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O mercado financeiro e o auxílio

emergencial, por Guilherme


Narciso de Lacerda
A posição reativa do governo e do mercado precisa ser esclarecida e desmistificada. Ela
contém equívocos técnicos que não resistem a análises sérias, inclusive de economistas
liberais respeitados, daqui ou do exterior.

Por Jornal GGN O jornal de todos os Brasis - 20 de abril de 2021

O mercado financeiro e o auxílio emergencial

por Guilherme Narciso de Lacerda

Os trabalhadores gastam o que ganham, enquanto os capitalistas ganham o que


gastam (Michal Kalecki – 1899/1970)
O noticiário dos últimos dias destacava que “o risco de volta ao auxilio emergencial
preocupa o mercado” e, por conta disso, a bolsa de valores havia se ressentido com quedas
em sua valorização diária. O argumento é o de que a proposta implica em pressão adicional
sobre as contas públicas, elevando ainda mais a dívida pública federal. Na concepção
rentista do mercado financeiro o país não pode mais expandir sua dívida para além do que
já ocorreu com as medidas adotadas em 2020.

Essa postura está alinhada com a manifestação feita pelo Ministro da Economia, depois de
um período em que andava sumido, gozando suas férias. Segundo ele, se for concedido
novo auxilio emergencial os gastos com saúde, educação e segurança pública terão que ser
congelados. Ou seja, coloca os defensores da proposta numa saia justa diante da
necessidade em preservar serviços públicos essenciais ao país. Esquece-se de que há R$
300 bilhões de benefícios tributários a setores favorecidos e também da existência de vários
programas que poderiam ser postergados, como, por exemplo, aqueles associados ao
Ministério da Defesa, sem dizer dos absurdos gastos com alimentação recém divulgados.

A posição reativa do governo e do mercado precisa ser esclarecida e desmistificada. Ela


contém equívocos técnicos que não resistem a análises sérias, inclusive de economistas
liberais respeitados, daqui ou do exterior. Essa visão primária (e equivocada) da dinâmica
econômica predomina com tamanha força no Brasil em face do eterno discurso de uma nota
só apregoada por gestores do mercado financeiro (esse sim impregnado de uma concepção
ideológica) e pela limitada capacidade crítica dos analistas da mídia corporativa que irradiam
os argumentos recebidos dos “formadores de opinião”.

Todos os países adotaram ações protetivas para as populações atingidas pela pandemia. O
Brasil também o fez, com o Congresso vencendo a resistência da área econômica e atuando
com lucidez. Os EUA nesse momento relançam um pacote ainda maior do que o inicial, no
valor total de 1,3 trilhão de dólares e a destinação de US$2.000,00 para cada família sem
condições de enfrentar os impactos gerados no mercado de trabalho. Vários outros países
sustentam as ações para atenuar os efeitos em suas sociedades. A pandemia continua e não
há solução de mercado suficiente para absorver os grupos sociais desguarnecidos.

A expansão da dívida pública ocorreu em todos os países e não é um limite de 90% ou


95%, por exemplo, que indica se tal economia está ou não saudável. Não há um limite
exato estabelecido que a dívida de um país não pode ultrapassar. Não faz sentido olhar
isoladamente a dívida pública em relação ao PIB, quando esse sofre um baque por um fator
exógeno como a pandemia. O estoque da dívida brasileira atinge R$ 5 trilhões em uma
situação totalmente anormal, com gastos extraordinários superiores a R$ 600 bilhões no
enfrentamento dos desdobramentos da pandemia do coronavirus. Esse montante não indica
ameaça à gestão pública. O crescimento da relação dívida-PIB nos últimos 5 anos foi
fortemente influenciado pela recessão de 2015/2016, seguida de raquíticas taxas anuais de
expansão até 2019. Parafraseando um aviso clássico, vale dizer: é o denominador,
estúpidos! Além disso, há aspectos próprios de nossa realidade que precisam ser
considerados.

