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OCTAVIO PAZ ADUPLACHAMA AMOR EROTISMO Tradugdo ‘Wladyr Dupont DadortanilorasdeCatlgaco na Pulao (Clow Bese ao Liv, 57, Bath ‘Adupia cham / Cosa Pax tduso Wide pont = Ss Pl: Sno 35 tie ed eopnaes Indios pas cogs semis 1g Leta cin MBH Titulo original: The double fame {© 1953 by Octavio Paz Diteitos exclusives para o Brasil cedidce & ‘Agila Sklane de Livro, Jornais Revistas Lida ‘Av, Raimundo Perelta de Magalhes, 3395. (CEP 05145-200 — Sf0 Paulo — Brasil Coord. editorial: Ana Emilia de Oliveia Revielo: Svia , Ribeiro eShila T. Fabre ‘Bditor Skcliana, 1994 Liminar Quando se comeca a escrever um livro? Quanto tempo demoramos para escrevé-lo? Perguntas aparentemente Ficeis, mas na verdade arduas. Se me atenho a fatos exteriores, co- mecei estas paginas nos primeiros dias de marco deste ano e terminei em fins de abril: dois meses. A verdade € que come- cei na minha adolescéncia. Meus primeiros poemas foram de amor ¢ desde entio esse tema aparece constantemente em minha poesia, Fui também um vido leitor de tragédias e co- médias, romances e poemas de amor — dos contos das Mile uma noites a Rome e Julieta € A cartuxa de Parma, Essas leituras alimentaram minhas reflexdes ¢ iluminaram minhas experigncias. Em 1960 escrevi meia centena de paginas sobre Sade, nas quais procurei tragar as fronteiras entre a sexualida- de animal, 0 erotismo humiano © 0 dominio mais restrito do ‘amor. Nao fiquei inteiramente satisfeito, mas aquele ensaio serviu para que eu percebesse a imensidao do tema. Em 1965 vivia na India; as noites eram azuis e elétricas como as do poema que canta os amores de Krishna e Radha, Enamorei- me, Entio decidi escrever um pequeno livro sobre 0 amor que, partindo da conexao intima entre os és campos — 0 sexo, 0 erotismo e o amor —, fosse uma exploragao do sent mento amoroso. Fiz algumas anotagdes. Tive de parar: obri- gagdes circunstanciais me forgaram a adliar © projeto. Deixei a India e uns dez anos depois, nos Estados Unidos, escrevi um ensaio sobre Fourier no qual voltei 2 algumas daquelas idéias esbogadas em minhas anotagdes. Outras preocupa- (goes e trabathos, novamente, se interpuseram. Meu projeto ficava cada vez mais longe. Eu ndo podia esquecé-lo, mas tampouco tinha animo para executé-lo, Passaram os anos. Continuei escrevendo poemas que, ‘com freqiiéncia, exam de amor. Neles apareciam, como frases musicais recorrentes — também como obsessdes —, ima- gens que exam a cristalizagio de minhas reflexdes. Nao ser dificil para um leitor que tenha lido meus poemas encontrar pontes e correspondéncias entre eles ¢ estas paginas. Para ‘mim, a poesia e © pensamento silo um sistema tinico. A fonte ‘de ambos € a vida: escrevo sobre o que vivie vive. Viver tam- bém é pensar e, as vezes, atravessar essa fronteira na qual sentir ¢ pensar se funclem: isso € poesia, Nesse meio tempo, papel em que havia mscunhado minhas anoragdes na fnclia foi amarelanco e algumas paginas se perderam nas mudan- ‘case vingens. Abanclonei a idéia de escrever o livro, Em dezembro passado, 20 reunir alguns textos para uma colegio de ensaios (ideas y castumbred), lembrei caquele li- vro tantas vezes pensado e nunca escrito. Mais que pena, senti vergonha: nfo era um esquecimento, era uma tiaicho. Passei algumas noites em claro, rofdo pelo remorso. Senti a necessidacle cle voltar a minha idéia e realizé-la, Mas eu me detinha: nfo era um pouco ridiculo, no final de minha vida, escrever um livro sobre o «mor? Ou era um adeus, um testa mento? Balangava a cabega, pensando que Quevedo, em meu lugar, teria aproveltado a ocasito para escrever um soneto sa. tirico. Procurei pensar em outras coisas; foi intel: a idia do li- vio naio me deixava. Passei virias semanas cheio de diividas. De repente, uma manha, lancei-me a escrever com uma es- pécie de alegre desespero. A medida que avangava, surgiam novas visOes. Pensara em um ensaio de umas cem paginas ¢ © texto se alongava mais e mais com imperiosa espontanei- dade, até que, com a mesma naturalidade e 0 mesmo impé- rio, deixou de Auir. Esfreguei os olhos: escrevera um livro. Minha promessa estava cumprida. Este livro tem uma relag&o intima com um poema que es- revi ha poucos anos: “Carta de creencia", A expressio desig- naa carta que levamos conosco para sermos acreditados por pessoas clesconhecidas; neste caso, a maioria de meus leito- res. Também pode ser interpretada como uma carta que con- tém uma declaragio de nossas crengas. Pelo menos € esse 0 sentido que Ihe dou. Repetir um titulo é feio e se presia a con- fusbes. Por isso preferi outro de que, além disso, eu gosto: A dupla chama, Segundo o Diciondrio de auitoridades, a cha- ma é “a parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura pirami- dal”, O fogo original e primorclial, a sexualidacle, levanta a chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta ou- tra chama, azul e trémula: a do amor. Erotismo e amor: a du- pla chama da vida ‘Octavio Paz México, 4 de maio de 1993 ADUPLACHAMA AMOR EROTISMO Os reinos de Pa ‘A realilace sensivel sempre foi para mim uma fonte de sur- presas, e também de evidéncias. Num artigo ja remoto, tle 1940, aludi a poesia como “o testemunho dos sentidos”. Testemunho veridico: suas imagens sto palpaiveis, visiveis e audiveis. E ver- dade, a poesia é feita de palavias enlacadas que emitem refle- x08, vislumbres e nuances: 0 que ela nos ensina sio realidacles ou ilusdes? Rimbaud disse: “Etat vu ce guelbomme a cri vol” Fusio de vere crer, Na conjungio destas duas palavras esti o segredlo da poesia e cle seus testemunhos: aquilo que nos mos- ta © poema no vemos com nossos ollios cla matéria, ¢ sim ‘com os do espitrito. A poesia nos faz tocar 0 impalpavel ¢ escu- tar a maré co silencio cobrindo uma paisagem devasiada pela ins6nia. O testemunho poético nos revela outro mundo dentro deste, 0 mundo outro que é este mundo. Os senticlos, sem per- der seus poderes, conveitem-se em servidores da imaginagio € nos fazem ouvir 0 inaudlito e ver o imperceptivel. Nfo € isso, afinal, o que acontece no sonho € no encentro erético? Tanto nos sonhos como no ato sexual abragamos fantasmas, Nosso pareeiro tem corpo, rosto € nome, mas sua realicade, precisa- mente no momento mais intenso do abrago, dispersa-se em u uma cascata de sensagdes que, por sua ver, dissipam-se, Ha ‘uma pergunta que se fazem todos os apaixonados e que con- densa em si o mistério erético: “Quem & vocé?" Pergunta sem resposta... Os sentidos sio e no sto deste mundo. Por meio deles, a poesia exgue uma ponte entre 0 vere o crer: Por essa ponte a imaginaco ganha corpo € os corpos se convertem em imagens. A relagao entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetagao, que o primeiro & uma poética corporal e a se- gunda uma erética verbal. Ambos sao feitos de uma oposicao complementar. A linguagem —som que emite sentido, trago material que denota idéias corpéreas — é capaz de dar nome a0 mais fugaz € evanescente: a sensagio; por sua vez, 0 er0- smo nao é mera sexualidade animal — é ceriménia, repre- sentagio, O evotismo é sexualidade transfigurada: metéfora A imaginagio é 0 agente que move o ato erético € 0 poético. # a poréncia que transfigura 0 sexo em cerimOnia ¢ rito ea linguagem em ritmo e metéfora. A imagem poética € abrago de realiciacles opostas e a rima € cOpula ce sons; a poesia ero- tiza a linguagem eo mundo porque ela propria, em seu modo de operagao, ja € erotismo. Eda mesma forma 0 exotis- mo € uma metifora da sexualidade animal. O que diz essa metifora? Como toclas as metdforas, dlesigna algo que esti além da veaticiade que Ihe dé origem, algo novo e distinto dos termos que a compdem. Se Géngora dlz piizpura nevada, in- venta ou descobre uma realidacle que, embora feita de am- bos, nao é sangue nem neve. © mesmo acontece com 0 ero- tismo, Diz, ou melhor, éalguma coisa diferente ca mera se- xualidade. Embora as maneiras de relacionar-se sejam muitas, 0 ato sexual significa sempre a mesma coisa: reprodugio, O erotis- mo & sexo em ago mas, seja por desvid-la ou por neg’-la, suspend a finalicacle da fungiio sexual. Na sexualidacle o pra zer serve para a procriagio; nos rituais eréticos o prazer € um fim em si mesmo ow tem finalidades diferentes da reprodu- io. A esterilidade nio é s6 uma nota freqtiente do erotismo, mas também, em certas ceriménias, uma de suas condigdes. Algumas vezes os textos gnésticos e tantricos falam do sémen retido pelo oficiante ou derramado no altar. Na sexualidade a violéncia ea agressio sio componentes necessariamente li- gados a copulacdo e, assim, & reprodugao; no erotismo, as tendéncias agressivas se emancipam, quero dizer, deixam de servir & procriacdo ¢ se tornam fins auténomos. Em resumo, a metéfora sexual, por meio de suas infinitas variagoes, signifi- ca sempre reproducdo, a metéfora erbtica, indiferente a per- petuaco da vida, interrompe a reproducho. A relagao da poesia com a linguagem € semelhante a do erotismo com a sexualidade. Também no poema — cristali- zacio verbal — a linguagem se desvia de seu fim natural: a comunicacdo. A disposigio linear é uma caracteristica basica da linguagem; as palavras se enlagam umas as outras de for- ma que a fala pode ser comparada a um veio de Agua corven- do, No poema a linearidade se torce, atropela seus proprios passos, serpenteia: a linha reta deixa de ser 0 arquétipo em favor do circulo e da espiral. Hai um momento em que a lin- guagem deixa de deslizar e, por assim dizer, levanta-se € move-se sobre o vazio; ha outro em que cessa de flute trans- forma-se em um s6lido transparente —cubo, esfera, obelisco — plantado no centro dla pagina. Os significados congelam- se ou dispersam-se; de uma forma ou de outra, negam-se. As palavras nao dizem as mesmas coisas que na prosa; o poema jfndo aspira a dizer, e sim a ser. A poesia interrompe a comu- nicag&o como o erotismo, a reproducao, Diante dos poemas herméticos nos perguntamos perple- x0s: © que querem dizer? Se lemos um poema mais simples, nossa perplexidade desaparece, no nosso assombro: nessa mesma linguagem limpida — agua, ar — esto escritos os li- vr0s de sociologia ¢ os jonais? Depois, pasado 0 assombro, 3 no © encantamento, descobrimos que o poema nos propde outra classe de comunicagio, regida por leis diferentes das do intercambio de noticias e informagdes. A linguagem do poema & 2 do dia-a-dia e, a0 mesmo tempo, diz coisas distin- tas das que todos dizemos, Esta é a razo do receio com que as igrejas sempre viram a poesia mistica, S40 Joao da Cruz mo queria dizer nada que fugisse dos ensinamentos da Igre- jay apesar disso, sem querer, seus poemas diziam outras coi- sas, Os exemplos poderiam se multiplicar. A periculosidade da poesia é inerente a seu exercicio e € constante em todas as pocas € em todos os poetas. HA sempre uiha rachadura en- tre 0 dizer social € 0 poético: a poesia é a outra vox, como eu disse em outro texto. Por isso 6, a0 mesmo tempo, natural ¢ perturbadora sua correspondéncia com os aspectos do erotis- mo, negros € brancos, de que falei antes. Poesia ¢ erotismo nascem dos sentidos, mas nao terminam neles. Ao se solta- rem, inventam configuragdes imagingrias — poemas ¢ cerl- ménias. Nao tenciono aqui me deter nas afinidades entre a poesia ¢ 0 erotismo. Em outras ocasides explorei o tema; agora eu 0 evoquei como introducaa a um assunto diferente, embora in- timamente associado a poesia: 0 amor. Antes de tudo € preci- so distinguir 0 amor propriamente dito do erotismo ¢ da se- xualidade, Ha uma relacio tio intima entre eles que com fre~ qUéncia sao confundidos. Por exemplo: as vezes falamos da vida sexual de fulano ou beltrano, mas na realidade nos refe- rimos a sua vida erética. Quando Swann ¢ Odewte falavam de (faire catleya nao se referiam simplesmente & copula; Proust nota: “Aquela maneira particular de dizer fazer amornko sig- nificava para eles exatamente o mesmo que seus sindnimos”. O ato erético se desprende do ato sexual: € sexo e € ovtra coisa. Além disso, a palavra-talisma catleya tinha um sentido para Odette e outro para Swann: para ela designava certo “4 prazer erético com certa pessoa e para ele era o nome de vin sentimento terrivel e doloroso: 0 amor que sentia por Oclette. Nao € estranha a confusio: sexo, erotismo