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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

Thiago Cedrez da Silva


Edgar Àvila Gandra
(Organizadores)

HISTÓRIA EM PERSPECTIVA:
COLETÂNEA DE ARTIGOS

Editora Livrologia
Chapecó-SC
2020
HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

EDITORA LIVROLOGIA CONSELHO EDITORIAL


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Coleção: Mosaico Temático


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Preparação e Revisão: Equipe Livrologia.
Diagramação: Ana Laura Baldo e Ivo Dickmann
Impressão e acabamento: META

Ficha Catalográfica
____________________________________________________________________________

H673 História em perspectiva: coletânea de artigos / Thiago Cedrez da Silva, Ed-


gar Àvila Gandra (organizadores). – Chapecó: Livrologia, 2020.

ISBN 978-65-86218-17-6

1. História. I. Silva, Thiago Cedrez da. II. Gandra, Edgar Àvila.

2020-0015 CDD 981 – 22.ed.


____________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056

© 2020
Proibida a reprodução total ou parcial nos termos da lei.
“É A NOITE DA BRUXA”: O IMAGINÁRIO DA MULHER BRUXA NA
PRODUÇÃO DA BANDA GHOST
Lucas Marques Vilhena Motta
Iago Silva da Cruz
Sara Schneider de Bittencourt

“POR MEIO DO NOSSO SABBATH ELA ESTÁ LIBERTA”


O campo de pesquisa científica que aborda o gênero musical do He-
avy Metal enquanto fenômeno histórico e cultural é relativamente novo,
tendo somente em torno de 15 anos em que pesquisadores se debruçaram a
entender essa expressão dentro de um contexto que se interliga simbolica-
mente, molda identidades e conflitos dentro das sociedades pós-industriais.
Como percussores dessa bibliografia, podemos apontar para os trabalhos de
Robert Walser (1993) e Deena Weinstein (2000) que se preocuparam com as
referidas questões e que acabaram se tornando trabalhos de grande relevân-
cia para o estudo do gênero Heavy Metal. No Brasil, podemos destacar o
trabalho de Janotti Junior (2002) que investigou os ―modos como os produtos
midiáticos apresentam determinados valores, gostos e afetos privilegiados
pelo gênero musical‖ (CARDOSO FILHO, 2006, p. 205) e também o trabalho
de Cláudia Azevedo (2007), onde a autora realizou uma pesquisa etnográfica
afim de entender a ―vigilância de fronteiras‖ estéticas dentro dos subgêneros
do Metal entre os ―metaleiros‖ e também fanzines.
O que estes trabalhos, de certa forma abordam – e que será importan-
te para a nossa análise – é o que WEINSTEIN (2000) chama de ―pânicos mo-
rais‖ que o movimento gera dentro da sociedade desde seu surgimento por
este abordar temas considerados tabus como por exemplo: satanismo, con-
sumo de drogas, criticas religiosas, política, entre outros. E é a partir de te-
mas litúrgicos do catolicismo, que a Banda de metal Ghost se apropria e sub-
verte para tecer uma crítica voraz aos costumes cristãos, e de certa forma,
inovador já que os elementos satânicos e a contracultura não sejam nenhuma
novidade se tratando do Metal.
A banda originária da Suécia, Ghost, surgiu em 2010 após o lança-
mento de seu primeiro álbum intitulado Opus Eponymous. A característica
mais chamativa da banda eram suas vestimentas, os instrumentistas usavam
robes negros que cobriam todo o corpo, com exceção das mãos, e usavam
uma máscara semelhante aos médicos medievais, eles são denominados co-
mo Nameless Ghouls (carniçais sem nome, em tradução livre). Essas figuras
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negras eram lideradas por um papa, com roupas que parodiavam sua santi-
dade, conhecido como Papa Emeritus I era responsável por comandar os vo-
cais (SENRA, 2017). Cada disco da banda representa uma ―era‖ e com isso
um novo papa é necessário, atualmente o Ghost se encontra no quarto disco,
quem lidera o ―culto‖ é o Cardinal Copia que possuiu uma roupagem e pre-
sença de palco mais semelhante à artistas pops.
Segundo Senra, outra singularidade do Ghost é sua simbologia:

Como sugerido pela cruz invertida presente no ―grucifixo‖, tem-se aqui uma
mensagem anticristã e, notoriamente, satanista. Porém, deve-se lembrar que este
símbolo está impresso nos principais signos católicos ostentados pelo Papa
Emeritus. A férula possui como maior significado o poder de ―governar‖ e de
―corrigir‖ conferido ao Papa. A mitra possui a ponta pois esta apontaria para
Deus. E a casula, que possui os símbolos da liturgia, representa a passagem do
membro do clero para um reino espiritual. Vê-se, mais uma vez, como o Ghost
se apropria de signos da liturgia católica e imprime sobre eles sua própria repre-
sentação sígnica (no caso, a ―cruz do Ghost‖). Isso sugere que a banda, muito
mais do que uma concepção lírica e imagética que se propõe a atacar a figura do
Deus cristão, se propõe a estabelecer um culto ao ―adversário‖, todavia, utili-
zando as ferramentas ritualísticas do culto católico (SENRA, 2017, p 74-75).

