuniões da Seção até 1848, sendo que se pode traçar um esboço
dessa trajetória através dos dados organizados na Tabela 2.
on
az
Tabela 2 - Relatores das consultas da SJNE (1842-1848)
Am
Lopes Gama
nd
Honório Hermeto
7 (13%) 8 (14%) 15 (13%)
Carneiro Leão
ve
José da Costa
7 (13%) 7 (6%)
Carvalho
à
José Cesário de
1 (2%) 1 (1%)
Miranda Ribeiro
á
Miguel Calmon du
st
2 (3%) 2 (2%)
Pin e Almeida
le
Antônio Paulino
2 (3%) 2 (2%)
Limpo de Abreu
a
ay
A partir do exame da Tabela 2, podemos perceber que
Vasconcelos foi o relator de nada menos que 52% das consultas
Pl
no período 1842-1848, número este que sobe para 56% se con-
le
sideramos apenas a partir de 1843, quando Vasconcelos começa
g
a participar das reuniões da SJNE. Entre 1846-1848, Vasconcelos
oo
exerceria a função de relator em 63% das consultas, um número
impressionante, ainda mais se for considerada a sua progressiva
G
decadência física. Paralelamente a este engajamento progressivo
no
de Vasconcelos na Seção, passam a se reduzir as ocasiões em que
o D. Pedro II restitui a matéria de consulta ao exame do Conselho
e
Pleno,38 o que provavelmente é um indicador tanto do maior
on
prestígio da Seção como do alcance dos argumentos do Relator.
az
Neste processo, pode-se observar ainda uma mudança paula-
tina no relacionamento da SJNE com a SENE que irá se caracteri-
Am
ay
passam a ser encaminhados pela SENE à SJNE,40 prosseguindo
pela emissão de pareceres que efetivamente instruem o início da
Pl
reorganização do serviço diplomático brasileiro, introduzindo os
le
princípios do mérito e da competência para a admissão na car-
g
reira diplomática e, mais importante, vinculando a demissão do
oo
pessoal da SENE à chancela e julgamento da SJNE.41 Já a partir
de 1845, também as instruções aos diplomatas seriam minucio-
G
samente fornecidas pela SJNE,42 que passaria também a opinar
no
mesmo sobre questões triviais do funcionamento da SENE, tais
como gratificações, emolumentos e regulamentos consulares.43
e
A mudança na interação entre os dois órgãos se tornaria
on
ainda mais aguda entre os anos de 1846 e 1847, quando a própria
az
estrutura da diplomacia do Império passaria a ser organizada a
partir de regulamentações e modificações urdidas no âmbito da
Am
30/07/1845.
43 CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
09/03/1847, 06/05/1847, 18/10/1847, 27/09/1848 e 13/12/1848.
O
ay
ascensão e o predomínio de uma determinada corrente de pen-
samento sobre o espaço no Conselho de Estado.
Pl
Em 1842, no Conselho de Estado, a principal corrente de
le
pensamento sobre espaço afirmava-se em torno das ideias da
g
afirmação da soberania e da construção econômica da nação,
oo
cujas origens derivavam da discussão dos problemas decorren-
G
tes dos tratados de comércio firmados nas décadas de 1820 e
1830. A maioria dos conselheiros entendia então que convinha
no
sacrificar parte da soberania em razão da grande necessidade de
e
capitais e de população que somente poderia ser satisfeita pela
imigração. Nesse período, embora houvesse quem defendesse a
on
reciprocidade e o fim dos privilégios,45 os pareceres foram, em
az
geral, complacentes em relação aos interesses dos países euro-
peus. No que diz respeito ao espaço nacional, a SJNE, como o
Am
ay
peridade do Brasil” (ATAS..., 1844a). Embora de certo modo essa
ideia já estivesse presente na repulsa aos tratados de comércio,
Pl
naquelas discussões ainda não era decisivo o argumento con-
le
correncial com os interesses da Nação. Este entendimento irá,
g
doravante, constituir o cerne de um pensamento da identidade
oo
nacional que se formará na Seção, ao qual será agregada a com-
preensão de um espaço que é remetido ao legado da metrópole
G
e que reflete as discussões das variáveis externas no Parlamento.
no
A animosidade contra a Inglaterra é um dos vetores dessa
e
produção, que contrapõe o estrangeiro ao nacional e onde se
advoga a resistência e a exaltação dos valores e instituições.47
on
Neste sentido, passa-se a identificar o nacional e a política
az
externa brasileira no legado das tradições portuguesas, resul-
tando, portanto, em considerar opostos ao Brasil todos aqueles
Am
02/07/1844.
49 A ideia da independência da antiga Província Cisplatina nunca foi bem aceita por
determinados setores das elites. José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de
O
ay
Lopes Gama. Esta corrente era favorável a uma aproximação e
identificação com a Europa, culpando as divisões políticas e o
Pl
mau estado das finanças públicas pela situação nacional. Essa
le
fraqueza conjuntural fatalmente levaria à agressão externa e
g
ao consequente esfacelamento do território, tornando urgente,
oo
por conseguinte, incentivar e acelerar reformas internas que, ao
mesmo tempo, servissem para fortalecer a autoridade central e
G
proteger a propriedade. Essa corrente de pensamento conside-
no
rava ainda o tráfico de escravos como um elemento retardador
da indústria e da riqueza nacional, por inibir a imigração euro-
e
peia e inviabilizar o crescimento da população livre e o entendi-
on
mento com a Inglaterra.50 A continuação do Tráfico, além de esti-
az
mular a mistura de raças, poderia ser a ruína da Monarquia e das
elites, “o Cavalo de Tróia” que traria para o Brasil “os defensores
Am
ay
que o Tráfico possuía por parte das elites produtoras tanto no
próprio Parlamento quanto no nível local que, por conta da dire-
Pl
ção da eleição dos juízes de paz, garantia uma tolerância com-
le
pleta ao tráfico, especialmente nos locais de desembarque.51
g
O desconhecimento do espaço nacional não impedia que as
oo
visões dessas duas correntes de pensamento convergissem em
G
certos pontos. Os limites de 1777 eram rejeitados por ambas as
correntes,52 uma postura calculada para possibilitar uma futura
no
expansão brasileira, tanto pela interpretação que davam ao ins-
e
trumento jurídico do Uti Possidetis, tido como circunstancial e
positivo, quanto pela identificação com o antigo pensamento
on
estratégico português que priorizava a consolidação de posi-
az
ções em lugar de ocupação do território. A fronteira não era
entendida, portanto, como um limite reconhecido, delimitado
Am
10/10/1846.
or
ay
diminuir a pressão britânica e impedir a expansão territorial
daquela potência na Amazônia.54
Pl
Ainda uma terceira corrente de pensamento estaria também
le
representada na SJNE e tendo como maior expositor Francisco
g
de Paula Sousa e Melo. Para essa corrente, a neutralidade não era
oo
apenas uma condição para o crescimento do Brasil, mas como a
G
única postura possível diante da constatação da pouca impor-
tância do país nos cenários americano e mundial e dos insuces-
no
sos recentes e passados. Dadas estas condições, cabia ao Brasil
e
construir com os seus vizinhos as condições de convivência e
prosperidade material, inclusive no respeito ao território. Para
on
que fosse possível a resistência às pressões externas era ainda
az
necessário abrir novas vertentes diplomáticas, especialmente
estreitando-se as relações com os Estados Unidos e a Rússia,
Am
ay
e das relações entre as três correntes de pensamento. O aumento
das pressões inglesas correspondeu à tendência de aproximação
Pl
entre as correntes na SJNE. Por exemplo, entre novembro de
le
1844 e janeiro de 1845, produziu-se uma série rara de decisões
g
unânimes contra as posições inglesas, sobretudo no tocante
oo
às Comissões Mistas. Refletindo essa inclinação, a argumenta-
ção dos pareceres relativos à extinção das Comissões Mistas se
G
constituiria, em grande parte, no amálgama das principais ideias
no
esposadas pelas correntes. Seriam invocadas em sua defesa,
tanto a obstrução do comércio, quanto a soberania e a falta
e
de braços para a agricultura. Construção semelhante também
on
embasaria o progressivo abandono da ideia de neutralidade no
az
Prata – a necessidade de evitar o engrandecimento argentino,
evocada como um legado da estratégia portuguesa, misturava-
Am
ay
era idealizado como “o supremo árbitro dos novos Estados da
América ex-espanhola e o rival da grande potência americana
Pl
outrora colônia inglesa.” (ATAS..., 1845). Estas ideias avança-
le
riam inclusive no sentido de se diferenciarem os interesses da
g
monarquia daqueles do Estado brasileiro: as ideias de reciproci-
oo
dade de tratamento e parentesco deveriam ser substituídas pelas
do realismo político e dos interesses comerciais. Inclusive, como
G
parte deste raciocínio estaria incluído dentre os deveres que
no
cabiam aos membros do corpo diplomático brasileiro no exterior,
“influir, e até dirigir a administração em benefício de sua nação,
e
sem que, contudo, de qualquer modo a comprometa, e lhe sus-
on
cite os menores embaraços e dificuldades” (ATAS..., 1847).
az
Por conseguinte, a produção do espaço no Conselho de
Estado durante o período 1846-1848 não deve ser analisada ape-
Am
tomado naquelas mesmas discussões: não foi à toa que nas pri-
á
st
ay
A Corte passou a ser chamada de ‘Município Neutro’ em
1834, se reconhecendo o local de reunião das elites provinciais
Pl
como o centro do acordo em torno da Nação, e isto estabelecia
le
a lógica do sentido do seu espaço: suas direções no espaço e o
g
discernimento das suas partes, as protorregiões Sul e Norte.
oo
Uma das suas resultantes seria um instrumento de expansão
G
do espaço nacional flexível, o Uti Possidetis e, a recusa dos trata-
dos firmados por Portugal decorreria exatamente das vantagens
no
enxergadas nesse processo.
e
Mas, a originalidade desta lógica do sentido vai além da busca
on
de uma representação do espaço da Nação, ou ainda da recusa
dos modelos estrangeiros e da sustentação da soberania: ela
az
transtorna a busca da identidade nacional e se torna um ônus
Am
ay
Pl
Impertinentes, desinteressados ou sem escolha:
g le
a produção no IHGB de uma história dos demarcadores e
oo
das demarcações Portuguesas no Norte do Brasil
G
no
Uma das propostas de Roger Chartier no seu livro ‘À Beira da
e
Falésia’ dizia respeito à constituição de uma aproximação da his-
tória em relação à filosofia e à crítica literária a fim de criar um
on
terreno comum, “aberto à análise epistemológica”, e um método
az
de análise que pressupusesse em seu centro os “dispositivos
Am
ay
As limitações da operação historiográfica
Pl
Como vimos anteriormente, a construção historiográfica do
le
espaço nacional no IHGB trabalhou a ideia de uma construção
g
pretérita da nação e da identidade nacional, descrevendo por
oo
meio de suas narrativas a adesão de certos indivíduos, distin-
guidos por sua nobreza e abnegação a serviço do bem comum,
G
a uma ideia de nacionalidade que imprimia mesmo o sentido
no
de suas ações. Essas ações seriam justificadas pela clarividência
mesma desses indivíduos que sabiamente articulariam por meio
e
de seus esforços a ação do estado português em direção à cons-
on
trução do território brasileiro. az
Nesse sentido, a ação dos demarcadores dos limites do
Tratado de Santo Ildefonso foi construída no IHGB justamente de
Am
ay
inteligente que, obcecado pelo ocultismo, renega a universidade,
mas não o interesse pelo passado e que, em meio as suas novas
Pl
atividades, descobre ser possível restaurar literalmente uma
le
parte do passado, no caso, resgatando por meio de uma evocação
g
mágica a presença material de Joseph Curwen, um antepassado
oo
seu.
G
Podemos entender essa transição de Charles rumo ao ocul-
tismo como uma metáfora da própria concepção do ‘fazer a histó-
no
ria’ que, abandonando a articulação do passado proporcionada pela
e
coleção deixa de se subordinar a um sentido do tempo e espaço
imposto pela natureza, voltando-se para uma ação de produção
on
que visava a descortinar, subverter mesmo aqueles sentidos, por
az
conta de uma imprescindível necessidade de operar o passado e
“revolucionar da maneira mais profunda a atual concepção das
Am
vir aparecerá aquele que olhará para trás e usará os sais e a maté-
ve
ria dos sais que tu lhe deixares” (JÓ 14, 14 apud LOVECRAFT,
1997).