e amor sio aspec- tos do mesmo fendmeno, manifestagdes do que chamamos vida. © mais antigo dos trés, o mais amplo € basico, € 0 sexo. £2 fonte primordial, O erotismo € o amor sio formes deriva- das do instinto sexual: cristalizagdes, sublimagdes, perver- ses e conclensagdes que transformam a sexualitade € a tor- ‘nam, muitas vezes, incognoscivel. Como no caso dos circulos concéntricos, 0 sexo & 0 centro € 0 pivé dessa geometria pas- sional. O dominio do sexo, embora menos complexo, € 0 mais vasto dos 1'és. Contudo, apesar de imenso, € apenas provin- cia de um reino ainda maior: o da matéria animada, Por sua vez, a matéria viva & s6 uma parcela do universo. £ muito provivel, embora ainda nfo saibamos com ceiteza, que em ‘outros sistemas solares de outras galixias existam planecas com vida semelhante 2 nossa; muito bem, por mais numero- sos que possam ser esses planeta, a vida continuaria sendo uma infima parte do universo, uma excegio ou singularids- de, Tal como concebida pela ciéncia moderna e até onde 165, 0s leigos, poclemos compreender os cosmélogos € 0s fi- sicos, 0 universo € um conjunto de galixias em perpétuo mo- viento de expansio. Cadeia dle excecdes: as leis que regem © movimento clo universo macrofisico nao sio, segundo pa- rece, inteiramente aplicivels 20 universo das particulas ele- mentares. Dentro dessa grande divisto, aparece outra: a da matéria animadia, A segunda lei da termodinamica, a tendén- cia 8 uniformidade e 4 entropia, dé lugar a um proceso in- verso —a individuagao evolutiva ea incessante produgio de espécies novas e cle organismos diferentes. A flecha da biolo- gia parece disparada em sentido contririo ao cla flecha ca fi- sica. Aqui surge outra excecio: as células se multiplicam por gemacio, esporulacao e outras modalidades, ou seja, por 15 partenogénese ou autodivisio, salvo na pequena ilha em que @ reproducio se realiza pela unio de células de sexo dife- rente (gametas). Essa pequena ilha é a da sexualidade, ¢ seu dominio, bem mais reduzido, abarca 0 reino animal e certas espécies do reino vegetal. O género humano divide com os animais € com ceitas plantas a necessidade de se reproduzir pelo método do acoplamento, e nao pelo mais simples da au- todivisio. ‘Uma vez delimitadas, de forma suméria 2 tosca, as frontei- ras da sexualidade, podemos tragar uma linha divis6ria entre esta ¢€ 0 erotismo, Uma linha sinuosa € no poucas vezes vio~ lada, seja pela erupcio violenta do instinto sexual seja pelas incursdes da fantasia erética. Antes de tudo, 0 erotismo € ex- clusivamente humano: & sexualidade socializada e transfigu- rada pela imaginagdo e vontade dos homens. A primeira coisa que diferencia 0 erotismo da sexualidade €2 infinita varieda- de de formas em que se manifesta, em todas as épocas € em todas as terras. © erotismo € invenclo, variagio incessante; 0 sexo é sempre 0 mesmo. © protagonista do ato erético é © Sexo Ou, mais exatamente, 08 sexos. O plural € obrigatorio porque, incluindo os chamados prazeres solitatios, 0 desejo sexual inventa sempre um parceiro imagindrio... ow muitos. Em todo encontro erético hé um personagen invisivel e sem- pre ativo: a imaginacio, © desejo. No ato erético intervém sempre dlois ott mais, nunca um. Aqui aparece a primeira dife- renga entre a sexualidade animal e o erotisimo humano: neste, uum ou mais participantes podem ser um ente imagindrio. S6 ‘0s homens ¢ as mulheres copulam com incubos e sticubos. ‘As posices basicas, segundo os antigos e as gravuras de Jélio Romano, so 12, mas as ceriménias e jogos erdticos sto inumeriiveis e mudam continuamente pela agio constante do desejo, pai da fantasia. O erotismo varia de acordo com o cli- ma ea geografia, com a sociedade ¢ a histéria, com o indivi- duo eo temperamento. Também com a ocasio, a sone ea 6 inspiragao do momento. Se o homem € uma criatura ‘ondu- lante’, o mar onde se move € regido pelas ondas caprichosa: do erouismo. Esta é outra diferenga entre a sexualidade e « erotismo, Os animais copulam sempre da mesma forma; o: homens se olhain no espelho da universal copulagio animal. Ao imité-la, tansformam a ela e também sua propria sexuali- dade. Por mais estranhos que sejam os ajuntamentos animais, luns temos ¢ outros Ferozes, nao ha mudanga alguma neles. pombe voa ¢ ronda a fémea, A manta* devora o macho de- pois cle fecundada, mas esse processo é 0 mesmo desde o principio. Ateriadora e prodligiosa monotonia que se conver te, no mundo do homem, em aterradora e prodigiosa vatie- cade, No seio da natureza 0 homem criou um mundo a parte, composto por esse conjunto de priticas, instituigdes, ritos € idéias que chamamos cultura. Em sua raiz, 0 erotismo é sexo, natureza; por ser uma criagio € por suas fungdes na socieda- de, € cultura. Uma das finalidades do erotismo € domar 0 sexo € inserislo na sociedade. Sem sexo no hi sociedade, pois nao ha proctiagdo; mas o sexo também ameaga a socie- dade. Como o deus Pa, é criagao ¢ destruigo. E instinto: tre- mor, panico, explosio vital. E um vuiczo, e cada um de seus estalos pode cobbrir a sociedade com uma erupgio de sangue semen. O sexo ¢ subversivo: ignora as classes e hierarquias, as artes e as ciéncias, 0 dia e a noite; dorme e s6 acorda para fornicar e voltar a dormir. Nova diferenga com o mundo ani- mak: a espécie humana padece dle uma insaciivel sede sexual € n&o conhece, como a3 outros animais, perioclos de excita- g8v¢ periodos de repouso, Ou dito de outa forma: 0 homem € 0 Unico ser vivo que nao dispde de uma regulagio fisiol6gi- ca e automética cle sua sexualidade, Assim como nas ciclades modernas ou nas ruinas da Anti- uidade, figuras clo falo e da vulva As vezes aparecem nas pe- * Um tipo de peixe que chega a ter seis toncladss de peso (N. doT). 7 dias dos altares ou nas paredes cas latrinas. Priapo em erecio perpétua € Astarte em sintioso e eterno cio acompanham os homens em todas as suas peregrinagdes e aventuras. Por isso tivemos de inventar regras que a0: mesmo tempo canalizam 0 instinto sexual e protegem a sociedade de seus excessos. Em todas as sociedacles hié um conjunto de proibigdes € tabus — também de estimulos e incentivos — destinados a regular e controlar © instinto sexval, Essas regras sesvem simultanea- mente & sociedad (cultura) e & reproducao (natureza). Sem elas a familia se desintegraria, ¢ com esta toca a sociedade. Submetidos & perene clescarga elétrica do sexo, os homens inventaram um para-raigs: 0 erotismo. Invengio equivoca, como todas as que idealizamos: © erotismo propicia a vida a morte. Comeca a se desenhar agora com maior precisio ambigitidacle do erotismo: repressio e permissao, sublima- ho € perversiio. Nos dois casos, a fungio primordial da se- xualidade, a veproclueao, fica subordinada a outros fins — uns sociais e outros individuais. © erotismo defence a socie~ dacle dos assaltos da sexalicacle, mas também nega a fungio reprodutiva, E 0 caprichoso servidor da vida e da morte. As regras e instituigdes destinadas a domar 0 sexo sio nu- merosas, cambiantes e contradit6rias, Seria indtil enumers- las: vao do tabu do incesto a0 contrato de casamento, cia cas- tidade obrigatoria 4 legislagiio sobre os bordéis. Suas muclan- cas desafiam qualquer tentativa de classificacao que nao seja do tipo burocritico: todas os dias aparece uma nova priitica € desaparece outra. Todas elas, porém, sfio compostas de dois termos: a abstinéncia e a permissio. Nem uma nem outa sfio absolutas. Explica-se: a satice psiquica cla sociedacle e a esta- bilidade de suas instituigdes dependem em grande parte do didlogo contraditério entre ambas. Desde os tempos mais re- motos as sociedades passam por perfodos de castidacle ou continéncia seguidos de outros desenfreados. Um exemplo 18 imediato: a Quaresma e 0 Carnaval, A Antiguidade eo Orien- te conheceram também este ritmo duplo: a bacanal, a orgia, a peniténcia piblica dos astecas, as procissdes cristis de desa- gravo, o Ramadi dos muculmanos. Numa sociedade secular como a nossa, os periodos de castidade, quase todos associa- dos a0 calendatio religioso, desaparecem como priticas cole- tivas consagradlas pela tradigao. Nao importa; conserva-se in- tacto 0 carter duplo do erotismo, embora varie seu funda- mento: deixa de ser um mandamento religioso e cicico para se converter em uma prescrigao de ordem individual. Essa prescrigdio quase sempre tem um fundamento moral, embora as vezes recorra A autoridace da cincia e da higiene. O medio cla doenga nao & menos poderaso que o temor a divin- dade ou que o respeito a lei ética, Aparece novamente, agora despojada de sua auréola religiosa, a dupla face clo erotismo: fascinagio diante da viela ¢ diante da morte. O significado da metafora erética é ambiguo. Melhor dizendo, é plural. Diz muitas coisas, todas diferentes, mas em todas elas aparecem duas palavras: prazer € morte. Nova excegio dentro da grande excegio que é 0 erotis- mo diante clo muncio animal: em certos casos a abstencao ea permissio, longe de serem selativas e periédicas, sfc absolu- tas, S40 05 extremos clo erotismo, seu ponto de superagio e, de certa forma, sua ess€ncia. Digo isso porque 0 exctismo €, em si mesmo, desejo — um disparo em direcio a um mais, além. Observo que o ileal cle uma castidade incondicional ‘ou de uma permissdo nao menos incondicional sao realmen- te idleais; quero dizer, muito poucas vezes, talvez nunca, po- dem se realizar completamente, A castidacle do monge e da freira € continuamente ameacada pelas imagens Iibricas que aparecem nos sonhos é pelas polugdes noturnas; o libertino, por su vez, passa por periodos de saciedacle e de saturacao, além de estar sujeito 20s insidiosos ataques da impoténcia. Uns sao vitimas, durante 0 sono, do abrago quimérico dos in- 9 cubos e siicubos; outros esto condenados, durante a vigilia, a atravessar os paramos da insensibilidade. Enfim, realizdveis unio, os ideais de total castidade e libertinagem podem ser coletivos ou individuais. Ambos se inserem na economia vital da sociedade, embora 0 segundo, em seus casos mais extre- mos, seja uma tentativa pessoal de romper os lagos sociais € s@ apresente como uma libertago da condigio humana. Nao preciso me deter nas ordens religiosas, comunidades € seltas que pregam uma castidade mais ou menos absoluta em conventos, masteiros, ashrams e outros lugares de reco- Ihimento, Toctas as religides conhecem essas confrarias ¢ ir- mandades, £ mais dificil documentar a exist@ncia de comuni- dades libertinas. ‘A diferenga das associacées religiosas, quase sempre parte de uma Igreja e por isso mesmo reconhecidas publicamente, os grupos libertinos se reGnem em geral em lu- gares dlstantes e secretos. Por outro lado, € ficil atestar sua realidade social: aparecem na literatura de todas as épocas, tanto na ocidental como na oriental. Tém sido e stio no so- ‘mente uima realicade social clancestina como também um gé- nero literdrio, Desta forma so duplamente reais. As priticas eréticos-coletivas de cariter piblico assumem consrantemen- te formas religiosas. Nao € necessfrio, para provar isso, lem- brar 0s culios félicos clo Neolitico ou as bacanais e saturnais da Antiguicade greco-romana; em duas religibes marcada- mente ascéticas, 0 budismo e o cristianism, figura também —e cle maneira proeminente —a unio entie a sexualidade e © sagrado. Cada uma das grandes religides hist6ricas engen- drou, externa ou internamente, seitas, movimentos, ritos e li- turgias nas quais a caine e 0 sexo so caminhos em direcio a divindade. Nao podia ser de outra forma: 0 erotismo é antes de tudo € sobretudo sede de outridade. E 0 sobrenatural 4 radical e suprema outridade. As priticas eréticas religiosas suspreendem tanto por sua variedade como por sua recorréncia, A copulagio ritual coleti- 20 va foi praticada por seitas tintricas da India, por taofstas da China e por cristios gn6sticos no Mediterraneo. A mesma coisa sucede na comunh4o com o sémen, um ritual dos adeptos do tantrismo, dos agnésticos adoradores de Barbelo € outros grupos. Muitos desses movimentos er6tico-religio- 80s, inspirados por sonhos milenaristas, uniram a religiao, 0 erotismo € a politica; entre outros, os Turbantes Amarelos (Caoistas) na China e os anabatistas de Jean de Leydle na Ho- Janda. Observo que em todos esses