O grupo, a partir da análise de Senra, utiliza de paródias e sátiras pa-


ra realizar suas críticas aos dogmas católicos e ao conservadorismo. As letras
das músicas complementam a performance dos músicos, tornando um show
do Ghost uma ―missa macabra‖ - nas palavras do site G11. Mais recentemen-
te, em 2018, a banda também foi alvo de protestos de religiosos no Texas nos
Estados Unidos, onde um pastor reuniu pessoas que queriam impedir a ban-
da de realizar o show. Esta matéria foi divulgada por um grande site gospel
brasileiro2. A partir disto pode-se notar que a banda além de realizar críticas
aos dogmas cristãos também é vítima de diversas expressões de protestos
por parte da comunidade católica.
Visto este breve histórico do Ghost se torna relevante analisar suas
produções musicais. Nestas é notório a presença de músicas que abordam
questões pertinentes ao gênero feminino. Composições como Stand by Him
(2010), Witch image (2016) e Kiss the Go-Goat (2019) possuem letras em torno

1 O termo ―missa macabra‖ foi utilizado como forma de referência ao show do Ghost no Rock in
Rio 2013. Fonte: http://g1.globo.com/musica/rock-in-rio/2013/noticia/2013/09/missa-
macabra-do-ghost-e-mal-recebida-no-palco-mundo.html Acessado em: 9 de novembro de 2019
2 Fonte: https://www.gospelprime.com.br/pastor-convoca-vigilia-antes-de-show-de-banda-
adoradora-do-diabo/ Acessado em 10 de Outubro de 2019

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do feminino. A partir disto, procuramos identificaras formas com que a ban-


da trabalha com a imagem da mulher em suas polêmicas letras.

“APÓS AS MENTIRAS DA BÍBLIA”


Visto a importância da música, torna-se necessário definir alguns
conceitos que são relevantes para a constituição desta pesquisa. O primeiro
deles é o conceito de mídia, o qual, segundo Clüver, pode ser compreendido
como ―um processo dinâmico e interativo que envolve a produção e a recep-
ção de signos por seres humanos como emissores e receptores‖ (CLÜVER,
2008, p. 9). O autor também busca homogeneizar o conceito, pois os trata
como textos; não importando sua materialidade ou especificidade.
A partir desta conceituação, fica o questionamento: Qual o ―poder‖
que a mídia (música) tem sobre as pessoas? Thompson (1998) afirma que a
comunicação midiática teria como uma de suas funções propagar conteúdo
simbólico, este estando diretamente ligado a intenção do autor. Ou seja, atra-
vés da análise das produções do Ghost podemos entender, não só, as ideias
que o grupo intenciona transmitir mas também compreender a crítica a soci-
edade contemporânea e ao conservadorismo. Junto ao pensamento de Tho-
mpson, Kellner salienta que:

(...) o entretenimento e a ficção articulam conflitos, temores, esperanças e sonhos


de indivíduos e grupos que enfrentam um mundo turbulento e incerto. As lutas
concretas de cada sociedade são postas em cena nos textos da mídia, especial-
mente na mídia comercial da indústria cultural cujos textos devem repercutir as
preocupações do povo, se quiserem ser populares e lucrativos. (KELLNER, 2001,
p. 32)

De forma complementar, Kellner também demarca outra característi-


ca da mídia contemporânea:

A cultura da mídia é industrial; organiza-se com base no modelo de produção


em massa e é produzida para a massa de acordo com tipos (gêneros), segundo
fórmulas, códigos e normas convencionais. É, portanto, uma forma de cultura
comercial, e seus produtos são mercadorias que tentam atrair o lucro privado
produzido por empresas gigantescas que estão interessadas na acumulação de
capital. (KELLNER, 2001, p. 9)

Se os textos midiáticos repercutem as disputas sociais, através de um


estudo acerca de seus conteúdos pode-se entender aspectos destes conflitos.
Contudo, Kellner nos alerta para a questão comercial da mídia contemporâ-
nea, apesar do Ghost buscar criticar a sociedade; o lucro também é pondera-

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do na equação que gera o produto final. Apesar disto, Kellner (2001) também
destaca a importância da ―cultura da mídia‖ possuiu em formar uma peda-
gogia cultural, ou seja, de apresentar valores e influenciar indivíduos; isto
nos ajuda a definir a relevância de analisar que tipo de ideal feminino a ban-
da visa construir, pois certamente terá alguma ressonância com seus ouvin-
tes.
Um dos conceitos basilares deste trabalho é o conceito de imaginário.
Retomando o que foi dito por Thompson (1998), o qual afirma que a mídia
transmite valores simbólicos, fica o questionamento: O que dá poder a estes
simbolismos? Para iniciar esta argumentação, Juremir Silva inicia seu livro
As Tecnologias do Imaginário (2012) dizendo que ―Todo imaginário é real. To-
do real é imaginário. O homem só existe na realidade imaginal. Não há vida
simbólica fora do imaginário‖ (SILVA, 2012, p. 7). Silva deixa claro que o
imaginário é o que dá ―valor‖ que por consequência são validados pelo indi-
víduo. Este pensamento entre em ressonância com o proposto por Ruiz, ―não
há racionalidade, nem ciência ou tecnologia fora da imaginação, assim como
não existe a imaginação fora da dimensão racional‖ (RUIZ, 2003, p. 32).
Com isto posto, definir o conceito de imaginário se torna imperativo.
Silva o define como:

(…) Um reservatório/motor. Reservatório, agrega imagens, sentimentos, lem-


branças, experiências, visões do real que realizam o imaginado, leituras da vida
e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de ver, de
ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo. O imaginário é uma dis-
torção involuntária do vivido que se cristaliza como marca individual ou grupal.
Diferente do imaginado projeção irreal que poderá se tornar real, o imaginário
emana do real, estrutura-se como ideal e retorna ao real como elemento propul-
sor. (SILVA, 2012, p. 11-12)

O imaginário como um reservatório de elementos da percepção hu-


mana não é exclusividade de Silva, para Barros ―o imaginário (é) como um
sistema ou universo complexo e interativo que abrange a produção e circula-
ção de imagens visuais, mentais e verbais, incorporando sistemas simbólicos
diversificados e atuando na construção de representações diversas‖ (BAR-
ROS, 2007, p. 27). Além de ser um agregador, o imaginário também pode
influenciar indivíduos por formas diversas, pois ―o mundo nunca pode ser
apresentado; ele sempre tem que ser representado‖ (RUIZ, 2003, p. 59). To-
dos os seres humanos compreendem o mundo ao seu redor por meio de re-
presentações, estas sendo construídas por meio do imaginário.

