HISTÓRIA EM PERSPECTIVA
HISTÓRIA EM PERSPECTIVA:
COLETÂNEA DE ARTIGOS
Editora Livrologia
Chapecó-SC
2020
HISTÓRIA EM PERSPECTIVA
Ficha Catalográfica
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ISBN 978-65-86218-17-6
© 2020
Proibida a reprodução total ou parcial nos termos da lei.
“É A NOITE DA BRUXA”: O IMAGINÁRIO DA MULHER BRUXA NA
PRODUÇÃO DA BANDA GHOST
Lucas Marques Vilhena Motta
Iago Silva da Cruz
Sara Schneider de Bittencourt
negras eram lideradas por um papa, com roupas que parodiavam sua santi-
dade, conhecido como Papa Emeritus I era responsável por comandar os vo-
cais (SENRA, 2017). Cada disco da banda representa uma ―era‖ e com isso
um novo papa é necessário, atualmente o Ghost se encontra no quarto disco,
quem lidera o ―culto‖ é o Cardinal Copia que possuiu uma roupagem e pre-
sença de palco mais semelhante à artistas pops.
Segundo Senra, outra singularidade do Ghost é sua simbologia:
Como sugerido pela cruz invertida presente no ―grucifixo‖, tem-se aqui uma
mensagem anticristã e, notoriamente, satanista. Porém, deve-se lembrar que este
símbolo está impresso nos principais signos católicos ostentados pelo Papa
Emeritus. A férula possui como maior significado o poder de ―governar‖ e de
―corrigir‖ conferido ao Papa. A mitra possui a ponta pois esta apontaria para
Deus. E a casula, que possui os símbolos da liturgia, representa a passagem do
membro do clero para um reino espiritual. Vê-se, mais uma vez, como o Ghost
se apropria de signos da liturgia católica e imprime sobre eles sua própria repre-
sentação sígnica (no caso, a ―cruz do Ghost‖). Isso sugere que a banda, muito
mais do que uma concepção lírica e imagética que se propõe a atacar a figura do
Deus cristão, se propõe a estabelecer um culto ao ―adversário‖, todavia, utili-
zando as ferramentas ritualísticas do culto católico (SENRA, 2017, p 74-75).
1 O termo ―missa macabra‖ foi utilizado como forma de referência ao show do Ghost no Rock in
Rio 2013. Fonte: http://g1.globo.com/musica/rock-in-rio/2013/noticia/2013/09/missa-
macabra-do-ghost-e-mal-recebida-no-palco-mundo.html Acessado em: 9 de novembro de 2019
2 Fonte: https://www.gospelprime.com.br/pastor-convoca-vigilia-antes-de-show-de-banda-
adoradora-do-diabo/ Acessado em 10 de Outubro de 2019
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do na equação que gera o produto final. Apesar disto, Kellner (2001) também
destaca a importância da ―cultura da mídia‖ possuiu em formar uma peda-
gogia cultural, ou seja, de apresentar valores e influenciar indivíduos; isto
nos ajuda a definir a relevância de analisar que tipo de ideal feminino a ban-
da visa construir, pois certamente terá alguma ressonância com seus ouvin-
tes.
Um dos conceitos basilares deste trabalho é o conceito de imaginário.
Retomando o que foi dito por Thompson (1998), o qual afirma que a mídia
transmite valores simbólicos, fica o questionamento: O que dá poder a estes
simbolismos? Para iniciar esta argumentação, Juremir Silva inicia seu livro
As Tecnologias do Imaginário (2012) dizendo que ―Todo imaginário é real. To-
do real é imaginário. O homem só existe na realidade imaginal. Não há vida
simbólica fora do imaginário‖ (SILVA, 2012, p. 7). Silva deixa claro que o
imaginário é o que dá ―valor‖ que por consequência são validados pelo indi-
víduo. Este pensamento entre em ressonância com o proposto por Ruiz, ―não
há racionalidade, nem ciência ou tecnologia fora da imaginação, assim como
não existe a imaginação fora da dimensão racional‖ (RUIZ, 2003, p. 32).
Com isto posto, definir o conceito de imaginário se torna imperativo.
Silva o define como:
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bruxa a derrubou; através da nossa missa, ela está livre; é a noite da bruxa8―;
―Toda bruxaria surge da luxúria carnal; que é, nas mulheres, insaciável9―;
―Enquanto as chamas degustaram de seu corpo contaminado10―.
Nesse pequeno espaço em que as palavras são cuidadosamente sele-
cionadas, temos o entendimento do que foi o discurso do dominicano Hein-
rich Kramer, criador da obra Malleus Maleficarum, publicada a seis séculos
atrás. A ideia básica dessa representação se encontra no caráter misógino que
busca, através do medo do pecado ―da carne‖, manter a culpa dos ―males‖
ocorridos na sociedade totalmente na mulher. O que a banda faz revisitando
essa narrativa – e entendendo a ―personalidade‖ formada pelo grupo musi-
cal – é provocar desconforto e retomar, enquanto uma figura de grande po-
der, a imagem da mulher-bruxa, da mitologia de Lilith e da sexualidade fe-
minina.
