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MÓDULO III – Recursos Básicos para o Diagnóstico

A entrevista clínica
Marcelo Tavares
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A entrevista clínica não é uma técnica úni-
ca. Existem várias formas de abordá-la,
conforme o objetivo específico da entrevista e
Por técnica entendemos uma série de pro-
cedimentos que possibilitam investigar os te-
mas em questão. A investigação possibilita al-
a orientação do entrevistador. Os objetivos de cançar os objetivos primordiais da entrevista,
cada tipo de entrevista determinam suas es- que são descrever e avaliar, o que pressupõe o
tratégias, seus alcances e seus limites. Neste levantamento de informações, a partir das
capítulo, vamos definir a entrevista clínica, exa- quais se torna possível relacionar eventos e
minar seus elementos e diferenciar os tipos em experiências, fazer inferências, estabelecer con-
que podem ser classificadas. Em seguida, dis- clusões e tomar decisões. Essa investigação se
cutiremos alguns aspectos das competências dá dentro de domínios específicos da psicolo-
essenciais do entrevistador para a condução gia clínica e leva em consideração conceitos e
de uma entrevista clínica. Concluímos com conhecimentos amplos e profundos nessas
uma reflexão sobre a ética dos temas discu- áreas. Esses domínios incluem, por exemplo, a
tidos. psicologia do desenvolvimento, a psicopatolo-
gia, a psicodinâmica, as teorias sistêmicas. As-
pectos específicos em cada uma dessas áreas
DEFININDO A ENTREVISTA CLÍNICA podem ser priorizados como, por exemplo, o
desenvolvimento psicossexual, sinais e sinto-
Em psicologia, a entrevista clínica é um con- mas psicopatológicos, conflitos de identidade,
junto de técnicas de investigação, de tempo relação conjugal, etc.
delimitado, dirigido por um entrevistador trei- Afirmamos ainda que a entrevista é parte
nado, que utiliza conhecimentos psicológicos, de um processo. Este deve ser concebido, ba-
em uma relação profissional, com o objetivo sicamente, como um processo de avaliação,
de descrever e avaliar aspectos pessoais, rela- que pode ocorrer em apenas uma sessão e ser
cionais ou sistêmicos (indivíduo, casal, família, dirigido a fazer um encaminhamento, ou a
rede social), em um processo que visa a fazer definir os objetivos de um processo psicotera-
recomendações, encaminhamentos ou propor pêutico. Muitas vezes, o aspecto avaliativo de
algum tipo de intervenção em benefício das uma entrevista inicial confunde-se com a psi-
pessoas entrevistadas. Convém agora exami- coterapia que se inicia, devido ao aspecto te-
nar os elementos dessa definição. rapêutico intrínseco a um processo de avalia-

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ção e ao aspecto avaliativo intrínseco à psico- emergência de novos conteúdos na mente do
terapia. Outras vezes, o processo de avaliação sujeito. O entrevistador deve estar atento aos
é complexo e exige um conjunto diferenciado processos no outro, e a sua intervenção deve
de técnicas de entrevistas e de instrumentos e orientar o sujeito a aprofundar o contato com
procedimentos de avaliação, como, por exem- sua própria experiência. Em síntese, concluí-
plo, além da entrevista, os instrumentos pro- mos que todos os tipos de entrevista têm al-
jetivos ou cognitivos, as técnicas de observa- guma forma de estruturação na medida em que
ção, etc. A importância de enfatizar a entrevis- a atividade do entrevistador direciona a entre-
ta como parte de um processo é de poder vis- vista no sentido de alcançar seus objetivos.
lumbrar o seu papel e o seu contexto ao lado Entrevistador e entrevistado têm, nesse pro-
de uma grande quantidade possível de proce- cesso, atribuições diferenciadas de papéis. A
dimentos em psicologia. A entrevista clínica é função específica do entrevistador coloca a
um procedimento poderoso e, pelas suas ca- entrevista clínica no domínio de uma relação
racterísticas, é o único capaz de adaptar-se à profissional. É dele a responsabilidade pela
diversidade de situações clínicas relevantes e condução do processo e pela aplicação de co-
de fazer explicitar particularidades que esca- nhecimentos psicológicos em benefício das
pam a outros procedimentos, principalmente pessoas envolvidas. É responsabilidade dele
aos padronizados. A entrevista é a única técni- dominar as especificidades da técnica e a com-
ca capaz de testar os limites de aparentes con- plexidade do conhecimento utilizado. Essa res-
tradições e de tornar explícitas características ponsabilidade delimita (estrutura) o processo
indicadas pelos instrumentos padronizados, em seus aspectos clínicos. Assumir essas res-
dando a eles validade clínica (Tavares, 1998), por ponsabilidades profissionais pelo outro tem
isso, a necessidade de dar destaque à entrevista aspectos éticos fundamentais; significa reco-
clínica no âmbito da avaliação psicológica. nhecer a desigualdade intrínseca na relação,
Definimos ainda a entrevista clínica como que dá uma posição privilegiada ao entrevis-
tendo a característica de ser dirigida. Afirmar tador. Essa posição lhe confere poder e, por-
que a entrevista é um procedimento dirigido tanto, a responsabilidade de zelar pelo inte-
pode suscitar alguns questionamentos. Mes- resse e bem-estar do outro. Também é do en-
mo nas chamadas entrevistas “livres”, é neces- trevistador a responsabilidade de reconhecer
sário o reconhecimento, pelo entrevistador, de a necessidade de treinamento especializado e
seus objetivos. Como afirmamos antes, os ob- atualizações constantes ou periódicas.
