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10 Coisas que Eu Odeio em Você: relendo a Megera na tela

Agnes Bessa S. Feitosa


Universidade Estadual do Ceará (UFC)

Resumo
“A Megera Domada”, de William Shakespeare, conta a história da família Minola, cujo pai tem duas
filhas, Catarina, de comportamento detestável e Bianca, um exemplo de filha. Tal peça foi traduzida para
o cinema como a comédia romântica “10 coisas que eu odeio em você”. Na presente pesquisa, analiso as
estratégias utilizadas pelo diretor para fazer a adaptação da obra original para o filme, tendo a personagem
principal como foco. “A Megera Domada”, de William Shakespeare, conta a história da família Minola,
cujo pai tem duas filhas, Catarina, de comportamento detestável e Bianca, um exemplo de filha. Tal peça
foi traduzida para o cinema como a comédia romântica “10 coisas que eu odeio em você”. Na presente
pesquisa, analiso as estratégias utilizadas pelo diretor para fazer a adaptação da obra original para o filme,
tendo a personagem principal como foco. Conclui-se que o diretor utilizou muitas estratégias para
transmutar a Megera original em uma Megera moderna. Ambas são mulheres deslocadas da sociedade,
com problemas na família e com uma diferente visão em relação a amor (ou casamento). O filme
introduziu novos aspectos e atitudes em Kate Stratford, para que fizessem parte do contexto social
adolescente. Não utilizando o critério fidelidade, podemos concluir que a duas Megeras possuem
semelhanças, visto que as diferenças entre as duas são inevitáveis.

Palavras-chave: William Shakespeare - A Megera Domada - 10 coisas que eu odeio em você.

Abstract
William Shakespeare’s The taming of the shrew, tells the story of the Minola family, whose father has
two daughters, Catarina, owner of a detestable behavior, and Bianca, an exemplary daughter. The play
has been translated to the cinema as a romantic comedy – 10 things I hate about you. The article analyzes
the strategies used by the director to adapt the original play into film, focusing on the main character, and
the many strategies in order to transmute the original Shrew into a modern one. Both are women who are
displaced in society, having family problems, and different views about love (or marriage). The film has
introduced new features and attitudes to Kate Stratford to insert her in the teenage social context. By not
using fidelity criteria, we can conclude that both Shrews are similar and that their differences are
inevitable.

Key words: William Shakespeare, The taming of the shrew, 10 things I hate about you.

Introdução

A obra A megera domada de William Shakespeare foi escrita, acredita-se, entre


1590 e 1594. Como gênero literário teatral, é considerada mais uma de suas grandes
obras e continua sendo estudada, encantando leitores em todo o mundo. A Megera
Domada pertence ao famoso estilo Shakespeareano de uma peça dentro de outra.
Adaptada de uma antiga peça tendo por título A Taming of a Shrew, esta peça teve outro
colaborador além de Shakespeare, acreditando alguns críticos ser Marlowe a outra mão
que retocou a Megera. (Civita: 1981).
O enredo acontece em Pádua, Itália e trata de um sucedido e viúvo fidalgo
italiano, Batista Minola, que tem duas filhas, Bianca e Catarina. A primeira, mais
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jovem, é uma filha obediente e doce. A segunda é considerada uma megera, não
ousando homem algum fazer-lhe a corte. Bianca, cercada de pretendentes não podia se
casar, já que pela tradição a filha mais velha devia se casar primeiro. Dessa forma, os
pretendentes de Bianca unem-se para achar um homem que pudesse “domar” a megera
e casar-se com ela. Surge, então, o “troglodita” e grosseirão Petruchio, que deseja casar-
se e fazer fortuna em Pádua.

A questão social apresenta-se bem clara na obra. No século XVI, as jovens


deviam muito respeito à família. A expectativa da sociedade para com elas era de que
casassem com pretendentes escolhidos pelos pais. Não casando por amor, teriam que
aprender a amar com o tempo. Para essa sociedade, ter uma filha como Catarina era
considerado vergonhoso, visto que não conseguir casá-la, afetaria a moral do pai e,
conseqüentemente, o nome da família. Catarina é construída como um personagem
deslocado da sociedade e procura não corresponder às expectativas sociais. Seu
pretendente, Petruchio, demonstra, primeiramente, ser um homem vaidoso e
materialista, que vê o casamento como uma forma de domínio. Por outro lado, acredita-
se que ele seria capaz de amar Catarina.