à
ay
a mesma ordem, uma vez que se constituía uma razão divina e
insondável como fundamento primeiro a ser perscrutado ou a
Pl
ser representado por meio dessa mesma ação.
le
O primeiro indício dessa questão surge para o leitor na
g
medida em que este descobre que o antepassado de Charles,
oo
ameaçado pela perseguição às bruxas, já havia feito no passado
G
outra operação mágica de modo a garantir sua ressurreição no
futuro. Como o sucesso da ressurreição de Joseph dependia
no
exclusivamente de que a evocação fosse feita por um seu des-
e
cendente, a operação mágica de Joseph consistia mais em cons-
truir o elo entre a ressurreição e esse descendente, ou seja, sem
on
que Charles soubesse, sua participação na evocação de Joseph
az
já havia sido garantida no passado por outra operação mágica.
Note-se, nesse ponto, a articulação narrativa e representacional
Am
ay
pela comunhão dos princípios opostos e que se constituía como
um mistério a não ser deslindado (SCHOPENHAUER, 1981, p.
Pl
47). Por meio disto, poderíamos compreender que o tempo e
le
espaço podem ser articulados não apenas enquanto elementos
g
da narração, mas também como materiais de sua própria repre-
oo
sentação, a qual pode ser instituída como um ‘momento eterno’,
uma fração de tempo e espaço operacionalizada, vinculada por
G
seus operadores a uma produção histórica.
no
Após o assassinato de Charles, um terceiro indício se apre-
e
senta ao leitor: a semelhança de Joseph com Charles não evita-
ria o seu desmascaramento pelos amigos do antiquário, uma vez
on
que esses perceberam que o passado era por demais “evidente
az
em cada palavra e gesto” de Joseph, ou seja, eram evidentes os
resquícios da operação. Contudo, não bastava o desmascaramento
Am
ay
O problema das Demarcações do
Tratado de Santo Ildefonso
Pl
le
Uma vez que não desejamos alongar este texto pela discus-
g
são da produção historiográfica do espaço nacional, no século
oo
XIX, centraremos seu argumento no problema das Demarcações
do Tratado de Santo Ildefonso, antecipando já que os resultados
G
dessas foram sobrevalorizados a partir dessa operação historio-
no
gráfica, assim como procuramos perscrutar os anseios e os inte-
resses dos demarcadores, já que estes têm sido interpretados
e
usualmente no sentido de ratificar tanto os resultados quanto a
on
construção mesma do espaço nacional.
az
Em primeiro lugar, é necessário salientar que a cartografia
portuguesa, nos séculos XVII e XVIII, já se encontrava comple-
Am
ay
tornado incapazes de legitimar pretensões territoriais se não fos-
sem embasados por uma construção científica acreditada.
Pl
Para isso, tornou-se necessário designar oficiais de alta
le
patente, engenheiros militares e outros profissionais deslo-
g
cando os poucos elementos disponíveis no Império português
oo
para intermináveis comissões no interior do Brasil, praticamente
G
fixando-os à Colônia. Mas, mesmo assim, o pouco desenvolvi-
mento das ciências matemáticas e naturais em Portugal dificul-
no
taria o exercício dessa nova cartografia. Nesse sentido, a quase
e
totalidade dos autores portugueses58 considera que, após um
período de florescimento no século XVI, a matemática portu-
on
guesa teria entrado num período de decadência continuada. Esse
az
período seria, inclusive, caracterizado por alguns autores, como
um “deserto” intelectual que perduraria até 1760, quando, a par-
Am
-se que num período de vinte e oito anos (de 1772 até 1800)
foram concedidos apenas vinte graus de doutor em ciências
a
em Portugal. v.1. parte II. (1537-1771). Lisboa: Fund. Gulbenkian, 1993.; no qual
são citadas as seguintes obras sobre a história da Matemática em Portugal: ‘Ensaio
histórico sobre a origem e progressos das Matemáticas em Portugal’, de Francisco de
a
ay
os privilégios concedidos à formação jurídica em detrimento do
estudo técnico; a atitude mental e cultural predominante em
Pl
Portugal no período, que opunha os interesses religiosos e polí-
le
ticos então predominantes às inovações científicas.
g
Tal contexto corroboraria, por conseguinte, a situação de
oo
penúria extrema da cartografia portuguesa no século XVIII, que
G
carecia de meios, pessoal e mesmo de obras: a própria cober-
tura topográfica e cartográfica de Portugal era extremamente
no
reduzida se comparada a de outros países, como, por exemplo,
e
a França, tendo começado a ser implementada somente a par-
tir de 1851, quando se criaram as condições de consenso polí-
on
tico e estabilidade institucional que permitiriam aprofundar os
az
esforços de modernização e de consolidação territorial do estado
português.59
Am
2003. p. 13.
60 Ver Resposta à consulta de D. Maria I ao Ten. Cel Eng. Francisco João Rocio em
29/08/1780. IHGB, lata 69, documento 8; Tratado preliminar de limites entre
O
ay
Além disso, havia uma grande carência de pessoal capaz de
realizar no campo os cálculos e as observações necessários aos
Pl
levantamentos cartográficos, a saber, engenheiros, geógrafos e
le
astrônomos. Especialmente no que se refere aos últimos, este
g
problema pode ser exemplificado pela dificuldade na arregimen-
oo
tação de astrônomos para a demarcação dos limites referentes
ao Tratado de Madri: os estrangeiros ocuparam então a maioria
G
dos cargos técnicos e, inclusive, de comando, isto, saliente-se,
no
numa empresa de extrema importância estratégica para o Estado
português. Inclusive, em 1751, o posto mais alto da Comissão
e
Demarcatória, composta ainda por militares e por pessoal de
on
apoio, foi ocupado por um genovês, enquanto que a maioria
az
dos 27 técnicos empregados era composta por italianos e ale-
mães, sendo que destes apenas seis eram portugueses.61 Ainda
Am
década de 1780, o trabalho não pôde ser levado a cabo tanto por
st
61 Relação dos oficiais de guerra e mais pessoas que se acham nomeadas por Sua
O
ay
e geógrafos, uma vez que, dada a sua complexidade, eram então
importados a maioria dos instrumentos necessários para o tra-
Pl
balho de campo e a totalidade daqueles destinados à observação
le
dos fenômenos astronômicos, sendo a Inglaterra o seu principal
g
fornecedor.62
oo
Em segundo lugar, é preciso esclarecer que, em face da escas-
G
sez material e técnica da cartografia portuguesa, foram pouquís-
simos os indivíduos que participaram das atividades de demar-
no
cação no Brasil na década de 1780: somente cinco astrônomos
e
ficaram responsáveis pela cobertura da maior parte de todo o
território da América portuguesa: Antonio Pires da Silva Pontes
on
Leme, Francisco José de Lacerda e Almeida, estes dois brasilei-
az
ros, Francisco de Oliveira Barbosa, Bento Sanches e José Simões
de Carvalho.63
Am
62 PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro. 2.ed. Paris:
Typografia de Casimir, 1839. p. 181.
63 Tabuadas de longitudes e latitudes de grande parte do Brasil observadas pelos astrô-
O
ay
As exigências eram muitas vezes brutais: o astrônomo
Antonio Pires da Silva Pontes Leme, nascido em Mariana,
Pl
Província de Minas Gerais, no reconhecimento de rotas comer-
le
ciais e na demarcação de limites, cumpriu no conjunto de suas
g
comissões um périplo várias vezes maior que o de Humboldt,
oo
Condamine ou qualquer outro viajante do século XVIII, que tal-
vez só possa ser superado pelas grandes explorações da África
G
no século XIX. Outro daqueles astrônomos, José de Lacerda e
no
Almeida, nascido na cidade de São Paulo, após cumprir suas mis-
sões, no Brasil, recebeu ainda a duvidosa glória de tentar a tra-
e
vessia da África, de Moçambique para Angola, mesmo depois de
on
ter tido sua saúde minada por mais de um ano pelas febres tro-
az
picais no interior do Mato Grosso, vindo a falecer nesse esforço
no meio da selva africana, tudo para ser tardiamente reconhe-
Am
ay
Nesse sentido, o conceito de limite é mais apropriado, pois retém
a ideia de fluidez e incerteza que basearam a maior parte das ati-
Pl
vidades dos demarcadores. Por exemplo, nas medições relativas
le
às áreas do rio Branco e do Jupurá, os astrônomos portugueses
g
foram muito além do que seria razoável em termos do Tratado,
oo
podendo sua atividade ser mais bem enquadrada enquanto um
reconhecimento militar e comercial destinado a suportar uma
G
futura expansão territorial.
no
Grande parte das medições de longitude possuía pouca exa-
tidão pela exiguidade das condições e, na maioria das vezes, pre-
e
feriu-se medir-se apenas a latitude, cálculo bem mais rápido e de
on
menor complexidade, um problema que era reconhecido pelos
az
próprios membros da demarcação. O cálculo da longitude exigia
na época que se observasse o eclipse dos satélites de Júpiter,
Am
64 PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário histórico e físico da viagem dos oficiais da
demarcação que partiram do quartel general de Barcelos para a capital de Vila Bela da
O
ay
Para isso é importante fazer notar que a primeira narrativa
das demarcações não foi constituída no IHGB, mas na Secretaria
Pl
dos Negócios Estrangeiros por Duarte da Ponte Ribeiro, um dos
le
seus principais funcionários em 1855. Somente muito depois
g
é que esta ‘História das Demarcações’ seria desenvolvida por
oo
Varnhagen nas ‘Biografias’ de Lacerda e Ponte Leme e publi-
cada na Revista do IHGB em 1873. Observe-se que em 1851
G
Varnhagen, também funcionário da Secretaria, havia defendido
no
em memorando interno a necessidade de se constituir uma
‘História das Fronteiras’ que concatenasse a atuação diplomática
e
com a construção da Pátria e defendendo que seu começo deve-
on
ria remontar aos primeiros tratados entre as metrópoles ou, pelo
az
menos ao Tratado de Tordesilhas, incorporando-a, depois a sua
‘História Geral do Brasil’.
Am
ay
propósitos: primeiramente, como os dois foram os únicos bra-
sileiros que receberam o grau de doutores em matemática pela
Pl
Universidade de Coimbra, visava-se a exaltar essa condição rela-
le
cionando-a com a ideia de construção pretérita da nacionalidade.
g
Em segundo lugar, procurava-se, através de seus exemplos,
oo
distinguir esse patriotismo na figura mesma dos demarcadores,
G
isto num momento em que novamente se procurava demarcar as
insalubres fronteiras amazônicas.
no
Por último, atendia-se aos interesses internos da própria
e
Secretaria dos Negócios Estrangeiros e ao corporativismo dos
on
diplomatas, já que o filho de Pontes Leme era então um dos seus
funcionários mais proeminentes.
az
Entretanto, as ‘Biografias’ acrescentariam ainda mais um
Am
ay
Eram então considerados enquanto impertinentes, descuida-
dos, pouco interessados no trabalho e no estudo, “mais amigos
Pl
do seu divertimento e comodidade, do que do desempenho das
le
obrigações.”66
g
Um dos poucos textos de Pontes Leme que sobraram nos
oo
serve para sublinhar os dispositivos narrativos de que se serviu
G
a operação de uma história das demarcações e para pelo menos
aventar os anseios daqueles indivíduos que cruzaram os oceanos
no
de água e selva à serviço do Estado e das demarcações:
e
[Ao nos retirar do Amazonas seguindo para o
on
Mato Grosso] Viam-se pelas barreiras de Barcelos,
chorando, algumas índias e mamelucas, e faziam
az
chorar a quem pensasse na grande miséria em que
vive esta gente toda, fazendo um jejum que passa
Am
ay
Pl
le
Carta Geral do Brasil
g
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
ay
Pl
O espelho do Jacobina:
g le
uma discussão dos problemas de representação do
oo
espaço da Nação por meio do estudo cartográfico
G
no
Como poderíamos ligar a ‘Carta Geral do Brasil’ de Ponte
e
Ribeiro à ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’, de Niemeyer?
Seria possível fazê-lo pelo estabelecimento de uma lógica do sen-
on
tido estabelecida noutro mapa? Num dos mais belos contos de
az
Machado de Assis, ‘O espelho’, o personagem Jacobina instruía
Am
que cada criatura humana trazia nada menos que duas almas
consigo, uma que olha de dentro para fora, outra que olha de
fora para dentro. Esta última alma seria mutável, de natureza
na
ay
que é dominante, por exemplo, na Inglaterra, sendo mesmo esta
ideia diferente para cada um dos palcos de produção, ou seja,
Pl
existe diferença do que é apreendido no IHGB para o que apre-
le
endido na Secretaria dos Negócios Estrangeiros. A diferença
g
entre essas diferentes apreensões é esclarecedora do processo de
oo
construção do espaço e nos permite distinguir as representações
e as narrativas historiográficas que a partir daí são elaboradas
G
enquanto um jogo de tensões e contratensões, ou melhor, como
no
uma escritura em premente e permanente reelaboração.
e
Procuraremos, por conseguinte, trabalhar essa nossa ideia a
partir, primeiramente de uma explicitação do problema cartográ-
on
fico, depois pela sua exemplificação por meio do estudo da ‘Carta
az
Geral’, composta por um dos membros do IHGB, e do ‘Mapa do
Rio Grande’ composta na Secretaria dos Negócios Estrangeiros.