jetivos de cada tipo de entrevista definem as O papel principal da pessoa entrevistada é
estratégias utilizadas e seus limites. É no intui- o de prestar informações. A entrevista pressu-
to de alcançar os objetivos da entrevista que o põe pelo menos uma pessoa que esteja em
entrevistador estrutura sua intervenção. Isso condições de ser um participante colaborati-
nos parece verdadeiro, inclusive para os psicó- vo, e o sucesso da entrevista depende do seu
logos que consideram que é o sujeito entrevis- modo de participação. Essa dependência tor-
tado quem conduz o processo. O entrevista- na-se mais evidente nos casos de participantes
dor precisa estar preparado para lidar com o resistentes ou não voluntários. O entrevistador
direcionamento que o sujeito parece querer dar tem a necessidade de conhecer e compreen-
à entrevista, de forma a otimizar o encontro der algo de natureza psicológica, para poder
entre a demanda do sujeito e os objetivos da fazer alguma recomendação, encaminhamen-
tarefa. Assim, quando o entrevistador confron- to ou sugerir algum tipo de atenção ou trata-
ta uma defesa, empaticamente reconhece um mento (intervenção). Nos casos em que pare-
afeto ou pede um esclarecimento, ele está cer- ce haver dificuldades de levantar a informação,
tamente definindo direções. Até mesmo a ati- é bem provável que o entrevistador tenha de
vidade interpretativa na associação livre ou a centrar sua atenção na relação com a pessoa
resposta centrada no cliente do psicólogo dá entrevistada, para compreender os motivos de
uma direção, facilitando ou dificultando a sua atitude. Geralmente, essas dificuldades

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estão associadas a distorções relacionadas a a prática supervisionada é reconhecida como
pessoas ou instituições interessadas na avalia- melhor estratégia para a consolidação dessa
ção, a idéias preconcebidas em relação à psi- aprendizagem.
cologia ou à saúde mental e a fantasias incons- Supõe-se que a entrevista clínica deve ter
cientes vinculadas a ansiedades pessoais acer- como beneficiado direto as pessoas entrevis-
ca do processo. Tudo isso gera questões trans- tadas. Por outro lado, isso nem sempre é claro
ferenciais importantes, que devem ser esclare- nos dias de hoje, quando os psicólogos têm
cidas adequadamente. Essas formas de resis- que se haver, cada vez mais, com terceiros en-
tência podem atrapalhar, mas, quando escla- volvidos, como juízes, empregadores, empre-
recidas, se transformam em uma das mais im- sas de seguros, etc. Quando uma entrevista
portantes fontes de compreensão da dinâmi- clínica ocorre em uma empresa, por exemplo,
ca do sujeito. o entrevistador deve estar ciente dos conflitos
A complexidade dos procedimentos espe- de interesse e das questões éticas envolvidas,
cíficos de cada tipo de entrevista clínica, dos mesmo quando a entrevista tem apenas a fi-
conhecimentos psicológicos envolvidos e dos nalidade de encaminhamento. Quando a en-
aspectos relativos à competência do entrevis- trevista envolve interesses múltiplos, a defini-
tador, necessários para sustentar uma relação ção de quem são os seus clientes, a clareza de
interpessoal de investigação clínica, requerem suas demandas e a explicitação dos conflitos
treinamento especializado. O resultado de uma poderão ajudar o profissional a estabelecer a
entrevista depende largamente da experiência sua conduta relativa a cada um deles. Nesse
e da habilidade do entrevistador, além do do- exemplo, parece necessário definir em que sen-
mínio da técnica. Alguns temas abordados na tido a empresa é cliente, e que demandas são
entrevista clínica são, pela sua própria nature- apropriadas ou não.
za, difíceis ou representam tabus culturais. Criar A necessidade de delimitação temporal pa-
um clima que facilite a interação nesse contex- rece-nos óbvia, visto que não faz sentido uma
to e a abertura para o exame de questões ínti- avaliação se dela não resulta alguma recomen-
mas e pessoais talvez seja o desafio maior da dação. Essa delimitação não requer, necessa-
entrevista clínica. Essa dependência da expe- riamente, um único encontro. Mesmo quando
riência aproxima a condução de entrevistas da o processo requer encontros em mais de uma
arte – embora ela seja corretamente definida ocasião, no processo de entrevista, não há um
como técnica. A necessidade de ensinar a rea- contrato de continuidade como em um pro-
lizar uma entrevista clínica coloca, portanto, cesso terapêutico, embora, freqüentemente, a
desafios para quem deseja transmitir esses co- entrevista clínica resulte em um contrato tera-
nhecimentos e habilidades. Pequenos detalhes, pêutico. A delimitação temporal entre a entre-
quando desconsiderados, levam a conseqüên- vista inicial e o processo terapêutico tem a fun-
cias não desejadas. Muitas vezes, o profissio- ção de explicitar as diferenças de objetivos dos
nal só se dá conta da importância desses deta- dois procedimentos e dos papéis diferenciados
lhes quando algum problema está configura- do profissional nas duas situações. Essa deli-
do. O treinamento tem o intuito de antecipar mitação define o setting e fortalece o contrato
e evitar essas situações e procura apresentar e terapêutico, que pode ser consolidado como
discutir vários aspectos práticos dos procedi- conclusão da(s) entrevista(s) inicial(is). Essas
mentos. Embora muitas “dicas” possam ser recomendações, o encaminhamento ou a defi-
dadas, em última instância, é a qualidade da nição de um setting e contrato terapêutico
formação clínica e a sensibilidade do avaliador podem ocorrer integrados como parte de uma
para os aspectos relacionais – por exemplo, a única sessão de entrevista ou podem ser reser-
capacidade de trabalho na contratransferên- vados para uma entrevista designada exclusi-
cia – que o assistirão nos momentos mais difí- vamente para este fim (entrevista de devolu-
ceis e inesperados. Além do treinamento for- ção), demarcando, de maneira mais precisa, o
mal nos cursos de graduação e especialização, término do processo de avaliação.

