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DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR

CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
Teoria e Prática

9ª edição
Revista, ampliada e atualizada

2017
Capítulo II
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE:
A GARANTIA DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO

É, exatamente, na garantia de uma superior legalidade, que o controle judi-


cial de constitucionalidade das leis encontra sua razão de ser: e trata-se de
uma garantia que, por muitos, já é considerada como um importante, se não
necessário, coroamento do Estado de direito e que, contraposta à concepção
do Estado absoluto, representa um dos valores mais preciosos do pensamento
jurídico e político contemporâneo” (Mauro Cappelletti)24.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Como já sublinhado, a supremacia da Constituição – enquanto princípio
jurídico que atribui à Constituição uma força subordinante e a eleva à condição
de legitimidade e validade de todas as normas jurídicas positivadas em um dado
Estado – é a base de sustentação do próprio Estado Democrático de Direito,
seja porque assegura o respeito à ordem jurídica, seja porque proporciona a
efetivação dos valores sociais.
Mas essa supremacia constitucional restaria comprometida se não
existisse um sistema que pudesse garanti-la e, em consequência, manter a
superioridade e força normativa da Constituição, afastando toda e qualquer
antinomia que venha agredir os preceitos constitucionais. É nesse contexto
que avulta a importância do controle de constitucionalidade como um meca-
nismo de garantia da supremacia das normas constitucionais delineado pelo
próprio texto constitucional.
Dito d’outro modo: em razão da supremacia constitucional, todas as normas
jurídicas devem compatibilizar-se, formal e materialmente, com a Constituição.
Caso contrário, a norma lesiva a preceito constitucional, através do controle
de constitucionalidade, é invalidada e afastada do sistema jurídico positivado,
como meio de assegurar a supremacia do texto magno.

24
O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, p. 129.
34 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – Dirley da Cunha Júnior

Mas o controle de constitucionalidade, a par de assegurar a superioridade e


força normativa da Constituição, como forma de sempre manter a prevalência das
normas constitucionais, também se apresenta como um relevante meio de conter
os excessos, abusos e desvios de poder, garantindo os direitos fundamentais.
O controle de constitucionalidade, portanto, revela-se como uma im-
portante garantia da supremacia da Constituição, haurindo daí a sua própria
razão de ser.

2. CONCEITO, PRESSUPOSTOS E LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA


DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
2.1 Conceito
O controle de constitucionalidade, enquanto garantia de tutela da suprema-
cia da Constituição, é uma atividade de fiscalização da validade e conformidade
das leis e atos do poder público à vista de uma Constituição rígida, desenvolvida
por um ou vários órgãos constitucionalmente designados.
De feito, partindo da premissa teórica de que uma Constituição rígida é
suprema ante todos os comportamentos e atos do poder público, é indubita-
velmente manifesta a necessidade em que se encontra o próprio texto consti-
tucional de organizar um sistema ou processo adequado de sua própria defesa,
em face dos atentados que possa sofrer, quer do Poder Legislativo, através das
leis em geral, quer do Poder Executivo, através de atos normativos e concretos.
Assim, “é justamente a tais sistemas ou processos de defesa, ou guarda das
Constituições rígidas, frente a tais ataques, que hoje se denomina ‘controle da
constitucionalidade das leis’”.46 Para esse exato sentido apontam as lições de
Pedro Cruz Villalon47, que concebe o controle de constitucionalidade como
“el modo a través del cual un ordenamiento reacciona frente a la existencia de
normas contrarias a la Constitución”. Ou, consoante assegura o próprio autor,
como “la garantía jurisdiccional de la primacía de la Constitución sobre el res-
to del ordenamiento, pero de forma primordial sobre las leyes como suprema
manifestación ordinaria de la potestad normativa del Estado”.
Do ponto de vista prático, o controle de constitucionalidade ocorre assim:
quando houver dúvida se uma norma entra em conflito com a Constituição, o
órgão ou os órgãos competentes para o controle de constitucionalidade, quando
provocados, realizam uma operação de confronto entre as normas antagônicas,
de modo que, constatada a inequívoca lesão a preceito constitucional, a norma
violadora é declarada inconstitucional e tem retirada, em regra retroativamente, a
sua eficácia, deixando de irradiar efeitos, quer para o caso concreto (no controle
concreto), quer para todos ou “erga omnes” (no controle abstrato).
Cap. II • CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: A GARANTIA DA SUPREMACIA ... 35