situais, com duas ou wés excegdes, a reprodugio ndo possul um significado maior, mostrando, inclusive, um aspecto negativo. No caso dos gnésticos, o semen e 0 sangue menstrual deviam ser ingeri- dlos para reintegré-los ao Grande Todo, pois acreditavam que este munclo fora criado por um demiurgo perverso; entre os ntricos e os taofstas, embora por razdes inversas, a retengdo do sémen era obrigatéria; no tantrismo hindu, 0 sémen era derramado como uma oblagdo. Provavelmente eva esse tam- bam o senticlo do biblico “pecacio de Ona”. O coitus interrup- Jusvale parte, quase sempre, caqueles rituais. Em resumo, no erotismo religioso se inverte radicalmente © processo sexual: hd a expropriagio dos imeiisos poderes do sexo em favor de fins distintos ou contratios a reprodugao. (© erotismo encarna assim em duas figuras emblematicas: a do religioso solitério ¢ a do libertino, Emblemas opostos, mas uniclos no mesmo movimento: ambos negam a reproc ho € slo tentativas de salvagio ou libertacio pessoal diante de um mundo caido, perverso, incoerente ou irreal. A mesure aspiraglo move as seitas € as comunidades, mas nelas a sal- vaglo € uma empreitada coletiva — stio uma sociedade den- two da sociedacle —, enquanto 0 asceta e 0 libertino sio asso- Giais, individuos fora da sociedade ou contra ela. O culo a castidacle, no Ociclente, & uma heranga do platonismo e de outras tencéncias cla Antiguicade para as quais a alma imor- a tal era a prisioneira do corpo mortal. A crenga geral era a de que um dia a alma voltaria 20 Empireo, 0 corpo voltaria a ser matéria informe. Contudo, o desptezo ao corpo no aparece no judatsmo, que exalcou sempre os poderes genéticos: cres- cei e multiplicai-vos € 0 primeiro mandamento bfblico. Tal- vex por isso, ¢ sobretudo por ser a religio da encarnacio de Deus no corpo humano, o cristianismo atenuou 0 dualismo platénico com o dogma ca ressurreicao da carne € com o dos ‘compos gloriosos’. Ao mesmo tempo, absteve-se de ver no corpo um caminho em direcao a divindade, como fizeram outias religides e muitas seitas heréticas. Por qué? Sem divi- da devido 4 influéncia do neoplatonismo sobre os Pais da Igreja. No Oriente 0 culto a castidade comegou como um métoclo para alcangara longevicade: economizar semen era economi- zar vida. A mesma coisa acontecia com os efldvios sexuais da mulher. Cada descarga seminal e cada orgasmo feminino exam percla de vitalidade, No segundo momento cla evolucio dessas crengas, a castidade se converte num método para adlquirir, mediante o dominio dos sentidos, pocleres sobrena- turais ¢, no racismo, a imortalidade. Esta é a esséncia clo ioga. Apesar dessas diferengas, a castidade cumprea mesma fungio no Oriente € no Ocidente: é uma prova, um exercicio que nos fortalece espiritualmente e permite-nos dar 0 grancle salto da natureza humana em diregao 20 sobrenatural ‘A castidade € apeniis um caminho entre outros. Como no caso das prdticas eréticas coletivas, 0 iogue eo asceta podiam se servir clas priticas sexuais do erotismo nao para.se repro- duzir, mas para aleangar um fim propriamente sobrenatural — seja este a comunhao com a divindade, © éxrase, a libertagio ou a conquista do ‘incondicionado’. Muitos textos religiosos, entre eles alguns grandes poemas, no vacilam em comparar o prazer sextial com o celeite extitico do mistico com a bea- titude da unido com a divindade, Em nossa tradigfio € menos freqiiente que na oriental a fusto entre 0 sexual ¢ 0 espiri- tual, Apesar disso, 0 Antigo Testamento € précligo em hist6- rias er6ticas, muitas delas triigicas e incestuosas; algumas ins- piraram textos memorfiveis, como a de Rute, que influenciou ‘Victor Hugo a escrever Booz endormi, um poema noturno no qual “a sombra € nupcial”. Os textos hindus, porém, so mais explicitos. Por exemplo, o famoso poema sanscrito de Jayade- va, Gitagovinda, canta os amores addlteros do deus Krishna (© Senhor Obscuro) com a camponesa Radha. Como no caso do Cntico dos Canticos, o sentido religioso do poema é indis- tinguivel de seu sentido erético profano: so dois aspectos da mesma tealidacle. Nos misticos sufis € freqiiente a confluéncia da visio religiosa e da erética. A comunhto se compara as ve- zes a im festim entre dois aumvantes no qual o vinho corre far- tamente. Embriagués divina, éxtase ex6tico. ‘Mais acima falei do Céntico clos Canticos de Salomao. Esta colegio de poemas de amor profano, uma das obras eréticas ais belas jf criaclas pela palavra poética, nunca deixou, 20 longo cle mais cle ciois mil anos, de alimentar a imaginagio ea sensualidade dos homens. A tradigao judaica ea crista inter pretam esses poemas como uma alegoria clas relagbes entre Jeova e Israel ou entre Cristo e a igreja. A esta confusto cleve- ‘mos 0 Céntico espinitual de Sto Joao da Cruz, um dos poemas ais intensos e misteriosos da lirica do Ocidente. £ impossivel ler seus poemas unicamente como textos eréticos ou como textos religiosos, So um e outro e algo mais, sem © qual nko seriam 0 que sao: poesia. A ambigilidade dos poemas cle Sto Jofio encontrou, na época moderna, resisténcias € equivocos. “Alguns se empenharam em vé-los como textos unicamente et6ticos; outios 0s consideram sacrilegos. Lembro o escind: Jodo poeta Auden clante de certas imagens clo Cénitco espir tual a ele pareciam uma grosseira confusio entre a esfera ear nal ea espiritual B A critica de Auden era mais platonica que crista. Deve- ‘mos a Platfo a idéia do erotismo como um impulso vital que ascende, degrau por degrau, até a contemplagao do bem su- remo. Essa icéia contém outra: a da paulatina purificacio da alma que, a cada passo, dlistancia-se mais e mais da sexuali- dade até que, no auge dessa ascensio, dela se despoja intei- ramente, Mas 0 que nos diz a experiéncia religiosa — sobre- tudo por meio do testemunho dos misticos — é precisamente © contririo: o erotismo, que é sexualidade transfigurada pela imaginag&o humana, nao desaparece em nenhum caso. Muda, transforma-se continuamente e, niio obstante, nunca dleixa de ser 0 que € originalmente: impulso sexual Na figura oposta, a do libertino, nao ha unio entre reli- gio e exotismo; a0 conuiirio, ha oposigao nitica e clara: 0 li- bertino afirma 0 prazer como iinico fim diante de qualquer outro valor. Ele quase sempre se opde com paixio aos valo- res € As crengas religiosas ou éticas que postulam a subordi- aglo do corpo a um fim tanscendente. A kibertinagem faz fronteira, em wm de seus extremos, com a critica e transfor- ma-se em uma filosofia; no outro extremo, com a blasfémia, © sacrilégio ¢ a profanagio, formas contririas 8 devocdo seli- giosa. Sadle se orgulhava de professar um intransigente ateis- ‘mo filos6fico, mas em seus livros ha muitas passagens ce reli- gioso furor itveligioso e em sua vida enfrentou varias acusa- 6es dle sacrilégio e impiedade — como as do proceso de 1772, em Marselha, André Breton me disse ceita vez que seu ateismo era uma crenga; poderfamos dizer também que a li- bertinagem é uma religito as avessas, O libertino nega 0 mundo sobrenatural com tal veeméncia que seus ataques sio uma homenagem e, as vezes, uma consagracao, £ outra € ‘mais significativa a vercladeira diferenga entre o anacoreta €0 libertino: 0 erotismo do primeiro é uma sublimagao solitéria € sem intermediirios; o do segundo é um ato que requer, para sua realizagao, 0 concurso de um céimplice ou a presenga de 4 uma vitima. O libertino necessita sempre do outro € nisso consiste sua condenagao: depende de seu objeto e € escravo de sua vitina, A libertinagem, como expresso do desejo da imagina- $0 exasperada, é imemorial. Como reflexao € como filosofia explicita € relativamente moderna. A curiosa evolugdo das pa- lavras lHbertinagem ¢ libertino pode nos ajudar a entender 0 no menos curioso destino do erotismo na Idade Moderna Em espanhol libertino significou em principio ‘filho do liberto’ € 86 mais tarde designou uma pessoa dissoluta e de vida licen- ciosa. Em francés, a palavra teve durante o século XVII um sentido parecido ao de liberal e liberalidade: generosidade, desprendimento, No comego os libertinos foram poetas ou, come Cyrano de Bexgerac, poetas-filésofos, Espiritos aventu- reiros, fantasticos, sensuais, guiados pela louca imaginagao como Theéphile de Viau e Thistan L’ Hermite. O sentido de le- veza ¢ desenvoltura da palavra libertinagem no século XVII & expressado com muita graca por Madame de Sevigné: “Je stsis tellement libertine quand j'écris, que le premier tour que je pronds régne tout le long de ma lettre” (“Sou tao libertina quando escrevo, que na primeira penada acerto o tom ao lon- g0 da minha carta"). No século XVI{ a libeitinagem se tomou filoséfica. O libertino foi 0 intelectual critico da religiao, das leis ¢ dos costumes. A transigio foi insensivel e a filosofia li- beitina converteu o erotismo de paixio em eritica moral. Foia mascara ilustrada que assumiu 0 erotismo intemporal ao che- gar a Idade Moderna, Deixou de ser religiao ou profanacio, e €m ambos os casos rito, para se wansformar ein ideologia ¢ opinido, Desde entao o falo e a vulva se tornaram ergotistas € fiscalizam nossos costumes, nossas idéias € nossas leis, A expresso mais total literalmente cortante da filosofia libertina foram os romances de Sade. Neles se denuncia a re- ligio com nao menos firla que a alma e o amor. Explica-se. 25 A telaglo er6tico-ideal implica, por parte do libertino, um po- der ilimitado sobre 0 objeto erbtico, unido a uma indiferenca igualmente sem limites sobre sua sorte; por parte do ‘objeto erético’, uma complacéncia total diante dos dlesejos € capri- chos de seu senhor. Por isso 0s libertinos dle Sade exigem sempre absoluta obediiéncia de suas vitimas. Estas condigoes nunca podem ser satisfeitas; sio premissas filos6ficas, no realidacles psicolégicas e fisicas. O libertino necessita, para satisfazer seu desejo, saber Ce para ele saber € sentir) que 0 corpo que toca € uma sensibilidade e uma vontade que so- frem. A libertinagem exige certa autonomia em relagio a viti- ma, sem a qual nao se produz a contraditria sensacao que chamamos prazet/dlor. O sadomasoquismo, ceme € coroa da libertinagem, € também sua negacio, Com efeito, a sensa¢ao nega, por um lado, a soberania do libertino, fazendo-o de- pendente da sensibilidade do ‘objeto’; por outso, nega tam- bém a passividade da viima, O libertino ¢ sua vitima se tor- nam ctimplices 4 custa cle uma singular derrota filoséfica: rompe-se, 20 mesmo tempo, 2 infinita impassibilidade do li- bertino e a infinita passividade da vitima. A libertinagem, filo- sofia da sensagio, postula como fim uma impossivel insensi- bilidade: a ataraxia dos antigos. A libertinagem € contiadité- ria: busca simultaneamente a clestruico e a ressurreigio do outro, Como castigo, o parceiro nao ressuscita como corpo € sim como sombra. Tudo o que vé e toca o libertine perde realidade. Sua realidade depende da cle sua vitima: $6 ela & real ¢ ela é s6 um grito, um gesto que se clissipa. O libertino converte em fantasma tudo 0 que toca ¢ ele préprio se torna sombra entre as sombras, Na historia ca literatura erética Sacle € seus continuadores ‘ocupam uma posigao singular. Apesar da raivosa alegria com ‘que acumulam suas Kigubres negagdes, sfio descenclentes dle Plato, que exaltou sempre o Ser. Descenclentes luciferinos: fi- thos da luz exiela, a luz regra. Para a tradicao filos6fica Eros € 26 uma divindade que comunica a obscuridade com a luz, a ma- téria com 0 espitito, 0 sexo com a idéia, 0 aqui com o além. Por meio destes filésofos fala a luz negra, que é a metade do erotismo: meia filosofia. Para encontrar vis6es mais comple- tas € preciso recorrer nao s6 aos filésofos, mas também aos poetas e aos'romancistas, Refletir sobre Eros e seus poderes nao € a mesma coisa que expressé-lo: este ditimo € odom do artista e do poeta. Sade foi um escritor prolixo ¢ pesado, 0 contrério de um grande artista; Shakespeare Stendhal nos dizem mais sobre a enigmética paixto erética ¢ suas sur preendentes manifestagdes do que Sade e seus mocernos discipulos, encarnigados em transformé-la num discurso filo- sOfico. Nos textos destes tiltimos as masmorias € os leitos de navalhas co sadomasoquismo se converteram em tediosa c&- tedra universitéria, na qual disputa interminavelmente a du- pla