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TIPOS E OBJETIVOS DA ENTREVISTA CLÍNICA demanda e espera um retorno que o auxilie. A
utilidade das entrevistas clínicas depende, por-
Classificar os tipos de entrevista não é uma tanto, do espaço que o procedimento deixa
tarefa fácil, pois exige a consideração de eixos para as manifestações individuais e requer ha-
classificatórios e o exame sistemático dos ti- bilidades e conhecimentos específicos que per-
pos principais de técnicas de entrevistas. Essa mitam ao entrevistador conduzir adequada-
tarefa se estende além dos objetivos deste ca- mente o processo. Essa especificidade clínica
pítulo, mas indicaremos aqui algumas direções. favorece os procedimentos semi-estruturados
Vamos levar em consideração dois eixos: se- e de livre estruturação.
gundo a forma (estrutura) e segundo o obje- É tradição se referir à entrevista de livre es-
tivo. truturação como entrevista livre ou não-estru-
turada. Temos argumentado que toda entre-
vista supõe, na verdade exige, alguma forma
CLASSIFICAÇÃO QUANTO AO ASPECTO de estruturação. É necessário que se conheçam
FORMAL suas metas, o papel de quem a conduz e os
procedimentos pelos quais é possível atingir
Quanto ao aspecto formal, as entrevistas po- seus objetivos. Estes e outros elementos pró-
dem ser divididas em estruturadas, semi-estru- prios das entrevistas lhes conferem uma estru-
turadas e de livre estruturação. As entrevistas tura, mesmo que o entrevistador não a reco-
estruturadas são de pouca utilidade clínica. A nheça explicitamente. Por esse motivo, referi-
aplicação desse tipo de entrevista é mais fre- mo-nos a esse tipo de entrevista como entre-
qüente em pesquisas, principalmente nas si- vista de livre estruturação. A grande maioria
tuações em que a habilidade clínica não é ne- das técnicas de entrevista divulgadas em psi-
cessária ou possível. Sua utilização raramente cologia clínica, desde seus primórdios, enqua-
considera as necessidades ou demandas do dra-se nesse tipo de entrevista. As técnicas de
sujeito avaliado – usualmente, ela se destina entrevista vêm sendo gradativamente especi-
ao levantamento de informações definidas ficadas, de modo que sua estrutura pode ser
pelas necessidades de um projeto. Um exem- mais claramente definida, a partir do desen-
plo típico é a entrevista epidemiológica, que, volvimento das técnicas de avaliação e trata-
como um censo, requer que o entrevistador mento, particularmente com o surgimento de
cubra um grande número de questões em pou- manuais psicoterapêuticos (Luborsky, 1984,
co tempo. Nela, não se pode exigir do entre- 1993; Sifneos, 1993), manuais diagnósticos
vistador experiência ou conhecimento clínico, (APA, 1995; Spitzer, Gibbon, Skodol et alii,
pelos altos custos envolvidos no processo. Este 1994) e critérios de seleção de pacientes (Da-
é o caso da Diagnostic Interview Schedule (DIS); vanloo, 1980; Malan, 1980; Marmor, 1980; Si-
(Robins, Helzer, Croughan et alii, 1981). As en- fneos, 1980, 1993). Tomando-se os objetivos
trevistas estruturadas privilegiam a objetivida- de uma técnica de livre estruturação, é possí-
de – as perguntas são quase sempre fechadas vel desenvolver alguma forma semi-estrutura-
ou delimitadas por opções previamente deter- da de se obter o mesmo tipo de informação.
minadas e buscam respostas específicas a ques- Historicamente, é assim que têm surgido as en-
tões específicas. Quando respostas abertas são trevistas semi-estruturadas, como é o caso
possíveis, geralmente são associadas a esque- da Entrevista Clínica Estruturada para o DSM-
mas classificatórios operacionalizados, que fa- IV (SCID) (Spitzer, Williams, Gibbon et alii, 1992;
cilitam a tradução da informação em catego- Tavares, 1997, 2000b). Esta avalia um conjun-
rias do tipo objetivo. to de 44 psicopatologias mais comuns, facili-
Nas entrevistas clínicas, desejamos conhe- tando o diagnóstico diferencial nos casos mais
cer o sujeito em profundidade, visando a com- difíceis. Um exemplo mais específico é a Positi-
preender a situação que o levou à entrevista. ve and Negative Symptoms for Schizophrenia
Nesse caso, o entrevistado é porta-voz de uma (PANSS) (Kay, Fiszbein & Opler, 1987), uma téc-

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nica de avaliação semi-estruturada que permi- nham, aparentemente, o mesmo objetivo, eles
te discriminar graus de gravidade e compro- atuariam de maneiras completamente diferen-
metimentos na esquizofrenia. Outro exemplo tes. O primeiro exploraria o desenvolvimento
interessante de semi-estruturação é a Entrevista precoce e os processos inconscientes, defesas
Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada e conflitos predominantes, enquanto o segun-
(EDAO), de Ryad Simon (1989, 1993), uma en- do procuraria determinar as situações-proble-
trevista de avaliação de fundamentação psico- ma e examinar os antecedentes que mantêm o
dinâmica. comportamento na atualidade. Cada um defi-
As entrevistas semi-estruturadas são assim niria objetivos específicos para os seus proce-
denominadas porque o entrevistador tem cla- dimentos.
reza de seus objetivos, de que tipo de infor- Para abordar essa questão, é necessário dis-
mação é necessária para atingi-los, de como tinguir dois níveis de objetivo. A finalidade
essa informação deve ser obtida (perguntas maior de uma entrevista é sempre a de descre-
sugeridas ou padronizadas), quando ou em que ver e avaliar para oferecer alguma forma de
seqüência, em que condições deve ser investi- retorno. Este objetivo último é comum a todas
gada (relevância) e como deve ser considerada as formas de entrevista clínica, conforme nos-
(utilização de critérios de avaliação). Além de sa definição. Todas elas requerem uma etapa
estabelecer um procedimento que garante a de apresentação da demanda, de reconheci-
obtenção da informação necessária de modo mento da natureza do problema e da formula-
padronizado, ela aumenta a confiabilidade ou ção de alternativas de solução e de encami-
fidedignidade da informação obtida e permite nhamento. Além desses objetivos-fins, existem
a criação de um registro permanente e de um objetivos instrumentais, que são definidos por
banco de dados úteis à pesquisa, ao estabele- todo tipo de entrevista clínica. Em nosso exem-
cimento da eficácia terapêutica e ao planeja- plo hipotético supra, as diferenças podem ser
mento de ações de saúde. Por esses motivos, consideradas instrumentais. São muitos e va-
as entrevistas semi-estruturadas são de gran- riados os exemplos de objetivos instrumentais.