Quando falam na ―santíssima‖, ―sedutora‖, em seu contato com a
―força negra‖ e com o Diabo, quando apontam que um vigário fora seduzido
e atacado por essa mulher sobrenatural ou ao apresentar que ―toda bruxaria
surge da luxúria carnal‖, da mulher incansável, insaciável, remete a determi-
nadas passagens do citado na própria música, Martelo das bruxas, vejamos
um de seus trechos:
Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que
se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que
houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a par-
tir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por
assim dizer, contrária a retidão do homem. E como, em virtude dessas falhas, a
mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente. (...) Em muitas vitupe-
rações que lemos contra as mulheres, o vocábulo mulher é usado para indicar a
lascívia da carne. Conforme é dito: ―Encontrei uma mulher mais amarga que a
morte e uma boa mulher subordinada à concupiscência carnal.‖ Outros têm
ainda proposto muitas outras razões para explicar o maior número de mulheres
supersticiosas do que homens. E a primeira está em sua maior credulidade; e, já
que o principal objetivo do diabo é corromper a fé, prefere então atacá-las. Ver
Eclesiástico, 19: ―Aquele que é crédulo demais tem um coração leviano e sofrerá
prejuízo. (...) Se pudéssemos livrar o mundo das mulheres, não ficaríamos afas-
tados de Deus durante o coito. Pois que, verdadeiramente, sem a perversidade
das mulheres, para não falar da bruxaria, o mundo ainda permanecia à prova de
inumeráveis perigos (KRAMER; SPRENGER, p. 115, 116, 119)
8 Trecho original: The Devil‟s power is the greatest one; when his and her holiest shuns the sun; a
temptress smitten by the blackest force; a vicar bitter blind in intercourse; the witch hammer struck her
down; on our Sabbath, she‟s unbound; „tis the night of the witch
9 Trecho original: All witchcraft comes from carnal lust; which is, in women, insatiable
10 Trecho original: As flames at through her body defiled
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O alfabeto de Ben Sirak (KOLTUV, 1986, p.37-52) é o registro mais antigo que se
conhece sobre Lilith. Neste manuscrito, datado entre os séculos VIII e X a.C., ela
é descrita como tendo sido a primeira esposa mítica de Adão. Lilith é desconhe-
cida do cristianismo primitivo embora tenha aparecido nos primeiros séculos da
era cristã. Mais recentemente, contudo, Lilith fecundou o imaginário da comu-
nidade judaica e cristã com ideias sobre um demônio feminino que provocava a
polução noturna nos jovens castos e ainda era a responsável pela morte prema-
tura de crianças recém nascidas. Lilith também aparece no Zohar (KOLTUV,
1986, p. 17-35) o Livro do Esplendor, uma obra cabalística do século XIII que se
constitui no mais influente texto hassídico. Ela aparece também no Talmude, o
livro da tradição judaica. No Zohar, Lilith era descrita como um sucubus. As po-
luções, com emissões noturnas, eram citadas como um sinal visível de sua pre-
sença, isto é da união carnal do homem com Lilith (ENGELHARD,1997, p. 32-
33). (GOMES e ALMEIDA, 2007, p. 10)
Lilith é o nome da mulher criada antes de Eva, ao mesmo tempo que Adão – não
de uma costela do homem, mas diretamente do mesmo pó que ele. Por esse mo-
tivo, reivindicou igualdade, não se admitiu inferior e submissa e disse a Adão:
―Somos iguais‖. A partir daí, os dois sempre discutiam. Por recusar-se a ser
submissa, Lilith foi relegada à convivência com os demônios. Quando encoleri-
zada, pronunciou o nome mágico de Deus e fugiu para começar uma carreira
demoníaca, transformando-se na rainha dos demônios. Em sua revolta, declarou
guerra ao Pai, não deixando desde então homens, mulheres e crianças em paz.
Permaneceu como sombra e inimiga de Eva, instigando amores ilegítimos e per-
turbando o leito conjugal. Seu domicílio foi estabelecido nas profundezas do
mar (o inconsciente), no lado escuro da Lua, ou na serpente, veículo do pecado e
da transgressão que expulsou a todos do paraíso. Mulher rejeitada ou abando-
nada por causa de outra, Lilith representa o ódio contra a família, os casais e os
filhos (PIRES, 2008, p. 38).