Em suma, o controle de constitucionalidade consiste numa atividade de


verificação da conformidade ou adequação da lei ou do ato do poder público
com a Constituição.
Ante essas breves considerações conceituais, resulta claro que constitui
pressuposto universal e onipresente da existência de um controle de constitu-
cionalidade, a supremacia da Constituição. Fica evidente que, sem essa virtude
ou força condicionante da Constituição sobre todos os atos do poder público,
não haveria controle de constitucionalidade25. No entanto, a existência de uma
Constituição rígida e suprema, apesar de indispensável, não é o pressuposto
único para o desempenho da jurisdição constitucional por meio do controle
de constitucionalidade. Outros pressupostos são encarecidos, como veremos,
em sumária análise, em item separado.

2.2. Pressupostos
Como sentencia a doutrina26, o controle da constitucionalidade das leis e
dos atos normativos reclama os seguintes pressupostos: a) existência de uma
Constituição formal; b) a compreensão da Constituição como norma jurídica
fundamental e a c) instituição de, pelo menos, um órgão com competência para
o exercício dessa atividade de controle.

2.2.1. A Constituição formal


O controle da constitucionalidade dos atos normativos requer a existên-
cia de uma Constituição formal e escrita. Quer dizer, demanda um conjunto
normativo de princípios e regras escritas, plasmados num texto jurídico
supremo.
A chamada Constituição costumeira ou histórica (não escrita), por ser
juridicamente uma constituição flexível, não dispõe de um controle de constitu-
cionalidade, já que, nos países que a adotam, vige o princípio da supremacia do
parlamento, não se aceitando a fiscalização dos atos dele decorrentes.27

25
Pedro Cruz Villalon, op. cit., p. 26.
26
Ver, por todos, Clèmerson Merlin Clève, A fiscalização abstrata da constitucionalidade no
Direito brasileiro, p. 28-34; Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, p. 402-405
e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, T. II, p. 376-377.
27
É claro que, do ponto de vista sociológico, as Constituições costumeiras ou históricas são
naturalmente rígidas, devido a grande dificuldade de serem alteradas em face da realidade
da vida social. Assim, a Constituição inglesa (não escrita ou costumeira), do ponto de vista
jurídico, é flexível; contudo, do ponto de vista sociológico, ela é, sem sombra de dúvida, mais
rígida do que a Constituição brasileira (escrita).
36 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – Dirley da Cunha Júnior

2.2.2. A Constituição como norma jurídica fundamental, rígida e suprema


Ademais de uma Constituição formal, é necessário compreendê-la como uma
norma jurídica fundamental, rígida e suprema, a fim de que se possa distingui-la
das leis comuns. Aliás, a rigidez constitucional decorre exatamente da previsão
de um processo especial e agravado, reservado para a alteração das normas cons-
titucionais, significativamente distinto do processo comum e simples, previsto
para a elaboração e alteração das leis complementares e ordinárias. Essa diferença
de regime, consistente na exigência de um processo especial e demasiadamente
complexo para a alteração das normas constitucionais, confere à Constituição
o status de norma jurídica fundamental, suprema em relação a todas as outras.
O controle de constitucionalidade só se manifesta, portanto, nos lugares
que adotam Constituições rígidas28. Não obstante isso, é possível imaginar, como
bem sublinha Clèmerson MerlinClève29, a existência do controle de constitucio-
nalidade nos Estados que adotam Constituições flexíveis, pelo menos em relação
à inconstitucionalidade formal. A dizer, a inconstitucionalidade formal pode se
verificar em face de uma Constituição flexível, uma vez que, fixado nesta um
procedimento para a elaboração das leis, qualquer violação desse procedimento
consistirá em inconstitucionalidade30. Por outro lado, embora possível a incons-
titucionalidade formal, não é cogitável a inconstitucionalidade material perante
as Constituições flexíveis. A rigidez constitucional, sim, é que se coaduna com
os conceitos de inconstitucionalidade formal e material.
Decorre da rigidez constitucional, como já acentuado, a distinção entre as leis
constitucionais (superiores ou supremas) e as leis comuns (inferiores), existindo
entre elas, necessariamente, uma relação de hierarquia. Daí afirmar-se, corretamente,
que a supremacia constitucional decorre logicamente da rigidez da Constituição.
Assim, rigidez e supremacia constitucional constituem pressupostos
indeclináveis do controle de constitucionalidade, de modo que inexistirá este
inexistindo aqueles. Desse modo, a ideia de controle de constitucionalidade
das leis e atos do poder público surge como decorrência lógica da noção de
rigidez constitucional. Deveras, se no sistema das Constituições rígidas estas
não podem ser modificadas por leis ordinárias, mas tão-somente mediante os
processos especiais agravados de emenda ou revisão constitucional, tracejados
pela própria Constituição, segue-se logicamente que toda lei ordinária contrária
à Constituição não pode ter validez, é radicalmente nula, é inconstitucional31,
devendo ser expulsa do sistema jurídico.