de utilidade em settings onde é necessária ou Quando se pretende avaliar um quadro psico-
desejável a padronização de procedimentos e patológico, torna-se necessário um exame de-
registro de dados, como nas clínicas sociais, talhado dos sintomas apresentados. Na entre-
na saúde pública, na psicologia hospitalar, etc. vista psicodinâmica, é importante a investiga-
Recentemente, desenvolvemos uma entrevista ção do desenvolvimento psicossexual. Cada
clínica semi-estruturada para a avaliação da his- modalidade de entrevista define seus objeti-
tória e do risco de tentativa de suicídio, tendo vos instrumentais, e estes delimitam o alcance
em vista estudar esse fenômeno, com ênfase e as limitações da técnica. Por isso, estratégias
nos aspectos mórbidos e psicodinâmicos asso- diferentes de avaliação podem ser utilizadas
ciados (Tavares, 1999). para atingir os objetivos de cada situação, ou
combinadas para atingir objetivos diversos. Isso
nos parece adequado, considerando os vários
CLASSIFICAÇÃO QUANTO AOS OBJETIVOS contextos em que a entrevista clínica é utiliza-
da, no consultório, na saúde pública, na psico-
Um esforço em classificar as entrevistas quan- logia hospitalar, etc.
to aos seus objetivos seria uma tarefa bem mais Dada a enorme variedade de objetivos ins-
complexa. Essa complexidade decorre da inter- trumentais, conforme variações de abordagem,
dependência entre abordagem e objetivos. A de problemas apresentados e de clientelas
título de exemplo, vamos imaginar dois entre- atendidas, não temos a intenção de tentar clas-
vistadores hipotéticos, um de abordagem psi- sificar as entrevistas neste nível. Por outro lado,
codinâmica e outro, comportamental. Ao en- alguns tipos de entrevista devem ser mencio-
trevistar um sujeito para definir uma estraté- nados quanto à sua finalidade: de triagem, de
gia de intervenção terapêutica, embora te- anamnese, diagnósticas (que podem ser sin-

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drômicas ou dinâmicas), sistêmicas e de devo- aspectos importantes do desenvolvimento,
lução. Uma entrevista para a avaliação na clí- embora de maneira não tão extensiva como
nica psicológica pode ter por finalidade carac- faz a entrevista de anamnese.
terísticas vinculadas a um desses tipos, ou pode De um certo modo, toda entrevista clínica
ter por objetivo uma combinação de aspectos comporta elementos diagnósticos. Nessa pers-
relacionados a mais de um desses tipos de en- pectiva, empregamos o termo de maneira bem
trevistas. Profissionais de todas as abordagens ampla. Em outro sentido, empregamos o ter-
podem realizar entrevistas clínicas com esses mo diagnóstico de modo mais específico, defi-
objetivos. Examinaremos cada um desses tipos nindo-o como o exame e a análise explícitos
de entrevista. ou cuidadosos de uma condição na tentativa
A entrevista de triagem tem por objetivo de compreendê-la, explicá-la e possivelmente
principal avaliar a demanda do sujeito e fazer modificá-la. Implica descrever, avaliar, relacio-
um encaminhamento. Geralmente, é utilizada nar e inferir, tendo em vista a modificação da-
em serviços de saúde pública ou em clínicas quela condição. A entrevista diagnóstica pode
sociais, onde existe a procura contínua por uma priorizar aspectos sindrômicos ou psicodinâ-
diversidade de serviços psicológicos, e torna- micos. O primeiro visa à descrição de sinais
se necessário avaliar a adequação da deman- (baixa auto-estima, sentimentos de culpa) e
da em relação ao encaminhamento pretendi- sintomas (humor deprimido, ideação suicida)
do. Um dos equívocos mais comuns é o de para a classificação de um quadro ou síndro-
pessoas que procuram ajuda individual para me (Transtorno Depressivo Maior). O diagnós-
problemas relacionais. Outra situação impor- tico psicodinâmico visa à descrição e à com-
tante ocorre quando existe a opção de terapia preensão da experiência ou do modo particu-
individual e grupal, tornando-se necessário lar de funcionamento do sujeito, tendo em vista
avaliar a adequação dos membros conforme a uma abordagem teórica. Tanto o diagnóstico
composição e os objetivos dos grupos terapêu- sindrômico quanto o psicodinâmico visam à
ticos. A triagem é também fundamental para modificação de um quadro apresentado em
avaliar a gravidade da crise, pois, nesses casos, benefício do sujeito.