prazer/dor. A superioridade de Freud reside no fato de que soube unir sua experiéncia de médico com sua imagins~ cao poética, Homem dle ciéncia € poeta trigico, Freud nos mostrou o caminho da compreensio do erotismo: as ciéncias biol6gicas unidas A intuigio dos grandes poetas. Eres é solar ¢ noturno: todos o sentem, mas poucos o vem. Foi uma pre- senga invisivel para sua apaixonada Psiqué pela mesma ra- 20 que 0 sol é invisivel em pleno cia: por excesso de luz. O duplo aspecto de Eros, luz e sombra, cristaliza-se em uma imagem mil vezes repetica pelos poetas dla Antologiagrega: a lampada acesa na obscuridade da aleova Se queremos conhecer a face iuminosa do erotismo, sua radiate aprovagio da vida, basta olhar por um instante uma dessas figurinhas de fertilidade do Neolitico: 0 talhe ce arbus- to jovem, a redondez dos quadris, as mos que oprimem uns seios frutiferos, 0 sorriso extitico. Ou, pelo menos, se ndo podemos visiti-lo, ver alguma reprodugio fotogréfica clas imensas figuras de homens € mulheres esculpiclas no santua- rio budista de Karli, na India, Corpos como ries poclerosos ou a como montanhas pacificas, imagens de uma natureza por fim satisfeita, surpreendida nesse momento de paz como mundo € conosco que se segue a0 gozo sexual. Felicidade solar: 0 mundo sorri. Por quanto tempo? O tempo de um suspiro uma etemidade. Sim, o erotismo se desprende da sexualida- de, transformando-a ¢ desviando-a de seu fim, a reprodugao; sas esse desprendimento € também um regresso — o casal volta 20 mar sexual € mistura-se em seu menear infinito € aprazivel. Ali recupera a inocéncia dos animais, O erotismo & ‘um ritmo: um de seus acordes é separago, outro & regresso, volta & natureza reconciliada. O além erético esta aqui e € agora mesmo, Todas as mulheres e todos os homens viveram ‘esses momentos: € nossa racio de paraiso. ‘A experiencia que acabo de evocar é a do regresso a reali- dade primordial, anterior ao erotismo, a0 amor € 20 éxtase dos contemplativos. Este regresso nao & fuga da morte nem negacao dos aspectos terriveis do erotismo: é uma tentativa de compreendé-os e integré-los a totalidade, Compreensao nfo intelectual, mas sensivel: saber dos sentidos. Lawrence procurou toda sua vida esse saber; un pouco antes de morrer, milagrosa recompensa, deixou-nos em um fascinante poema 0 testemunho de seu descobrimento: o regresso a0 Grande Todo é a descida 20 fund, ao palcio subterrineo de Pluto e de Pesséfone, a moga que a cada primavera volta & Terra. Re- _gresso 20 lugar de origem, onde morte e vida se abragam: iDadme una genciana, una antorcba! Que la antorcha bifida, azul, de estaflorme guie Porlas gradas obscuras, a cada paso mds obscuras, ‘acta abajo, donde el azul es negro y Ia negrura azul, donde Perséfona, abora mismo, desciende del helado (Septiembre al reino ciego donde el obscuro se tiende sobre la obscura, 2B donde Perséfona es apenas una voz entre los brazos (pluténicos, tuna invisible obscuridad abrazada a la profunda negrura, ‘atravesada por la pasin de la densa tintebla bajo el esplendor de las antorchas negras que derraman, lsombra sobre la novia perdida y su esposo.'* 1. Baur gontans A wadugt deste fragmento & nas. * Disme ume gencana, vin thal / Que a toch bifid, az desta Nor me gui / pelos dogaus estes, 2 coca asso mss eacoos, / até enbaxo, onde eal € ne oe s nega an, / onde Rerslong, ager mismo, dese Ge geido sete / 20 ino cago one 9 eseuro se exende sobre 1 exadso, onde Paton ¢ ape, its uma vor core os braves pitnicos, / uma vse esa sbragads fre ind regrr, /suavesida pela psd cena ova sab ocapletor da Shas neg que demanam / Zambia sobre anole perdi e aes cepeso OW oT, 29 a Eros ¢ Dsiqué ‘Uma das primeiras aparigdes do amor, no sentido estrito da palavra, € 0 conto de Eros e Psiqué que Apuleio apresenta em um clos livros mais dlivertidos cla Antiguidade greco-ro- mana: Metaniorfoses (O asno de ourd), Eros, clvinciacle cruel € cujas flechas nio respeitam nem stia mae nem o prop.io Zeus, apaixona-se por uma mortal, Psiqué. £ uma histéria, ¢iz Pietre Grimal, “diretamente inspirada no Fedo de Platao— a'alma in~ dividual (Psiqué), imagem fiel da alma universal (Venus), eleva- se progressivamente, gragas a0. amor (Eros), da condigdo mortal 2 imortalidade clivina”. 4 presenga da alma em uma historia de amor € cle fato um eco plarénico, eo mesmo devo clizer dla bus- ca da imortalidade, conseguiela por Psiqué a0 se unir com sma dlivindade. Seja como for, trata-se de uma inesperada transfor- magio do platonismo: a hist6ria € um conto de amor realista (hd nele até uma sogen cruel, Venus), nfo © relato ce wna aven- «ura filoséfica solitiria, Nao sel se quem jé escreveu sobre este assunto reparou no que, par mim, € a grande € vercadeira no- vidacle clo conto: Eros, um deus, apaixona-se por unia joven que é a personificagio da alma, Psiqué. Observo, logo de inicio, que o.amor € métuo e comesponcilo: nenhum clos deis aman- 31 tes € um objeto de contemplacdo para 0 outro; muito menos sto graus na escala da contemplagio. Eros ama Psiqué ¢ esta Eros; por isso, muito prosaicamente, terminam por se casar, Sto inumeraveis as hist6rias de deuses apaixonados por mor- tais, mas em nenhum desses amores, invariavelmente sen- suais, figura a atragao pela alma da pessoa mada, O conto de Apuleio anuncia uma visio do amor destinada a muds, mil anos depois, a histéria espiritual do Ocidente. Outro por- tento: Apuleio foi um iniciado nos mistérios de {sis e seu ro ‘mance termina com a aparigao da deusa e a redengio de Lt- io, que fora transformado em asno como castigo por sua im- pia curiosidade. A transgressio, 0 castigoe a redengio so elementos constitutivos da concepeio ocidental do amor. £ tema de Goethe na segunda parte do Fausto, o de Wagner em Tristio e Boldae 0 de Aurétia, de Nerval. No conto de Apuleio, a jovern Psiqué, castigada por sua curiosidade, ou seja, por ser escrava e nao dona de seu dese- jo, deve descer 20 palicio subterrneo de Plutdo e Prosérpina, reino dos mortos, mas também das raizes e dos germes: pro- messa de ressurreicio. Passada a prova, Psiqué volta a luz ¢ recupera seu amante: £708, 0 invisivel, por fim se manifesta Temos outro texto que termina também com um regresso € que pode ser lido como a contrapartida da peregrinagio de Peiqué. Refiro-me as tltimas paginas de Ulises, de Joyce. De- pois de vagabundear pela cidade, os dois personagens, Bloom e Stephen, voltam a casa de Ulisses-Bloom, Ou seja, 2 fhaca, onde os espera Penélope-Molly. A mulher de Bloom € todas as mutheres ou, melhor dizendo, é a mulher —a fonte perene, a vulva abissal, a montanha mie, nosso comeco nosso fim. Ao ver Stephen, jovem poeta, Molly decide que logo sera sua amante. Molly nao 86 € Penélope, é também Vé- ‘nus; mas, sem a poesia e seus poderes de cansagracio, no é mulher nem deusa, Embora Molly seja uma ignorante, sabe que nao € nada sem a linguagem, sem as metéforas sublimes 32 0u idiotas do desejo. Por isso se enfeita com galanteios, can- ses € miisicas da moda como se fossem colares, brincos ¢ pulseiras. A poesia, a mais elevada e a mais humilde, é seu espelho: ao ver sua imagem, nela penetra, indo ao abismo de seu préprio ser e convertendo-se em um manancial, (Os espelhos e sua réplica: as fontes aparecem na historia da poesia erética como emblemas de queda e ressurreigao, ‘Como a mulher que nelas se contempla, as fontes sao 4gua de perdigio e de vida; ver-se nessas Aguas, nelas cair e voltar a superficie é voltar a nascer. Molly é um manancial ¢ fala sem parar no longo soliléquio que é como o inesgotavel murmiirio que brota de uma fonte. E 0 que diz? Toda essa tor- rente de palavras é um grande Sim a vida, um Sim indiferente 20 bem ou ao mal, um Sim egoista, prudente, vido, genero- 80, opulento, estapido, césmico. Um Sim de aceitagao que funde e confunde em seu monétono fluir o passado, o pre- sente € 0 futuro; 0 que fomos e somos e seremos; tudo junto € todos juntos em uma grande exclamacao, como uma onda que levanta, afunda e mistura a todos em um todo sem come- go nem fim: Si el mar carmest a veces como el fuego y las gloriosas _puestas de sol las bigueras en los jardines de la Alameda si y todas las extraiias callejuelas y las casas rosadas y azules y amarillas y los jardines de rosas y le jazmines y de geranios y de cactos y Gibraltar cuando yo era chica y donde yo era una Flor de la Montana st cuando me puse la rosa en el cabello como hacian las chicas andaluzas 0 me pondré una colora~ da si-y como me bes6 bajo la pared morisca y yo pensé bueno tanto da él como otro y después le pedi con los ofos que me lo broguntara otra vez y después él me pregunis si yo queria si ‘para que cijera si mi flor de la montana y yo primero lo rodleé con mis brazos sty lo atraje hacia mi para que pudiera sentir 38 ‘mis senos todo perfume sty su corazén golpeaba loco y si yo dife quiero si grande Sim de Molly contém todas as negagdes € con- verte-as em um hino a vida indiferenciada, £ uma afirmacao vital semelhante 4 de Rose Sélavy de Duchamp. Celebraco de Eros, nao de Psiqué. Hé uma frase no monélogo de Molly que nenhuma mulher apaixonada poderia ter dito: “Me bes6 bajo la pared morisca y yo pensé tanto da él como otro...” (Me beijou sob 0 muro mourisco e eu pensei tanto faz ele como outro..."). Nao, ndo € a mesma coisa com este ou aque- le. E esta é uma linha que marca a fronteira entre o amor € 0 erotismo. O amor € atragao por uma Gnica pessoa: por um corpo e uma alma. © amor é escolha; o erotismo, aceitagio. Sem erotismo — sem forma visivel que entra pelos sentidos — nao ha amor, mas este atravessa 0 corpo desejado e pro cura a alma no corpo e, na alma, 0 cotpo. A pessoa inteira, O sentimento amoioso uma excegio dentro dessa gran- de excecio que é 0 erotismo diante da sexualidade — mas uma excecdo que aparece, porém, em todas as sociedades e épocas. Nao ha povo nem civilizaco que no possua poe- mas, cangdes, lendas ou contos nos quais a anedota ou 0 ar- gumento-—o mito, no sentido original da palavra — nao seja © encontro de duas pessoas, suua mitua atragio e os esforgos e dificuldades que devem enfrentar para se unirem. A idéia ‘2 Tradugio de Jon Saas Subic * O'mar earns 2s vores cao 0 fogo © 0s pocrtesgloriosos «ae figuias nos juss da Amc sine as Rasuhas Sess coos eo aes os asmins gerinios e cates © Gilbraiar eu mocha onde eu era uma Fo d terdanha sim quando cv punta a rosa em miha eabeleia comma 43 gurias a Gils cma devo war foment eo cle me ec teas muraiha mura eeu pense bo bem a ele como 3 ouco e enti et pedis tie com mous oar fas pos ce novos © eno ce me pei Guat Gn Gizer sim minha flor da montana & primeo eu pus os meas bragas em tome dele e ev punel ele pra bai pra mim pura ele poder senir mevs peo todos erfume sim o-caracko dele bua como fouco «sim eu dise im eu quero Sins \dupio de AntEni Hovass, Cicuo do Lo, 1975) dT) 34 do encontro exige, por sua vez, duas condigdes contradit6- rias:(a atragio que experimentam os amantes € involuntaria, nasce de um magnetismo secreto e todo-poderoso: a0 mes- ‘mo tempo, é uma escolha, Predestinagao € escolha, os pode- res objetivos os subjetivos, o destino € a liberdade se cru- zam no amor. O territério do amor é um espaco imantado pelo encontro de duas pessoas.) ‘Durante muito tempo acreditei, seguindo Denis de Rouge- mont e seu célebre livro Lamour et l'Occident, que este senti- mento era exclusivo de nossa civilizaglio e que nascera em um lugar e periodo determinados: Provenga, entre os séculos XIe ‘XII. Hoje essa opinizo me parece insustentavel, Antes de quai- quer coisa,{é preciso distinguir entre o sentimento amoroso € 2 idéia do amor adotada por uma sociedacle e uma época]O primeiro pertence a todos os tempos e lugares: em sua forma mais simples e imediata nfo é senio a atraco passonal que sentimos por uma pessoa entre muitas. A existéncia de uma imensa literatura cujo tema central € © amor é uma frova final da universalidade do sentimento amoroso. Enfatizo: o senti- mento, nfo a idéia, Amor na forma sumfria como defini ante- riormente: misteriosa inclinagdo passional por uma tinica pes- soa, quer dizer, transformacao do ‘objeto er6tico’ em um indi- vvicuo livre e tinico. Os poemas dle Safo nao sio uma filosofia do amor: s4o um testemunho, a forma em que se