Por aqui, os credores da dívida pública são cidadãos nacionais. Felizmente no 2º governo
Lula o país conseguiu reverter a situação histórica de devedor internacional, passando a
uma posição credora, com reservas internacionais superiores a US$ 370 bilhões. Não há,
portanto, qualquer ameaça de “default”, com descumprimento de contratos. Ademais, uma
parcela significativa – ao redor de 30% – de nossa dívida pública corresponde a lançamento
contábil das operações compromissadasassociadas aos depósitos privados feitos no Banco
Central e também em função da contrapartida em moeda nacional do total de haveres
existentes em moeda estrangeira. Esse aspecto é normalmente omitido pelos analistas
porque não interessa admitir que, de fato, a dívida pública que impacta o orçamento é
menor que os percentuais divulgados ou porque não entendem a contabilidade pública. Na
realidade, a manifestação atemorizante sobre a dimensão da dívida é pura e simplesmente
uma construção feita por elementos bem postados do tal mercado, para avançar na
escalada dos ganhos financeiros. Tal discurso é irradiado em todos os canais comunicantes,
sancionando um senso comum com ares de verdade absoluta.

O elemento determinante na construção de expectativas favoráveis para acicatar os


investimentos são as ações do governo para constituir um ambiente saudável de negócios,
com fortalecimento do mercado interno e empenho em atenuar as profundas desigualdades
de renda e riqueza que marcam o nosso país. As transferências de recursos para os
municípios e para as famílias carentes, além do apoio às pequenas e médias empresas,
foram imprescindíveis para diminuir a crise. A previsão de queda do PIB em 2020 está ao
redor de -5%. Essa previsão inicialmente era de -8% a -10%. Os auxílios permitiram uma
retomada da produção, repercutindo numa melhoria das contas públicas, com maior
arrecadação de tributos. Na ausência de tais auxílios é difícil prever o que teria acontecido
no país e, com certeza, o mercado financeiro teria sido fortemente penalizado. Mas parece
que esse efeito multiplicador da renda não existe para os rentistas de visão obtusa, que não
cedem em seus vetustos postulados. As máximas são sempre a de que o estado precisa
fazer as reformas e que é preciso ser rigoroso no controle orçamentário. Negam os fatos.
Desafio que apresentem um caso nas histórias dos países desde o início do século XX que
tenha se desenvolvido com base na teoria dos orçamentos equilibrados. Não há.

A retórica enganosa nesse sentido chegou ao ponto de um secretário de política econômica


(discípulo de um guru pregador de teorias precopérnicas) ter o despautério de argumentar
que o auxílio emergencial prejudicará os pobres, porque com ele a dívida pública cresce, o
investimento privado não ocorre e não gera empregos. Um discurso roto, primário, da era
vitoriana (século XIX), assentado em suposições de nexos causais inverossímeis.

O mundo dos investidores da esfera financeira não faz concessões morais ou sociais. É
indiferente para eles se o país está com mais de 20 milhões de cidadãos sem ocupação
(desempregados e desalentados) e nem se muitos milhões de famílias voltaram para uma
condição de miséria. Tais aspectos são determinantes nas equações econômicas dos países
democráticos, mas por aqui não; interessa apenas alardear o risco de se ir além de um
anômalo teto de gastos, estabelecido logo após a interrupção também atípica de um
governo legitimamente eleito.

Assim, há que se recorrer à máxima de Kalecki, citado à epígrafe, para relembrar aos
incautos que o dinheiro destinado a socorrer famílias em dificuldade vira integralmente
gastos domésticos que realimentam os ganhos empresariais e fortalece a economia. Essa
dinâmica da economia real está além dos movimentos frenéticos eminentemente
especulativos de mercados bursáteis insaciáveis, que se mantém na crista da onda para
pautar os discursos opacos do dia a dia do país.

Guilherme Narciso de Lacerda, Doutor em Economia pela Unicamp, professor do Depto.


Economia da UFES (apos.). Foi Diretor do BNDES (2012-2015). Autor do livro “Devagar é
que não se vai longe – PPPs e Desenvolvimento Econômico”, recém-publicado pela Editora
LetraCapital.

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