Am
A luta de representação
na
a
tituído por uma interpretação baseada, por sua vez, numa teo-
ria iconológica e semiológica da natureza dos mapas.67 Para esse
a
in
67 HARLEY, J.B. ‘Maps, Knowledge and Power’ e ‘Deconstructing the Map’ in: The New
O
Nature of Maps: Essays in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins
University Press, 2001.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
108 Cartografias Imaginárias
ay
temas ou significados na arte,68 visando, com estes, a identificar,
através dos elementos simbólicos e estruturais dos mapas, cer-
Pl
tas disposições qualificadas como “eminentemente retóricas”, as
le
quais seriam capazes de explicitar relações de “Poder e Saber”,
g
conforme a definição de Michel Foucault, bem como certos con-
oo
dicionamentos sociais.
G
Ainda que reconheçamos a pertinência da teorização de
Harley, acreditamos que, por conta da grande abertura e univer-
no
salidade de seus conceitos, esta deva ter seu uso condicionado a
e
análises e enfoques que, por sua vez, devam estar orientados e
direcionados por um método que permita perscrutar a inscrição
on
no mapa a partir de uma pesquisa do contexto que envolve a
az
composição cartográfica. Para isso, seria preciso entender a com-
posição cartográfica, a partir de Schopenhauer, como um ‘ato da
Am
contextos e referências.69
á
st
ay
matéria será disputada com o mesmo fim por outros indivíduos,
todos tenderão continuamente a usurpá-la, possuindo-a, cada
Pl
um deles, apenas na medida do que puderam tomar dos outros:
le
constituir-se-á assim, em torno do ato de representação, uma
g
guerra eterna de vida ou de morte, quando o surgimento de obs-
oo
táculos e impedimentos à objetivação da Vontade se consubstan-
ciará no indivíduo através do sofrimento e da insatisfação.
G
O ato de representação dá-se então em meio a uma com-
no
petição contínua pela expressão da Ideia, interessando e emo-
e
cionando a Vontade, daí relacionar-se pela sua satisfação com
determinados propósitos, conveniências, eventos e circunstân-
on
cias. Por conseguinte, este mesmo ato da Vontade será objeti-
az
vado ainda que ao custo de sua transformação e do seu ajusta-
mento a outros atos da Vontade inclusive os alheios e vinculados
Am
ay
perfeição espiritual e eterna.” (ASSIS, 1962, p.345) O Jacobina
narrador, separava-se pois do Jacobina jovem pela recusa de se
Pl
lançar à luta de representação.
le
Por outro lado, Machado reconhece também na alma exte-
g
rior a mutabilidade de natureza e de estado da alma exterior
oo
que completaria a alma interior. Por conseguinte, a investigação
G
do ato de representação remeteria não apenas à compreensão
de propósitos, conveniências e circunstâncias, mas também,
no
demandaria à compreensão dos processos de escolha do recorte
e
cartográfico e de seleção das mecânicas de composição e produ-
ção dos mapas. Para isso, seria necessário trabalharem-se não
on
apenas os mapas, mas também os textos que se referissem aos
az
processos de seleção e às mecânicas de composição e produção
cartográfica relacionando-os com os produtos finais, os mapas.
Am
ay
Processo interno e processo externo
Pl
Durante os séculos XVII e XVIII, por um lado, a cartografia
le
se converteu de uma tarefa quase solitária numa escrita coletiva
g
por excelência, dotada de práticas diversas e complexas, tornando
oo
necessário que a leitura do processo de composição dos mapas
fosse feita através da apreensão de sentidos e saberes que inclu-
G
íam tanto o agenciamento das técnicas e das condições da escrita
no
quanto à distribuição e atribuição de tarefas. Por outro lado, a
mesma cartografia tornou-se também o lugar por excelência de
e
inscrição da narração territorial dos Estados em centralização, o
on
que nos leva a ter de analisar os processos de escolha, produção,
reprodução e divulgação da cartografia enquanto sujeitos a usos
az
e estratégias por parte de seus autores.
Am
ay
Para Harley, a convivência entre essas duas instâncias faria parte
das relações de poder que penetrariam os interstícios da prática
Pl
e da representação cartográfica, permitindo assim com que os
le
mapas pudessem ser lidos como textos que legitimariam a teori-
g
zação Poder-Saber de Foucault.71
oo
Já em nossa ideia de processo interno e processo externo enten-
G
demos que a produção do mapa esteja sujeita a ser modificada,
alterada ou limitada tanto por circunstâncias inerentes à com-
no
posição quanto por características e propriedades das técnicas e
e
procedimentos.
on
Por um lado, o agenciamento das técnicas por parte dos pro-
dutores faz parte de um processo de escolhas que não é apenas
az
objetivo, mas que também constitui um procedimento da repre-
Am
nada técnica não significa que esta seja a melhor ou a mais tec-
a
71 HARLEY, J.B. Power and legitimation in the english geographical atlases of the eigh-
ig
teenth century. In: The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography.
or
ay
representação pura da Ideia, a qual, em tese, deve ser comple-
mentada ou substituída por outras representações a partir das
Pl
táticas dos seus operadores, constituindo-se estas enquanto
le
uma objetividade imperfeita da Vontade.
g
Ainda, se as restrições exigirem um sacrifício da forma que
oo
vá além das capacidades, pode-se produzir uma alteração do
G
objeto não prevista pelos seus operadores, constituindo-se essa
alteração do objeto, ela mesma, como uma representação mais
no
ou menos independente da objetivação da Vontade.
e
Por conseguinte, entendemos por processo interno aquele que
on
diz respeito à objetivação da produção e processo externo aquele
que tem a ver com os condicionamentos e propriedades que
az
incidem sobre essa objetivação modificando-a, alterando-a
Am
ay
O medium cartográfico no XIX
Pl
Até o século XIX, o método usual para a reprodução de mapas
le
e de atlas era o da gravação em cobre: os mapas manuscritos
g
tinham seus detalhes copiados para uma placa desse material,
oo
na qual eram gravados em alto-relevo, gerando-se, assim, uma
matriz de impressão passível de receber alterações e capaz de
G
permitir seguidas reimpressões. Nesse sentido, estima-se que
no
uma matriz de cobre bem cuidada e que recebesse uma manu-
tenção regular do traçado de seu relevo podia ser utilizada até
e
três mil vezes, possuindo comumente uma durabilidade capaz
on
de ultrapassar a centena de anos.73 Entretanto, a gravação em
cobre era um processo caro, trabalhoso e altamente especiali-
az
zado e, por conta dessas características, a reprodução cartográ-
Am
res profissionais.
nd
73 VERNER, Coolie. Copperplate Printing. In: Five Centuries of Map Printing. Chicago:
University of Chicago Press, 1975. p. 72.
O
74 HARLEY, J.B The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography.
Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001. p. 113-115.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 115
ay
vamente e disputando o mercado de mapas e atlas com trabalhos
de sua autoria.75
Pl
Portanto, uma das principais características da produção car-
le
tográfica anterior ao século XIX é a existência de diferentes cen-
g
tros fora do controle direto do Estado, capazes de produzirem
oo
em escala e em disputa pelo controle de um mercado lucrativo.
G
A lucratividade desse mercado se devia ao fato de os produtos
cartográficos não serem apenas utilizados como fonte de infor-
no
mação para o Estado ou para o investidor, mas também como
e
estímulos de sociabilidade e artigos de uma cultura de consumo
que se estabeleceram no período. Tais eventos foram impulsio-
on
nados pelas transformações culturais decorrentes da difusão da
az
tipografia e pelas viagens transatlânticas, combinadas na grande
circulação de livros corográficos e de narrações de viajantes.76
Am
75 VERNER, Coolie. Copperplate Printing. In: Five Centuries of Map Printing. Chicago:
or
ay
A técnica litográfica consistia na escrita direta sobre uma
matriz de pedra calcária ou zinco ou no transporte dessa escrita
Pl
para a pedra através de uma folha especial, quando então se uti-
le
lizava um processo químico que tornava a superfície capaz de
g
permitir sucessivas impressões. Além de tornar a composição
oo
dos mapas mais rápida, pois exigia uma menor especialização
de tarefas, ao eliminar, por exemplo, a obrigação de que esses
G
fossem desenhados em reverso como na gravação em cobre, a
no
litografia também possibilitou uma diminuição acentuada dos
custos materiais na cartografia. Essas características tornaram
e
possível, no século XIX, disponibilizarem-se os produtos car-
on
tográficos a um público imensamente maior e mais diversifi-
az
cado que nos séculos anteriores, ao mesmo tempo em que per-
mitiriam que países sem tradição de produção cartográfica em
Am
no Estado.
a
ay
No arquivo dessa instituição, visava-se a recolher todas as
cartas, mapas topográficos e planos iconográficos trazidos de
Pl
Portugal para que fossem juntados aos que se encontravam dis-
le
persos no Brasil entre várias repartições, acabando-se, assim,
g
com a descentralização documental que imperava até então nas
oo
secretarias de Estado portuguesas. Entretanto, essa iniciativa de
centralização cartográfica, no Brasil, estaria dada ao fracasso já
G
em seus primórdios, uma vez que grande parte da documentação
no
que fora reunida no Arquivo Militar retornou a Portugal junto
com D. João VI em 1821, sem que se distinguisse critério algum
e
nesse repatriamento, o que tanto acarretou a permanência, no
on
Brasil, de muitos produtos cartográficos relativos a Portugal
az
e seus domínios, quanto a ida para Portugal de muito do que
fora produzido sobre o Brasil, um problema que somente seria
Am
ay
manuscrita e a tradição de descentralização dos arquivos e da
produção cartográfica, uma vez que, nos séculos anteriores, não
Pl
se acompanhara o desenvolvimento do agenciamento das técni-
le
cas que resultaram na especialização, na estandardização e na
g
concentração das tarefas cartográficas.
oo
Em consequência, no Brasil, a composição cartográfica
G
manuscrita se impôs ao processo de produção, com suas carac-
terísticas de individualização, descentralização, sigilo e repeti-
no
ção de padrões, em que cada cartógrafo era, acima de tudo, o
e
membro de uma escola e um transmissor de padrões estabele-
cidos.77 Ainda, a antiga tradição de descentralização cartográfica
on
seria paulatinamente retomada no Brasil, resultando no esvazia-
az
mento do Arquivo Militar, mesmo em detrimento da iniciativa
particular, que atraía sua mão-de-obra especializada. Durante o
Am
zar a produção alheia. Por conta de tudo isso, a parte mais repre-
sentativa da reprodução em escala por meio da litografia foi com-
à
manuscrita, ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. The dating of the oldest Portuguese
charts. Imago Mundi. vol. 41. 1989. p. 87-97.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 119
ay
A Carta Corográfica do Império do Brasil
Pl
Na década de 1840, a consolidação da discussão do espaço
le
nacional em palcos de produção bem definidos em torno do
g
IHGB, do Conselho de Estado e da Secretaria dos Negócios
oo
Estrangeiros, a descentralização do processo de produção carto-
gráfica e o esvaziamento das funções do Arquivo Militar contri-
G
buíram para que a primeira Carta Geral do Brasil não nascesse
no
a partir de uma iniciativa do Estado, mas de uma contribuição
para o debate da narrativa territorial no IHGB. Composta por
e
Conrado Jacob de Niemeyer durante os anos de 1842 a 1846,
on
a Carta Corográfica do Império do Brasil estabeleceu padrões
técnicos e estéticos que seriam endossados pelas Cartas Gerais
az
posteriores e mapas parciais do território.
Am
da intuição.78
st
le
ay
América Meridional, da casa editorial Arrowsmith, e a Carta da
Costa Brasileira, do Almirante Roussin. Em seguida, esse Mapa
Pl
Geral foi modificado e complementado através da consulta a
le
diversos mapas, roteiros, memórias e descrições produzidos por
g
brasileiros, sendo que, dentre esses, Niemeyer utilizou prin-
oo
cipalmente os trabalhos de Cerqueira e Silva, Cunha Mattos e
Aires de Casal, não por acaso, todas essas eram obras acredi-
G
tadas pelo debate no IHGB.79 Finalmente, as fronteiras nacio-
no
nais foram inscritas sobre o produto resultante das operações
anteriores a partir do estabelecido no ‘Programa Geográfico’
e
de José Feliciano Fernandes Pinheiro, presidente do IHGB e os
on
limites da divisão provincial foram desenhados de acordo com a
az
‘Corografia Brasílica’, de Aires de Casal.
