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RESENHAS

Viagens na narrativa
Helena Bomeny

Configurações da Narrativa. Verdade, literatura e etnografia


Vá/ter Sinder
Madrid/Frankfurt am Main, lberoamericana/Vervuert, 2002, 127 p.

Escrito originalmen te como tese de doutorado em letras, defendida na


pue do Rio em 1992, e publicado somente em 2002 pelas editoras de Madri e
Frankfurt, Confi!JUraçães da narrativa resistiu muito bem à prova de uma década
na estufa. Não perdeu com o tempo, e sequer se vitimou com a obesidade, fruto
das compulsivas incorporações de tudo o que veio à tona no período - e não foi
pouca coisa - sobre um tema que mobilizou grande parte da produção intelectual
das ciências sociais. Um dos modismos a mais em nossa liturgia acadêmica?
Elegante e econõmico no estilo, Valter Sinder manteve um texto atuali­
zado e enxuto, qualidades que nem sempre andam juntas. E, embora já tenha ce­
dido um pouco a febre que se instalou entre nós nos anos 80, ainda permanece
acesa a chama do interesse sobre a relação inquietante, e nem sempre bem recebi-

Estudos Histón·cos, Rio de Janeiro, nO 32, 2003, p. 189-193.

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da, entre literatura e ciências sociais, história e ficção, narrativa ficcional e relato
científico. Embora permanente na tradição das ciências sociais, o debate acir­
rou-se na década de 1980, e certamente os lrabalhos de Hayden White, desde o
Melahistory. Tlle historical imagillatioll ill Nine/een/II Ce/Ul/.ry Europe (1973), segui­
do de livros e artigos até o Tropics ofdiscol.me (1985), e o livro de WolfLepenies,
BelWeen li/erature and sciellce: lhe rise of sociology (1988), publicado originalmente
na Alemanha em 1985 com o títuloDie Drei Kulturell e, no Brasil (1996), comoAs
três culturas, são ótimas referências se quisermos recuperar as discussões aqui tra­
vadas, vindas da literatura ou das ciências sociais. As publicações de Hayden
White lembram-nos da ruptura do processo de convivência pacífica entre histó­
ria e literatura provocada, menos por esgotamento de rotina anterior, e mais por
determinação externa. A aproximação da história com a literatura - quebrada ar­
tificialmente no século XIX em nome do rigor metodológico e da comprovação
científica -, mais do que consentida, era um constrangimento, uma vez que um
dos sinais fortes na apreciação positiva do relato historiográfico era exatamente a
configuração de uma narrativa em molde literário. Antes da Revolução France­
sa, a historiografia era vista como arte literária, diz Hayden White em um de seus
textos. Reconhecia-se como inevitável a utilização de técnicas ficcionais na re­
presentação dos eventos reais, na forma de discurso histórico. No caso da interes­
sante viagem deLepenies, não há propriamente uma ruptura desse contato ou de
mútua relação, uma vez que tal convivência nunca foi tão cultivada com a exper­
tise com que se deu na história, mas também não esteve ausente. T endo na socio­
logia O pretexto de sua incursão, Lepenies vai mostrar como, entre duas culturas
- a das ciências exatas e a literária-, a sociologia teve que lidar com os constrangi­
mentos de consentir ou de recusar a intimidade com a narrativa literária. E, além
de atribuir aos campos específicos uma cultura própria, Lepenies passeia por
culturas nacionais (França, Inglaterra e Alemanha) para mostrar com que inten­
sidade a aproximaçao e a convivência foram buriladas entre os homens das letras
e os homens da ciência da sociedade, a sociologia, que nascia e defendia seu lugar
na constelação dos saberes considerados científicos. Portanto, o momento do
que Hayden White chama de ruptura é o momento em que nasce a sociologia.
Podemos dizer que já nasceu tendo que lidar com o que para alguns é um dilema,
para outros uma tensão, para outros ainda uma falsa questão por deslocada e im­
própria. Mas já nasceu no cenário de suspeição, tendo que explicar os limites da
. -
aproxlmaçao.
Essas discussões são conhecidas de Valter Sinder. São também familia­
res para ele as múltiplas possibilidades de lidar com elas. Ele escolheu um cami­
nho para entrar pelo viés da antropologia. E explicitou nas primeiras páginas o
que, em sua perspectiva, está em questão quando as ciências sociais prelendem
enfrentar a relação entre narrativa e ciência, ou narrativa da ciência, se preferir-