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Visto que o imaginário pode influenciar a realidade e que o mesmo


pode ser compreendido como um grande ―reservatório/motor‖, é necessário
propor de que formar se molda este reservatório. Wunenburger explica que:

As representações, mentais ou materializadas sob a forma de obras, da imagina-


ção devem sua consistência, sua substancialidade, sua perenidade a uma consti-
tuição linguística própria que as distingue dos textos de informação objetiva ou
formalizados de modo abstrato. Esse teor imaginário de um mito, de um poema,
de um relato histórico, de um devaneio de paisagem relaciona-se antes de tudo
ao poder das imagens utilizadas. A gênese de um imaginário é sem dúvida con-
dicionada pelo tipo de meio e pela parte ocupada pela subjetividade ativa.
(WUNENBURGER, 2007, p. 40)

O pensamento de Wunenburger nos ajuda a entender que existem


formas eficazes de se construir o imaginário. As variáveis para esta constru-
ção são: A forma que o significado será veiculado e a aceitação do ―público‖.
Na atualidade tem-se as produções midiáticas como um dos principais moto-
res para renovar/inventar imaginários, pois ―a riqueza de um texto imaginá-
rio vem por conseguinte da virtualidade das significações, de sua potenciali-
dade de surgimento de sentidos novos (...)‖ (WUNENBURGER, 2007, p. 40).
Em complemento ao exposto por Wunenburguer, Maffesoli salienta
que ―Não é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário. A existência
de um imaginário determina a existência de conjuntos de imagens‖ (MAF-
FESOLI, 2001, p. 76). Com isto pode-se concluir que o conteúdo presente no
imaginário é capaz de gerar imagens (representações) no ―mundo real‖, estas
representações, segundo Hall (2016), são construídas a partir da linguagem e
dos signos culturais compartilhados. Portanto, o Ghost se apropria de um
imaginário já consolidado (Bruxaria e Bruxas) se aproveitando dos signos
culturais da cultura Ocidental cristã e criam representações através de suas
músicas.
Tendo exposto a relevância de compreender o imaginário e suas rela-
ções com a realidade, como podemos utilizá-lo como fonte de análise históri-
ca? Barros elucida que:

O historiador do imaginário começa a fazer uma história problematizada quan-


do relaciona as imagens, os símbolos, os mitos, as visões de mundo a questões
sociais e políticas de maior interesse – quando trabalha os elementos do imagi-
nário não como um fim em si mesmos, mas como elementos para a compreensão
da vida social, econômica, política, cultural e religiosa. O imaginário deve forne-
cer materiais para o estabelecimento de inter-conexões diversas. (BARROS, 2007,
p. 31)

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O método de análise utilizado, parte da sugestão posta por Barros, para


isso será feito uma revisão da historiografia sobre a bruxaria e as bruxas e pos-
teriormente será contrastado com as letras da banda; com a finalidade de verifi-
car as mudanças do imaginário e suas ressignificações. Muitas questões relacio-
nadas às mulheres nas músicas são advindas do imaginário da bruxaria, cons-
truído durante a Idade Média, sendo ressignificado nas letras. Sendo o imagi-
nário medieval ainda fortemente presente no imaginário coletivo contemporâ-
neo (LE GOFF, 2009), devido a sua grande capacidade de propagação
(WUNENBURGER, 2007), na continuidade deste trabalho iremos explorar o
imaginário relacionado às bruxas e a bruxaria interligando com as letras da
banda.

“ELA É UMA MULHER MÁ COM UMA ANTIGA ALMA MÁ”


São incontáveis as representações que a séculos tem retratado a figu-
ra da mulher, assim como diversos são os elementos comunicacionais que
utilizam essa imagem, seja para propagar, seja para contestar as narrativas
que se constroem em torno dela. Uma dicotomia se impõe na maioria das
cenas que descrevem as mulheres nos diferentes períodos da história, pura-
profana; bondosa-maléfica; feia-bonita; contida-histérica; obediente-
desobediente, e assim por diante. Essa ―particularidade‖ dualista não se ins-
tala no imaginário social de forma natural, ela é constante e lentamente cons-
truída em volta de um sistema antigo de patriarcalismo pulsante, em que a
necessidade de controle do feminino é fundamental para que o status quo se
mantenha.
Obras como o manual inquisitorial do século XV, Malleus Maleficarum
(2011, p. 114), nos mostra a intensidade desse dualismo e misoginia entra-
nhada quando fala ―que há de ser a mulher senão uma adversária da amiza-
de, um castigo inevitável, um mal necessário, uma tentação natural, uma
calamidade desejável, um perigo doméstico, um deleite nocivo, um mal da
natureza pintado de lindas cores‖. Sobre essa passagem Russell e Alexander
(2019, p. 148) irão compreender que

(...) O domínio masculino na religião, na literatura e no direito criou um simbo-


lismo e uma mitologia especiais acerca das mulheres, que se caracterizaram por
uma ambivalência tripartite. A mulher é virgem pura; a deusa Artemis era irmã
virgem de Apolo, a protetora do parto e a fiadora da fertilidade dos animais;
mas também era Hécate, a deusa subterrânea da bruxaria e da feitiçaria, rainha
da morte e dos espectros que aparecia nas encruzilhadas seguida por cães infer-
nais. Tradicionalmente, o cristianismo teve dificuldades para aceitar o princípio

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de ambivalência na deidade: o Deus cristão era inteiramente bom e totalmente


masculino, excluídos que foram os princípios feminino e do mal. A repressão ao
mal na divindade levou ao desenvolvimento do conceito de Diabo. A repressão
ao princípio feminino produziu uma nova ambivalência de idealização e des-
dém.