Já o processo de escolha do padrão estético da Carta deri-
Am
maior folha que fosse possível imprimir foi tomada por Niemeyer
á
ay
diminuir o problema dos erros, através do maior dimensiona-
mento dos elementos geográficos, especialmente da hidrografia;
Pl
terceiro e mais importante, equiparar a representação cartográ-
le
fica do espaço nacional às cartas de grande dimensão impres-
g
sas na Europa,80 cujos modelos eram as grandes cartas gravadas
oo
pela casa editorial Arrowsmith, as quais chegavam a medir até
dois metros de altura por um metro e quarenta de largura que,
G
emolduradas, eram expostas sobre grandes paredes, geralmente
no
em órgãos públicos e escolas. Portanto, Niemeyer buscava não
apenas construir uma representação do espaço nacional brasi-
e
leiro, mas ainda inscrever a presença, centralidade e monumen-
on
talidade do Estado nas relações do indivíduo com o meio social.
az
Finalmente, podemos observar que a Carta Geral resulta das
estratégias e táticas desenvolvidas na relação entre o processo
Am
Niemeyer, dizendo estar quase pronta a carta corográfica do Império do Brasil IHGB,
Lata 142, Pasta 49, 1844 e Carta de Jacob de Niemeyer para o Visconde de São
á
Leopoldo em 20/9/1843. In: PAUWELS, Geraldo José. Algumas notas sobre a gênese
st
dos números para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre: Tipografia do
le
HARLEY, J. B. Silences and Secrecy. In: The new nature of maps: essays in the History
or
ay
Acreditamos, assim, que a leitura semiológica e iconológica
deva ser entronizada num método que dê conta dos processos
Pl
de objetivação do ato de representação. Em razão disso, sugeri-
le
mos que a leitura semiológica e iconológica dos produtos carto-
g
gráficos deve se basear o quanto possível nos problemas perce-
oo
bidos por meio do estudo das relações entre o processo interno
e o processo externo, conforme apontaremos a seguir a partir
G
da Carta Geral.
no
Em primeiro lugar, o meridiano que passa pela cidade do Rio
e
de Janeiro é utilizado como origem de todo o sistema de coorde-
nadas da Carta Geral, ao invés dos outros mapas, que utilizavam
on
o meridiano de Paris ou o meridiano de Londres. Essa opção
az
de Niemeyer derivava justamente do debate então travado no
IHGB e que dizia respeito às questões da construção da Nação,
Am
ay
Nesse caso, a Carta Geral é prolífica em exemplos como: “Gentio
Jacundá tratável e que fala a língua geral”; “Sertão ainda desco-
Pl
nhecido e sem cultura”; “Terrenos inteiramente desconhecidos e
le
ocupados por diversas tribos de índios selvagens que embaraçam
g
a navegação fluvial” e “Paritins, Andiras, Araras, Mundrucus e
oo
outras nações – Em grande parte domesticados”.
G
O Mapa do Rio Grande
no
e
Já a composição do ‘Mapa do Rio Grande’ decorreu da par-
on
ticipação de Duarte da Ponte Ribeiro em certas discussões do
Terceiro Conselho de Estado durante a década de 1840, onde
az
atuaria enquanto consultor da Seção de Justiça e Negócios
Am
ay
do mapa contraria a norma cartográfica; as escalas foram des-
locadas a partir de utilização de procedimentos pouco usuais;
Pl
certos elementos geográficos menos relevantes seriam proposi-
le
talmente destacados; finalmente, alguns topônimos foram regis-
g
trados através da utilização de rotinas anormais.
oo
A orientação do Mapa do Rio Grande, ao contrário de prati-
G
camente todas as outras cartas do século XIX, não foi feita pelo
norte, mas pelo sul, representando-se, no caso, o espaço nacio-
no
nal literalmente de ponta-cabeça. E, essa opção do cartógrafo
e
somente pode ser compreendida se pudermos admitir a existên-
cia de uma apreensão particular do espaço que é compartilhada
on
pelos conselheiros do Conselho de Estado a despeito de sua irri-
az
são em relação à norma cartográfica. Podemos colocar que se
pode verificar uma leitura semelhante àquela realizada por Ponte
Am
esse recorte da superfície terrestre são instrumentos que possibilitam, num primeiro
or
nal brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-
(Doutorado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
O original está à venda na Amazon e no Google Play
Renato Amado Peixoto 125
ay
Figura 1 – Detalhe da Carta Arrowsmith
Pl
le
g
oo
G
no
e
on
az
Am
era usual por meio de uma deformação das escalas que acentuava
tanto a curvatura do Rio Uruguai quanto a inclinação da costa
à
ay
de Estado de que a questão de limites poderia degenerar numa
possível secessão do território do Rio Grande do Sul. O artifício
Pl
da deformação do desenho do território permite tornar visível o
le
desligamento do Brasil dos territórios uruguaio e gaúcho suge-
g
rindo não apenas a ideia da continuidade espacial, mas também
oo
uma ação centrífuga com origem no Prata. Segundo, a diferença
poderia ser interpretada como uma alteração do objeto não pre-
G
vista pelo seu operador que seria fruto de uma contingência
no
sofrida pela cartografia brasileira que era a influência do medium
cartográfico manuscrito: como essa deformação era muito mais
e
comum nos mapas manuscritos, poderia haver uma tendência
on
inconsciente de reproduzi-la. az
Am
ay
largura quanto no seu prolongamento, tendência repetida tam-
bém para os seus afluentes. Uma leitura possível dessa diferença
Pl
em relação às produções cartográficas de seu tempo, é que, a
le
deformação deliberada do elemento geográfico estaria em conso-
g
nância com as já citadas ideias de secessão do território gaúcho
oo
e da importância da questão de limites. No caso, se levarmos em
conta essas discussões, a deformação do desenho do Rio Negro
G
e de seus afluentes permitiria transmutar a ideia da drenagem
no
fluvial do território condizente com o elemento geográfico numa
ideia de direcionamento em função do espaço platino, que orga-
e
niza o território uruguaio e penetra e absorve o espaço brasileiro
on
por meio de seus afluentes.
az
Em relação aos topônimos, uma leitura apresenta-se ainda
mais clara, a partir também das discussões no Conselho de
Am
ay
Duarte da Ponte Ribeiro inscreveu, também, no mapa as
sugestões de limites que haviam predominado na discussão do
Pl
Conselho de Estado e seu desenho foi feito pela utilização de duas
le
linhas coloridas, uma vermelha, outra azul, as quais foram liga-
g
das ao registro de uma linha de pequenas elevações, a “Cuchilera
oo
Geral do Rio Grande”, e a dois minúsculos elementos geográficos,
as ilhas de Castilhos Grandes e as de Castilhos Pequenos.
G
Num primeiro momento, ao comparar-se o texto do
no
Memorando 37 com o desenho, percebe-se que a sugestão mais
e
apreciada por Duarte da Ponte Ribeiro foi desenhada em azul,
enquanto que a outra foi desenhada em vermelho, logo parece
on
satisfatório supor que houve uma utilização deliberada da cor
az
para impactar a audiência do mapa, sugerindo uma apreciação
negativa pelo vermelho.
Am
ay
Ainda, outra leitura seria possível a partir do resgate de
todos os elementos e sua ligação com as discussões subsequen-
Pl
tes: estar-se-ia assistindo a exibição de uma nova apreensão
le
do espaço, essa ligada, por sua vez, a Secretaria dos Negócios
g
Estrangeiros. Nessa apreensão, o Prata era tomado como um
oo
espaço além das possibilidades brasileiras e, contrária às posi-
ções defendidas no Conselho de Estado onde muitas vezes se
G
levantavam vozes a favor da reincorporação da Cisplatina, enten-
no
dia-se que estas pretensões minavam os recursos de um territó-
rio maior, o do Rio Grande do Sul, em detrimento de um menor,
e
o do Uruguai. Assim, dever-se-ia privilegiar, nas futuras discus-
on
sões de limites, uma interpretação mais coerente com os esfor-
az
ços de consolidação do Estado nacional, mesmo que ao preço
da cessão de território, iniciativa essa consolidada por meio da
Am
Conclusão
a
nd
ay
de Machado de Assis: se o espelho é a metáfora utilizada para
nos fazer melhor entender a ideia da alma externa, será pela dife-
Pl
rença em relação ao lugar e ao tempo que ele nos leva a perceber
le
que aquele era o espelho apenas do outro Jacobina.
g
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in
ig
or
O
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Renato Amado Peixoto 131
ay
Pl
O mapa antes do território:
g le
o território do Javari como exemplo da construção
oo
concorrencial de espaços
G
no
Pode-se dizer que mapear o território significa inscrevê-lo
e
num determinado espaço e, ao mesmo tempo, possibilitar que a
escrita desse território possa transformar o mapa. O exame dessa
on
construção verdadeiramente recíproca permite identificar certos
az
processos de formação da identidade, clarificando suas estraté-
Am
ay
lado, exige que o território seja definido tão preciso e completa-
mente até que não haja dúvida da sua singularidade. Por conta
Pl
disso, as cartas e as representações geográficas, por interagirem
le
diretamente com o território, podem tornar-se instrumentos de
g
articulação e estratégia que permitem construir e promover um
oo
consenso acerca do espaço e da identidade.
G
Na lógica do centro, quanto mais precisa fosse a imagem do
território nacional, maiores seriam as chances de se afirmar a
no
singularidade do espaço, mas, num paradoxo, para que se afirme
e
o consenso em torno do local, muitas vezes, torna-se necessário
abstrair-se o todo dessa mesma precisão.
on
Se a construção da identidade coletiva redefine ou reconcei-
az
tua um território, a mudança da escala altera o que é visto e o
Am
ay
‘Confins’, que possuía então a característica de expressar não
somente uma zona larga, profunda, mas também indefinida: “Os
Pl
Confins, s.m. pl. rayas, extremos, fronteiras de Terra estrangeira:
le
os confins da Terra”.84
g
Assim, a fronteira seria uma área que constantemente pode-
oo
ria ser movida para a frente, contra o inimigo, depois do territó-
G
rio parcialmente conhecido, o Sertão. Nesse sentido, nas narrati-
vas portuguesas sobre o Brasil, a linha da fronteira é vista como
no
delimitando simultaneamente o ponto onde cultura e natureza
e
se cruzam: é o ponto de encontro entre a selvageria e a civiliza-
ção. Veja-se a descrição do território do rio Javari:
on
az
Em ambos os rios laterais se criam os mesmos pei-
xes do Solimões; ambos oferecem extensa nave-
Am
bulos impressos até agora, e nesta segunada edição novamente emendado, e muito
accrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813. p. 442.
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134 Cartografias Imaginárias
ay
Dos seus costumes, dizem que são mui bárba-
ros, sendo mesmo antropófagos não só para com
Pl
os inimigos, como para com os de sua própria
nação que estão muito doentes ou muito velhos,
le
tomando parte nos banquetes os próprios filhos
e pais dos que foram mortos. [...] Que eles são
g
ferozes, que matam seus inimigos sem perdão e
oo
que com os ossos das canelas fazem ornamentos
[...] (MARAJÓ, 1895).
G
no
Observe-se a presença na descrição do léxico ‘Nação’ para
designar “Raça, casta, espécie” e não “A gente de um país, ou
e
região, que tem Língua, Leis, e Governo a parte,” ‘País’ tinha
on
então o significado tão-somente de “Terra, região”.85 O território
do Javari foi descrito, portanto, nos confins do espaço português,
az
a partir da ótica mercantil da Metrópole, de acordo com as possi-
Am
bulos impressos até agora, e nesta segunada edição novamente emendado, e muito
accrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813, p. 442.
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Renato Amado Peixoto 135
ay
espanhóis e esta, por sua vez, foi transferida por causa dos
ataques dos índios e das péssimas condições do terreno para
Pl
um lugar duas léguas acima do Solimões, onde já estava esta-
le
belecido um posto de inspeção.86 Ali foi fundado o presídio
g
de São Francisco Xavier de Tabatinga, num sítio mais amplo e
oo
de melhor posição estratégica, sobre um barranco de onde se
avistava tanto a foz do Javari, quanto os territórios espanhóis
G
limítrofes.87 Entretanto, ainda que Tabatinga passasse a partir
no
desse momento a abrigar a derradeira presença portuguesa
na Amazônia ocidental, o abandonado rio Javari se susten-
e
taria enquanto marco natural na fronteira amazônica, sendo
on
reconhecido enquanto tal pela Coroa espanhola através da
az
linha provisória demarcada, em 1751, e posteriormente rati-
ficada em 1777.