cristalizou esse estranho magnetismo. A mesma coisa pode ser dita das cangées recolhidas no Sbib ching (Livro de versos), de muitos romances espanhdis ou de qualquer ours coleyav postica do género. As vezes, contudo, a reflexio sobre o amor se conver~ te na ideologia de uma sociedade; entio estamos cliante de ‘um modo de vida, uma arte de viver € morrer. Diane de uma ética, uma estética e uma etiqueta: uma cortesia, para empre- gar o termo medieval. A cortesia nao esti ao aleance de todos: € um saver wma pititica. £ 0 privilégio do que poderia se chamar uma aristo- 35 cracia clo coragiio. Nao uma aristocracia fundadla na heredita- riedade e nos privilégios da heranga, e sim em certas qualida- des do espitito, Embora essas qualidades sejam inatas, para manifestar-se e converter-se em uma segunda natureza, 0 adepto deve cultivar sua mente e seus sentidos, aprender a sentir, falar €, em certos momentos, calar-se. A cortesia € uma escola de sensibilidade e desinteresse. “Razén cle amor’, nos- s0 belo poema de amor, o primeiro em nossa lingua (século XIN, comega assim: Quién triste tiene su corazén venga olresta raz6n. Oird razén acaba, hecha de amore bien rimada, Un escolar la rims que siempre duenas amd; més siempre bubo crianza en Alemania y Francla: moré mucho en Lombardia para aprender cortesia..2 © ‘amor cortés’ se aprende: & um saber dos sentidos ihu- minados pela luz da alma, uma atracio sensual refinada pela cortesia, Formas andlogas as do Ocidente floresceram no mundo jslamico, na india ¢ no Extremo Oriente. La também existiu uma cultura co amor, privilégio de um grupo reduzi- do de homens e mulheres, As literaturas 4rabe e persa, ambas estreitamente associachs 3 vieln de corte, sio muito ricas em poemas, histérias e tratacos sobre o amor. Enfim, dois gran- des romances, um chinés ¢ outro japonés, so essencialmen- ‘Quen iste tem su comple / vonha ouvir eka azto. / Cute szto aeabada, / feta de amor e bemeinads./ Um esestu a vimou / que sempre 4 amas nou, / as sempre educouse / na Alemanha © na Panga, / morou wulto na Lombardia Tosca apeeniler conesia. (N-d0T). 36 te hist6rias de amor e ambos se passam em um ambiente fe- chado e aristocritico, No romance de Ts20 Tchan, O sonbo do pavilbao verme- Iho Hung lou meng), a hist6ria se passa em uma mansio pa- laciana ¢ o heréi e as duas heroinas pertencem & aristocra- cia.? O livro é composto de poemas ¢ reflexdes sobre o amor. Estas Ultimas so uma mistura da metafisica do budismo e do taofsmo, tudo tingido de crencas e superstigbes populares como na Tragicomédia de Calixto e Melibéia, nosso grande € terrivel livro de amor. A severa filosofia de Confiicio quase ndo aparece em O sonbo do pavilbdo vermelbo, a no ser como uma magante rede de proibigdes € preceitos que os adultos utilizam contra a paixio juvenil — regras hip6critas que encobrem a desenfreada ambiclo ¢ luxiria deles mes- mos. Oposigto entre 0 mundo profano e o sagrado: a moral dos adultos € mundana, enquanto o amor entre Bao-yu e Dai-yu € 0 cumprimento de um destino decretado ha milha- res de anos, Algo semelhante devemos dizer da Hist6ria de Geng, 0 romance de Murasaki Shikibu, dama da corte japo- esa: os personagens so membros da mais alta nobreza seus amores so vistos através de uma melancélica filosofia impregnada de budismo e do sentimento de transitoriedade das coisas neste mundo, E estranho que Denis de Rougemont tenha se mostrado insensivel a todos esses testemunhos — onde quer que floresca uma cultura cortesa, brota uma filoso- fia co amor. A relagao desta filosofia com 0 sentimento geral reproduz a deste titimo com o erotismo e a de ambos com a sexualidade. A imagem dos circulos concéntricos, evocada no inicio destas paginas, volta: 0 sexo € a raiz, 0 erotismo € 0 talo, ¢ 0 amor, a flor. E 0 fruto? Os fratos do amor sao intan, veis, Este € um de seus enigmas. 3. Embora 0 dle do romance, © sonbe de pailho vermtelbo, see belo € const- {grado pela autoidade dos anos, €inenaco. Na verdade, Hung low heng quer deer Sonbo de mansies vemelbas. Asim se charnavar as cass dos cos devido & cor svermelhads de guas paredes, as casas de gente do pov eram cinzenas, 37 Accita a existéncia em outras civilizagdes de varias ideo- logias do amor, acrescento que existem diferencas funda- smentais entre elas ¢ a do Ocidente. A principal me parece ser a seguinte: no Oriente o amor foi pensado dentro de uma tra- digdo religiosa; nao foi um pensamento aut6nomo, e sim uma derivagao desta cu daquela doutrina. No Ocidente, 20 contririo, desde o principio a filosofia do amor foi concebida e pensada fora da religito oficial e, as vezes, frente a ela. Em Platio o pensamento sobre o amor é insepardvel de sua filo- sofia; e nesta tltima sobram as criticas aos mitos e préticas re- ligiosas (por exemplo, 0 rogo e 0 sactificio como meios para obter favores dos devses). © caso mais eloqiiente € 0 do ‘amor cortés’, visto pela Igreja no s6 com inquictagto, mas também com reprovagio. Nada disso se encontra na tradigio oriental. O romance ¢e Tsao Tchan € composto como um contraponto entre dois mundos que, embora separados, vi ‘vem em comunicagéo: o ‘mais além’ do budismo e do taois- mo, povoado por monges, ascetas e divindades, diante das paixdes, encontros € separagdes de uma familia aristocratica € poligimica na China do século XVIII. Metafisica religiosa realismo psicol6gico. A mesma dualidade rege o romance de Murasaki, Nenhuma dessas obras nem os outros romances, pecas de teatro e poesias de tema amoroso foram acusadas de heterodoxia. Algumas delas foram criticadas e, a8 vezes, até proibidas por seus atrevimentos € obscenidades — nao por suas idéias. ‘A concepcao ocidental do destino ¢ seu reverso € com- plemento, 2 liberdade, € substancialmente diferente da con- cepeio oriental, Esta diferenca inclui outras duas, intimamen- te associadas: a responsabilidade de cada um por seus atos a existéncia da alma. © budismo, o taofsmo e o hindufsmo compartilham a crenga na metapsicose e assim se explica por 38 que a nogao de alma individual nao seja muito clara nessas crengas. Para hindus ¢ taoistas 0 que chamamos de alma nao € senio um momento de uma realidade que nunca para de mudar e que, fatalmente, continuard se transformando em vi- das futuras até alcancar a libertacdo final. Quanto ao budis- mo, nega vigorosamente a existéncia da alma individual. Nos dois romances — voltando as obras de Tsao Tehan ¢ Murasa- ki —o amor 6 um destino imposto desde o passado. Mais exatamente, € 0 carma de cada personagem. © carma, como se sabe, nada mais é do que o resultado de nossas vidas ante- riores. Assim, 0 amor sibito de Yugao por Genji e os citimes que desperta na ‘dama de Rokujo’ sfo 0 fruto nao s6 de seu presente como, sobretudo, de suas vidas passadas. Shuichi Kato observa a frequéncia com que Murasaki usa a palavra sukuise (carma) para explicar a conduta € o destino de seus personagens. Ao contrario, no Ocidente 0 amor é um destino livremente escolhido; quero dizer, por mais poderosa que seja a influéncia da predestinagio — o exemplo mais conhe- cido a pogdo magica que bebem Trist2o e Isolda — para que 0 destino se cumpra é necesséria a cumplicidade dos amantes, O amor € um né no qual se amarram, indissoluvel- mente, destino e liberdade. Devo assinalar agora um aspecto semelhante que, 20 fi nal, converte-se em uma nova oposicdo. Em Osonbo do pavt- Thao vermelhoe na Historia de Genjto amor € uma escola de desenganos, um caminho no qual paulatinamente a realida- de da paixao se revela como uma quimera. A morte tem, como na tradi¢ao ocidental, uma fungao capital: desperta 0 amante extraviado em seus sonhos, Nas duas obras a anélise da paixio amorosa ¢ de seu cardter simultaneamente real € irreal é finissima e penetrante; por isso s40 comparacas com varios romances europeus e muito especialmente com os de Proust. Também Em busca do tempo perdido € 0 relato de ‘uma sinuosa peregrinacio que conduz o Narrador, de desen- 39 gano em desengano e guiado por esse Virgilio que é a me- méria involuntiria, 3 contemplagio da realidade das realida- des: 0 proprio tempo. Nos dois romances orientais 6 cami- ho do desengano nio leva & salvagao do eu'e sim & revela- glo de uma vacuidade inefaivel e indizivel, no vemos uma aparigao, e sim uma desaparigao: a de nés mesmos em um. vazio radiante. Ao final da obra de Proust o Narrador contem- pla a cristalizacao do tempo vivido, um tempo seu € intrans- ferivel, mas que jé nao é seu: é a realidade tal ¢ qual, apenas ‘uma vibragZo, nossa por de imortalidade. A peregrinagio de Proust € uma busca pessoal, inspirada por uma flosofia indepencente da religiao oficial; a dos herbi de Tsao Tehan Murasaki é uma confirmagio das verdades e ensinamentos do budismio e do taofsmo. Por mais violentas que tenham sido suas transgress6es, © amor no Oriente foi vivido e pen- sado dentro da religito; pode ter sido um pecado, nfo uma heresia. No Ocidente o amor desabrochou frente a religiio, fora dela e até mesmo contra ela. O amor ocidental € 0 filho da filosofia e do sentimento poético que transfigura em ima- gem tudo 0 que toca. Por isso, para nés, 0 smor tem sido um culto. Nao € estranho que a filosofia do amor tenha surgido pri- meiro na Grécia, All a flosofia logo se libertou da religiao: 0 pensamento grego comegou com a critica dos filoséfos pré- socraticos 20s mitos. Os profetas hebreus criticaram a socie- dade com base na religido; € os pensadores gregos criticaram os deuses com base na razio. Tampouco é estranho que 0 primeiro filésofo do amor, Platdo, tenha sido também um. poeta: a hist6ria da poesia é inseparavel da do amor. Por tudo isso, Platao é 0 fundador da nossa filosofia do amor. Sua in- fluéncia ainda dura, sobretudo por sua idéia da alma; sem ela no existiria nossa fllosofia do amor, ou ento esta teria tido uma formulagio muito diferente e dificil de imaginar. A idéia 40 da alma, segundo os entendidos, ndo é grega; em Homero as almas dos mortos nao s4o realmente almas, entidades incor- poteas: sd0 sombras, Para um grego antigo nio era clara a di- ferenca entre 0 corpo ea alma. A idéia de uma alma diferente do corpo aparece pela primeira vez em alguns pré-socraticos, como Pitagoras e Empédocles; Plato recolhe e sistematiza essa idéia, Convertendo-a em um dos eixos dle seu pensa- mento ¢ legando-a a seus sucessores. Contudo, embora a concepeao da alma seja central na filosofia do amor platoni- co, nao 0 é no sentido em que foi depois empregada em Pro- venga, em Dante e Petrarca. O amor de Platio nao € 0 nosso. Podemos até dizer que a sua filosofia nio é uma filosofia do amor — é antes uma forma sublimada (¢ sublime) de erotis- ‘mo. Esta afirmagao pode parecer temerdria. Nao é; para nos convencermos disso basta ler os dois didlogos consageacios a0 amor, Fedroe O banquete, especialmente o diltimo, ¢ com- paré-los com os outros grandes textos sobre o mesmo tema que nos deixaram a filosofia e 2 poesia O banquete € composto de varios discursos ou elogios do amor pronunciados por sete comensais, Muito provavelmen- te representam as opinides e pontos de vista corventes na- quela época sobre o tema, salvo o de Sécrates, que expressa as idéias de Platdo. Destaca-se o belo discurso de Arist6fanes Para explicar 0 mistério da atraglo universal que uns sentem pelos outros, recorre a0 mito do andrégino original. Antes havia trés sexos: 0 masculino, o feminino e 0 andrégino, composto por seres duplos. Estes tilkimos eram fortes, intel gentes e ameacavam os deuses, Para submeté-los, Zeus deci- diu dividi-los, Desde entio, as metades separadas andam em busca de sua metade complementar. O mito do andrégino nao s6 € profundo como despertou em nés outras resson’n- cias também profundas: somos seres incompletos e o desejo amoroso € perpétua sede de completude. Sem 0 outro ou a outra nao serei eu mesmo, Este mito e o de Eva, que nasce da a costela de Adao, sto metiforas potticas que, sem explicar realmente nada, dizem tudo 0 que ha para dizer sobre 0 amor. Mas no sio uma filosofia e respondem a0 mistério do amor com outro mistério, Além disso, 0 mito do andiégino io toca certos aspectos da relagao amorosa que para mim slo essenciais, como 0 do n6 entre liberdade e predestinacao ou entre vida mortal e imortalidade. O centro