Logo, esse mesmo elemento que projeta especificidades à figura da


mulher tem sido utilizado já no século XX, pelas diferentes mídias do campo
cultural, e aqui, damos especial atenção a uma figura que ―brinca‖ com o
imaginário popular da sociedade desde o fim do período medieval até a atu-
alidade, a bruxa, um dos exemplos mais concretos da dicotomia e da misogi-
nia que falamos. Por vezes é retratada como um indivíduo sensível e com
habilidades bastante características, e em outros momentos se torna um de-
vastador e assustador ser. O uso da sua imagem tem sido intensificado em
mídias como filmes, séries televisivas e músicas, especialmente pós década
de 1980, quando a união entre o avanço da internet e o crescente interesse
pela bruxaria moderna emergem e conquistam os olhos das mídias como um
todo (RUSSELL; ALEXANDER, 2019, p. 221).
Assim, a partir de diferentes motivações, a banda Ghost acaba por cri-
ar uma narrativa ácida e provocativa a respeito da representação da mulher-
bruxa que vai ao encontro do imaginário construído no século XV, como ire-
mos mostrar em nossas análises. Essa narrativa acaba por capturar – intencio-
nalmente ou não – suas letras de uma maneira que acaba por nos contar uma
história sobre essas figuras femininas que abraçaram como tema de suas músi-
cas, que acabam conversando com distintas formas de comunicação artística
como, por exemplo, a literatura e a pintura. É na busca em criticar os dogmas,
em especial, da igreja católica, que Ghost se torna peculiarmente sarcástico nas
suas criações, trazendo um posicionamento marcante em suas escolhas.
Partindo desses entendimentos, iniciemos com uma das músicas que
fez parte do disco Opus Eponymous, lançado no ano de 2010, chamada Eliza-
beth. Temos aqui a referência ao personagem histórico de Elisabeth Bathory,
também conhecida como a Condessa Sangrenta. Bathory, uma condessa
húngara do século XVII, foi acusada de capturar e torturar centenas de mu-
lheres em sua propriedade, teria sido responsável pela morte de seiscentas
jovens em apenas seis anos. Uma das práticas atribuída a ela era banhar-se
em sangue das mulheres que assassinava e apesar de não ter havido nenhum
relato que Bathory tenha em algum momento ingerido o sangue de suas ví-
timas, sua ligação com o vampirismo surge quando alguns dos casos de seus
assassinatos foram a público em 1720, exatamente no período em que parte

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da Europa vive um surto histérico relacionado aos vampiros e ao sobrenatu-


ral de forma geral (TECCHIO, 2013; PASCOAL, 2012).
O vampirismo é um dos ―itens‖ na lista do imaginário construído da
bruxaria, e esse imaginário se desenvolve no tempo dos sumérios e babilôni-
cos, quando, no processo de criar uma elaborada demonologia, identificam a
mãe de todos os demônios, Lilitu – a Lilith da crença hebraica – que passava
as noites seduzindo e bebendo o sangue de suas vítimas (RUSSELL; ALE-
XANDER, 2019, p.39). A antiguidade de sua criação e a pesada obscuridade
que a envolve fazem com que a mitologia envolta em Lilith se torne um
campo minado de rica sobrenaturalidade.
No que tange a música de Ghost, sua referência, como na maioria de
suas letras, é diretamente clara, primeiramente pelo nome dado, que faz
menção a personagem (Bathory) que é diretamente ligada a figura de Lilith e,
sequencialmente, da imagem da bruxa. Vemos especificamente no corpo da
música alguns trechos em particular que se sobressaem em relação ao tema,
como ―Ela era uma mulher má com uma antiga alma má3―, ―Seu pacto com
Satanás4―, ―seu desejo por sangue5―, ―nossa condessa anciã6―, ―banhar-se em
sangue fresco puro; Ela deseja camponesas virgens mortas7―. É como se a
banda quisesse contar uma história sobre o imaginário que se criou sobre a
bruxaria, e a inicia sua narrativa através de um personagem de carne e osso
que resume um dos diversos ―rostos‖ que a bruxa pode adquirir. O sangue,
especificamente de mulheres, que usa para se banhar em ritual para manter
sua juventude, como em um pacto que (segundo imaginário) só poderia sur-
gir por meio de pacto demoníaco, se firma em música, bem como se firmou
na literatura, no cinema e na arte.
A música, do mesmo álbum da anterior, Stand by Him mantém a refe-
rência à Lilith, acrescentando também o manual citado anteriormente, Mal-
leus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras) e os demônios chamados succu-
bus. Iniciemos o entendimento da letra por ela mesma, ―O poder do Diabo é
maior; quando ele e sua santíssima evitam o Sol; a sedutora apaixonada pela
força negra; um vigário cegamente mordido durante a relação; o martelo da

3 Trecho original: She was na evil old soul


4 Trecho original: Her pact with satan
5 Trecho original: Her lust for blood
6 Trecho original: Our ancient courtess
7 Trecho original: To bathe in pure flesh blood; She‟d peasant virgins killed