Em 1999, a obra A megera domada, foi adaptada para as telas pelo diretor
americano Gil Junger em forma de uma comédia romântica adolescente, 10 coisas que
odeio em você. Por ser um filme que se insere no contexto atual, muito da história e
geografia da obra Shakespeareana foram reescritas. O enredo do filme se passa numa
cidade americana, cujo nome não é mencionado, mais especificamente numa escola,
Padua High School, onde a trama começa. A tensão social está inserida no universo
adolescente, que tem como foco principal relacionamentos, diversão e popularidade.
Katarina Stratford é vista como uma megera tempestuosa por não conseguir se adequar
ao convívio com seus colegas de escola e ser completamente anti-social. É auto-
suficiente, independente e feminista. Sofre a ausência da mãe e tem uma relação pouco
amigável com a irmã Bianca. Seu objetivo principal é ir para uma universidade em
outro estado, de modo que possa se desgarrar de seu pai super-protetor. Se em A megera
domada o pai de Katarina temia que o nome de sua família ficasse manchado por não
casar as filhas, na adaptação fílmica ele temia a gravidez delas, afastando-as de seus
pretendentes. Para Katarina não havia nenhum problema, visto que ela não demonstrava
interesse algum em ter qualquer tipo de relacionamento amoroso. Porém, Bianca queria
ter uma vida social, namorar e ir a festas. O pai das duas lança a seguinte regra para
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manter as filhas em “segurança”: Bianca poderia namorar e ir a festas quando Katarina


o fizesse, o que era pouco provável. Dessa forma, os pretendentes de Bianca unem-se
para encontrar um homem que a “domasse” literalmente e acham na figura de Patrick
Verona, tido como perigoso e misterioso, o homem para o tal feito. Patrick, grosseiro,
vaidoso e sedutor, usa seu charme para conquistar Katarina. Ambos acabam se
apaixonando.
Ao assistir ao filme, percebi que muitos aspectos podem ser observados quanto
ao redimensionamento da adaptação fílmica. Como após 400 anos a obra foi inserida no
contexto atual, trazendo alguns traços do texto de partida? Embora alguns nomes e
personagens tenham sido modificados, as duas obras trazem conflitos sociais
envolvendo relacionamentos e expectativa da sociedade. Como terá sido feito esse
redimensionamento?
Não levarei em conta, para efeito de análise, o critério fidelidade da tradução da
obra, já que esta foi transmutada para um outro contexto social tão atualizado. Pretendo,
portanto, analisar as estratégias que teriam sido utilizadas pelo diretor para fazer a
adaptação da obra A megera domada, escrita há mais ou menos 400 anos, para o filme
10 coisas que eu odeio em você. Meu foco principal será na personagem principal, a
Megera, como ela foi transmutada para o cinema.
O corpus da pesquisa consta da peça A Megera Domada de Shakespeare e o
filme 10 coisas que eu odeio em você. A análise se baseará em teorias de tradução e
nas teorias de construção de personagens, visto que meu foco será a personagem
principal das duas obras. Dessa forma as palavras tradução, adaptação e
transmutação serão tidas, na presente pesquisa, como sinônimos. Esse trabalho está
divido em 3 partes. Na primeira consta uma introdução teórica. Na segunda parte
apresentam-se teorias de tradução intersemiótica e uma breve análise de Shakespeare
e A Megera Domada. Por fim, na terceira parte tratarei da análise das personagens
Catarina Minola, da peça shakespeareana e Katarina Stratford, do filme 10 coisas que
eu odeio em você.

Tradução Intersemiótica: cinema e literatura.

De acordo com Jakobson (1973:64), o significado de um signo não é mais que


sua tradução por outro signo que lhe pode ser substituído. Distinguem-se, dessa forma,
três tipos de tradução:
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a) A tradução interlingual: consiste na tradução dos signos verbais através de