de O banguete € 0 discurso de Sécrates, © fil6- sofo relata a seus ouvintes uma conversa que teve com uma sfbia sacerdotisa estrangeira, Diotima da Mantinéia, Plato com frequéncia se serve de mitos antigos (ou inventacos) contados por algum visitante lustre. Parece estranho que, em uma sociedade predominantemente homossexval como era © circulo platénico, Sécrates ponha nos labios de uma mu- ther uma doutrina sobre o amor. Penso que se trata de uma reminiscéncia, precisamente no sentido que da Platao a esta palavra; uma descida 4s origens, ao reino das maes, lugar de verdades primordiais. Nada mais natural que uma profetisa anci seja a encarregada de revelar os mistérios do amor. Diotima comeca dizendo que Eros nao € um deus nem um. homem: um deménio, um espirito que vive entre os deuses e 0s mortais. Define-o a preposi¢ao entre: em meio desta ¢ de outra coisa, Sua missio € comunicar e unit os seres vivos. Talvez por isso 0 confundamos com 0 vento ¢ o represente- mos com asas. & filho cla Pobreza e da Abundancia, ¢ isso ex- plica sua natureza de intermediario: comunica a luz com a sombra, © spundo sensivel com as idéias. Como filho da Po- breza, busca a riqueza; como filho da Abundancia, distribui bens. £ 0 desejoso que pede, o desejado que di. Amor nao é belo: deseja a beleza. Todos os homens dlese- jam. © desejo € busca de possutir o melhor: o estrategista de- seja alcancar a vit6ria, o poeta compor um hino de insuperé vel beleza, 0 ceramista fabricar Anforas perfeitas, o comer ciante acumular bens e dinheiro. E 0 amante? Busca a beleza, 2 a formosura humana, © amor nasce @ vista da pessoa bela. ‘Assim, embora o desejo seja universal e aguilhoe todos, cada ‘um almeja algo diferente: uns isto e outros aquilo, © amor & uma das formas em que se manifesta o desejo universal € consiste na atracao pela beleza humana. Ao chegar a este ponto, Diotima previne Sécrates: 0 amor nao é simples. E ‘uma mistura composta por varios elementos, unidos ¢ anima- dos pelo desejo, Seu objeto tampouco é simples e mada sem parar. O amor € algo mais que atracao pela beleza humana, sujeita ao tempo, & morte e a corrup¢ao. Diotima continua: todos os homens desejam 0 melhor, comegando pelo que no tém. Estamos contentes com nosso corpo se seus mem- bros so saucveis e agels; se nossas pernas fossem deforma- das e negassem-nos apoio, nao vacilarlamos em nos desfazer delas para colocar em seu lugar as de um atleta carpeao de corridas. £ assim com tudo o que almejamos. E que proveito temos quando alcancamos aquilo que desejamos? 4 indole do proveito varia em cada caso, mas o resultado € o mesmo: ficamos felizes. Os homens aspiram a felicidade e a querem para sempre. O desejo de beleza, proprio do arnor, também de Felicidade; ¢ nao de felicidade instantanea e perecedora, mas perene. Todos os homens padecem de uma caréncia seus dias esto contados, sfio mortais. A aspira¢ao a imortali- dade € um trago que une € define todos os homens. desejo do melhor se alia 20 de té-lo ¢ de gozi-lo para sempre. Todos os seres vivos e nao s6 0s humanos partici- pam dele: todos querem perpetuar-se. O desejo de reprodu- 40 & outro dos elementos ou componentes do amor. Ha duas formas de geragdo: a do corpo ea da alma. Os homens mulheres, apaixonados por sua beleza, unem seus corpos pata a reprodugio, A geragio, diz Plato, € algo divino tanto entre os animais como entre os humanos. Quante a outra for- ma de geracao: superior, pois uma alma engendra em outra idéias e sentimentos impereciveis. Aqueles que ‘so fecunda- a dos pela alma’ concebem com 0 pensamento: os poetas, os artistas, os s&bios e, por fim, os criadores das leis e os que en- sinam a seus concidadios a sobriedade ea justica. Um aman- te, assim, pode motivar o saber, a virtude e 2 venerago pelo belo, 0 justo € o bom na alma do amado, O discurso de Dioti- ma e 0s comentarios de Sécrates so um tipo de peregrina- cdo. A medida que avangamos, descobrimos novos aspectos do amor, como alguém que, ao subir a colina, contempla a cada passo as mudancas do panorama. Mas hé uma parte es- condida que nao podemos ver com os olhos, e sim com 0 en- tendimento, “Tudo isto que te revelei’, diz Diotima a Sécra- tes, “so 0s mistérios menores do amo:”, Em seguida 0 instrui sobre 0s maiores ¢ ocultos. ‘Na juventude nos atrai a beleza corporal e ama-se apenas uum corpo, uma forma bela, Mas se o que amamos é a beleza, or que amé-la s6 em um corpo € ndo em muitos? E Diotima volta a perguntar: “Se a beleza est4 em muitas formas e pes- soas, por que nao amé-la nela mesma? E porque nao ir além das formas e amar aquilo que as faz belas: a idéia?” Diotima vé 0 amor como uma escala: embaixo, 0 amor a um corpo belo; em seguida, a beleza de muitos corpos; depois, a pr6- pria beleza; mais tarde, a alma virtuosa; por fim, a beleza in- corporea. Se 0 amor a beleza é inseparavel clo desejo de imortalidade, como nao participar dela pela contemplagZo das formas eternas? A beleza, a verdade € c bem slo trés € ‘so um 56; séo aspectos da mesma realidade, a Gnica verda- deira. Diotima conclut: “Aquele que seguiu o caminho da ini- ‘ciayau amorosa de forma correra, 20 chegar ao fim percebera subitamente uma beleza maravilhosa, causa final de todos nossos esforgos... Uma beleza eterna, nao engendrada, incor- ruptivel e que nao cresce nem decresce”. Uma beleza inteira, linica, idéntica a si propria, que ndo feita de partes como corpo nem de razdes como 0 discurso. O amor é 0 caminho, a ascensao até essa beleza: vai do amor a um s6 corpo ao 44 amor a dois ou mais; depois, a todas as formas belas e delas as ages virtuosas; das agbes As icléias e das idéias & mais ab- soluta beleza. A vida do amante desta forma de beleza é a mais sublime que se pode viver, pois nela “os olhos do enten- dimento comungam com a beleza € 0 homem procria nlo imagens nem simulacros de beleza, mas sim realidades be- as". E este é 0 caminho da imortalidade. © discurso de Diotima sublime. Sécrates o foi também, pois foi digno desse discurso em sua vida, e sobretuco em sua morte, Comenté-lo € como interromper a silenciosa con- templagio clo sibio com os falatérios e as brigas daqui debai- Xo, Mas esse mesmo amor verdade — embora no meu caso seja pequeno e nacla sublime — obriga-me a perguntar: Dio- tima falou realmente do amor? Ela e Socrates falaram de Eros, esse deménio ou espirito no qual encarna um impulso que nfo € puramente animal nem espiritual. Eros pode confun- dir-nos, levar-nos a cair no piintano dla coneupiscéncia e no pogo do libertino; também pode nos elevar e levar-nos mais alka contemplagao. Isto € 0 que chamo de erotismo a0 longo destas reflexdes € 0 «ue tento distinguir do amor pro- priamente dito. Repito, {alo do amor tal como 6 conhecemos desde Provenga, Este amor, embora existisse em forma difusa como sentimento, nto foi conheciclo pela Grécia antiga nem como icléia nem como mito, A atragiio exética por uma tinica pessoa é universal ¢ aparece em toclas as sociedades; a icin 00 filosofia clo amor € histérica e brota s6 onde existem cit- cunstincias sociais, intelectuais € morais, Platio sem davida teria se escandalizado diante do que chamamos amor; Algu- mas dle suas manifestagoes Ihe seriam repugnantes, como a idealizagio do adulkério, 0 suicidio ea mone; outras 0 teriam assombrado, como o culto & mulher. E os amores sublimes, como o de Dante por Beatriz ou 0 de Petrarca por Laura, pa- receriam a ele doengas da alma. 45 Também 0 banquete contém idéias ¢ expressdes que nos escandalizariam se nao 0 léssemos com certo distanciamento hist6rico. Por exemplo, quando Diotima descreve as escalas do amor, diz que se comega por amar s6 um corpo belo, mas que seria absurdo nao reconhecer que outros corpos sto igualmente belos; em conseqiléncia, seria igualmente absur- do n3o amar a todos. £ claro que Diotima esté falando de algo muito diferente do que chamamos amor, Para nés a fide- lidade € uma das condigdes da relacdo amorosa, Diotima nfo s6 parece ignorar isso como nem sequer lhe ocorre pensar nos sentimentos daquele ou daquela que amamos: ela os vé como simples degraus na subida até a contemplacao. Na ver~ dade, para Plato 0 amor nao € propriamente uma relagao: € ‘uma aventura solitéria, Ao ler certas frases de O banguete € impossivel nao pensar, apesar da sublimidadle dos conceitos, num Don Juan filoséfico. A diferenga € que a corrida do go- zador € para baixo ¢ termina no inferno, enquanto a do amante platénico culmina na contemplacao da idéia. Don Juan é subversivo e, mais que o amor as mulheres, inspira-se no orgulho, na tentagio de desafiar Deus. £.a imagem inverti- da do eros platénico, ‘A severa condenagio do prazer fisico ¢ a pregacao da castidace como caminho para a virtude € a beaticude sto a conseqiiéncia natural da separagao platdnica entre o corpo € ‘alma. Para n6s essa separacio € muito forte. Este € um dos tragos que definem 2 época moderna: as fronteiras entre alma € © corpo se atenuaram. Muitos de nossos contempora- ‘eos jd nfo acreditam na alma, uma nog3o apenas usada pela psicologia ¢ pela biologia modernas; ao mesmo tempo, 0 que chamamos corpo € hoje algo muito mais complexo do que era para Plato e sua época. Nosso corpo possui muitos atributos que antes eram da alma. © castigo do libertino, como tentei demonstrar anteriormente, consiste em que 0 corpo de stia vitina, ‘o objeto erético’, € também uma cons- 46 ciencia; através dela o objeto se transforma em sujeito. O mesmo podemos dizer da concepcdo plat6nica. Para Plato 0s objetos eréticos — seja 0 corpo ou a alina do efebo — nunca sao sujeitos: tm um corpo e nao sentem, tém uma alma ¢ se calam. Sao realmente objetas e sua fungio € a de proporcionar degraus na subida do filésofo até a contempla- lo das esséncias. Embora no curso dessa ascensio o amante — melhor dizendo, o mestre — tenha relagdes com outros homens, seu caminho € essencialmente solitério, Nessa rela- go com os outros pode haver dialética, quer dizer, divisao do discurso em partes, mas no hi didlogo nem conversacao. O proprio texto de O banguete, embora adote a forma do didlogo, € composto por sete discursos separados, Em O banguete, erotismo em sua mais pura € elevada expressao, no aparece a condigao necessaria do amor: 0 outro ou a ou- tra, que aceita ou rejeita, diz Sim ou Nao e cujo proprio silén- cio € uma resposta. O outro, a outra ¢ seu complemento, aquilo que converte o dlesejo em acordo: o livre-arbytrio, a li- berdade. 4 Um sistema solar Se fizermos uma retrospectiva da literatura ociclental du- rante os oito séculos que nos separam do ‘amor cortés', logo comprovaremos que a imensa maioria desses poemas, pecas de teatro e romances tém 0 amor como tema, Uma das fun- ‘ges da literatura é a representagdo das paixdes; a preponde- Hancia clo tema amoroso em nossas obras literdrias mostra que o amor tem sido 0 tema central dos homens e mulheres do Ocidente, Outro tema € 0 do poder, desde a ambicao poli- tica a sede de bens materiais ou de honratias. No curso des- tes oito séculos, teria mudado o arquétipo que nos legaram 0 poetas provencais? A resposta a essa pergunta exige mais de um minuto de reflexio, As mudangas foram tantas que € quese impossivel enumeri-las; nao menos dificil seria tentar uma anilise de cada tipo ou variante da paixio amorosa. Da dama dos provengais até Anna Karenina muitas foram as mu- dangas; comecaram com Dante e continuam até os dias de hoje. Cada poeta e cada romancista t¢m uma visto propria do amor, alguns até tém varias, e encarnadas em persona- gens diferentes, Talvez o mais rico em personagens seja Sha- kespeare: Julieta, Ofélia, Marco Ant6nio, Rosalinda, Otelo. 