torna-se necessário ou imprescindível o enca- Algumas vezes, a característica classificató-
minhamento para um apoio medicamentoso. ria do diagnóstico sindrômico parece se con-
Embora não pareça tão óbvio, o clínico que trapor a uma compreensão dinâmica do mes-
trabalha sozinho também terá que triar seus mo; contudo, estas duas perspectivas devem
clientes e encaminhar aqueles que não julgar ser vistas como complementares, operando
adequado atender, conforme sua especialida- dentro de uma mesma estratégia de entrevis-
de e competência. ta. Tradicionalmente, os textos tendiam a en-
A entrevista em que é feita a anamnese (vide fatizar uma ou outra abordagem. Hoje em dia,
A história do examinando, nesta obra) tem por entretanto, vemos cada vez mais um esforço
objetivo primordial o levantamento detalhado de integração dessas duas abordagens (Jacob-
da história de desenvolvimento da pessoa, prin- son & Cooper, 1993; McWilliams, 1994; Oth-
cipalmente na infância. A anamnese é uma téc- mer & Othmer, 1994). Por exemplo, sabemos
nica de entrevista que pode ser facilmente es- que pessoas deprimidas (um sintoma ou sín-
truturada cronologicamente. Embora a utilida- drome) freqüentemente dirigem sua agressivi-
de da anamnese seja mais claramente vislum- dade contra si mesmas (um aspecto dinâmi-
brada na terapia infantil, muitas abordagens co), e que isso pode resultar em comportamen-
que integram ou valorizam o desenvolvimento tos autodestrutivos (sinais) ou, no extremo, em
precoce podem se beneficiar deste tipo de en- ideação suicida (um sintoma). Quando existem
trevista. Certamente, aprender a fazer uma sintomas clínicos claros, o diagnóstico sindrô-
entrevista de anamnese irá facilitar a aprecia- mico torna-se necessário por motivos que nos
ção de questões desenvolvimentais por parte parecem óbvios. Contudo, não se podem igno-
do clínico, pois muitas abordagens investigam rar os aspectos dinâmicos nesses casos. É co-

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mum a existência de sinais e sintomas isolados ção. Em muitos casos, essa atividade é inte-
ou subclínicos, que não são suficientes para grada em uma mesma sessão, ao final da en-
dar configuração a uma síndrome, mas que são trevista. Em outras situações, principalmente
importantes por sugerir uma dinâmica e indi- quando as atividades de avaliação se estendem
car um modo particular de adoecer. O reco- por mais de uma sessão, é útil destacar a en-
nhecimento precoce dessas condições tem um trevista de devolução do restante do processo.
papel preponderante na prevenção de crises Outro objetivo importante da entrevista de
ou no desenvolvimento de um quadro clínico devolução é permitir ao sujeito expressar seus
estabelecido. pensamentos e sentimentos em relação às con-
Reconhecendo esta interação entre sinais, clusões e recomendações do avaliador. Ainda,
sintomas e síndromes com os aspectos dinâ- permite avaliar a reação do sujeito a elas. Ou
micos (modos de funcionamento), o entrevis- seja, mesmo na fase devolutiva, a entrevista
tador amplia seu domínio sobre a situação, mantém seu aspecto avaliativo, e tem-se a
torna-se mais capaz de compreender o sujeito oportunidade de verificar a atitude do sujeito
e sua condição e mais capaz de ajudá-lo de em relação à avaliação e às recomendações,
maneira eficaz. Voltemos ao exemplo da pes- ao seu desejo de segui-las ou de recusá-las. Fi-
soa que se apresenta deprimida. Em um pri- nalmente, como objetivo da entrevista de de-
meiro momento, o clínico pode estar interes- volução, destaca-se a importância de ajudar o
sado na severidade do quadro e buscar definir sujeito a compreender as conclusões e reco-
quais sintomas estão presentes e em que in- mendações e a remover distorções ou fanta-
tensidade. Contudo, em seguida, pode julgar sias contraproducentes em relação a suas ne-
importante investigar em mais detalhes os sen- cessidades. A devolução pode ser simples,
timentos de culpa, inutilidade e menos valia como, por exemplo, de que o motivo que o
que a pessoa experimenta subjetivamente e levou a procurar ajuda pode ser atendido em
relacioná-los tanto aos sintomas quanto às fan- um processo terapêutico ou complexo, a pon-
tasias inconscientes e aos eventos importan- to de requerer mais de uma sessão.
tes no desenvolvimento e na história familiar O processo de avaliação psicológica pode
(relações objetais). Tal estratégia integra uma envolver diferentes procedimentos, incluindo
abordagem fenomenológica do quadro sin- vários tipos de entrevista. Por exemplo, na ava-
tomático com a compreensão psicodinâmica do liação de um jovem adolescente que apresen-
seu desenvolvimento – ela busca descrever e com- tava comportamentos estranhos e incompre-
preender o fenômeno em sua complexidade para ensíveis para família, o processo iniciou-se com
sugerir modos de intervenção terapêutica. uma entrevista de família, seguida de uma en-
As entrevistas sistêmicas para avaliar casais trevista com o jovem para avaliação do qua-
e famílias estão se tornando cada vez mais dro sintomático e seus aspectos psicodinâmi-
importantes em psicologia, principalmente, cos. Depois da aplicação de instrumentos de
quando há a demanda de atenção psicológica avaliação psicológica e sua análise, houve uma
para crianças e adolescentes (Féres-Carneiro, entrevista de devolução com o jovem, seguida
1996). Elas podem focalizar a avaliação da es- de outra com ele e seus pais. Essas entrevistas
trutura ou da história relacional ou familiar. tiveram o objetivo específico de ajudar o jo-
Podem também avaliar aspectos importantes vem e seus pais a compreenderem a situação
da rede social de pessoas e famílias. Essas téc- (que envolvia um quadro psicótico), a explorar
nicas são muito variadas e fortemente influen- a sua repercussão no plano afetivo e relacional
ciadas pela orientação teórica do entrevista- e a tomar decisões específicas quanto aos es-
dor. Como exigiriam um capítulo à parte, fica tudos e a outros elementos estressores na vida
aqui apenas o registro de sua existência e do jovem e da família. Houve mais uma entre-
importância. vista com os três, a fim de consolidar o enca-
A entrevista de devolução tem por finalida- minhamento para uma avaliação psiquiátrica
de comunicar ao sujeito o resultado da avalia- (para fazer um acompanhamento medicamen-

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toso) e de determinar uma estratégia psicote- 2) ajudar o paciente a se sentir à vontade e
rapêutica (para o apoio na crise). a desenvolver uma aliança de trabalho;
3) facilitar a expressão dos motivos que le-
varam a pessoa a ser encaminhada ou a bus-
COMPETÊNCIAS DO AVALIADOR E A car ajuda;
QUALIDADE DA RELAÇÃO 4) buscar esclarecimentos para colocações
vagas ou incompletas;
As diversas técnicas de entrevista têm em co- 5) gentilmente, confrontar esquivas e con-
mum o objetivo de avaliar para fazer algum tradições;
tipo de recomendação, seja diagnóstica ou te- 6) tolerar a ansiedade relacionada aos te-
rapêutica. A entrevista, como ponto de conta- mas evocados na entrevista;
to inicial, é crucial para o desenvolvimento de 7) reconhecer defesas e modos de estrutu-
uma relação de ajuda. A aceitação das reco- ração do paciente, especialmente quando elas
mendações ou a permanência no tratamento atuam diretamente na relação com o entrevis-
dependem de algumas características impor- tador (transferência);
tantes desse primeiro contato, que são influ- 8) compreender seus processos contratrans-
enciadas por um conjunto de competências do ferenciais;
entrevistador. A dificuldade de aceitação das 9) assumir a iniciativa em momentos de
recomendações ou a desistência de iniciar um impasse;
processo terapêutico, quando ocorre, se dá nos 10) dominar as técnicas que utiliza.