outros signos verbais da mesma língua.
b) A tradução intralingual: a tradução dos signos verbais por outros signos verbais
de outra língua.
c) A tradução intersemiótica ou transmutação: a tradução dos signos verbais por
meio de sistema de signos não verbais.
Dessa forma, a adaptação de obras literárias para o cinema pode ser considerada
uma transmutação ou tradução intersemiótica, tendo em vista que o texto verbal foi
traduzido para um não-verbal.
Segundo Plaza (2001:30), numa tradução intersemiótica, os signos empregados
formam novos objetos, sentidos e estrutura que tendem a se desvincular da original.
Dessa forma, é inerente à tradução intersemiótica a criação de novas realidades. Esse é o
caso do filme, que, por ter uma forma diferente das obras literárias, acaba adquirindo
suas próprias particularidades, que nunca serão as mesmas da literatura.
Existem inúmeros filmes que resultaram dessa prática, que já vem sendo
executada há muito tempo. Na história do cinema, o número de adaptações ultrapassa
e muito a quantidade de filmes com roteiros originais (BRITO, 2006: 143).
Entretanto, tal prática gerou, entre críticos, diferentes posicionamentos considerando
as semelhanças existentes entre a obra original e a adaptada. Alguns deles não
pareciam aprovar a idéia de uma obra literária ser adaptada para o cinema. O
pensamento era de que cada forma de arte para ser autêntica deveria ter sua própria
especificidade, distinção e unicidade. Um filme poderia ser avaliado de acordo com
seu grau de “proximidade” com a obra original, ou seja, o critério fidelidade era
muito importante.

Segundo Gomes (1995: 105), na década de 20, o cinema era considerado


uma arte autônoma. Porém, numa visão recente, ele é tributário de todas as
linguagens, artísticas ou não. É necessário então perceber que o cinema, sendo uma
arte heterogênea, faz uso de uma linguagem e estratégias específicas diferentes das
do teatro e da literatura. Segundo Mitry (apud BRITO, 1996: 19), o romance é uma
narrativa que se organiza em mundo, o filme, um mundo que se organiza numa
narrativa. O autor vai mais além ao afirmar que aquilo que na literatura é resultado
(construção da imagem mental, advinda da decodificação da linha discursiva), no
cinema é ponto de partida (imagem concreta). Entretanto, tal noção refere-se apenas
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ao conceito de prosa literária. O teatro representa, assim como no cinema, um mundo


que se organiza na narrativa e ele também é um ponto de partida, visto que é escrito
para ser representado, não lido. Ele não pode ser traduzido como um texto narrativo
(BASSNETT, 2002: 190). Tal afirmação se deve ao fato de que uma peça teatral é
sempre lida de maneira incompleta, e não como uma identidade inteiramente
acabada, pois é só no espetáculo teatral que todo o potencial do texto é atualizado.

Retomemos a questão de fidelidade. Devemos ter em mente que, quando


há uma transmutação de signos entre linguagens diferentes, outras estratégias serão
utilizadas. Em outras palavras, uma adaptação nunca pode ser uma “cópia” perfeita
da original. Bella Balasz (apud BRITO, 1996: 18) afirma que, numa adaptação
fílmica, a obra existente só pode ser utilizada como matéria-prima, considerando-a
sob o ângulo específico de sua própria natureza, como se ela fosse uma realidade
bruta, e nunca se ocupar da forma já conferida a essa realidade.

Pignatari (apud PLAZA, 2001:30) afirma que na criação de uma nova


linguagem não se visa simplesmente uma outra representação de realidades ou
conteúdos já pré-existentes em outras linguagens, mas a criação de novas realidades,
de novas formas de conteúdo.

Diniz (2005:04) cita três nomes que se destacam na nova corrente de estudos de
adaptação fílmica: Brian McFarlane, Timothy Corrigan e James Naremore. McFarlane
(apud DINIZ, 2005:04) afirma ser necessário transferir o centro de interesse na forma
para as questões políticas, socioculturais e econômicas. Corrigan (apud DINIZ,
2005:04), examina as adaptações em quatro estruturas complementares: a
contextualização histórica, a questão das hierarquias culturais tradicionais, o processo
de adaptações em si e a intertextualidade. Naremore, por sua vez, considera a adaptação
um processo multi-direcional, dialógico e intertextual. Dessa forma, levar-se-á em conta
no presente trabalho a questão da adaptação contextualizada.
Lefevère, (apud ALVES, 2004:01) por sua vez, trata do processo de tradução
como uma reescritura (rewriting) e recriação de um texto literário. A reescritura seria
uma adaptação de uma obra literária a um público diferente, com a intenção de
influenciar a forma como o público lê a obra. Dessa forma, deve-se levar em conta, para
o autor, fatores como quem, para quem e por que se reescreve.
A adaptação fílmica 10 coisas que eu odeio em você pode ser
considerada uma adaptação com característica de transformação (transforming), de
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acordo com os preceitos de Andrew (2000:32), no qual o esqueleto da obra original


pode, de forma mais ou menos densa, tornar-se o esqueleto de um filme. O trabalho
que pretendo fazer com essa obra e sua respectiva tradução não se resume a uma
mera busca pela equivalência entre ambas. Objetivo, de igual modo, encontrar
estratégias utilizadas pelo diretor do filme na construção da personagem Katarina
Stratford, baseada na personagem Catarina Minola, de Shakespeare.