93 Cada um deles é 0 amor em pessoa ¢ é diferente dos outros. O mesmo podemos dizer de Balzac e sua galeria de apaixona- das e apaixonados, de uma aristocrata como a duquesa de Langeais a uma plebéia saida de um bordel como Esther Gob- sek. Os apaixonados de Balzac vém de todas as classes ¢ dos quatro pontos cardeais. Ele atreveu-se até mesmo a romper uma convengio respeitada desde a época do ‘amor contés' e em sua obra aparece pela primeira vez 0 amor homosexual: a paixio sublimada e casta do antigo presididtio Vautrin por Lucien de Rubempré, “homme a femmes”, e da marquesa de San Rafael por Paquita Valdés, a “file aux yeux d'or”. Diante de tal variedade, podemos concluir que a historia das literatu- ras européias e americanas a histéria das metamorfoses do amor. Tao logo a enuncio, sinto que preciso setificar € nvangar minha conclusdo: nenhuma dessas mudangas alterou, em sua esséncia, 0 arquétipo criado no século XI. Ha certas notas ou tracos distintivos do ‘amor cortés’ — nao mais de cinco, como veremos adiante — que esto presentes em todas as historias de amor de nossa literatura e que, além disso, tm sido a base das diferentes idéias e imagens que sempre tive- mos sobre esse sentimento desde 2 Idade Média. Algumas idéias e convengdes desapareceram, como a de ser casacla a dama e pertencer a nobreza ou de serem de sexo distinto os apaixonados. O resto permanece, esse conjunto cle condligoes ce qualidades antitéticas que distinguem 0 amor das outras pai- xdes: atragio/escolha, liberdade/submissao, fidelidade/trai- lo, alma/corpo. Assim, 0 verdadeiramente assombroso € a continuidade de nose idéia do amor, nao suas mudancas e variagdes. Francesca era uma vitima do amor € a marquesa de Merteuil uma algoz, Fabricio del Dongo escapa das arma- dilhas que arruinam Romeu, mas a paixdo que os exalta ou os devora é a mesma. Todos s1o herbis ¢ heroinas do amor, 94 Ne ‘esse sentimento estranho que é simultaneamente uma atra- ‘glo fatal e uma livre escola, Um dos tragos que definem a literatura moderna & a criti- ca; quero dizer, 20 contrario do passado, no s6 canta os he- 16is € relata sua ascensio e queda, como também os analisa. Dom Quixote nao € Aquiles e em seu leito de morte entrega~ se a um amargo exame cle consciéncia; Rastignac nao € 0 pie- doso Enéias, ao contririo: sabe que € desapiedado, nzo se ar- repende e, cinico, confessa isso a si proprio. Um intenso poe- ma de Baudelaire se chama “L’'examen de minuit’. O objeto da predilecao de todos esses exames € andlises € a paixdo amorosa. A poesia, 0 romance ¢ o teatro modernos sobres- saem pelo néimero, a profundidade e a sutileza de seus estu- dos sobre 0 amor e seu cortejo de obsessdes, emocdes e sen sagdes. Muitas dessas anilises — por exemplo, a de Stendhal — foram dissecagdes; 0 surpreendente, contuco, € que em cada caso essas operacdes de cirurgia mental terminam em ressurreicdes. Nas paginas finais de A educagao sentimental, talvez a obra mais perfeita de Flaubert, o her6i e um amigo da juventude fazem um resumo de suas vidas: “Um sonhou com 0 amor, 0 outro com o poder, ¢ os dois fracassaram. Por qué?” A essa pergunta, o protagonista, Frédleric Moreau, res- ponde: “Talvez a falha tenha residido na linha reta”. Ou seja: a paixdo é inflexivel e desconhece acomodagdes. Resposta réveladora, sobretudo se repararmos que quem fala € um al- ter ego de Flaubert. Mas Fréderic-Flaubert nao est decepcio- nado com o amor; apesar de seu fracasso, continua achando que foi a melhor coisa que podia Ihe acontecer e a tirica que justificava a futilidade da vida. Fréderic estava decepcionado consigo proprio; melhor dizendo, com o mundo em que t= nha de viver. Flaubert nao desvaloriza 0 amor: descreve sem ilusdes a sociedade burguesa, esse tecido execrivel de com- promissos, fraquezas, perfidias, pequenas e grandes traicdes, s6rdido egoismo. Nao foi engenhoso, mas veraz quando dis- 95 se: Madame Bovary c'est mot. Emma Bovary foi, como ele proprio, no uma vitima do amor, mas de sua sociedade e de sua classe; 0 que teria sido dela se nfo tivesse vivido na s6r- dida provincia francesa? Dante condena 0 mundo a partir do céu: a literatura moderna 0 condena a panir da consciéncia pessoal ultrajada, ‘A continuidade de nossa idéia do amor ainda espera sua hist6ria; a variedade de formas em que se manifesta, espera uma enciclopédia, Mas h4 outro método mais préximo da geografia que da hist6ria e do registro: desenhar os limites entre 0 amor € as outras paixdes como aquele que esboca © contorno de uma ilha no arquipélago. Isto € 0 que eu me proponho a fazer no curso destas reflexdes. Deixo a0 histo- rlador a imensa tarefa, muito além das minhas forcas e de mi- nha capacidade, de narrar a historia do amor e de suas meta- morfoses; a0 sbio, um trabalho igualmente imenso: a classi ficagdo das variantes fisicas e psicologicas dessa paixao. Minha intengo é muito mais modesta No comego, procurei deslindar os dominios da sexuatida- de, do erotismo e do amor. Os trés so modas, manifestagoes da vida, Os bi6logos ainda discutem sobre o que é ou pode ser a vida. Para alguns & uma palavra vazia de significado; 0 que chamamos vida nao € nada seno um fendmeno quimi- co, resultado da unio de alguns écidos. Confesso que nun- ca me convenceram essas simplificagdes. Se a vida, por exemplo, comecou em nosso planeta pela associacio de dois ‘ou mais 4cidos (e qual foi a origem desses acidos e como apareceram na Terra), € impossivel reduzir a evolugio da matéria viva, desde os infus6rios até os mamiferos, a uma mera reagio quimica, O certo é que 0 transito da sexualidade 20 amor se caracteriza tanto por uma crescente complexida- de como pela intervengao de um agente que leva o nome de ‘uma linda princesa grega: Psiqué. A sexualidade é animal; 0 96 erotismo € humano. £ um fenémeno que se manifesta dentro de uma sociedade e que consiste, essencialmente, em desviar ‘ou mudar o impulso sexual reprodutor e transformé-lo numa representagdo, © amor, por sua vez, também € ceriménia € representagao, mas é alguma coisa mais: uma purificagao, como dliziam os provencais, que transforma o sujeito € 0 ob- jeto do encontro erético em pessoas tinicas. O amor éa metd- fora final da sexualidade. Sua pedra de fundacio € a liberda- de: o mistério da pessoa. Nao ha amor sem erotismo como nao hé erotismo sem sexualidade, Mas a cadeia se rompe em sentido contririo: amor sem erotismo no & amor ¢ erotismo sem sexo é impen- sdvel e impossivel. As vezes é dificil distinguir entre amor € erotismo; por exemplo: na paixio violentamente sensual que unia Paolo a Francesca. Apesar disso, 0 fato de que sofressem juntos sua pena, sem poder nem, sobrenudo, querer'se sepa- rar, revela que 0 amor realmente 0s unia, Embora seu adult ro fosse particulermente grave — Paolo era irmio de Gio- vanni Malatesta, 0 esposo de Francesca — 0 amor refinara sua luxtiria; a paixdo, que os mantém unidos no inferno, se nao os salva, 05 enobrece. £ mais facil distinguir entre 0 amor € 0s outros afetos me- nos impregnados de sexualidade, Costuma-se dizer que ama- ‘mos nossa pitra, nossa religito, nosso partido, certos princi- pios ¢ idéias. E claro que em nenhum desses casos se trata do que chamamos amor: em todos eles falta o elemento erético, a atracdo por um corpo. Amamos uma pessoa, ndo uma abs- tragio. Também se utiliza a palavra amor para designar o afe~ to que professamos a nossos familiares: pais, filhos, irmaos € outros parentes. Nessa rela¢Zo nao aparece nenhum dos ele- ‘mentos da paixio amorosa: o descobrimento da pessoa ama- da, geralmente desconhecida; a atracio fisica e espiritual; o obsticulo que se interpde entre os amantes; a busca da reci- procidade; enfim, o ato de escolher uma pessoa entre todas 7 as que nos rodeiam, Amamos nossos pais e nossos filhos por- que assim nos ordena a religiio ou o costume, a lei moral ou a lel do sangue. Alguém me perguntard: e 0 complexo de Edi- po e de Electra, a atracdo por nossos pais, nfo é erética? A per- gunta merece resposta por partes. © famoso complexo, qualquer que seja sua verdadeira pertinéncia biol6gice e psicol6gica, est mais perto da sexua- lidade que do erotismo. Os animais nao conhecem o tabu do Incesto. Segundo Freud, todo o processo inconsciente da se- xualidade, sob a tirania do superego, consiste precisamente em desviar esse primeiro apetite sexual e, transformado em inclinagao erética, diigi-lo a um objeto distinto e que substi- tuia imagem do pai ou da mie, Sea tendéncia edipica nao se transforma, aparece a neurose e, as vezes, 0 incesto. Se o in- cesto se da sem 0 censentimento de um dos participantes, é claro que existe estupro, violagdo, engano, qualquer coisa, mas nao amor, £ diferente se hd atragdo miitua e livre aceita- lo dessa atracdo; mas entio o afeto familiar desaparece: ja nao existem nem pzis nem filhos, s6 amantes. Acrescento que © incesto entre pais efilhos nao é frequente. A razo pro- vavelmente € a diferenca de idades: é 0 momento da puber- dade, o pai e a mae jé envelheceram e deixaram de ser dese- javeis. Entre os animais no existe a proibigao do incesto, mas neles 0 periodo necessirio para alcangar a plena sexuali- dade € muito breve. O incesto humano quase nunca € volun- tério. AS duas filhas de Tot embriagaram seu pai duas noites seguidas para se aproveitar de seu estado; e quanto 20 inces- to paterno, todos os dias lemos nos jornais histérias de pais ‘que abusam sexualmente de seus filhos. Nada disso tem rela- ‘gio com 0 que chamamos amor, Para Freud as paixdes so jogos de reflexos; acreditamos ‘amar a X, Seu corpo ¢ sua alma, mas na realidade amamos a imagem Y em X, Sexualismo fantasmag6rico que converte tudo que toca em reflexo e imagem. Na literatura nfo apare- 98 \ | ce 0 incesto entre pais e filhos como uma paixio livremente aceita: Edipo ndo sabe que é filho de Jocasta. A exce¢ao s40 Sade e outros poucos autores dessa familia: seu tema no € 0 amor, mas sim o erotismo e suas perversdes. Por outro lado, 20 amor entre irmaos devemos uma obra espléndida de John. Ford (it's a pitty she ts a whore — Pena que ela seja uma _putd) e paginas memoraveis de Musil em seu romance O ho- ‘mem sens qualidades. Nesses exemplos — ha outros — a cega atracao, uma vez reconhecida, é aceita ¢ escolhida. £o contratio justamente do afeto familiar, no qual o elemento voluntirio, a opgao, nao aparece. Ninguém escolhe seus pais, seus filhos e seus irmaos; todos escolhemos nossas ‘amantes € nossos amantes. ‘© amor filial, fraternal, paternal e matemal no sio amor: sto piedade, no sentido mais antigo ¢ religioso dessa palavra, Piedade vem de pietas. £ 0 nome de uma virtucle, nos diz 0 Diciondrio de autoridades, que "move ¢ incita a reverenciar, ‘acatar, servir e honrar a Deus, a nossos pais e a patria’..A pie~ tas € © sentimento de devosao que se professava aos deuses ‘em Roma. Piedade significa também miseric6rdia e, para os cristdos, € um aspecto da caridade. O francés € o inglés distin- guem entre as duas acepces e tém dois vocdbulos para ex- pressé-las: piétée piety para a primeira ¢, para a segunda, pitié ¢ pitty. A piedade ou amor a Deus brota, segundo 0s te6logos, do sentimento de orfandade: a criatura, filha de Deus, se sente jogada ao mundo e procura seu Criador. E uma experiéncia li teralmente fundamental pois se confunde com o préprio nas- cimento, Muito se escreveu sobre isso: aqui me limito a lem- ‘rar que consiste no sentir e saber que fomos expulsos do todo pré-natal e langados a um mundo alheio: esta vida. Nes- se sentido 0 amor a Deus, quer dizer, a0 Pai € a0 Criador, € muito parecido com a piedade filial. Jé observei que 0 afero que sentimos por nossos pais € involuntério. Como no caso dos sentimentos filiis, € segundo a boa defini¢ao de nosso 99 Diciondrio de autoridades, amat 0 Criador no amor, é pie- dade, Tampouco 0 amor a nossos semelhantes € amor: € cati- dade. Uma linda condessa balzaquiana resumiu tudo isso, com admirével e concisa impertinéncia, numa carta a um ad- mirador: Je puis faire, je vous lavoue, une infinité de choses par charité, tout, excepté Yamour CPosso Fezer, garanto-lhe, uma infinidade de coisas por caridade, tudo, exceto 0 amor"). A experiéncia mistica vai além da piedade. Os poetas misticos comparavam suas penas ¢ seus desfalecimentos com os clo amor. Fizeram-no com tons de esiremecedora sin- ceridade com imagens apaixonadamente sensuais, Por seu lado, os poetas eréticos também se servem de termos religio- sos, Nossa poesia mistica estd impregnada de erotismo e nos- sa poesia amorosa de religiosidade. Nisso nos afastamos da wadigao greco-romana e parecemos mais com os mugulma- nos ¢ hindus. Varias vezes se tentou explicar essa enigmatica afinidade entre mistica e erotismo, mas nunca se conseguiu, na minha opiniao, elucidar completamente essa questdo. Mais ainda, fago uma observacio que talvez possa ajucar um pouco a esclarecer 0 fendmeno. O ato