primeiros contatos. Comentaremos aqui al- Examinaremos, a seguir, cada uma dessas
gumas competências pessoais essenciais para capacidades.
a condução de uma entrevista, independen- Para estar presente e poder ouvir o pacien-
tes da orientação teórica do entrevistador ou te, o entrevistador deve ser capaz de isolar
dos objetivos específicos da entrevista. A outras preocupações e, momentaneamente,
atenção a esses aspectos e o desenvolvimen- focalizar sua atenção no paciente. Para fazer
to dessas competências são elementos fun- isso, é preciso que suas necessidades pessoais
damentais para o êxito na condução de en- estejam sendo suficientemente atendidas, e
trevistas. que ele possa reconhecer os momentos em que
Uma entrevista, na prática, antes de poder isso parece não estar ocorrendo. Isso implica
ser considerada uma técnica, deve ser vista que as ansiedades presentes não sejam tão
como um contato social entre duas ou mais fortes a ponto de interferir no processo. As
pessoas. O sucesso da entrevista dependerá, ansiedades inconscientes do entrevistador le-
portanto, de qualidades gerais de um bom vam à resistência e dificultam a escuta, princi-
contato social, sobre o qual se apóiam as téc- palmente de material latente na fala do entre-
nicas clínicas específicas. Desse modo, a exe- vistado. Cuidando de suas necessidades pes-
cução da técnica é influenciada pelas habilida- soais, o entrevistador poderá ouvir o outro de
des interpessoais do entrevistador. Essa inter- um modo diferenciado. Essa escuta diferencia-
dependência entre habilidades interpessoais e da, por si só, é considerada um dos elementos
o uso da técnica é tão grande que, muitas ve- terapêuticos (Cordioli, 1993).
zes, é impossível separá-las. O bom uso da téc- Por estar atento ao paciente, o entrevista-
nica deve ampliar o alcance das habilidades dor estará mais apto a ajudá-lo a sentir-se à
interpessoais do entrevistado e vice-versa. Para vontade e a desenvolver uma aliança de traba-
levar uma entrevista a termo de modo adequa- lho. A aliança para o trabalho, que mais tarde
do, o entrevistador deve ser capaz de: se desenvolverá em uma aliança terapêutica, é
1) estar presente, no sentido de estar intei- composta de dois fatores: a percepção de es-
ramente disponível para o outro naquele mo- tar recebendo apoio e o sentimento de esta-
mento, e poder ouvi-lo sem a interferência de rem trabalhando juntos (Horvath, Gaston &
questões pessoais; Luborsky, 1993; Luborsky, 1976). Desenvolver

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uma atmosfera de colaboração é essencial para da era real. A segurança para enfrentar essas
o sucesso de uma avaliação. Para isso, é im- situações vem em parte do tipo de escuta e
portante que o paciente perceba que o entre- atenção que percebe estar recebendo, como
vistador está receptivo a suas dificuldades e a também da capacidade do entrevistador de
seus objetivos, que ele demonstra entendê-lo facilitar a expressão de experiências, sentimen-
e aceitá-lo, que ele reconhece suas capacida- tos e pensamentos relevantes.
des e seu potencial, e que ele o ajuda a mobili- Em muitos momentos, o entrevistador de-
zar sua capacidade de auto-ajuda. Essa percep- verá buscar esclarecimentos para colocações
ção fortalece a relação e favorece uma atitude vagas ou incompletas e, gentilmente, confron-
colaborativa e participativa por parte do sujeito. tar esquivas e contradições. Utilizamos o ter-
Facilitar a expressão dos motivos que levam mo confrontar no sentido de “colocar-se dian-
a pessoa a buscar ajuda é o coração da entre- te de...”. Opõe-se a evitar, esquivar-se ou de-
vista. Contudo, nem sempre é fácil. Freqüente- fender-se, e mobiliza a capacidade de enfren-
mente, os motivos reais não são conhecidos, tamento do sujeito, no nível adequado à sua
ou se apresentam de maneira latente. Muitas capacidade e estrutura egóica. Por isso, a con-
vezes, estão associados a afetos ou idéias difí- frontação é uma técnica dirigida ao insight e
ceis de serem aceitos ou expressos. Outras ve- requer certa capacidade de tolerar a ansieda-
zes, existem resistências importantes que difi- de. O clínico experiente saberá criar um con-
cultam o processo. O paciente deverá se sentir texto suficiente de apoio para que o sujeito se
seguro o suficiente para poder arriscar-se. O sinta em condições de enfrentar esses momen-
risco é significativo, pois a entrevista tem o tos. Alguns entrevistadores recuam, em mo-
potencial de modificar a maneira como ele se mentos cruciais, mais freqüentemente do que
percebe (auto-estima), percebe seu futuro pes- gostaríamos de admitir. Respostas pouco ela-
soal (planos, desejos, esperanças) e percebe boradas, colocações vagas ou omissões atuam
suas relações significativas. Portanto, se há es- como defesas que obscurecem o assunto em
perança de que a entrevista venha a lhe trazer questão. Quando o entrevistador deixa passar
ganhos, há também o receio de que possa con- esses momentos, perde uma oportunidade de
duzir a perdas significativas. Abandonar idéias desenvolver uma idéia mais clara sobre o as-
supervalorizadas ou auto-imagem distorcida sunto, além de não ajudar o paciente a am-
pode ser concretamente experienciado como pliar sua percepção da questão. Contrariamen-
perda real. Abrir mão de um desejo pode levar te à noção difundida, o que não foi dito antes
à experiência de luto, como, por exemplo, a freqüentemente permanece sem ser abordado
filha que inconscientemente acreditava que, se mais tarde.