Shakespeare e A Megera Domada.

Apesar de Shakespeare ter vivido há pouco mais de 400 anos, seus


trabalhos continuam sendo estudados e admirados por todo o mundo. Suas peças
ainda são apresentadas e, devido sua popularidade, elas podem ser consideradas
clássicos. Segundo Wilson (1958:95), a cada década pode-se achar um novo aspecto
de Shakespeare, visto que ninguém pode decifrá-lo por completo. Dessa forma,
temos esse escritor como uma eterna descoberta.

Wilson (1958:97) afirma que Shakespeare é cinemático. Tal implicação


resulta do fato de que durante suas peças havia uma rápida mudança de cena e ação,
tão natural quanto o cinema. A diferença seria de que no cinema, de acordo com o
autor, as imagens são mais importantes. Quanto a Shakespeare, as palavras eram
mais importantes, principalmente o som delas. Isso era feito de modo a agradar a
platéia, uma grande massa de aristocratas elizabethanos, soldados, nobres, etc.
Shakespeare sempre tentava trazer a platéia para sua peça, satisfazendo-a, dando a
ela o que ela queria.

Em a Megera Domada não poderia ser diferente. No século XVI muitas peças
haviam sido escritas com o tema da “megera”, geralmente punida ao fim da trama. Teria
sido a intenção de Shakespeare punir a mulher megera que não obedece ao marido?
Teria ele sido sádico? De acordo com Bloom (2000:56), a eterna popularidade da obra,
que pode ser considerada tanto comédia romântica quanto farsa, não decorre do sadismo
dos espectadores masculinos, mas da excitação sexual dos homens e mulheres. Catarina
se apaixonara por Petruchio à primeira vista, visto que ele se apresenta como uma
maneira dela se libertar de um pai que favorece a filha mais nova. Petruchio tenta
“curar” Catarina ao torná-la sua esposa, mas esta logo aprende com domá-lo. No texto
final da peça, Catarina aconselha as mulheres a se comportarem diante dos maridos,
mas sua intenção era de comandar e, ao mesmo tempo, fingir obedecer. O casal
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Petruchio e Catarina formam o mais feliz dos casais Shakespeareanos, segundo Bloom
(2000:55).
A intenção de Shakespeare ao escrever a obra não se apresenta clara ainda. Mas
é certo que ele não a escreveu com a única intenção de punir o mau comportamento
feminino em relação ao marido. Uma bela obra que vale a pena ser estudada.

A personagem Megera, uma análise

Muito se observa de semelhante e diferente entre as duas personagens principais,


Catarina Minola e Katherina Stratford. Comecemos primeiramente com a personagem
Catarina Minola de A Megera Domada. Toda a análise feita tem por base diversas
leituras shakespeareanas e opiniões próprias. As falas das personagens que fazem parte
da análise têm por fonte a tradução da obra teatral e do filme.
Catarina Minola, uma jovem renascentista, sofre a questão do casamento forçado
e a obediência fraternal. A razão pela qual Catarina se tornara megera e indomável pode
ter sua explicação pela falta da mãe e da preferência explícita do pai pela irmã mais
nova. Sua irmã pode ser bondosa, mas revela um espírito manipulador e joga de forma
com que todos a achem uma santa sofredora, impedida de casar por causa da irmã má de
língua afiada. Catarina sente essa preferência: “Ela é vosso tesouro, deve arranjar um
marido (Shakespeare, apud CIVITA, 1981:404)”. Batista demonstra essa preferência ao
contratar um “tutor” (na verdade Lourenço, apaixonado por Bianca) para instruir
Bianca, somente. Catarina sente-se afastada, rejeitada. Ela é ridicularizada por todos.
Vários adjetivos são atribuídos a ela: louca, insolente, demônio, maldita, má,
amaldiçoada, mesquinha de espírito endemoninhado, desagradável, etc (tradução).
Qualquer mulher no lugar dela se sentiria ferida e mais revoltada com tais definições
numa sociedade, por mais que ela fingisse não se importar.
Quanto ao casamento, este não representava, naquela época, o inicio de uma
vida a dois ansiosamente aguardada, mas, sim, um novo momento de submissão da
mulher. (PAIVA, 2004: 59). Numa sociedade de cunho patriarcal, ele era como um
negócio, onde a mulher era a mercadoria. Esta era uma figura submissa, desencorajada
de expressar suas opiniões. Catarina tinha a língua afiada, pois reagia contra esse
sistema.
Catarina era uma figura solitária (PAIVA, 2004: 63), o que não é comum das
heroínas de Shakespeare, que sempre têm uma figura feminina ao lado. Na sua relação
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com Petruchio, pode-se perceber muitas contradições ao seu caráter de megera. No