Am
ay
uma vez que o seu “sinuoso e lentíssimo curso,” como era des-
crito na época, era despovoado e, sobretudo, desconhecido,
Pl
devido às dificuldades reais ou imaginárias.88
g le
As explorações do século XIX
oo
G
No decorrer do século XIX, o território do rio Javari passaria
no
a ser descrito diferentemente do período colonial: a cristalização
da nação se impunha por meio da racionalização que conquista e
e
bane o mistério, nega e extirpa outros povos. Paisagem e popu-
on
lação passariam a ser classificadas e analisadas, não apenas em
função da utilidade mercantil, mas em termos de quantidade,
az
qualidade e diversidade. Os indígenas veriam desaparecer gradu-
Am
Hélio Leôncio. Poderes Combatentes. In: História Naval Brasileira 5 Tomo I B,. Rio
de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1997. p. 91.
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Renato Amado Peixoto 137
ay
sido provocada por veneno ou moléstia epidêmica.
Não poupavam os inimigos, matando-os sem pie-
Pl
dade, e de maneira atroz [...] o prato predileto nos
canibais festins, [eram] os miolos e as mãos das
le
vítimas, apreciando em demasia as dos homens civi-
lizados. Dos ossos, dentes, etc. faziam troféus de
g
guerra, conservando alguns a cabeça da vítima na
oo
frente de suas malocas, espetada na própria lança do
guerreiro que a matou (CUNHA GOMES, 1898).89
G
Note-se que, apesar da diferença em relação às narrativas
no
coloniais, essas descrições do território do Javari eram apenas
e
reelaborações das primeiras, uma vez que poucos homens bran-
cos se aventuraram a percorrer o rio Javari antes do boom da
on
borracha.90 Esses homens, demarcadores e exploradores, pres-
az
sionados pelas dificuldades materiais do empreendimento, pro-
Am
89 Relatório da exploração do Rio Javari por Cunha Gomes ao Ministro das Relações
Exteriores. In: Relatório do Ministro das Relações Exteriores, 1898. p. 247.
ig
90 “[...] nenhum explorador ou flibusteiro conseguira navegar [o rio Javari] por mais
or
de três dias sem ser massacrado” TEFFÉ, Tetrá. Barão de Teffé - Militar e cientista.
Biografia do Almirante Antonio Luiz von Hoonholtz. Rio de Janeiro: Serviço de
Documentação Geral da Marinha, 1977. p. 239.
O
91 Carta do rio Javari até a latitude meridional 5° 36’ pelos Engenheiros José Joaquim
Victorio da Costa e Pedro Alexandrino de Souza, 1787.
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138 Cartografias Imaginárias
ay
locais onde houvessem sido instaladas sentinelas às margens do
rio.
Pl
Décadas depois, o plenipotenciário brasileiro quando da nego-
le
ciação de limites com o Peru, Duarte da Ponte Ribeiro, relataria
g
estupefato que os representantes daquele país reconheceram de
oo
pronto a posse brasileira de todo o território do Javari apenas
G
baseados no fato de seus próprios mapas registrarem duas povo-
ações brasileiras no curso médio do rio.92 Provavelmente, este
no
grave erro da diplomacia peruana se deveu ao fato de se terem
e
consultado mapas cujos autores haviam copiado os dados do
mapa de 1786 e, mal interpretando o significado das ‘Vigias’,
on
transcreveram-nas como duas localidades.93 az
Depois disso, o Javari somente seria navegado nas décadas de
Am
ay
países (posteriormente denominada expedição Soares Pinto
– Paz Soldán), tentou determinar a nascente do Javari, mas foi
Pl
arrasada pelos indígenas na latitude 6° 50’ Sul tendo falecido ali o
le
Capitão-tenente Soares Pinto, considerado então um dos maio-
g
res hidrógrafos e astrônomos brasileiros.
oo
Somente em julho de 1874, seria designada um nova comis-
G
são para verificar as origens do Javari, dessa vez sob o comando
de Antônio Luiz von Hoonholtz, professor de hidrografia da
no
Escola de Marinha desde 1857, autor da primeira obra em língua
e
portuguesa sobre hidrografia e do mapa da Ilha de Santa Catarina
que foi incluído no prestigioso Atlas Mouchez. Na sua narrativa,
on
Hoonholtz assinalava que “ninguém havia ultrapassado impu-
az
nemente a foz do rio Galvez” e que ele mesmo só havia conse-
guido determinar a nascente do Javari em 7° 06’ depois de ter
Am
ay
Barão, o explorador não quis que o título se referisse ao Javari,
preferindo ser reconhecido como o Barão de Tefé, lugar onde a
Pl
jornada terminou.
le
Entretanto, ao contrário do que seria de se esperar, a con-
g
clusão dessa expedição seria muitíssimo mal recebida por seus
oo
compatriotas, uma vez que, por conta dos padrões de limites que
G
haviam se estabelecido através dos atlas, a soberania brasileira
sobre a área incluiria não só o Javari, mas ainda todo o território
no
à leste desse rio, já que se traçava, na maioria das representações
e
cartográficas estrangeiras, uma reta de sua nascente até encon-
trar o rio Madeira, logo, quanto maior fosse a extensão do rio
on
Javari, maior seria o território pertencente ao Brasil.
az
Am
O Javari na cartografia
na
20’, valor este que em que chegaria mesmo a 12º no Atlas Balbi-
á
ay
As iniciativas governamentais tardariam, tomando mais
ímpeto apenas na década de 1870, a partir da necessidade de
Pl
embasar a presença brasileira nas Exposições Universais, sendo
le
então estabelecidas várias comissões destinadas a elaborar a
g
Carta Geral do Brasil, resultando destas, após inúmeros adia-
oo
mentos e contratempos, duas Cartas oficiais do Império Brasil,
as de 1873 e 1874, apresentadas respectivamente na Exposição
G
Universal de Viena em 1873 e na Exposição Nacional de 1875.
no
De todo modo, algumas outras iniciativas esparsas se fizeram
sentir, como, por exemplo, a concessão do primeiro prêmio geo-
e
gráfico no IHGB para o autor de uma carta do Império já em
on
1846 e a organização do Atlas Almeida, “destinado à instrução
az
pública no Império com especialidade à dos alunos do imperial
Colégio de Pedro II” (ALMEIDA, 1868).
Am
Por que uma mudança tão repentina após quase cem anos de
ve
ay
uma latitude inferior, o território entre essa e o referido para-
lelo seria boliviano.
Pl
A partir da expedição de Hoonholtz, e por uma via tortuosa,
le
já que a missão exploratória se destinava a balizar os limites
g
do Brasil com a república do Peru, ficaria confirmada a segunda
oo
conjetura e o Brasil perderia a maior parte do território naquela
G
área, já que o misterioso rio Javari encolheria substancial e
subitamente.
no
Entretanto, esta representação do espaço brasileiro que se con-
e
solidava através de instrumentos jurídicos internacionais não havia
on
contemplado uma articulação com as elites regionais que incluísse
suas expectativas em relação à construção local de espaço.
az
Am
ay
vigoroso e constituir uma nação rica, forte e colos-
salmente grandiosa.96
Pl
Esta identidade divergiria da construção historiográfica idea-
le
lizada no IHGB, uma vez que não era construída em relação com
g
oo
a tradição, mas com o novo, comprometendo-se com a abertura
a outras culturas e a uma conexão com outros países que quase
G
substituía a ligação com o centro. O Amazonas, segundo essa
no
construção, seria o país do futuro, uma terra de oportunidades,
habitado em sua grande maioria por migrantes e estrangeiros,
e
aos quais os naturais já estavam integrados, preenchido por uma
on
natureza prestes a ser submetida pelo progresso e pela civiliza-
ção trazida pela opulência: az
As febres intermitentes, que podem ser contraí-
Am
96 SILVA, Viriato Augusto da. Corografia do Brasil. Lisboa: D. Corazzi, 1882. p. 38.
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144 Cartografias Imaginárias
ay
inclusive ainda mantinha inclusa a carta oficial do Brasil, o limite
do Amazonas com a Colômbia seria o antigo rio dos Enganos,
Pl
o que permitia estender o espaço local até os contrafortes da
le
Cordilheira dos Andes. A própria exploração comercial da região
g
que o Javari delimitava passou a ser incentivada pelo governo
oo
estadual, apoiada na lógica de que a metade da sua produção de
borracha provinha daquela área.
G
Concomitantemente, diversos geógrafos e militares no Rio
no
de Janeiro passaram a contestar a perspectiva de espaço central,
e
posicionando-se contra a cessão do território do Javari com argu-
mentos que reinventavam os padrões de limites, no caso, argu-
on
mentando que as nascentes do Javari só poderiam estar onde
az
sempre estiveram: “pelo menos, na altura de 10° 20’, isto é, no
paralelo do Madeira.”
Am
ay
[...] àquela porção de brasileiros, que em zona
longínqua, regam com seu sagrado sangue a idéia
Pl
patriótica de fazer permanecer brasileira a larga
faixa de terra ora ocupada pelo estrangeiro, ao sul
le
da chamada linha Cunha Gomes, que o governo
vê-se obrigado a respeitar por força de um tra-
g
tado. Por mais ilegal que pareça este proceder dos
oo
insurretos, traduz um belo movimento de patrio-
tismo e os sentimentos apurados do direito de
G
propriedade que, no dizer de von Thering, é um
prolongamento da personalidade mesma, parte
no
integrante do indivíduo, porque é a sua condição
de coexistência social. Homens que, arriscando
e
a vida, conseguiram construir habitação, consti-
tuir um lar, fundar uma propriedade em territó-
on
rios inexplorados, que possuíam como pedaços
da pátria, a cujas leis eram obedientes, não se
az
podem conformar a ver, de um momento para o
outro, perdidos todos os seus esforços inteligen-
Am
ay
governo do Amazonas, daí se propagou aos serin-
gais do Acre, fosse agitada na imprensa diária, até
Pl
que vieram morrer suas ondas na outra casa do
Congresso (CERQUEIRA, 1901).
g le
No centro de toda a controvérsia, encontrar-se-ia de novo
oo
o rio Javari: de supetão, as discussões se encaminhariam nos
meios geográficos até que se tornasse majoritária a ideia que o
G
rio explorado por Hoonholtz não era o Javari, mas apenas um
no
braço deste, o Jaquirana, sendo necessário, portanto, prosseguir
no esforço de encontrar o fugidio rio.
e
Sob tais circunstâncias, Dionysio Cerqueira, o ministro das
on
Relações Exteriores, enunciaria a posição do Governo em um
az
pronunciamento estranho e, no mínimo, enigmático:
Am
marco zero, uma vez que o rio Javari, o qual balizara as frontei-
le
ay
acompanhando a tendência do eleitorado, Rodrigues Alves pas-
saria a demonstrar simpatia pelos chamados “combatentes do
Pl
Acre”. Eleito, este reconstruiria a articulação do centro com a
le
periferia designando para o Ministério das Relações Exteriores
g
um indivíduo já reconhecido por suas ligações com as questões
oo
de limites: Rio Branco. Este, em 18 de Janeiro de 1903, faria um
comunicado à Bolívia no qual se informava que o Brasil passa-
G
ria a sustentar o que considerava a verdadeira interpretação do
no
Tratado de Ayacucho: a fronteira brasileira era o mítico nasce-
douro do Javari, “o paralelo de dez graus e vinte minutos”.
e
Remate de Males
on
az
Am
ay
últimos recursos conseguidos. Em seu leito de agonia, desani-
mado, resolveu batizar a localidade de Remate de Males.98
Pl
Após a reinvenção do espaço nacional e depois de finalmente
le
se haver descoberto que o rio Javari não estivera onde se acredi-
g
tara houvesse existido, Remate de Males mudaria de nome: passa-
oo
ria a se chamar Benjamim Constant, um dos patronos da República
G
– do Brasil.