fosse “suficientemente” boa, ela conseguiria Assuntos importantes, afetivamente carre-
recuperar o pai alcoólatra. Todo o seu esforço gados e associados a experiências dolorosas,
era em vão. Para desistir desse pai e poder in- muitas vezes aparecem nas entrevistas clínicas.
vestir na própria vida, ela teve que viver o luto Para sustentar esses momentos, o entrevista-
pela perda do pai que desejava ter e abando- dor deverá desenvolver a capacidade de tole-
nar a fantasia de obter do pai real o apoio que rar a ansiedade e de falar abertamente sobre
se esforçava para dar-lhe, sem resultado. Em- temas difíceis, que têm o potencial de evocar
bora seu comportamento fosse configurado emoções intensas. O entrevistador deverá de-
por um conflito na fantasia*, a vivência da per- senvolver confiança em sua própria capacida-
de de suportar tais momentos com naturalida-
de e de poder dar apoio ao outro que passa
* Compreendemos fantasia não em oposição à realidade, pela experiência, sem ser internamente pres-
mas como realidade interna, subjetiva, com vínculos em sionado a evitá-la. Caso contrário, ele pode
relações objetais e afetos associados, que podem ter um comunicar imperícia ou dificuldades pessoais
impacto na experiência do sujeito tão ou mais forte que a
realidade externa, e que podem, conseqüentemente, in-
relacionadas ao tema em questão, o que cria
fluenciar o comportamento de maneira decisiva. um clima carregado de matizes inconscientes,

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difíceis de serem resolvidos na relação. Tais te- vistador uma via inigualável de compreensão
mas podem vir a ser configurados como tabus da experiência do outro. A contratransferên-
na relação e podem não ser abordados ade- cia foi inicialmente conceituada, como proces-
quadamente. Por exemplo, uma senhora sol- so patológico residual do terapeuta, como “os
teira apresentou-se para terapia com uma his- próprios complexos e resistências internas”
tória de depressões recorrentes. Ficou claro que (Freud, 1910, p.130). Com o tempo e o desen-
tais episódios começaram após um envolvimen- volvimento do conceito de identificação proje-
to amoroso com um padre e a decisão unilate- tiva, percebeu-se a característica universal do
ral dele de abandonar o relacionamento. A processo contratransferencial e sua importân-
perspectiva de falar de experiências sexuais, cia na compreensão profunda da comunicação
neste contexto, com alguém da idade da mãe paciente-terapeuta. Os trabalhos clássicos de
do terapeuta trouxe para ele dificuldades que Heimann (1950), Racker (1981) e Pick (1985),
levaram a um impasse sério na entrevista ini- bem como a revisão detalhada de Hinshelwood
cial. (1991), descrevem e ilustram esses processos.
A capacidade de reconhecer as defesas e o Existem momentos em que a entrevista pas-
modo particular de estruturação do paciente é sa por situações de impasse importantes. Por
de especial interesse. Uma pessoa que adota exemplo, uma pessoa pode, a determinada al-
um estilo rígido de personalidade (p.ex., colo- tura, dizer: “Não sei se realmente deveria estar
ca-se de uma maneira predominantemente falando isso. Não sei se realmente quero fazer
dependente em suas relações) ou persistente- isso”. Ou, mais decididamente: “Essa é a ter-
mente projeta (p.ex., culpa os pais por suas ceira vez que procuro ajuda, e não adiantou
dificuldades), revela aspectos significativos de nada”. Assumir a iniciativa em momentos de
seu modo de ser (estrutura) e funcionar (dinâ- impasse significa poder mobilizar recursos pes-
mica). Reconhecendo esses aspectos, o entre- soais diante de situações difíceis e inespera-
vistador poderá antecipar essas situações de das. Significa poder usar a criatividade para dar
transferência e evitar respostas contratransfe- uma resposta eficaz no momento. Por exem-
renciais inadequadas. Ao reconhecer as dinâ- plo, pode ser crucial ajudar a explorar alterna-
micas e modos de interagir do sujeito, pode- tivas e buscar uma perspectiva em momentos
mos dirigir nosso modo de proceder de ma- de desesperança. Eis alguns exemplos de situa-
neira mais eficiente. O avaliador pode anteci- ções críticas que requerem do entrevistador
par as ansiedades da pessoa e adaptar-se de capacidade de agir: risco de vida (ideação sui-
modo correspondente. Se a pessoa apresenta cida), sintomas psicóticos, violência, impulsi-
uma postura dependente, obsessiva, auto-en- vidade, ou outras situações que podem levar a
grandecedora ou colaboradora, a observação um desfecho prejudicial para as pessoas en-
desta atitude ou comportamento já é informa- volvidas. Uma paciente disse, dez minutos an-
ção diagnóstica a ser integrada na interpreta- tes do final da primeira entrevista: “Não sei se
ção. A observação do comportamento, da co- estarei aqui na semana que vem”. A partir da
municação não-verbal e do material latente exploração cuidadosa dessa fala, tornou-se cla-
contribui de maneira especial. Restringir o ro que ela estava considerando o suicídio. A
âmbito do interpretável somente ao conteúdo terapeuta precisou lidar com isso de forma di-
explícito da comunicação pode acarretar per- reta e decisiva, de modo a evitar um desfecho
da de informação clínica significativa. autodestrutivo. Desenvolver recursos pessoais
Ser capaz de compreender seus processos para lidar com tais situações é fundamental
contratransferenciais é, possivelmente, um dos para que o entrevistador possa trabalhar com
recursos mais importantes do clínico. Reconhe- segurança.