começo Catarina obviamente demonstra hostilidade em relação a ele, pois esse é o papel
que ela desempenha. Entretanto nota-se que Petruchio a atrai e ela apaixona-se por ele.
Tal atração pode ter acontecido por vários motivos, sendo um deles a semelhança entre
os dois: “Petruchio: Sou tão teimoso quanto ela é orgulhosa; e quando dois fogos
violentos se encontram, consomem logo o objeto que lhes alimenta a fúria.
(Shakespeare, apud CIVITA, 1981:407)”. Ele a trata com carinho, mesmo dizendo que
vai forçadamente vai tomá-la por esposa quer ela queira ou não. De certo modo,
Catarina se sente feliz por ter alguém que lute para domá-la. Quando Petruchio viaja
para tratar de questões do casamento, Catarina demonstra um pavor de ser abandonada
no altar: “Quem dera que eu nunca o tivesse visto! (sai chorando), (Shakespeare, apud
CIVITA, 1981: 420)”. Nessa cena II do ato III, pode-se perceber claramente que ela
havia se apaixonado por ele, pois que medo ela teria de ser abandonada se não quisesse
casar de modo algum? Ao fim da peça, como já vimos antes, Kate, completamente
“domada”, faz um belo discurso, dizendo como as mulheres devem ser boas e
obedientes aos seus maridos, surpreendendo a todos. Obviamente, que ela representa
um papel, para poder aconselhar as mulheres como comandar e, ao mesmo tempo, fingir
obedecer. (BLOOM, 2000:62).
Em 10 coisas que eu odeio em você a personagem transmuta-se ao universo
adolescente, como já foi visto antes. Katarina é uma garota intelectual, que sonha em ir
para uma universidade em outro estado, querendo assim desgarrar-se do pai
superprotetor. Além de sentir a falta da mãe, sua relação com Bianca também não
parece ser das melhores, ela também afirma que seu pai quer que ela seja como sua
“doce” irmã. Bianca demonstra uma reação à hostilidade da irmã ao afirmar, referindo-
se a Kate: “Ela pertence a uma raça à parte. É incapaz de interação humana.” Assim
como na obra original, encontramos também muitos adjetivos que são referidos a ela e
nos ajuda a saber como era vista pela sociedade: bruxa amarga e convencida, megera,
infeliz, azeda, reclamante, mutante, antisocial, louca, tempestuosa, cadela infame, hostil,
senhorita ‘eu-tenho-uma-opinião-sobre-tudo”, entre outros.
Kate fala sobre a sociedade, a opressão da classe média onde vive. Segundo ela
“ser homem e imbecil é valioso” nela. Ela apresenta-se como uma personagem
feminista, que curte escritoras como Simone de Beauvoir, Sylvia Plath e Charlotte
Bronte. Uma garota intelectualizada, diferentemente de Catarina Minola, que não tem
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muito acesso à educação, devido à época em que vive. O sonho de Miss Stratford, além
de ir para a universidade, é montar um grupo musical, só de mulheres.
Quanto a anti-socialidade apresentada por ela, a justificativa pode ser encontrada
por ela ter se cansado do mundo social dos adolescentes, que, da forma que é
apresentado no filme e por ela, só querem curtir festas e namorar. Nota-se claramente
sua rejeição a isso quando ela afirma: “A festa é só uma desculpa para os idiotas
beberem cerveja, ficarem se amassando, tentando esquecer do patético vazio de suas
insensatas vidas consumidoras”. Kate se afasta e vive num mundo a parte, lendo seus
livros, curtindo concertos de rock. Ela é alguém à frente da sua sociedade, alguém que
na verdade só se sente deslocado naquele mundo fútil (por ela considerado) dos
adolescentes. Kate demonstra não se importar com a opinião dos outros e fazer as coisas
por convicção própria, não correspondendo às expectativas alheias.
O misterioso Patrick é pago para conquistá-la, mas ambos se apaixonam
rapidamente. São personagens parecidos, ambos são afastados daquele mundo, ambos
anti-sociais. Patrick tem tudo o que Kate precisa, ele a deixa a vontade para que ela
tome sempre qualquer decisão, mesmo sendo isso uma estratégia para conquistá-la no
começo. Quando ela descobre a armação, ambos já estavam apaixonados. Ela nesse
momento demonstra toda a fragilidade de quem ama e é ferido. Ao fim do filme, ela
escreve sua própria versão de um soneto Shakespeareano como o título 10 coisas que eu
odeio em você, onde ela declara tudo o que odeia em Patrick, mas que, no entanto, não
consegue odiá-lo, expressando todo seu amor por ele. Tal poema de Katarina Stratford
pode ser relacionado ao discurso final de Catarina Minola, onde ambas demonstram
estarem “domadas”. Uma pelo marido e casamento, a outra simplesmente pelo amor, já
que na nossa sociedade atual marido e casamento não constituem a base para ao amor,
podendo amá-los sem eles.
Na tabela abaixo, pode-se ver um paralelo traçado entre as duas personagens, com
principais semelhanças e diferenças.