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in
ig
or
ay
Pl
Os dromedários e as borboletas:
g le
uma análise da produção da espacialidade regional por
oo
meio da ‘Comissão Científica de Exploração’ do IHGB
G
(1855-1862)
no
e
Uma das características da construção do espaço nacional, no
século XIX, é que ela propicia as condições para a integração das
on
elites num sistema institucional central, uma vez que o reconhe-
az
cimento mesmo da existência do centro dependia da manuten-
Am
ay
se teria constituído uma argumentação que passava a dissociar
claramente os espaços norte e sul do Brasil. Evaldo Cabral de
Pl
Mello discerniu-a nos discursos das elites políticas do final do
le
Império, entendendo que teria sido motivada pela modificação
g
do equilíbrio inter-regional e intrarregional.99 Rosa Maria Godoy
oo
entenderia, por sua vez, que, a partir desta argumentação, fun-
damentar-se-ia uma identidade regional e uma narrativa territo-
G
rial nortista que se consolidaria a partir dos acontecimentos que
no
desencadearam o Congresso Agrícola do Recife de 1878.100 Nesse
raciocínio, a identidade nortista seria então caracterizada pela
e
perspectiva que a classe dominante teria do processo como um
on
todo, o que teria levado à elaboração de uma narrativa que articu-
az
lava o discurso regional à narrativa da unidade nacional enquanto
parte de uma estratégia que visava à manutenção de seus pri-
Am
99 MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império, 1871-1889. 2. ed. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1999.
O
ay
seu controle. Do mesmo modo, o tema da identidade se com-
põe tanto por metáforas que fazem referência a valentia, capa-
Pl
cidade de luta e a vontade de independência contra o coloni-
le
zador, contra Palmares, contra o Governo Central, quanto pela
g
uma generosidade e capacidade de convivência com as chamadas
oo
‘Províncias irmãs’. Portanto, a semântica do discurso nortista ou
pernambucanista evidenciaria uma retórica que conjuga a inserção
G
diferenciada no espaço nacional com um sentido de arrumação
no
regional preciso.
e
Neste estudo, pretendemos observar que o sucesso do dis-
curso regional não se deu a despeito dessa tensão evidente na
on
estrutura narrativa, mas porque essa tensão foi capaz de se arti-
az
cular com outras metáforas mais antigas que compunham um
saber sobre o espaço cuja semântica era partilhada e compre-
Am
ay
Examinaremos com o objetivo de articular esta operação com
a construção do território e da identidade nortista os discursos
Pl
acerca da instalação e dos resultados da ‘Comissão Científica
le
de Exploração do IHGB’, que percorreu as províncias do Ceará,
g
Piauí, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte entre 1859
oo
e 1861. O exame desses discursos se torna relevante na medida
em que nos permite observar as transformações da semântica e
G
da retórica que constituíram as metáforas utilizadas na inscri-
no
ção da Região em meio à operação da territorialização de seus
domínios na construção do espaço nacional, já que os discursos
e
foram emitidos em meio a sua produção e por meio dessa produção, o
on
que nos permite inferir que a transformação metafórica foi uma
az
resultante do acordo entre as partes.
Am
Fontes, 2004. Em relação à conexão dessas ideias com a construção do espaço nacio-
nal brasileiro ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção
O
ay
corografia do território passava a ser então uma das prerrogati-
vas do Instituto e que esse deveria passar a assumir uma partici-
Pl
pação mais ativa em relação à questão.102
le
Assim, em 1856, no bojo de mais um debate a respeito dos
g
trabalhos dos viajantes estrangeiros, seria possível formular-
oo
-se a proposta da formação de uma “comissão de engenheiros
G
e de naturalistas nacionais” que deveria ser destinada a explo-
rar “algumas das províncias menos conhecidas do Brasil”, tendo
no
ainda a missão complementar de formar uma coleção de espéci-
e
mes da fauna, da flora e da cultura indígena para enriquecer as
coleções do Museu Nacional.103
on
Por conseguinte, a proposta de formação da Comissão se
az
amparava num entendimento comum à maioria de seus mem-
Am
102 Veja-se, por exemplo, o ataque de Manoel Ferreira Lagos à obra de Castelnau: Revista
do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XVIII, 1855. p. 28. Suplemento.
O
103 REVISTA DO IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 11-12. Suplemento.
104 REVISTA DO IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 21. Suplemento.
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154 Cartografias Imaginárias
ay
Negócios do Império, problema este que se refletiu no corte de
suas verbas, causando os sucessivos adiamentos dos preparati-
Pl
vos para a viagem.105
le
Por conta disso, a Comissão Científica de Exploração somente
g
conseguiria chegar a Fortaleza em 1859, quando inauguraria uma
oo
atuação que seria depois lembrada pelos episódios escandalosos
G
ou cômicos, os quais, tornando-se destaque nos mexericos da
Província e da Corte, acabariam por lhe indispor o Governo e o
no
Parlamento.
e
No Senado, referia-se a ela como a ‘Comissão das Borboletas’,
on
lamentando-se a insensatez de se gastar tanto dinheiro público
apenas para que se juntassem tais insetos. Em Fortaleza apeli-
az
daram-na de ‘Expedição Defloradora’, entendendo ser o desre-
Am
ay
muito exíguas, mas cotejar o discurso de suas desventuras por
meio das suas metáforas dominantes, com outros discursos
Pl
acerca da Comissão feitos antes e após sua expedição.107 Desse
le
modo, entendemos ser possível reconstituir uma linguagem
g
sobre o espaço compreendida e manejada por certos falantes ide-
oo
ais os quais territorializavam seus domínios inscrevendo-os por
meio de suas gramáticas.108
G
Observe-se, como chave de compreensão que, mesmo sendo
no
cobrada a responsabilidade de seus integrantes, metade dos rela-
e
tórios científicos da Comissão jamais foi publicada, enquanto a
parte restante acabaria sendo censurada. Do mesmo modo que,
on
apesar de se alardear o custo da Expedição ou a exiguidade de
az
seus resultados, quase todos os espécimes coletados ficaram
abandonados no Museu Nacional, todo o material geográfico
Am
Comissão Científica de Exploração In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX,
le
108 A respeito da definição de falantes ideais, ver CHOMSKY, Noam. Rules and repre-
sentations. New York: Columbia University Press, 1978.
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156 Cartografias Imaginárias
ay
traem-se nessas metáforas e revelam seu sentido, “tal como o
inconsciente se revelaria num sonho ou num lapso”, como Paul
Pl
Ricoeur assinalou.109
le
A metáfora do dromedário foi constituída a partir de figuras
g
que evocam o desconhecimento e a inadaptação dos integrantes
oo
da Comissão ao espaço que buscam explorar, num sentido que
G
destitui de razão suas ações, remetendo-as ao domínio do desa-
tino, da loucura. Afinal, o dromedário era mesmo um animal
no
desconhecido nessa região e agredia a compreensão dos seus
e
naturais, sinuoso, espalhafatoso, estrangeiro. Se aproximarmos
essa metáfora aos discursos acerca da constituição da Comissão,
on
veremos que no IHGB, em 1856, quando se procuraram esta-
az
belecer os seus objetivos, acordou-se que estes deveriam girar
essencialmente em torno do problema da seca.
Am
109 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 228-229.
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Renato Amado Peixoto 157
ay
regularidade do fenômeno e, inclusive, estudando a viabilidade
do reflorestamento de certas áreas.
Pl
Assim, podemos entender que o saber sobre a região com-
le
preendia duas leituras, a primeira, concatenando o problema da
g
seca com a compreensão de um território cujo centro era o Ceará;
oo
a segunda, perspectivando o problema da seca a partir de uma
G
dimensão externa, o norte da África. Portanto, duas dinâmicas
de territorialização se sobrepunham, a primeira, depreendendo-
no
-se de uma perspectivação, por assim dizer, local, garantindo que
e
a Comissão já estivesse, desde sua origem, destinada a percor-
rer o itinerário do “flagelo da seca devastadora”. Por sua vez, a
on
segunda dinâmica decorria de uma perspectivação do centro, que
az
trai uma visão quase ultramarina ou colonial do território, com-
preensão esta que se adensa quando é sabida a preocupação dos
Am
os relatórios da Expedição.
á
st
ay
Essa questão fica mais clara na medida em que sabemos que
o preâmbulo de Gonçalves Dias fora anteriormente censurado
Pl
por conter várias críticas à Pasta do Império. A partir da leitura
le
dos relatórios das várias Seções da Comissão, podemos aventar
g
em que direção a tesoura da censura havia cortado: praticamente
oo
todos os relatórios apontam o problema político como o fato
amplificador dos problemas atribuídos à seca – descaso público,
G
mau emprego dos recursos técnicos – estes eram os verdadeiros
no
problemas da região.
e
Tais críticas aos políticos provinciais e ao governo imperial
provinham de uma casa, o IHGB, que há poucos anos havia dis-
on
cutido a contingência de se manter ou não atrelada à política
az
imperial e que finalmente optara por buscar se conformar aos
moldes de um instituto científico. Fora desse palco, os que se
Am
ay
Particularmente às mulheres, não se olvidará
apanhar a forma geral e constante dos músculos
Pl
externos que revestem o sacro e a bacia, porque
na forma dos glúteos há diferenças notáveis nas
le
raças, assim como na dos seios e sua colocação
mais aproximada ao externo, e mais vizinha das
g
clavículas: cumpre estudar as mudanças destes
oo
órgãos, que têm tão íntima relação com todos os
fenômenos de sua vida física (AS BASES...., 1856).
G
no
Ao mesmo tempo, como vimos, uma das principais orienta-
e
ções da Comissão dizia respeito à escrita de uma corografia que
on
pudesse ser contraposta aos relatos dos viajantes estrangeiros.
Nesse sentido, dever-se-ia avaliar a prosperidade ou decadência
az
das povoações e terrenos, recolher cópias de documentos, com-
Am
ay
que convergem para a condenação da Comissão. Perversão, cor-
rupção, incompetência, malícia, malversação dos bens e interes-
Pl
ses públicos – a operação conjugada destes sentidos somente se
le
tornou possível porque os interesses envolvidos estavam harmo-
g
nizados num saber sobre o espaço que definia domínios nítidos,
oo
estabelecia suas fronteiras e definia suas responsabilidades – um
Saber construído a partir da verdadeira tensão entre a inscri-
G
ção dos lugares do acordo e a territorialização dos lugares da
no
subalternidade.
e
Subalternidade esta que no último quartel do século XIX e
no alvorecer da República se explicitaria na produção de novas
on
espacialidades - as Regiões e os Estados, interligadas à Nação.
az
Não seria por acaso que numa das províncias do Norte as elites
políticas e intelectuais desenvolveriam uma digressão a partir do
Am
110 PEIXOTO, Renato Amado. ‘Espacialidades e estratégias de produção identitária no Rio Grande
O
do Norte no início do século XX’. In: Peixoto, Renato Amado. (Org.). Nas trilhas da represen-
tação: trabalhos sobre a relação história, poder e espaços. 1ed.Natal: EDUFRN, 2012, p. 11-36.
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Renato Amado Peixoto 161
ay
Pl
Por uma análise crítica das políticas de espaço:
g le
isto pode ser chamado de estudo do ‘Geopoder’?
oo
G
Em meados da década de 1970, Michel Foucault enveredaria
no
por uma série de investigações que tinham como fim compreen-
der as formas de experiência e de racionalidade a partir das quais
e
se teria organizado, no Ocidente, um poder sobre a vida, sobre a
on
população e os vivos, que denominaria de Biopoder e que corres-
az
ponderia, mais diretamente, aos seus trabalhos sobre a história
da sexualidade. Contudo, cabia naquele momento situar e arti-
Am
ay
do Biopoder como a insinuação de um contra-poder possível em
meio e a despeito de posições que se enunciavam no mesmo diá-
Pl
logo, como, por exemplo, àquelas defendidas por Gilles Deleuze.
le
Por conseguinte, os trabalhos de Foucault não pretendiam
g
compreender uma análise geral das estratégias de poder, mas
oo
antes perscrutar condições e problemas que teriam engendrado
G
mecanismos e que teriam possibilitado a sociedade instituir cer-
tas espécies e relações de poder. No que isto diz respeito à hipó-
no
tese do Biopoder, Foucault o faz a partir de um trabalho no qual
e
procuraria reconstituir, minimamente, uma história das tecnolo-
gias de segurança e uma história da governabilidade. Poder-se-ia
on
entender mesmo que a hipótese do Biopoder surgiria como um
az
deslizamento e consequente desraizamento de uma análise do
poder que se voltaria cada vez mais para um exame das suas
Am
111 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 21.
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Renato Amado Peixoto 163
ay
fundamental que o ser humano constitui uma espécie humana”
(FOUCAULT, 2008, p. 3).