cer como os processos mentais e afetivos são Finalmente, espera-se que o entrevistador
mobilizados em si mesmo e ser capaz de rela- tenha domínio das técnicas que utiliza. É pelo
cionar esse processo ao que se passa na rela- domínio da técnica que o entrevistador pode
ção imediata com o sujeito fornece ao entre- deixar de se preocupar com a sua execução e

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se concentrar no paciente, no que ele apresen- sional pode contrariar o interesse do sujeito
ta e na sua relação com ele. A competência avaliado (por exemplo, o profissional recebe-
técnica dá e comunica segurança ao liberar o ria menos pelo seu serviço se informasse ao
entrevistador para dirigir sua atenção aos as- paciente que atende por um convênio do qual
pectos mais importantes da relação. A falta ele é beneficiário). Segundo, mesmo quando o
desse domínio pode resultar em uma aplica- interesse de ambos parece ser o mesmo, este
ção mecânica e desconexa das diretrizes da pode ter conseqüências que colocam em risco
técnica. Com a prática e a experiência, os as- o bem-estar do outro (por exemplo, manter
pectos mecânicos da técnica tornam-se secun- relações não-profissionais com o sujeito). Ter-
dários, e o sujeito e a relação passam a se des- ceiro, o profissional pode ser chamado a aten-
tacar. Torna-se evidente uma integração natu- der interesses conflitantes (por exemplo, em-
ral dos aspectos técnicos e a valorização da presa-empregados, casais em processo de me-
relação com o sujeito. Assim, a entrevista flui, diação, relação pais-adolescentes, etc.).
e a atuação refinada do profissional transfor- Vendo a ética na perspectiva do conflito,
ma a técnica em arte. destacamos duas maneiras como o profissio-
nal pode manter o compromisso ético em suas
atividades. Primeiro, cabe a ele antecipar os
CONCLUSÃO conflitos inerentes a essas atividades. Na ava-
liação psicológica, encontramos muitos desses
Este capítulo apresentou e discutiu uma defi- casos. Um exemplo são as situações em que
nição de entrevista clínica e seus tipos. Abor- existe a necessidade de definir quem são os
damos as competências pessoais do avaliador clientes e como responder adequadamente às
e a sua responsabilidade profissional no pro- demandas de cada um deles. A avaliação pode
cesso de entrevista. Mencionamos a situação envolver, além do sujeito, familiares, outros
privilegiada e o poder que tem o entrevista- profissionais, instituições, etc. Nesses casos,
dor, diante do entrevistado. A entrevista confi- falamos dos conflitos gerados pela atividade
gura-se como um poderoso meio de influen- e, portanto, colocados externamente aos pro-
ciar o outro, principalmente considerando que fissionais. A estratégia mais simples que temos
as pessoas freqüentemente buscam ajuda ou utilizado nesses casos é a de socializar a dúvi-
são avaliadas em momentos de fragilidade. da. Trata-se de colocar a questão a colegas e
Esse aspecto, aliado aos já discutidos neste ca- procurar verificar como eles têm lidado com
pítulo, nos leva a refletir sobre algumas ques- dilemas similares, em busca de alguma orien-
tões éticas acerca da nossa intervenção. Segun- tação normativa. As comissões de ética dos
do um dito popular, “nada mais prático do que diversos conselhos têm oferecido orientação
uma boa teoria”. Gostaríamos de poder dizer em muitos casos, e os profissionais devem lem-
“nada mais ético do que um bom treinamen- brar deste recurso quando se virem nessas si-
to” (teórico e técnico). Infelizmente, isso não é tuações.
suficiente. Uma prática ética depende desse O segundo tipo de conflito ético importan-
treinamento, mas também dos valores e da te diz respeito à própria relação com o sujeito.
formação pessoal do profissional, que desen- Idealmente, esses conflitos deveriam ocorrer na
volvem nele o respeito e a consideração pelo esfera consciente, e o profissional deveria pro-
outro, e que o colocam em condições de ante- curar resolver seus interesses sem envolver o
cipar como as conseqüências de seu compor- paciente. Nossa experiência em supervisão, no
tamento e de suas omissões poderiam afetar o entanto, mostra que existem situações, não
outro, adversamente. Desejamos enfatizar este raras, em que o conflito não é diretamente
ponto. percebido pelo avaliador. Um exemplo comum
As questões éticas colocam-se em evidên- é o paciente difícil ou inconveniente, que pode
cia em situações de conflito. Primeiro, o inte- ser negligenciado ou até mesmo abandonado
resse (consciente ou inconsciente) do profis- pelo profissional que, inconscientemente, de-

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seja evitá-lo. O melhor contexto para desen- darem opiniões em situações difíceis. Um olhar
volver habilidades internas para lidar com es- diferente tem sempre o potencial de favorecer
sas situações é na supervisão clínica. Ela nos nossa compreensão sobre um caso. Em ambas
permite enxergar com os olhos do outro. A as situações descritas – de conflitos impostos
supervisão é uma atividade que oferece meios pela natureza da tarefa, ou pela experiência do
fundamentais para o profissional entrar em profissional na relação –, o antídoto é não se
contato com entraves pessoais no trabalho clí- isolar, buscar apoio em profissionais e colegas
nico, devendo ser utilizada sempre que possí- de confiança e desenvolver a capacidade pes-
vel, principalmente no início de carreira. Mes- soal de lidar com a complexidade dessas situa-
mo pessoas experientes buscam colegas para ções.

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