Catarina Minola Katherina Stratford


Sociedade século XVI, Renascença Final do século XX
Sociedade patriarcal Classe média
Pai dominador Pai superprotetor
Obediência à regra social onde a 1ª irmã é Obediência à regra número 1 da casa: não
a 1ª a casar-se namorar até se formar.
Obediência À segunda regra: Bianca
namora quando Kate namorar
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Antisocialidade Antisocialidade
Rejeição ao casamento Rejeição ao namoro

Sem amigos, rejeitada (personagens Poucos amigos, exclusão por vontade


femininas de Shakespeare geralmente própria
acompanhadas)
Mau relacionamento com a irmã Mau relacionamento com a irmã
Não acesso à educação (apenas Bianca Acesso à educação americana e
recebia aulas de música e arte) questionamento e crítica a ela
Questionamento era proibido Questionamento não é proibido, mas
ridicularizado
Protótipo da mulher inofensiva e obediente Protótipo da adolescente alienada
na sociedade
Alguns adjetivos referidos a ela (visão da Alguns adjetivos referidos a ela (visão da
sociedade): louca, desagradável, brusca, sociedade): bruxa amarga, convencida,
amaldiçoada, gata selvagem, vespa, megera, infeliz, azeda, reclamante,
endemoninhada, voluntariosa, demônio. mutante, louca, tempestuosa, cadela
infame, hostil.
Atitudes feministas (não se falava em Declaradamente feminista
feminismo)

Considerações Finais

Muito se tem a pesquisar sobre o devido assunto tratado nessa pesquisa.


Asseguro-lhes de que esta é uma pesquisa principiante. Devo inserir mais teorias e um
pouco sobre análise semiótica do assunto abordado, visto que traria muitos outros
resultados. Dessa forma, essa é parte de uma longa pesquisa, sem fim determinado. As
falas que foram colocadas na presente pesquisa e analisadas foram extraídas da peça e
do filme já traduzidos para o português. Pretendo de igual modo trabalhar com alguns
aspectos da língua original, onde a legendagem e até mesmo a tradução da obra podem
às vezes deixar passar despercebidos.
Tal pesquisa teve como objetivo a análise da tradução da peça shakespeareana A
Megera Domada para o filme de tipo comédia adolescente 10 coisas que eu odeio em
você. Foi utilizado um estudo a partir de teorias de tradução e conseqüentemente de
adaptação fílmica. Tal adaptação, caracterizada por transformação, trouxe o esqueleto
da obra original, com diversas mudanças devido à necessidade de traduzir as questões
temporais e socioculturais.
Pela análise das duas personagens principais pode-se concluir que o diretor
utilizou muitas estratégias para transmutar a Megera original em uma Megera moderna.
Ambas são mulheres deslocadas da sociedade, com problemas na família e com uma
diferente visão em relação a amor (ou casamento). Trazem fortes traços de feminismo,
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um não declarado, devido à época. As duas Megeras, assim como seres humanos,
querem no fundo serem aceitas pela sociedade, que de certa forma as despreza. O filme
introduziu novos aspectos e atitudes em Kate Stratford, para que fizessem parte do
contexto social adolescente. Obviamente, nem tudo da obra Shakespeareana pôde ser
transmutado no filme, que utilizou de forma satisfatória algumas das idéias principais da
obra. Não utilizando o critério fidelidade, podemos concluir que a duas Megeras
possuem algumas semelhanças, visto que as diferenças entre as duas são inevitáveis.

Referências

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