28
Clèmerson Merlin Clève, op. cit., p. 31.
29
Ibidem, mesma página.
30
Ibidem, mesma página.
31
J. H. Meirelles Teixeira, Curso de Direito Constitucional, p. 372.
Cap. II • CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: A GARANTIA DA SUPREMACIA ... 37

2.2.3 A previsão de um órgão competente

A defesa de uma Constituição formal e suprema, já asseveramos, operacio-


naliza-se com o controle da constitucionalidade das leis e atos do poder público.
Mas esse controle somente existirá se a própria Constituição previr, expressa ou
implicitamente, um ou mais órgãos com competência para realizá-lo.
Esse órgão tanto pode exercer função jurisdicional como política; tanto
pode, no primeiro caso, integrar a estrutura do Poder Judiciário como situar-se
fora dela. O importante é que tenha competência para exercer o controle da
constitucionalidade dos atos do Poder Público.32
No Brasil, desde a primeira Constituição que consagrou o controle de
constitucionalidade entre nós (1891), e por influência da doutrina da judicial
review of legislation do direito norte-americano, cumpre ao Poder Judiciário o
exercício do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do poder públi-
co, em que pese a faculdade atribuída aos Poderes Legislativo e Executivo de
desempenharem, em situações excepcionais, o controle preventivo e repressivo
da constitucionalidade de certos atos e projetos legislativos.

2.3 O Controle Judicial de Constitucionalidade e sua legitimidade demo-


crática ante o novo paradigma do Estado Democrático de Direito. Breves
anotações
Um dos maiores óbices ao reconhecimento do controle judicial de consti-
tucionalidade das leis é a invocada falta de legitimidade democrática dos juízes,
que não são eleitos nem representam, consequentemente, a vontade popular.
Esse obstáculo é frequentemente levantado sob o argumento de que não é ad-
missível que juízes não eleitos pelo voto popular33 possam controlar e invalidar
leis elaboradas por um Poder Legislativo eleito para tal e aplicadas por um Poder

32
Op. cit., p. 34.
33
Isto em tese, porque, como lembra José de Sousa e Brito, os juízes constitucionais tam-
bém recebem a sua legitimação democrática do sufrágio popular, embora indiretamente,
através da intervenção dos diretamente eleitos no processo de nomeação dos juízes
(‘Jurisdição Constitucional e Princípio Democrático’. In: Legitimidade e Legitimação da
Justiça Constitucional. Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional, p. 42).
Lembramos que, no caso brasileiro, os juízes do Supremo Tribunal Federal são nomeados
pelo Presidente da República eleito, após a aprovação de seus nomes pelos Senadores,
também eleitos. Embora o sufrágio universal esteja na origem de toda decisão demo-
crática, ele, por si só, não assegura o caráter democrático da decisão, razão porque se
impõe descortinarmos outros elementos legitimadores da jurisdição constitucional,
tarefa que se propõe o texto.
38 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – Dirley da Cunha Júnior

Executivo também eleito. Para estes autores, a atuação dos juízes no controle de
constitucionalidade das leis (no âmbito da chamada justiça constitucional) pode
causar o que Dieter Grimm34 designou de “risco democrático” (demokratisches
Risiko), agravado pelo fato de que, segundo aponta Gilmar Ferreira Mendes, e
com apoio em Grimm,

“as decisões da Corte Constitucional estão inevitavelmente imunes a qualquer


controle democrático. Essas decisões podem anular, sob a invocação de um
direito superior que, em parte, apenas é explicitado no processo decisório,
a produção de um órgão direta e democraticamente legitimado. Embora
não se negue que também as Cortes ordinárias são dotadas de um poder de
conformação bastante amplo, é certo que elas podem ter a sua atuação repro-
gramada a partir de uma simples decisão do legislador ordinário. Ao revés,
eventual correção da jurisprudência de uma Corte Constitucional somente
há de se fazer, quando possível, mediante emenda”. (grifado no original)35.