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bruxa a derrubou; através da nossa missa, ela está livre; é a noite da bruxa8―;
―Toda bruxaria surge da luxúria carnal; que é, nas mulheres, insaciável9―;
―Enquanto as chamas degustaram de seu corpo contaminado10―.
Nesse pequeno espaço em que as palavras são cuidadosamente sele-
cionadas, temos o entendimento do que foi o discurso do dominicano Hein-
rich Kramer, criador da obra Malleus Maleficarum, publicada a seis séculos
atrás. A ideia básica dessa representação se encontra no caráter misógino que
busca, através do medo do pecado ―da carne‖, manter a culpa dos ―males‖
ocorridos na sociedade totalmente na mulher. O que a banda faz revisitando
essa narrativa – e entendendo a ―personalidade‖ formada pelo grupo musi-
cal – é provocar desconforto e retomar, enquanto uma figura de grande po-
der, a imagem da mulher-bruxa, da mitologia de Lilith e da sexualidade fe-
minina.
Quando falam na ―santíssima‖, ―sedutora‖, em seu contato com a
―força negra‖ e com o Diabo, quando apontam que um vigário fora seduzido
e atacado por essa mulher sobrenatural ou ao apresentar que ―toda bruxaria
surge da luxúria carnal‖, da mulher incansável, insaciável, remete a determi-
nadas passagens do citado na própria música, Martelo das bruxas, vejamos
um de seus trechos:

Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que
se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que
houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a par-
tir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por
assim dizer, contrária a retidão do homem. E como, em virtude dessas falhas, a
mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente. (...) Em muitas vitupe-
rações que lemos contra as mulheres, o vocábulo mulher é usado para indicar a
lascívia da carne. Conforme é dito: ―Encontrei uma mulher mais amarga que a
morte e uma boa mulher subordinada à concupiscência carnal.‖ Outros têm
ainda proposto muitas outras razões para explicar o maior número de mulheres
supersticiosas do que homens. E a primeira está em sua maior credulidade; e, já
que o principal objetivo do diabo é corromper a fé, prefere então atacá-las. Ver
Eclesiástico, 19: ―Aquele que é crédulo demais tem um coração leviano e sofrerá
prejuízo. (...) Se pudéssemos livrar o mundo das mulheres, não ficaríamos afas-
tados de Deus durante o coito. Pois que, verdadeiramente, sem a perversidade
das mulheres, para não falar da bruxaria, o mundo ainda permanecia à prova de
inumeráveis perigos (KRAMER; SPRENGER, p. 115, 116, 119)

8 Trecho original: The Devil‟s power is the greatest one; when his and her holiest shuns the sun; a
temptress smitten by the blackest force; a vicar bitter blind in intercourse; the witch hammer struck her
down; on our Sabbath, she‟s unbound; „tis the night of the witch
9 Trecho original: All witchcraft comes from carnal lust; which is, in women, insatiable
10 Trecho original: As flames at through her body defiled

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

Consideramos que durante o processo de demonização da bruxaria,


no fim da idade média e decorrer da idade moderna, a figura de Lilith, como
mãe dos demônios e feminino que seduz e fere, foi constantemente relacio-
nada as mulheres acusadas durante o período inquisitorial. Logo, especifi-
camente sobre Lilith e os demônios sexuais chamados succubus acrescenta-
mos o estudo de Gomes e Almeida que identificam os locais onde essa mito-
logia passa a se desenvolver:

O alfabeto de Ben Sirak (KOLTUV, 1986, p.37-52) é o registro mais antigo que se
conhece sobre Lilith. Neste manuscrito, datado entre os séculos VIII e X a.C., ela
é descrita como tendo sido a primeira esposa mítica de Adão. Lilith é desconhe-
cida do cristianismo primitivo embora tenha aparecido nos primeiros séculos da
era cristã. Mais recentemente, contudo, Lilith fecundou o imaginário da comu-
nidade judaica e cristã com ideias sobre um demônio feminino que provocava a
polução noturna nos jovens castos e ainda era a responsável pela morte prema-
tura de crianças recém nascidas. Lilith também aparece no Zohar (KOLTUV,
1986, p. 17-35) o Livro do Esplendor, uma obra cabalística do século XIII que se
constitui no mais influente texto hassídico. Ela aparece também no Talmude, o
livro da tradição judaica. No Zohar, Lilith era descrita como um sucubus. As po-
luções, com emissões noturnas, eram citadas como um sinal visível de sua pre-
sença, isto é da união carnal do homem com Lilith (ENGELHARD,1997, p. 32-
33). (GOMES e ALMEIDA, 2007, p. 10)

A partir disso Pires destaca um resumo sobre a história dessa perso-


nagem tão odiada pela cristandade:

Lilith é o nome da mulher criada antes de Eva, ao mesmo tempo que Adão – não
de uma costela do homem, mas diretamente do mesmo pó que ele. Por esse mo-
tivo, reivindicou igualdade, não se admitiu inferior e submissa e disse a Adão:
―Somos iguais‖. A partir daí, os dois sempre discutiam. Por recusar-se a ser
submissa, Lilith foi relegada à convivência com os demônios. Quando encoleri-
zada, pronunciou o nome mágico de Deus e fugiu para começar uma carreira
demoníaca, transformando-se na rainha dos demônios. Em sua revolta, declarou
guerra ao Pai, não deixando desde então homens, mulheres e crianças em paz.
Permaneceu como sombra e inimiga de Eva, instigando amores ilegítimos e per-
turbando o leito conjugal. Seu domicílio foi estabelecido nas profundezas do
mar (o inconsciente), no lado escuro da Lua, ou na serpente, veículo do pecado e
da transgressão que expulsou a todos do paraíso. Mulher rejeitada ou abando-
nada por causa de outra, Lilith representa o ódio contra a família, os casais e os
filhos (PIRES, 2008, p. 38).