Pl
Por conseguinte, embora esta análise parta do pressuposto
le
da instituição de subalternidades e para explicá-la busque tra-
g
balhar a construção histórica de discursos e narrativas de um
oo
racismo biológico-social e a constituição da política como uma
G
forma de guerra continuada por meio da construção de um dis-
positivo diplomático-militar concomitante ao da polícia, ela não
no
considera uma função continuada do político de inscrever e rein-
e
serir externamente à sociedade ocidental as relações de força esta-
belecidas. Nesse sentido, o desdobramento da análise a partir
on
de certa relação de força estabelecida, em dado momento, his-
az
toricamente precisável, na guerra e pela guerra, o Imperialismo,
simplesmente não era relevante para o constructo analítico de
Am
ay
que então se constituíam na década de 1970 como contrapode-
res. Portanto, se este trabalho pretende aventar um desdobra-
Pl
mento possível da análise foucaultiana, isso se faz porque acre-
le
ditamos que ela possa ser útil para o trabalho com a hipótese do
g
Biopoder, na medida que a investigação de uma função continu-
oo
ada do político de inscrever e reinserir externamente à sociedade
ocidental as relações de força, permite discutir também uma
G
genealogia desta função, inclusive, entendendo que se vão se
no
constituir mecanismos, poderes disciplinares e saberes que se
dobram para o interior das sociedades ocidentais, articulando-se
e
com aqueles expostos pela hipótese do Biopoder.
on
No século XIX, a partir dos insumos que geram o Imperialismo,
az
como, por exemplo, o racismo, o nacionalismo e a dinamização
dos dispositivos diplomático-militares, estabelecem-se sabe-
Am
ay
diplomático-militares, em cada um dos seus invólucros nacio-
nais, constituir razões de reprodução e disseminação destes
Pl
discursos sobre a própria sociedade. Falamos aqui não apenas
le
uma de uma nova reprodução, mas também de uma continuação
g
dos mecanismos descritos por Foucault no curso ‘Em defesa da
oo
sociedade’. Se esta continuidade foi tornada factível e operável
no exterior da sociedade, também as novas razões espaciais da
G
subalternidade seriam tornadas factíveis e operativas para o inte-
no
rior da sociedade.
e
Portanto, seria necessário, primeiro, entender a geopolí-
tica além daquilo com que esta se define a si mesma, ou seja, é
on
necessário entendê-la como um saber sobre o espaço e fazer uma
az
genealogia desses saberes que comporte tanto a sua escrita como
também sua inscrição. Segundo, é necessário estender o próprio
Am
ay
indivíduos que se desdobra para uma ressignificação dos usos e
invenções do cotidiano?
Pl
De todo modo, permitimo-nos observar que um campo
le
próprio de investigação poderia ser atribuído a este desdobra-
g
mento ou adensamento da hipótese citada, no caso, o estudo
oo
de dinâmicas de espaço desencadeadas a partir do governo, por
G
agentes do Estado, por integrantes da coligação diplomático-
-militar ou por institutos, organizações, grupos ou elemen-
no
tos que articulam ou exercem políticas de poder baseadas nos
e
saberes sobre o espaço.
on
Assim, primeiro, poder-se-ia investigar o saber sobre o
espaço em si, inquirindo o modo como este se legitima e se
az
institui, no caso, procurando entender as práticas e estratégias
Am
ay
Esse ponto, ainda, poderia ser mais afinado se considerado
o discernimento das relações localizadas de produção de
Pl
um certo pensamento em relação a uma dada performance,
le
considerado seu recorte espacial ou contexto histórico. Por
g
exemplo, a adoção de um pensamento sobre o espaço que possi-
oo
bilitou o plano naval dos grandes navios de batalha na Marinha
do início do século; a constituição do binômio segurança-desen-
G
volvimento na ESG da década de 1950; as inflexões na produção
no
do plano diretor de Natal, em 2007, se examinadas as discussões
e votações na sua Câmara dos Vereadores etc.
e
Terceiro, como uma investigação das práticas e estraté-
on
gias de inscrição das fronteiras e dos limites, englobando-
az
se aí tanto as disputas por território ou por uma territorializa-
ção de determinados espaços geográficos quanto às políticas de
Am
ay
território, por exemplo, o planejamento da ligação entre espaços
ou da incorporação de espaços; o pensamento e atividades liga-
Pl
das à centralização do poder, construção e mudança de capitais;
le
a análise das relações entre um centro e suas periferias; o estudo
g
dos movimentos e das descontinuidades estruturais sobre o
oo
espaço (fluxos econômicos, fluxos demográficos, movimentação
de capitais, tráfico de drogas, disseminação de doenças, fluxo
G
turístico) etc.
no
Em defesa deste campo de investigação do que gostaríamos
e
agora de chamar provisoriamente de Geopoder e de uma análise
crítica do espaço que considere os pressupostos antes alinhados,
on
repetindo, o discernimento de um saber sobre o espaço, a exten-
az
são desse discernimento às práticas derivadas deste e a sua arti-
culação com a hipótese do Biopoder, buscaremos agora trabalhar
Am
um caso de estudo.
na
de Janeiro.
st
ay
Paulo abrigaria aquele a quem a imprensa internacional havia
cognominado de ‘Rei Herói’, ‘Rei Cavaleiro’.
Pl
Ainda, segundo Epitácio, outro aspecto aumentava a “delica-
le
deza da missão”: cabia à guarnição do São Paulo “levar a longes
g
terras e a estranhas gentes uma impressão de nossa cultura e de
oo
nossa educação militar”. Ora, o São Paulo não serviria simples-
G
mente como o transporte dos soberanos da Bélgica, mas deveria
constituir-se também numa embaixada da pátria, representando
no
uma porção de sua identidade, porventura a mais elevada.
e
Assim, a tripulação do São Paulo deveria “demonstrar tudo
on
de excelente e nobre”, o que, segundo Epitácio Pessoa, não se
resumia apenas aos tesouros de cultura e aos predicados morais,
az
mas deveria incorporar também “o tato, a finura, as delicadezas
Am
portar os reis belgas de bote desde o cais até o São Paulo, já que
se encontrava fundeado ao largo do porto, para depois fazê-los
à
estender uma rampa desde o cais até a popa do navio, por onde
or
ay
Concluída a arriscadíssima manobra, diga-se de passagem,
contra o conselho dos próprios belgas, Tancredo voltou ao Rio
Pl
de Janeiro conduzindo Alberto I para receber o seguinte elogio
le
do Ministro da Marinha:
g
oo
Da ordem do Sr. presidente da República, reco-
mendo seja em ordem do dia desse Estado Maior,
G
elogiado, nominalmente, o capitão de mar e
guerra Tancredo de Gomensoro, comandante do
no
encouraçado ‘São Paulo’ [...]. A maneira superior-
mente distinta, o brilho incontestável, a disciplina
irrepreensível com que se conduziram oficiais e
e
marinheiros, para orgulho e satisfação do governo
on
brasileiro; não podiam ser de maior correção a
inteligência e a habilidade do comandante do
az
São Paulo e seus distintos comandados durante
a viagem de Ss. Mm. os reis dos belgas, gesto
Am
ay
na figura do ‘cavalheirismo’, mas também o que se reproduzia
continuamente na Marinha enquanto ideal de formação, perpas-
Pl
sando a educação formal dos aspirantes a oficiais, mantido pelo
le
recurso a uma cultura regimental e pelas rigorosas normas de
g
ingresso na Escola Naval, conforme ratificado pelo discurso do
oo
então Ministro da Marinha.
G
Essas normas, encimadas por impedimentos de ordem mone-
tária, fizeram possível que a Escola Naval permanecesse, mesmo
no
na República, enquanto um lugar de prestígio, e que o oficialato
e
da Marinha, através da cultura regimental, reverberasse con-
ceitos e ideias próprias. Mas esta cultura regimental, legado da
on
marinha portuguesa ao Império, fora reformada na República
az
por meio da constituição de uma narrativa mitológica que refor-
çaria o élan corporativo da Marinha. Nessa narrativa, enaltecia-
Am
ay
dos pampas gaúchos, quando, montado a cavalo e à frente de
suas tropas, morreu heroicamente em batalha pela honra da
Pl
corporação, transpassado pela lança de um estrangeiro, que não
le
hesitaria mesmo em profanar o seu cadáver.
g
Tal narrativa permitiria Rui Barbosa bradar, já em 1896:
oo
Saldanha da Gama, “o herói dos heróis, [...], o homem mais
G
completo e o caráter mais extraordinário que já conheci nesta
terra” (BARBOSA, 1946, p. 6).
no
Observe-se que as palavras ‘cavaleiro’, ‘cavalheiro’ e ‘herói’
e
utilizadas na descrição do martírio de Saldanha da Gama repe-
on
tem-se no núcleo do tema mitológico que fora construído pela
imprensa internacional à volta de Alberto I: este Rei, comandante
az
máximo das tropas belgas, para incutir bravura às suas tropas,
Am
ay
Logo, para se evitar uma conclusão sinóptica ou desenvolvi-
mentista se faz necessário investigar suas representações perspí-
Pl
cuas, superando-se as aparências da linguagem não por meio de
le
uma geologia lógica e integradora das palavras, mas através de
g
uma geografia lógica das palavras, que consistiria exatamente na
oo
investigação das suas conexões.
G
Segundo Wittgenstein, a explicação histórica como hipó-
tese de desenvolvimento seria apenas um modo de juntar os
no
dados: uma sinopse. Seria igualmente possível ver os dados em
e
sua relação mútua e sintetizá-los em um modelo geral sem que
isso tenha a forma de uma hipótese sobre o desenvolvimento
on
temporal. Contudo, faltar-nos-ia tanto uma compreensão de sua
az
gramática quanto uma ‘visão sinóptica’ [Übersich], uma visão
global do uso de nossas palavras.
Am
ção frente sua relação formal. Portanto, este trabalho não visaria
or
ay
conexões entre casos históricos procurando uma representação
perspícua do uso das palavras que nos permita oferecer uma
Pl
alternativa possível à ideia do desenvolvimento e da evolução
le
histórica para o estudo de certos problemas.
g
Por conseguinte, no caso das falas de Epitácio Pessoa e do
oo
Ministro da Marinha, pode-se perceber que coexistem dois jogos
G
de linguagem em relação às palavras apontadas, o primeiro
expressando a relação de uma imagem que a elite brasileira faz
no
de si com o seu lugar na sociedade; o segundo, sobrepondo ao
e
primeiro uma relação desta elite com os oficiais da Marinha, reco-
nhecendo um grupo que lhe está ligado e suas especificidades.
on
Já no caso do mitema do rei Alberto essas palavras relacio-
az
nam um jogo de linguagem complexo onde a ideia de Nação e o
Am
semelhança de família.
a
ay
terra e a cavalo contra elementos especialistas no mesmo tipo de
luta. Também a dedicação a vida militar deixa de ser questionada
Pl
na medida em que não se discute o engajamento pregresso de
le
Saldanha na vida militar.
g
A partir das várias biografias de Saldanha, depreende-se um
oo
indivíduo dominado pela figura paterna, condição esta que se
G
sobrepõe a sua dedicação à Marinha conforme pode ser enten-
dido pela quantidade de sinecuras desfrutadas e barganhadas
no
por Saldanha em nome da pretensão de atender aos anseios de
e
seu pai, como era, por exemplo, o caso da disputa por comendas
e pelo privilégio de acompanhar as missões oficiais do governo
on
brasileiro na Europa. az
No mesmo sentido, Saldanha se fez capaz de abandonar a
Am
ay
Finalmente, no caso do mitema de Saldanha da Gama, resta
apontar que as palavras-núcleo estão também ligadas à constru-
Pl
ção de um espaço de solidariedade corporativa decorrente tanto
le
do desfecho da Revolta da Armada quanto a uma fronteira de
g
disputa da identidade que se devia definir exatamente no mesmo
oo
local: o São Paulo era o mesmo navio que menos de dez anos antes
fora considerado o mais poderoso barco de guerra do mundo e
G
onde, ainda assim, grassara a Revolta da Chibata.
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
a le
in
ig
or
O
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Renato Amado Peixoto 177
ay
Pl
Espaços imaginários:
g le
o historiador dos espaços como cartógrafo
oo
G
Pensar o espaço não é apenas entender sua representação,
no
considerar sua inscrição, perscrutar sua construção; é também
e
necessário buscar suas conexões. Não custa relembrar que o sen-
tido atribuído por Deleuze à afirmação de Foucault: “eu sou um
on
cartógrafo” (DELEUZE, 1988, p. 53),112 decorre da concepção de
az
uma cartografia extensiva a todo o campo social, no que se resul-
Am
112 DELEUZE, Gilles. Um novo cartógrafo. In: Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
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178 Cartografias Imaginárias
ay
caracterizada como um investimento em torno da exploração de
temas que contextualizem a perspectiva poder/conhecimento a
Pl
partir de uma definição do que poderíamos chamar de contralo-
le
cais. Terceiro, um desgaste da proposta foucaultiana de histori-
g
cização do espaço, na medida em que um dos princípios mesmo
oo
do que podemos chamar de ‘heterotopologia’, o estudo das hete-
rotopias, é o universalismo, que, a nosso ver, iria de encontro à
G
própria premissa histórica, condicionando-a e restringindo-a.113
no
Talvez a chave para se ultrapassar aquela compreensão e
e
minimizar os problemas da análise foucaultiana do espaço seja,
primeiro, contextualizar a questão do espaço em relação à pró-
on
pria obra de Foucault; segundo, a partir dessa contextualização,
az
buscar, em seus escritos e observações, um viés conceitual alter-
nativo que reoriente a compreensão daquela análise.