Isso demonstra, ainda conforme Gilmar Mendes, que o controle judicial


de constitucionalidade não está livre do perigo de converter uma vantagem
democrática num eventual risco para a democracia, de tal modo que, concebido
para reforçar o desenvolvimento do processo democrático, ele pode bloquear o
desenvolvimento constitucional do Estado. Contudo, esse paradoxo, consistente
na ameaça à democracia por quem está incumbido de protegê-la, não pode ser
solucionado com a extinção ou, de qualquer modo, em desfavor do controle
judicial de constitucionalidade das leis. Nesse passo, deve-se fazer um esforço
no sentido de preservar o equilíbrio do sistema e evitar disfunções36.
O tema tem sido objeto de forte testilha doutrinária. Contudo, importa
salientar, desde logo, com Eduardo Garcia de Enterría, que a controvérsia a
respeito da legitimidade democrática da justiça constitucional e do contro-
le judicial de constitucionalidade “ha sido ya juzgada por el Tribunal de la
Historia, ante el cual la justicia constitucional no solo ha sido absuelta de tan
graves cargos, sino que se ha afianzado definitivamente como una técnica
quintaesenciada de gobierno humano”.37 Deveras, a experiência constitucio-
nal de vários Países tem apontado para o fato de que o Estado Democrático
de Direito não pode funcionar nem realizar seus valores fundamentais sem

34
Verfassungsgerichtsbarkeit – Funktion und Funktionsgrenzen in demokratischem Staat, in Jus-
-Didaktik, Heft 4, Munique, 1977, p. 83, apud Gilmar Ferreira Mendes, Direitos Fundamentais
e Controle de Constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional, p. 503.
35
Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional,
p. 503.
36
Ibidem, p. 504.
37
La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, op. cit., p. 175.
Cap. II • CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: A GARANTIA DA SUPREMACIA ... 39

uma justiça constitucional, de modo que, guardadas as peculiaridades destes


Estados, a justiça constitucional deve ser considerada como uma condição de
possibilidade do Estado Democrático de Direito38. Ao revés de apontar dúvi-
das quanto à legitimidade da justiça constitucional e, com ela, do controle
judicial de constitucionalidade, devemos ter em mente que, hodiernamente,
a existência da justiça constitucional e de uma fortalecida e ativa jurisdição
constitucional tornaram-se um requisito de legitimação e credibilidade polí-
tica dos próprios regimes constitucionais democráticos, haja vista que a ideia
de justiça constitucional passou a ser progressivamente compreendida como
elemento necessário da própria definição do Estado Democrático de Direito.
Mesmo na França, que tradicionalmente resiste39 à ideia de controle jurisdicio-
nal da constitucionalidade das leis, o Conseil Constitutionnel tem evoluído no
sentido de se transformar num verdadeiro Tribunal Constitucional, ao tempo
que a doutrina pugna pelo alargamento deste poder aos tribunais comuns
com a adoção do modelo americano de controle difuso-incidental. Outro
tanto sucede na Inglaterra, onde já se fala, sem maiores reações, na criação
de uma carta de direitos fundamentais, garantida constitucionalmente contra
o legislador, e de confiar a sua defesa aos tribunais40. Ademais, há neste País
uma tendência em se criar um Tribunal Constitucional.
É inegável, portanto, que a efetividade e o sucesso de uma Constituição
dependem fundamentalmente de um controle judicial de constitucionalidade,
que é a sua maior garantia. Sem esta garantia, afirma com propriedade o Pro-
fessor argentino RAUL GUSTAVO FERREYRA41, a Constituição fica vulnerável
e exposta a violações de todas as ordens.

38
Lenio Luiz Streck, Jurisdição Constitucional..., op. cit., p. 100. O autor conclui suas reflexões
afirmando que o “caráter existencial do Estado Democrático de Direito passa a ser, nessa
espiral hermenêutica, a condição de possibilidade do agir legítimo de uma instância encarre-
gada até mesmo – no limite – para viabilizar políticas públicas decorrentes de inconstitucio-
nalidades por omissão e repetidamente, constituir-se tal instância – a justiça constitucional
– como remédio (por vezes amargo, mas necessário) contra maiorias” (p. 106).
39
Essa resistência tem por base a ideia da separação dos poderes e a inoportunidade de qualquer
interferência do Poder Judiciário na atividade legislativa das assembleias populares.
40
Vital Moreira. ‘Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade’. In: Legitimidade e
legitimação da justiça constitucional, p. 178 e ss.
41
Reforma constitucional y control de constitucionalidad. Límites a la judiciabilidad de la en-
mienda. 1ª Ed, Buenos Aires: Ediar, 2007, p. 93: “La ‘garantia jurisdiccional de la constitución’
o ‘control o revisión de constitucionalidad’ es el componente del sistema cuyo adecuado fun-
cionamiento es el que mayor aptitud reviste para garantizar que la constitución se mantenga
como disposición suprema del sistema jurídico estatal, respaldando la estructura jerárquica
de éste”.
40 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – Dirley da Cunha Júnior