É claro a nós, dessa forma, que as escolhas feitas pela banda Ghost ao
escrever suas músicas se concentra não apenas na sensação que elas podem
desencadear, mas também em um estudo preliminar sobre esses discursos e
imagens em que, seguidamente, ―nota-se que a produção social da supremacia
do masculino pelo feminino é histórica e culminou com a construção de uma

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estrutura social patriarcal e paternalista que, indiscutivelmente, vem sofrendo


profundas transformações nas últimas décadas‖ (GOMES; ALMEIDA, 2007, p.
3).
Assim, além da música que se entrelaça ao imaginário dessa ―deusa
demônio‖ temos aqui, como um dos exemplos da figura marcante de Lilith,
uma de suas mais antigas representações, uma placa de terracota construída
no segundo milênio antes de Cristo, e que seguiu presente nas crenças e na
arte até os dias atuais11 (Figura 1).

Figura 1: Placa de Terracota – Deusa Lilitu

Fonte: Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/


b/b2/Lilitu.jpg Acessado em: 20/11/2019.
Ao mesmo passo que Stand by Him, a música Ghuleh/zombie Queen, do
disco Infestissumam, publicada no ano de 2013, nos traz, novamente, as refe-
rências a Lilith. Agora, que ela já foi ―apresentada‖ nas letras anteriores,
Zombie Queen vem para exaltar sua presença e relembrar, assim como a mú-
sica anterior a forma com que a mulher foi representada pelo discurso ecle-
siástico. Assim, quando a letra começa com a palavra ―putrefação12― e com-
binada com a palavra poeira/pó em ―da fétida poeira13― e ―da ferrugem tér-
rea14― remete diretamente a mulher, ao útero e a sua menstruação, que tam-
bém é apresentada em algumas versões do mito, como por exemplo no co-
mentário bíblico de Beresit-Rbba (rabi Oshajjah), em que ―a primeira mulher
é descrita cheia de saliva e sangue (desejo e menstruação), o que teria desa-
gradado a Adão‖ (PIRES, 2008, p. 43), os mistérios femininos, o livre arbítrio

11 RUSSELL; ALEXANDER, 2019, P. 42; 263.


12 Trecho original: Putrefaction
13 Trecho original: Up from the stinking dirt
14 Trecho original: From the earthen rust

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

e a desobediência, que se mostram intrínsecas em Lilith, marcam, nessa soci-


edade essencialmente masculina, a necessidade de manter o controle e a con-
tinuidade da submissão vista e apreendida em Eva.
Nas passagens ―Da escuridão levanta-se como succubus15― e ―Deusa
herege16―, temos novamente a abertura para interpretar essa deusa/rainha
zumbi como a Lilith, que como dito aqui se conecta com a bruxaria, inclusive,
sendo uma das deusas adoradas pela bruxaria moderna. A figura da succubus
aparece aqui, não ―apenas‖ como parte da representação de Lilith, mas além
disso, como a representação materializada da sexualidade que é relacionada
com o feminino, na mitologia ela é um demônio que toma forma feminina
(incubus quando em forma masculina) que passa a noite ao encontro de ho-
mens e mulheres, causando-lhe sonhos eróticos e orgasmos noturnos, elemen-
to que é utilizado nos discursos inquisitoriais no século XV para (PIRES, 2008,
p. 36-38).
Outra parte da música que reafirma a imagem dessa mulher sobre-
humana que seduz e apavora, está na descrição da rainha zumbi como Ghu-
leh. Ghuleh é o feminino de Ghoul, são conhecidos do folclore como mortos-
vivos que consomem carne humana, canibais que habitam debaixo da terra,
seu nome original, ghul significa demônio, seriam subcategorias de jinn –
demônios do período pré-islâmico – (LURKER, 2004, p. 94). Ao conciliar a
figura da Ghuleh, que a princípio seria apenas um demônio canibal, com a
figura da succubus, podemos interpretá-la, novamente como uma referência a
Lilith, a mãe de todos os demônios e senhora do submundo, ―santíssima do
Diabo‖. Essa personagem também faz sua parada em outras mídias como a
literatura, podemos encontrá-la em um dos poemas de Lord Byron (The Gia-
our) e também em alguns contos de Lovecraft.
Voltando a ideia de que Ghost possa ter lançado suas músicas de uma
forma que nos conte uma história sobre determinada representação da mu-
lher-bruxa, da mulher-mítica – sendo esse ato intencional ou não – podemos
recapitular aqui que, em um primeiro momento, contou-se a história da mu-
lher que se banhava do sangue de suas vítimas, contendo nela traços simbóli-
cos do vampirismo e da bruxaria17 para assim introduzir elementos de cunho

15 Trecho original: From the darkness rise as succubus


16 Trecho original: Haresis dea
17 Quando falamos aqui sobre esses traços imaginários no termo da bruxaria, estamos falando

especificamente nos elementos que se firmaram no imaginário do período da ―caça às bruxas‖ e


que vai sendo resignificados de acordo com o que convém a cada narrativa que com ele irá
trabalhar.