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mos. Seu ponto de partida: "A mudança de regime discursivo operada na época
das grandes navegações". E a permanência: "A verdade, toda verdade, nada mais
do que a verdade. A idéia de que uma verdade eterna, universal, onipresente,
deve ser descoberta por qualquer um de nós parece ser uma idéia dominante em
nossa civilização" CP. 14). A verdade dos e a verdade nos relatos dos viajantes - e
ele toma dois viajantes célebres, Cristóvão Colombo dos Diários da descoberta
da América, e Cervantes, das aventuras do ingenioso hidalgo Dom Quixote de la
Mancha. A pista quem dá é Michel Foucault, e a verdade dos relatos estará na
correspondência ou na equação buscada entre "a autoridade dos livros e o teste­
munho da verdade dos fatos". O que se passou, pergunta Sinder, no que diz res­
peito à questão da relação entre conhecimento e coisas a conhecer? "Dom Quixo­
te, por um lado, assim como Colombo, acredita que sabe antecipadamente o que
vai encontrar. A experiência concreta deveria simplesmente ilustrar uma verda­
de que possui" CP. 37). Como garantir veracidade a um relato fundado, basica­
mente, na apresentação de seres estranhos e acontecimentos fantásticos, de luga­
res exóticos a que chegou o viajante atravessando mares nunca dantes navega­
dos? Quem garante é a presença daquele que vê e que escreve o que vê. "A garan­
tia da veracidade do relato será dada pelo fato de ter sido presenciada por aquele
que escreve, de preferência em uma longa permanência e convivência", sintetiza
Sinder, a propósito de Colombo. Ainda que o relato seja impregnado das "pos­
sessões maravilhosas", à Stephen Greenblatt, a autoridade da fala e do escrito se
cola à autoridade conferida àquele que tem delegação para a fala e a escrita. Mas
ao contrário de Colombo, as aventuras de Dom Quixote são uma constante busca
de comprovação desta verdade. Em Colombo, teria prevalecido o argumento de
autoridade. O lugar da imaginação encontrou mais espaço na loucura de Dom
Quixote, temperada e controlada pelos contatos e lembranças das referências ao
mundo concreto trazidas a todo instante pelo seu fiel escudeiro, Sancho Pança,
escudeiro de si, cúmplice de si, como convém à liberdade de expressão e à auto­
nomia vivenciadas pelo indivíduo moderno, pelo sujeito reflexivo, portador de
dubiedades, tensões e contradições. Seguindo Foucault, Sinder subscreve a tese
de que Dom Quixote é a primeira das obras modernas, uma obra em que o herói é
a um só tempo santo e louco.
O mote das viagens é o passaporte para o percurso que o livro ilumina no
interior da antropologia. E não é casual a associação. Instituída como saber sobre
o "outro", o "distante", o "estranho", o "estrangeiro", a antropologia lidou desde
os seus primórdios - que, a propósito, coincidem com os da sociologia - com os
desafios da aventura, até alcançar o universo que não se assemelha ao universo do
investigador. Os mesmos desafios postos a Colombo e a Dom Quixote insistiam
em permanecer na escrita anrropológica: como relatar aquilo que foi visto?

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Como convencer da veracidade do que o investigador, travestido de viajante, en­