Am
Casey. CASEY, Edward S. The fate of place. Berkeley: University of California Press,
1998, p. 296-301.
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Renato Amado Peixoto 179
ay
para essa escrita, não existiu um consenso a respeito de contro-
les que desclassifiquem ou excluam obras ou sujeitos, ou seja,
Pl
pode-se dizer que existiam outras razões possíveis. Desse modo,
le
é possível observar, desde o século XVII, a inserção mesma
g
dessa experimentação da desrazão ou de razões outras na carto-
oo
grafia e a possibilidade de inscrição, validação e disseminação
do que poderíamos chamar de geografias pessoais e mapas da
G
imaginação.
no
No segundo caso, entendemos que a problematização de
e
uma discussão em torno da cartografia deve ser feita menos em
função da sua escritura e mais em torno dos processos cogniti-
on
vos que a originam e dos métodos em que se investe sua ins-
az
crição. Para se pensar um espaço é necessário considerar antes
um espaço imaginário onde se produz uma linguagem através de
Am
114 ARTAUD, Antonin. A encenação e a metafísica. In: O teatro e seu duplo. São Paulo:
Max Limonad, 1984, p. 62.
O
115 ARTAUD, Antonin. Cartas sobre a linguagem. In: O teatro e seu duplo. São Paulo:
Max Limonad, 1984, p. 141-142.
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180 Cartografias Imaginárias
ay
ser acompanhado através das investigações da relação entre a
literatura e a linguagem feitas por Foucault e, especialmente,
Pl
pelo remetimento dessas às suas observações sobre a vida e obra
le
de Antonin Artaud.
g
oo
As referências a Artaud na obra de Foucault
G
no
As referências a Artaud abrangem um longo período de pelo
menos dezessete anos, desde 1961 até 1978, podendo ser encon-
e
tradas em vários dos artigos e conferências de Foucault assim
on
como em algumas de suas principais obras, especialmente em
‘As palavras e as coisas’, na ‘História da Loucura’ e em ‘O nasci-
az
mento da clínica’. Como essas referências acompanham o deslo-
Am
ay
A primeira referência a Artaud já é um termômetro seguro
da importância que Foucault lhe atribui, uma vez que o insere
Pl
junto a Nerval no restrito rol dos criadores que através da lin-
le
guagem romperam com uma tradição de racionalidade ao refazer
g
a experiência da loucura.116 Essa importância seria ainda mais
oo
alargada na medida em que a obra de Artaud, juntamente com a
de Nietzsche, foi entendida como um dos marcos delimitadores
G
da clivagem entre Razão e desrazão na cultura ocidental.117 Mais,
no
o centro mesmo do argumento final da ‘História da Loucura’ se
constituiria em torno da tensão entre a arte e a loucura na obra
e
de Artaud, definida pela expressão “palavras jogadas contra a
on
ausência fundamental da linguagem [...]”, servindo ainda para
az
alicerçar o conceito de “ausência de obra” que Foucault utilizaria
para melhor exemplificar a ideia de ruptura.118
Am
116 FOUCAULT, Michel. La folie n’existe que dans une societé. 1961 In: ________. Dits
in
118 FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Pespectiva, 1978, pp. 528-530.
119 FOUCAULT, Michel. Guetter le jour qui vient. 1963, in ______. Dits et écrits. Tomo
I. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p. 266.
O
120 FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence d’ouvre. 1964. In: Dits et écrits. Tomo I.
Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 412-413.
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182 Cartografias Imaginárias
ay
Esse entendimento da obra de Artaud enquanto uma lin-
guagem em movimento, uma “linguagem experimentada e per-
Pl
corrida como linguagem”, consolidar-se-ia em ‘As palavras e
le
as coisas’ quando Foucault a discerniria como “uma espécie de
g
contradiscurso”, junto a outras obras nas quais julgava poder
oo
discernir uma “autonomia literária” capaz de impelir “às mar-
gens onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue”.121
G
Entretanto, na obra de Artaud, mais do que em outros autores,
no
essa linguagem era entrevista como uma ação, um ato perigoso,
“recusada como discurso e retomada na violência plástica do
e
choque e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade
on
do pensamento, à carne”.122 Por conseguinte, a transformação do
az
pensamento seria operada por uma sublimação da energia mate-
rial, capaz de sufocar a linguagem discursiva e aniquilar o sujeito
Am
1995. p. 60-400.
st
123FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, 1966. In: _____. Dits et écrits. Tomo I.
Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 522; 525.
a
écrits. Tomo II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 412-413; Ver o paralelo entre
Freud e Artaud em FOUCAULT, Michel. Theatrum philosophicum, 1970. In: ______.
ig
ay
A cartografia dos espaços de Artaud
Pl
Por conseguinte, a materialização da linguagem do
le
pensamento se constitui num espaço de contínua tensão entre
g
a razão e a desrazão que pode ser problematizada por meio da
oo
metáfora cartográfica. Neste sentido, é necessário centralizar
nosso argumento sobre uma das proposições iniciais deste ensaio,
G
de modo a exemplificá-la, no caso, a ideia de que nos mapas
no
não existiu uma exclusão total da desrazão, tal como Foucault
observou na sua ‘História da Loucura’ ou em relação à Literatura
e
desde a época clássica até a modernidade, mas a convivência de
on
várias razões.127 Para isso nos valeremos de alguns exemplos
selecionados de modo a cobrir alguns elementos essenciais
az
tanto para a compreensão do espaço como para a construção
Am
127 Ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacio-
O
nal brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-
(Doutorado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
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184 Cartografias Imaginárias
ay
Cada pergaminho destinava-se a permitir o acompanhamento
de um itinerário, que partia de uma cidade ou povoado situado
Pl
sempre na parte de baixo no extremo esquerdo da folha. Essa
le
rota ascendia então ao topo do pergaminho para reaparecer na
g
parte de baixo do pergaminho seguinte, daí ascendendo nova-
oo
mente e continuando sucessivamente, até terminar no topo do
pergaminho situado no extremo da página direita.
G
no
Mapa Ogilby
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
le
ay
orientada para o norte, em Ogilby cada pergaminho imaginário
possuía uma orientação diferente, novamente transformada nos
Pl
pergaminhos seguintes. Cada um desses pergaminhos imaginá-
le
rios buscava detalhar os elementos que podiam servir enquanto
g
marcos para suas narrativas peculiares: alguns enfatizavam as
oo
estradas, outros destacavam os montes, rios, florestas e pontes,
outros ressaltavam ainda cidades e vilas. O modelo de Ogilby
G
não revelava apenas fragmentos do espaço, mas, através da uti-
no
lização do mistério e do suspense, elaborava espaços em perma-
nente fruição.
e
A ideia de uma produção do espaço autônoma e múltipla
on
pode ser mais aprofundada se entendermos ainda a existência de
az
‘lugares’ produzidos, os ‘espaços imaginários’, e as ‘localizações’
que interagiriam com aquele através de sua inscrição no mapa.
Am
ay
Mapa da Nova Harmonia
Pl
g le
oo
G
no
e
on
az
Fonte: WEINGARTNER (1832).
Am
ay
Veja-se este exemplo: no mapa ‘Neu-York’ de Melissa Gould,
os topônimos da cidade de Nova Iorque estão grafados em ale-
Pl
mão e a partir deste são ‘localizados’ no mapa da cidade cer-
le
tos lugares típicos da Alemanha do Entre-guerras. No caso, a
g
autora, filha de judeus austríacos que haviam se exilado nos
oo
Estados Unidos na década de 1930, pretende partilhar a vivência
do preconceito que experimentou durante sua residência de dois
G
anos na Berlim dos anos 80 e com isso motivar os judeus de
no
Nova Iorque para ações junto à opinião pública que informem
a sobrevivência daquilo que motivou a imigração de seus pais e
e
também o Holocausto.
on
az
Mapa ‘Neu-York’
Am
na
a
nd
ve
à
á
st
ale
in
ig
or
O
ay
Por outro lado, o mapa ‘A New Yorker’s idea of United States
of America’, produzido para a Feira Mundial de Nova Iorque de
Pl
1939 explora o provincianismo dos nova-iorquinos através de
le
uma distorção que enfatiza os espaços mais valorizados por eles
g
e da inscrição de nomes incorretos ou fictícios, por exemplo,
oo
‘Mineápolis’ e ‘Indianápolis’ são grafadas nesse mapa como ‘The
twin cities’. Se no primeiro exemplo, a transliteração pode ser
G
entendida enquanto a inscrição de um lugar, um ‘espaço da ima-
no
ginação’ resultante da autonomização da linguagem, no segundo,
a transliteração pode ser entendida como a representação de um
e
espaço pela disseminação dos mapas das imaginações e das geo-
on
grafias pessoais que em um dado momento extrapolaram seus
az
limites para constituir uma gramática e uma sintaxe cartográfica.
‘Local’, ‘Lugar’ e ‘Espaço’ resultariam, portanto, de uma con-
Am
ay
Mapa ‘A New Yorker’s Idea of United States’
Pl
gle
oo
G
no
e
on
az
Am
na
ay
Mapa do Oceano
Pl
g le
oo
G
no
e
on
az
Am
na
a
nd
ve
Mercator,
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Renato Amado Peixoto 191
ay
Trópicos, Zonas, e Linhas de Meridiano?
Então o Sineiro gritou: e a tripulação responderia
Pl
‘Eles são apenas sinais convencionais!
g le
Outros mapas são do mesmo formato, com suas
oo
ilhas e cabos!
Mas nós temos nosso bravo Capitão para agradecer:
G
(E a tripulação protestaria) Ele nos trouxe o melhor –
no
Um perfeito e absoluto vazio!
e
Isto era maravilhoso, sem dúvida; Mas eles rapida-
on
mente descobriram az
Que o Capitão que eles acreditavam tanto
Tinha apenas uma noção para cruzar o oceano,
Am
128 The Bellman’s Speech. In: CARROLL, Lewis. The Hunting of the Snark: An Agony
in Eight Fits. Adelaide: The University of Adelaide Library, 2007.
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192 Cartografias Imaginárias
ay
da crueldade estaria ligada a uma ética da crueldade, onde caberia a
cada um a invenção de uma linguagem própria e múltipla, lapi-
Pl
dada por meio de uma boca-ânus que suga e esvazia. Ao car-
le
tógrafo caberia, portanto, a tarefa de investigar a invenção de
g
uma linguagem que constrói espaços por meio do excremento,
oo
espaços-sêmen que engendram e se multiplicam – espaços imagi-
nários – ao mesmo tempo que mergulha e bebe desses líquidos.
G
Foucault (1994, p. 762), aquele que fala sobre espaços sepa-
no
rados, as ‘heterotopias’, talvez ecoando Lewis Carroll, escreveria
e
no final de seu famoso texto sobre o espaço que, “nas civiliza-
ções sem barcos os sonhos se escoam”.
on
No final de outro texto, igualmente famoso, Antonin Artaud
az
descreve um espaço igualmente separado: seu corpo.
Am
“O espaço do infinito
na
Não sei
Mas
a
Sei que
nd
o espaço
ve
o tempo
a dimensão
à
o devir
á
o futuro
st
o destino
le
o ser,
o não-ser,
a
in
o eu,
ig
o não-eu
or
que é algo,
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Renato Amado Peixoto 193
ay
uma só coisa
que é algo
Pl
e que sinto
le
por ela querer
g
SAIR:
oo
a presença
da minha dor
G
do corpo,
no
a presença
ameaçadora
e
infatigável
on
do meu corpo.”129 az
E este não é o corpo sem órgãos de que nos fala Gilles
Deleuze, pois a linguagem de Artaud - entrevista por Foucault
Am
129 ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: ______. Escritos de
Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 157-158.
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Sobre o autor
g le
oo
Renato Amado Peixoto é Professor Associado na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Doutor em História
G
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
no
Líder da Rede de Pesquisa História e Catolicismo no Mundo
Contemporâneo (RHC), dos grupos de pesquisa História,
e
Catolicismo e Política no Mundo Contemporâneo (UFMT)
on
e Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços
az
(UFRN). Integrado enquanto pesquisador à Red de Estudios
de Historia de la Secularización y la Laicidad (REDHISEL/
Am
ay
Pl
le
g
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G
no
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on
az
Am
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