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

históricos, como os discursos contidos na obra do Malleus Maleficarum para


assim, vincular essa narrativa a mitologia que envolve a figura de Lilith, das
succubus e da bruxa, para logo depois dar um passo à frente e falar sobre os
rituais que seriam feitos por essas mulheres-bruxas, o sabá18. Falamos aqui da
música Kiss the Go-Goat, do EP19 Seven Inches of Satanic Panic lançado no ano
de 2019.
Essa música vai nos trazer a referência ao sabá no decorrer de sua le-
tra, além de remeter a inúmeras pinturas, das quais ressaltaremos aqui uma
em particular (figura 2), que se identifica diretamente com o título dessa mú-
sica, a xilogravura é de autor e período desconhecidos, todavia, essa falta de
informação não tira a significância que carrega. Logo, encontramos nessa
ilustração a referência que Ghost chama de ―Beijo obsceno‖ e que é retratado
ao longo da sociedade – como forma de manter no tempo o imaginário as-
sombroso dos rituais da bruxaria – como a maneira com que as bruxas fir-
mavam seu ―contrato‖ com o Diabo, que vinha a elas em forma de bode20.

Figura 2: Beijo obsceno (osculum obscenum)

18 Delumeau apresenta a discussão historiográfica que se faz presente sobre o sabá. Enquanto
alguns historiadores negam sua existência, considerando ser parte de alucinações e sugestões
criadas e espalhadas por inquisidores, outros compreendem que esse seja um dos principais
pontos para a afirmação da bruxaria, enquanto pacto de servidão, são descritas reuniões de
bruxas com o próprio diabo, assembleias noturnas envoltas a orgias e canibalismo
(DELUMEAU, 1989, p. 369; SOUZA, 1987, p. 21)
19 EP significa extended play, este formato de publicação que possui entre 4 a 6 músicas e tem

menos de 30 minutos de duração.


20 Enquanto o sabá ocorria, segundo Sallmann como uma imitação dos rituais católicos

(SALLMANN, 2002, p. 31), a figura do bode é relacionada ao Diabo como forma de demonizar
os antigos rituais dionisíacos, já que o bode era, para a religião greco-romana, um símbolo de
fertilidade que representava Dionísio (RUSSELL; BROOKS, 2019, p. 43). Entretanto, o Diabo –
durante o sabá – também podia assumir a forma, além do bode, de um cachorro, macaco ou um
homem (SALLMANN, 2002, p. 18)

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

Fonte: Disponível em: https://i.pinimg.com/originals/0e/c0/79/0ec079f8f4


8469384cde12d61a83cdb9.jpg .Acessado em 19 de Novembro de 2019.
Logo, quando Kiss the Go-Goat levanta um contexto de ―convite‖ à
bruxa, em selar um pacto com o Diabo (―Satã, Lúcifer), instigando-a (―Hey,
baby, beije o bode‖), mas também alerta-a sobre possíveis desilusões quanto
a esse ―contrato‖, por exemplo na seguinte passagem ―As coisas não são
sempre o que parecem; aquele brilho não era ouro; ao contrário do que te
disseram; mas ele é o cara que você quer pegar; e você sabe que deve ser
recíproco; felizmente, ele quer te pegar também; Satã; Lúcifer; beijo obsce-
no21―. Essa narrativa dúbia que a banda descreve entre o processo de ―con-
vidar‖ e ―prevenir‖ acaba se tornando a ―ponte‖ para a continuação dessa
história em sua próxima música Mary on a Cross.
Ainda sobre a influência do imaginário que complementa o sabá e as
bruxas, vejamos uma das diversas pinturas do artista Hans Baldung Grien,
que exibe uma ilustração caracterizada por elementos estereotipados que se
apresentam de forma clara alguns dos
Dispositivos discursivos que estão constantemente ligados a repre-
sentação da mulher enquanto perigo constante aos homens (Figura 3).

Figura 3: As três bruxas, de Hans Baldung Grien

21Trecho original: It ain‟t always what it seems; that glitter wasn‟t gold; as opposed to what they told
you; but he‟s the guy you wanna do; and you know that it takes two; luckily, he wants to do you too;
Satan; Lucifer; osculum obscenum

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

Fonte: Disponível em: http://www.all-art.org/history230-14-2.html . Aces-


sado em: 20/11/2019.
Acompanhamos a continuação da narrativa da banda22 (faixa do mes-
mo EP de Kiss the Go-Goat), Mary on a Cross que nos parece a constatação dos
avisos dados na música anterior, quando, por exemplo, a canção retrata: ―tudo
o que conseguimos foi angústia; mas através de toda a tristeza; estamos nos
mantendo por cima23―, ―mas além de todo o glamour; tudo o que conseguimos
foram machucados24―. Traz, nesse momento, a constatação de que um pacto
com o Diabo, confirmadamente, ―nem sempre‖ é uma boa ideia, resultando
em dor, tristeza e agonia, ressaltando assim o imaginário de uma malignidade
tipificada na imagem do Diabo. Já mais à frente, temos o seguinte trecho ―Você
é como a Santa Maria; Maria na, Maria na cruz; Não é só mais uma Maria san-
guinária‖ aqui entendemos que Ghost procura imitar a figura católica da Ave
Maria, mas vista satiricamente através de um prisma ―satânico‖, inclusive,
referencia o que seria uma transformação da ―Maria sanguinária‖ (podemos
compreende-la como a personagem da primeira música analisada, pela refe-
rência ―sanguinária‖, mas pode ser carregada de outras possíveis interpreta-

22 Reforçamos aqui que essa faz parte de nossa interpretação em cima da análise feita sobre o
processo de criação e publicação das músicas da banda, não temos a pretensão de esgotar as
diferentes possibilidades de análise das mesmas.
23 Trecho original: All we got was blues; but through all the sorrow; we‟ve been riding high.
24 Trecho original: But besides all the glamour; all we got was bruised