controu? Quanto de isenção é possível? Que provas? Que discurso? Como medi­
ar o contato entre nativos e pesquisador? As respostas possíveis serão sugeridas
pelas distintas escolas ou pelas matrizes teóricas propostas pelos clássicos da an­
tropologia. O evolucionismo generalista do século XIX, a crítica de Franz Boas
em 1896, advertindo que a pesquisa histórica deve ser considerada como o teste
crítico que a ciência deve requerer antes de admitir qualquer fato como evidên­
cia, até a novidade trazida por Malinowski - a etnografia e seu artífice - pareciam
equacionar o problema da verdade. O etnógrafo - este novo personagem - foi al­
çado à posição de "arauto da neutralidade científica", sem os preconceitos e
pré-noções dos outros homens, mas ao mesmo tempo, sujeito participante - des­
pido agora dos preconceitos dos cientistas. O modo devida da cultura observada
desperta interesse singular. De viajantes passamos ao observador atento, de esta­
dia prolongada no campo, condições para que, algo mais do que impressões, pu­
desse ser revelado a respeito daquele "outro". Nem nativo nem branco: um tanto
nativo e um tanto branco. Mistura eficaz ao investigador a quem caberá desven­
dar a verdade. Ou, na conclusão de Sinder, "conjugar em uma mesma consciên­
cia a vertigem da viagem e a prudência metodológica". CP. 89) A observação par­
ticipante inaugura, assim, na antropologia, a possibilidade de uma nova verdade
- "o antropólogo deve, ele também, servir de testemunha, não só observando,
mas também participando do cotidiano da aldeia" Cp. 89). O percurso antropoló­
gico não pára em Malinowski, na equação proposta por ele mesmo do "movi­
mento do sujeito-que-observa em sujeito-que-participa". E esta foi a razão de ter
em Quixote a inspiração para a armadura do livro.
A antropologia do século XX se mantém no desafio de lidar com as nar­
rativas possíveis, com os limites da observação participante, com a "interpreta­
ção de segunda mão", expressão cunhada por Clifford Geertz para se referir ao
discurso do etnógrafo em lugar do nativo, ou passando pelo nativo ou significan­
do o nativo. Os capítulos finais são dedicados a Geertz eLévi Strauss, e as ques­
tões metodológicas postas à teoria antropológica são minuciosamente retomadas
e interpretadas à luz do arcabouço proposto por Valter Sinder, desde a escolha
dos viajantes até a decisão por um trajeto foucaultiano. Preocupado em man­
ter-se fiel à sua própria pergunta, Sinder persegue nos clássicos contemporâneos
as respostas possíveis ao dilema constitutivo da antropologia: a presença ambí­
gua do antropólogo nos textos, uma ambigüidade que, no entender de Clifford
Geertz, aparece como uma marca constante nos textos antropológicos. EmLé­
vi-Strauss, nosso autor vai encontrar o que ele próprio caracterizou como "põr
ordem na casa": etnografia, etnologia e antropologia não constituem três disci­
plinas diferentes, ou três concepções distintas dos mesmos empenhos de pesqui­
sa. "São de fato", citando Lévi-Strauss, "três etapas ou três momentos de uma

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mesma pesquisa". E no mais famoso estruturalista de nosso tempo que as ques-


,

tões do fazer ciência na antropologia voltam com força redobrada. E preciso ul-
trapassar os dados empíricos, as relações sociais das quais partilhamos, é preciso
construir modelos verdadeiros ("aquele que, sendo o mais simples, responder à
dupla condição de não utilizar outros fatos além dos considerados e explicar to­
dos") capazes de desvendar a estrutura social profunda, o que vale dizer, o in-
conscIente.

O que o livro de Valter Sinder promete, e cumpre, é perseguir o trajeto


sinuoso que se desenhou na antropologia em resposta à imposição de associar
ciência com verdade. Como recebeu de Foucault a régua e o compasso para esse
desenho, nosso autor não deixou de fora os mecanismos de poder que presidiram
e que presidem as configurações da narrativa. Talvez pela afinidade entre an­
tropologia e história, ambas definindo-se originalmente como ciências de in­
vestigação do distante, as comunidades distantes, na primeira, e o passado, na
segunda, as questões que envolveram uma e outra forma de relato se avizinha­
ram, criando uma espécie de cumplicidade mais perceptível a olho nu. Eu me
pergunto se tais desafios nao foram igualmente postos à sociologia, embora na
origem já desafiada por responder ao próximo, ao presente, ao simultãneo - fenô­
meno cada vez mais recorrente tanto à história quanto à antropologia? A antro­
pologia recente confirma esta minha advertência por estar ela própria mobiliza­
da pelas questões do presente. Minha indagaçao, no entanto, é anterior. Talvez
seja mesmo constitutivo da liturgia das ciências sociais o exercício inacabado de
aceitação, revisão, recusa e defesa de formas de narrativa, mais do que de uma
narrativa. E até nesta perspectiva, o livro de Valter Sinder é recomendável, em­
bora o autor não se tenha exigido uma ampliação da questão neste nível.
Por último e, eu diria, fundamentalmente importante: a publicação do
livro em praças tão distantes acabou sendo prejudicial em dois pontos. Pela difi­
culdade de circulação e difusão mais largas em nosso ambiente acadêmico de um
trabalho que, não apenas interessante, é muito útil à formação de nossos estudio­
sos das ciências sociais, e a possibilidade perdida de cuidar da edição que, apres­
sada e sem o devido acompanhamento, sacrifica a escrita com um bom número
de erros tipográficos que não correspondem ao esforço intelectual bem realizado
de seu autor de escrever com esmero intelectual justamente sobre Iiarrativa...

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