Desse modo, a ideia de soberania do Legislativo, em razão da representati-


vidade popular, e da separação de Poderes, com a submissão do Judiciário à lei,
cederam espaço para o novo paradigma do Estado Democrático de Direito, que
se assenta num regime democrático e na garantia dos direitos fundamentais, onde
a justiça constitucional é nota essencial. Com efeito, a soberania do Legislativo
foi substituída pela soberania e supremacia da Constituição, em face da qual o
Legislativo é um Poder constituído e vinculado pelas normas constitucionais,
e o dogma da separação de Poderes foi superado pela prevalência dos direitos
fundamentais ante o Estado.
Destarte, o constitucionalismo contemporâneo encarece um Estado
Democrático de Direito construído sobre os pilares do regime democrático e
dos direitos fundamentais, de tal modo que as Constituições contemporâneas
imunizam-se contra as próprias maiorias, quando estas não estão a serviço da
realização dos direitos fundamentais ou tendem a sufocar as minorias. Nesse
particular, vale o registro da “crise” pela qual passa o sistema representativo, onde
a maioria parlamentar, em regra, não corresponde com a vontade popular, uma
vez que a representação política não mais se presta como efetivo instrumento de
representação dos interesses da população, circunstância que vem fortalecendo
a descoberta de novos instrumentos de representação popular. Neste cenário de
crise do sistema representativo, ainda mais agravado pela busca incessante, por
outros caminhos legítimos, de pressão ao governo, torna-se cada vez mais ne-
cessário o reconhecimento da jurisdição constitucional como remédio eficiente
contra as maiorias. A crise da representação política e, consequentemente, da
democracia representativa calcada na ideia da representação popular sintetiza
a compreensão de que a lei, outrora expressão da vontade geral, tem se tornado
um veículo de opressão e manifesto meio de violação dos direitos fundamentais
e da Constituição. A história e a experiência constitucional vêm demonstrando
que os parlamentos, eleitos para servirem à vontade popular, têm prestado um
desserviço à população – com a elaboração de leis conformadas e comprometidas
tão-somente com a vontade governamental e à custa dos direitos fundamentais42.
É nesse contexto que emerge a necessidade de uma justiça constitucional capaz
de proteger, através do controle de constitucionalidade, os direitos fundamentais,
as minorias, o sistema democrático e toda a Constituição. Isso porque, reitera-

42
Jean Rivero salienta que “a ideia de representação da vontade do cidadão pelo eleito, tem
progressivamente diminuído na realidade, mediante a tomada de consciência pelo eleitor
de que, definitivamente, os homens que são eleitos atuam para si mesmos e não para eles. O
cidadão, ante essa avalancha de leis, cada vez mais completas, cada vez mais técnicas, cada
vez mais conformadas com a vontade governamental, não reconhece sua própria vontade”. E
arremata o autor: “essa transformação da lei conduz à tomada de consciência da necessidade
de proteger os direitos fundamentais, inclusive perante a própria lei” (‘A modo de sintesis.
In: Vários Autores. Tribunales constitucionales europeus y derechos fundamentales, p. 667).
Cap. II • CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: A GARANTIA DA SUPREMACIA ... 41

mos, o sistema democrático fica gravemente afetado com qualquer violação a


um direito fundamental reconhecido na Constituição.
O regime democrático e a necessidade de defesa e realização dos direitos
fundamentais – premissas básicas do Estado Democrático de Direito – têm exi-
gido dos órgãos da justiça constitucional uma atuação mais ativa na efetivação e
no desenvolvimento das normas constitucionais, máxime em face de omissões
estatais lesivas a direitos fundamentais. Aqui reside, sem dúvida, a melhor das
justificativas da legitimidade da justiça constitucional e do controle judicial de
constitucionalidade, como instrumento de efetivo controle das ações e omissões
do poder público, cumprindo lembrar que, com Robert G. Neumann43, o que
caracteriza a democracia não é, propriamente, a intervenção do povo na feitura
das leis – hoje mera ficção – mas, sim, o respeito aos direitos fundamentais da
pessoa humana, cuja guarda e defesa incumbe ao Poder Judiciário. A propósito,