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

ções). Essa dualidade entre uma Maria santa e uma Maria com ―sangue nas
mãos‖ retorna a narrativa envolta a dicotomia da mulher pura-profana; boa-
má; santa-devassa que analisamos ao discutir sobre a música Elizabeth.
Para completar a história contada pela banda sobre a representação
feminina em um imaginário social que constrói seus ―mocinhos‖ e seus ―vi-
lões‖, tomamos a liberdade de realocar uma das músicas, que – segundo nossa
ordem de análise – deveria encontrar-se antes da análise de Kiss the Go-Goat, já
que foi publicada em 2018, com o disco Prequelle, entretanto, vimos como pro-
fícuo seu deslocamento para o final de nossa observação, já que entendemos
essa música de certa maneira, como uma criação diferenciada das anteriores.
Nas canções analisadas anteriormente, percebemos que a banda pro-
curou contar a narrativa feminina estando a parte como um contador de his-
tórias que não ocupa o lugar de um personagem direto, mas sim transitando
entre suas passagens, já na música Witch Image temos uma guinada interes-
sante, e por isso, decidimos por fechar nosso estudo com ela. Para nós, Ghost
se coloca nessa canção como a voz protagonista da bruxa que sofreu ao longo
do discurso imposto pela sociedade as consequências de ser posta como um
dos símbolos do ―mal‖.
Assim, seguem os trechos da canção: ―Você; nunca esteve tão perto
de onde você quer estar; você; sempre mergulhou no raso; entre mim e o
oceano azul profundo; você nunca iria querer que eu aparecesse; você nunca
quer que isso acabe; você nunca quer que isso alcance o fim dos tempos; en-
quanto você dorme numa serenidade terrestre; a carne de alguém está apo-
drecendo nesta noite; como se fosse nada pra você; o que você fez, você nun-
ca pode desfazer; eu; sempre te mantive por perto, mais perto do que sabe;
eu estou andando nas sombras; atrás de você, em um pálido cavalo
co25―, ―Mesmo assim, sua alma ainda irá sofrer desta lástima; igual seu pai no
inferno; o que você vendeu, não pode devolver26‖.
A leitura dessa música em particular nos faz perceber que ela se
constitui enquanto uma crítica a falta de empatia de uma sociedade que
constrói seus próprios monstros e aponta ―bodes expiatórios‖. A letra se

25 Trecho original: You; have never stood this close to where you want to be; you; have always waded in
the shallows; between me and the deep blue sea; you‟d never want me to appear; you never want it to be
over; you never want to reach out to the end of time; while you sleep in earthly delight; someone‟s flesh is
rotting tonight; like no other to you; what you‟ve done you cannot undo; I; have always kept you close
than you‟ve known; I am riding in the shadows; behind you on a pale white horse;
26 Trecho original: Still, your soul will suffer this plight; like your father in hell; what you‟ve sold, you

cannot unsell.

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

configura na abordagem com que uma mulher acusada de bruxaria faz ao


falar com seus algozes (os cristãos que a condenaram). A música acaba fa-
lando por si, essa mulher-bruxa, ao mesmo tempo que conclui que a sua pro-
fundidade com relação a vida não seria alcançada pelo pensamento e ideal
raso dessa sociedade que a assassinou (―você sempre mergulhou no raso,
entre mim e o oceano azul profundo‖), também procura lançar o sentimento
de culpa à essas almas (elas aceitando essa culpa ou não), vemos essa ação na
escolha de passagens como ―enquanto você dorme numa serenidade terres-
tre; a carne de alguém está apodrecendo nesta noite‖ e ―o que você fez, não
pode ser desfeito‖ e conclui, que mesmo que as ações dessas pessoas não
tenham surtido efeitos diretos e imediatos em suas vidas ―sua alma ainda irá
sofrer desta lástima‖. Um ―grito‖ de liberdade parece tomar conta dessa mú-
sica, como uma forma de contestação direta que ―limpa a alma‖ dessa mu-
lher, que representa centenas de outras mulheres acusadas, torturadas e exe-
cutadas, diante das pessoas que a feriram. Mostra assim, um trabalho de
sensibilidade na criação da música.

“EU ESTOU ANDANDO NAS SOMBRAS”


Completa-se uma história que é narrada musicalmente por Ghost ao
longo de quatro discos, que procurou atingir criticamente o imaginário soci-
al, oportunizando a mais um aparato midiático, o espaço para contestar ou
até mesmo aceitar determinadas construções. Apresentamos aqui algumas
das músicas criadas pela banda, mas outras letras continuam a abordar a
figura feminina, seja em forma de contestação, seja como meio de satirizar
e/ou problematizar as organizações cristãs.
A figura feminina vem sofrendo distintas modificações ao longo dos
séculos, por vezes de forma positiva, por vezes negativa, entretanto, é, não
apenas a quantidade de estudos e pesquisas em relação a mulher, como tam-
bém as diferentes formas de socializar esses estudos que chama atenção ao
nosso olhar. Expandir as possibilidades de desenvolver um pensamento crí-
tico em relação ao sistema que se impõe é essencial para criar uma sociedade
mais informada e aberta a diferentes conjecturas. Logo, percebemos o quão
importante se mostra a cultura pop(ular) para alcançar mais profundamente
as camadas sociais.
Assim, essas possibilidades que podem abarcar o fazer música e o
trabalhar com componentes midiáticos para o levantamento de debates em
torno dessas questões sociais, culturais e históricas se mostram bastante pro-

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HISTÓRIA EM PERSPECTIVA

fícuas. Os elementos que se entrelaçam nas formas de dominação do sistema


patriarcal precisam ser constante e diariamente questionados, e Ghost, atra-
vés de um dos elementos mais universais e acessíveis, a música, cumpre com
seu papel nesse quesito, carregando suas letras de história, simbolismo e
política para aqueles que se dispões a ouvir e compreender seus significados.

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