É claro a nós, dessa forma, que as escolhas feitas pela banda Ghost ao
escrever suas músicas se concentra não apenas na sensação que elas podem
desencadear, mas também em um estudo preliminar sobre esses discursos e
imagens em que, seguidamente, ―nota-se que a produção social da supremacia
do masculino pelo feminino é histórica e culminou com a construção de uma
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18 Delumeau apresenta a discussão historiográfica que se faz presente sobre o sabá. Enquanto
alguns historiadores negam sua existência, considerando ser parte de alucinações e sugestões
criadas e espalhadas por inquisidores, outros compreendem que esse seja um dos principais
pontos para a afirmação da bruxaria, enquanto pacto de servidão, são descritas reuniões de
bruxas com o próprio diabo, assembleias noturnas envoltas a orgias e canibalismo
(DELUMEAU, 1989, p. 369; SOUZA, 1987, p. 21)
19 EP significa extended play, este formato de publicação que possui entre 4 a 6 músicas e tem
(SALLMANN, 2002, p. 31), a figura do bode é relacionada ao Diabo como forma de demonizar
os antigos rituais dionisíacos, já que o bode era, para a religião greco-romana, um símbolo de
fertilidade que representava Dionísio (RUSSELL; BROOKS, 2019, p. 43). Entretanto, o Diabo –
durante o sabá – também podia assumir a forma, além do bode, de um cachorro, macaco ou um
homem (SALLMANN, 2002, p. 18)
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21Trecho original: It ain‟t always what it seems; that glitter wasn‟t gold; as opposed to what they told
you; but he‟s the guy you wanna do; and you know that it takes two; luckily, he wants to do you too;
Satan; Lucifer; osculum obscenum
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22 Reforçamos aqui que essa faz parte de nossa interpretação em cima da análise feita sobre o
processo de criação e publicação das músicas da banda, não temos a pretensão de esgotar as
diferentes possibilidades de análise das mesmas.
23 Trecho original: All we got was blues; but through all the sorrow; we‟ve been riding high.
24 Trecho original: But besides all the glamour; all we got was bruised
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ções). Essa dualidade entre uma Maria santa e uma Maria com ―sangue nas
mãos‖ retorna a narrativa envolta a dicotomia da mulher pura-profana; boa-
má; santa-devassa que analisamos ao discutir sobre a música Elizabeth.
Para completar a história contada pela banda sobre a representação
feminina em um imaginário social que constrói seus ―mocinhos‖ e seus ―vi-
lões‖, tomamos a liberdade de realocar uma das músicas, que – segundo nossa
ordem de análise – deveria encontrar-se antes da análise de Kiss the Go-Goat, já
que foi publicada em 2018, com o disco Prequelle, entretanto, vimos como pro-
fícuo seu deslocamento para o final de nossa observação, já que entendemos
essa música de certa maneira, como uma criação diferenciada das anteriores.
Nas canções analisadas anteriormente, percebemos que a banda pro-
curou contar a narrativa feminina estando a parte como um contador de his-
tórias que não ocupa o lugar de um personagem direto, mas sim transitando
entre suas passagens, já na música Witch Image temos uma guinada interes-
sante, e por isso, decidimos por fechar nosso estudo com ela. Para nós, Ghost
se coloca nessa canção como a voz protagonista da bruxa que sofreu ao longo
do discurso imposto pela sociedade as consequências de ser posta como um
dos símbolos do ―mal‖.
Assim, seguem os trechos da canção: ―Você; nunca esteve tão perto
de onde você quer estar; você; sempre mergulhou no raso; entre mim e o
oceano azul profundo; você nunca iria querer que eu aparecesse; você nunca
quer que isso acabe; você nunca quer que isso alcance o fim dos tempos; en-
quanto você dorme numa serenidade terrestre; a carne de alguém está apo-
drecendo nesta noite; como se fosse nada pra você; o que você fez, você nun-
ca pode desfazer; eu; sempre te mantive por perto, mais perto do que sabe;
eu estou andando nas sombras; atrás de você, em um pálido cavalo
co25―, ―Mesmo assim, sua alma ainda irá sofrer desta lástima; igual seu pai no
inferno; o que você vendeu, não pode devolver26‖.
A leitura dessa música em particular nos faz perceber que ela se
constitui enquanto uma crítica a falta de empatia de uma sociedade que
constrói seus próprios monstros e aponta ―bodes expiatórios‖. A letra se
25 Trecho original: You; have never stood this close to where you want to be; you; have always waded in
the shallows; between me and the deep blue sea; you‟d never want me to appear; you never want it to be
over; you never want to reach out to the end of time; while you sleep in earthly delight; someone‟s flesh is
rotting tonight; like no other to you; what you‟ve done you cannot undo; I; have always kept you close
than you‟ve known; I am riding in the shadows; behind you on a pale white horse;
26 Trecho original: Still, your soul will suffer this plight; like your father in hell; what you‟ve sold, you
cannot unsell.
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