“A defesa da Constituição da República representa o encargo mais relevante


do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal — que é o guar-
dião da Constituição, por expressa delegação do Poder Constituinte — não
pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar
no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integrida-
de do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do
ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a
legitimidade das instituições da República restarão profundamente compro-
metidas. O inaceitável desprezo pela Constituição não pode converter-se em
prática governamental consentida. Ao menos, enquanto houver um Poder
Judiciário independente e consciente de sua alta responsabilidade política,
social e jurídico-institucional.” 44

Destarte, não procede a objeção dirigida à legitimidade da justiça cons-


titucional, sob o argumento de que o controle de constitucionalidade das leis
realizado pelos juízes fere de frente o princípio da separação de Poderes e
restringe a “vontade nacional” expressa através das leis votadas no parlamento.
Bem a propósito, é esclarecedora a resposta que Meirelles Teixeira, com o peso
de sua autoridade, apresenta, formulada nestes exatos termos:

“A essa objeção deve-se responder, entretanto, que o órgão controlador não


opõe sua própria vontade ao Legislativo, mas a vontade mesma da Nação,
expressa de modo mais elevado, mais vigoroso e mais solene, na Constituição.

43
‘Die Verfassungsentwicklung in den Vereinigten Staaten Von Amerika 1939-1946. In: Öes-
terreichische Zeitschrift für Öffentliches Recht, 1946, apud C. A. Lúcio Bittencourt, O Contôle
Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis, p. 22.
44
ADI 2.010-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/04/02.
42 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – Dirley da Cunha Júnior

Entre a vontade da Nação, estabelecida de modo irreformável por lei ordi-


nária, na Constituição, e a vontade da Nação manifestada pelo Legislativo,
através da lei ordinária, e em desacordo com a Constituição, é evidente que
só à primeira cabe prevalecer. Se num país de rigidez constitucional acha-se
a lei ordinária em desacordo com a Constituição, essa lei ordinária é apenas
uma ‘aparência’ da vontade nacional, uma pseudovontade da Nação, pois a
autêntica, a verdadeira vontade nacional já se manifestou, cercando-se de
todas as cautelas, soberana e inconfundível, nos preceitos constitucionais”.45
(grifado no original).

No mesmo sentido, vale a pena lembrar o que disse Alexander Hamilton


a respeito do controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, ao explicar
o conteúdo da Constituição norte-americana, então recentemente elaborada, já
se antecipando à célebre decisão do Chief Justice Marshall, no lead case Marbury
v. Madison:

“Alguma perplexidade quanto ao poder dos tribunais de pronunciar a nu-


lidade de atos legislativos contrários à constituição tem surgido, fundada
na suposição de que tal doutrina implicaria na superioridade do Judiciário
sobre o Legislativo. Afirma-se que a autoridade que pode declarar os atos
da outra nulos deve ser necessariamente superior àquela cujos atos podem
ser declarados nulos. (...)
Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. (...)
A presunção natural, à falta de norma expressa, não pode ser a de que o
próprio órgão legislativo seja o juiz de seus poderes e que sua interpretação
sobre eles vincula os outros Poderes. (...) É muito mais racional supor que
os tribunais é que têm a missão de figurar como corpo intermediário entre
o povo e o Legislativo, dentre outras razões, para assegurar que este último
se contenha dentro dos poderes que lhe foram deferidos. A interpretação das
leis é o campo próprio e peculiar dos tribunais. Aos juízes cabe determinar o
sentido da Constituição e das leis emanadas do órgão legislativo.
Esta conclusão não importa, em nenhuma hipótese, em superioridade do
Judiciário sobre o Legislativo. Significa, tão-somente, que o poder do povo é
superior a ambos; e que onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que
edita, situar-se em oposição à vontade do povo, declarada na Constituição,
os juízes devem curvar-se à última, e não à primeira”.46

45
Curso de Direito Constitucional, op. cit., p. 375.
46
Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, The Federalist Papers, 1981, p. 226, apud
Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, op. cit., p. 155-156. Ver
também Jorge Miranda, Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade, p. 54.

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