em que culmina a ex- perigncia erdtica, o orgasmo, é indizivel. E uma sensagao que passa da extrema tenso a0 mais complet abandono e da concentracio fixa ao esquecimento de si proprio; reuniao dos opostos, durante um segundo: a afirmagao do eu e sua dissolucio, a subida a queda, o além € 0 aqui, o empo eo ndo-tempo. A experiéneia mistica é igualmente indizivel: ins- tantanea fusto dos opostos, a tensio e a distensio, a afirma- ‘cho e a negagao, o estar fora dle sie O reunir-se a si proprio no seio de uma natureza reconeiliada, E natural que os poetas misticos os erdticos usem uma linguagem parecida: nao h4 muitas maneiras de dlizer 0 indi- zivel. Contudo, a diferenga salta aos olhos: no amor 0 objeto 35. te bs dans a wae 100 @ uma criatura mortal € na mistica um ser intemporal que, ‘momentaneamente, encarna nesta ou naquela forma, Romeu hora junto ao cactiver de Julieta; 0 mistico vé nas feridas de Cristo os sinais da ressurreigio. Verso e anverso: 0 apaixon: do vé ¢ toca uma presenga; © mistico contempla uma apai Gio. Na visio mistica o homem dialoga com seu Crisdor, ou, se & budista, com a Vacuidade; num e noutro caso, 0 dilogo se entabula — se € que € possivel falar de didlogo — entre 0 tempo descontinuo do homem e o tempo sem fissuras da eternidade, um presente que nunca muda, cresce ou clecres- ce, sempre idéntico a si proprio. © amor humano € 0 de dois seres suljeitos a0 tempo e aos seus acidentes: a mudanga, as paixdes, a doenga, a morte, Embor nao nos salve do tempo, o entreabre para que, num relmpago, aparega sua natureza contiadit6ria, essa vivacidade que sem parar se anula € re- nasce € que, sempre € 20 mesmo tempo, € agora e € nunca. Por isso, todo amor, incluindo 0 mais feliz, € wigico, Muitas vezes comparou-se a amizacle com 0 amor, em certas ocasiées como paixdes complementares ¢ em outras, mais freqiientes, como opostas, Se omitimos o elemento car nal, fisico, ficam Obvias as semelhangas entre amor € amiza- de, Ambos sio aferos — escolhidos livremente, no impostos pela lei ot pelo costume, e ambos so relagbes interpessoxis. Somos amigos cle uma pessoa, nfo ce una multicio; a nin- guém se pode chamar, sem risco do ridiculo, ‘amigo do géne- ro humano’, A escola € a exclusividade sfio condligdes que a amizade compartilha com 0 amor. Podemos estar apaixona- dos por uma pessoa que nao nos ama, mas a amizade sem re~ ciprocidade & impossivel. Outra diferenga: a amizacle nto nasce a partir da visio, como 0 amor, mas sim de um senti- mento mais complexo: a afinidade nas idéias, nos sentimen- tos ou nas inclinagdes. No comego do amor hi surpresa, 0 descobrimento cla onttra pessoa a quent nada nos liga exceto 101 ‘uma inclefinivel atragio fisica e espiritual; essa pessoa pode ser estrangeira, vir de um outro mundo, A amizade nasce da comunhio cle idéias, sentimentos ou interesses. A simpatia € © resultado dessa afinidade; o «rato refina e transforma a sim- patia em amizade, O amor nasce cle uma flechada; a amiza- de, do interciimbio fregtiente e prolongado. O amor & instan- tineo; a amizade exige tempo. Para os antigos a amizade era superior 20 amor, Segundo Arist6teles a amizade é “uma virtude ou vem acompanhada de virtude: além disso, € a coisa mais necessiria da vida”.* Plutarco, Cicero e outros também exaltaram a amizacle. Em outras civilizagdes nio foi menor seu prestigio. Entre os grandes legaclos da China 20 mundo esti sua poesia e nela 0 tema da amizade preponclerante, a0 lado do sentimento da natureza e da solidio do sAbio. Encontros, cespedidas ¢ evocagdes do amigo longinquo sio freqientes na poesia chinesa, como neste poema de Wang Wei ao se despedir de um amigo nas fronteiras do império: Adios a Vien, enviadoa Ans-Hst En Wei, Lluvia ligera moja el polvo ligero. En el mes6n los sauces verdes atin més verdes. — Oye, amigo, bebamos otra copa Pasaclo el Paso Yang no hay “oye, amigo. ane Aristéreles diz que ba 18s classes ce amizacle: por interes se ou utilidadle, por prazer e a “amizade perfeita, a dos ho- mens de bem ¢ semelhantes na virtude, porque estes dese- jam igualmente 0 bem’, Desejar 0 bem para 0 outro € deseja- 26. Bica nicomaquca, Vil. Teadugio de antonio Gomer Rebledo, México, 1983. 77.0 Paseo de Vang, mss alem en cidade de Wei, era 0 Slane posto ta, na irontira com os barbaros sgn). * “Adevs 9 Yuin, envindo a Ane-Hsi Wei, / Chuva leve mela 0 p6 lve. Na cam pon as flhas verdes ainda mais verdes. / Ouca, amigo, bebsntos outro copo, / Bepois do Passo Yang, io exste /"ouga, amigo” C¥ do. 102 lo para si proprio se o amigo € homem de bem. Os dois pri- meiros tipos de amizade sio acidentais € estio destinados a durar pouco; o terceiro & perdurivel e é um dos bens mais al- tos a que pode aspirar © homem. Digo homem no sentido li- teral e restrito da palavra: Aristoteles nao se refere as mulhe- res. Sua classificagtio € de ordem moral e talvez ndo corres- ponda totalmente & realidade: um homem mau ndo pocle ser amigo de um homem bom? Pflades, modelo de amizade, nao vacila em ser cimplice de seu amigo Orestes no assassinato de sua mae Clitemnestra, ¢ de Egisto, seu amante, ‘Ao ser perguntado sobre a razao da amizade que o ligava 20 poeta Etienne de La Boétie, responde Montaigne: "Porque ele era ele © eu era eu”. E acrescenta que em tudo isso “havia uma forga inexplicavel e fatal, mediadora dessa unigo". Um apaixonado nio teria respondido de outra forma. Contudo, € impossivel confundir o amor com a amizade, € no mesmo ensaio Montaigne se encarrega dle diferencié-los: “Embora 0 amor nasca também da escolha, ocupa um lugar distinto 20 cia amizade... Seu fogo, confesso, € mais ativo, agudo € Avi do; mas é um fogo temeriio e volGvel... um fogo febvil”, en- quanto a “amizade é um calor uniforme e universal, tempera- clo e na medida... un calor constante e trangiiilo, todo docu- 12 € polimento, sem asperezas...” A amizade é uma virtude eminentemente social € mais duradgura que o amor. Para os jovens, diz Aristételes, é muito fécil ter amigos, mas com a mesma facilicade deles se descartam: a amizade & uma afei- io prépria do amadurecimento. Nao tenho certeza disso, mas acredito que a amizade esté menos sujeita que o amor as mudancas inesperaclas. O amor se apresenta, quase sempre, como uma ruptura ou violago da ordem social; é um desafio 08 costumes e as institulgdes da comunidade. E uma paixdo qué, 20 unir os amantes, os separa da sociedade. Uma repti- blica de apaixonados seria ingovernavel; 0 ileal politico de 103 uma sociedade civilizada — nunca realizado — seria uma re- piiblica de amigos. Sera irredutivel a oposic#o entre o amer € a amizade? Nao podemos ser amigos de nossas amantes? A opiniio de Mon- taigne —e nisso acompanha os antigos —é na verdade nega tiva. O casamento Ihe parece impréprio pera a amizade: além de ser uma unio obrigatéria para toda a vida — embora te- nha sido escolhida livremente — 0 casamento é teatro de tantos € tio diversos interesses ¢ paixdes que a amizade no tem lugar ali. Discordo. De um lado, 0 casamento moderno nao é indissolvel nem tem mutto a ver com o casamento que Montaigne conhecia; mais, a amizade entre os esposos —um_ fato que comprovamos todos os dias — € um dos tracos que redimem 0 vinculo matrimonial. A opinito negativa de Mon- taigne se estende, além disso, a0 proprio amor. Aceita que se- ria muito desejavel que as almas € os prOprios corpos dos amantes gozassem da unio amistosa; mas a alma da mulher no Ihe parece “bastante forte para suportar os lagos de um n6 Uo apertado € duradouro”. Assim, coincide com os antigos: 0 sexo feminino é incapaz de amizade, Embora essa opiniao possa nos escandalizar, para refuté-ta devemos submeté-la a ‘um rpido exame. £ verdade que nao hi na hist6ria nem na literatura muitos exemplos de amizade entre mulheres. Nao € muito estranho: durante séculos e séculos provavelmente desde 0 Neolitico, segundo alguns antropélogos, as mulheres sempre viveram na sombra, O que sabemos do que realmente sentiam e pen- savam as esposas de Atenas, as jovens de Jenisalém, as cam- ponesas do século XII ou as burguesas do século XV? A me- dida que conhecemos um pouco melhor um periodo hist6ri- co, aparecem casos de mulheres notéveis que foram amigas de fil6sofos, poetas e artistas: santa Paula, Vitoria Colona, Ma- dame de Sevigné, George Sand, Virginia Woolf, Hannah Arendt e tantas outras. Excegbes? Sim, mas a amizade é, 104 como 0 amor, sempre excepcional, Dito isso, vemos de acei- tar que em toclos os casos por mim citadios falamos de amiza- des entre homens ¢ mulheres. Até agora a amizade entre as mulheres é muito mais rara que a amizade entre os homens. Nas relagoes femininas so freqiientes a intriga, as invejas, as fofocas, os ciames ¢ as pequenas maldades. Tudo isso se deve, quase seguramente, nfo a uma incapacidade inata das mulheres ¢ sim a sua situagio social, Talvez sua progressiva libertagao mude essa situagao. Assim seja. A amizade requer ‘estima, de modo que estd associada a revalorizagio da mu- Iher.,. E volto a opinigo de Montaigne: acho que nio se equi- ‘yocou totalmente ao julgar incompativeis o amor e a amizade, Sho afetos, como ele diz, fogos distintos. Equivocou-se, isso sim, ao dizer que a mulher se nega & amizace, Tampouco a oposicio entre amor e amizade & absoluta: nfo s6 hé muitos tacos que ambos compartlham como o amor pode se trans- formar em amizade. £, eu ditia, um de seus desenlaces, como ‘vemos em alguns casamentos. Por timo: amor e a amizade sio paixdes ras, muito raras. Nao devemos confundi-las nem com os amoricos nem com 0 que o mundo chama cor rentemente cle ‘amizades’ ou relagbes. Disse anteriormente que amor é tigico; acrescento que a amizade € uma respos- ca A cragédia, ‘Uma vex tragados os limites, ora flutuantes ora impreci- 0s, entre 0 amor € os outros afetos, pocemos dlar novo pas- 0 € determina’ seus elementos constitutivos. Aqui me atrevo ‘a chamé-los constitutives porque s40 os mesmos desde o principio: sobreviveram a oifo séculos de historia, Ao mesmo tempo, as relagdes entre eles mudam sem parar e produzem novas combinagdes, A maneira das particulas da fisica mo- dema. A esse continuo interc4mbio de influéncias se deve a variedade das formas da paixto amorosa. Sao, diria, um con- junto de relagdes, como o imaginado por Roman Jakobson 105 ro nivel mais basico da linguagem, o fonolégico, entre som € sentido, cujas combinagdes e permutas produzem os signifi- cados. Nao estranho, portanto, que muitos tenham sido tentados a desenhar uma combinagao das paixdes eréticas. E uma empreitada na qual ninguém teve sucesso até agora Penso que isso é impossivel: n4o se deve esquecer nunca que 0 amor é, como dizia Dante, um acidente de um ser hu- mano e que este ser & imprevisivel. E mais iil isolar e deter- minar 0 conjunto de elementos ou tragos distintivos desse afeto que chamamos de amor. Advirto que nfo se trata nem de uma definiglo nem de um registro, mas sim de um reco- nhecimento, no primeiro sentido desta palavra: exame cuida- doso de uma pessoa ou de um objeto para conhecer sua na- tureza e identidade. Vou agora recorrer a algumas das obser- vagdes feitas no transcurso destas reflexes, mas unidas a outras idéias e conjecturas: recapitulagio, critica e hipétese. Ao tentar ordenar melhor minhas idéias, descobri que, embora certas modalidades tenham desaparecido e outras, mudado, algumas resistiram & erosio dos séculos ¢ as muta- Ges histéricas, Podemos reduzi-las a cinco ¢ compéem 0 que me atrevo a chamar de elementos constitutivos de nossa imagem do amor. A primeira nota caracteristica do amor & a exclusividade. Nestas piginas eu jf me referi a ela varias ve- zes e procurei demonstrar que € a linha que traga a fronteira entre 0 amor € 0 territ6rio mais vasto do erotismo. Este Gilti- mo é social e aparece em todos os lugares ¢ em todas as Epo cas. Nao hi sociedade sem ritos e priticas eréticas, desde os mais indcuos até os rrais sangrentos, O erotismo é a dimen- sdo humana da sexualidade, aquilo que a imaginacao acres- centa & natureza. Um exemplo: copulagio frente a frente, na qual os dois participantes se olham nos olhos, € uma inven- ao humana e ndo praticada por nenhum dos outros mamife- ros. © amor é individual ou, mais exatamente, interpessoal: queremos unicamente uma pessoa € pedimos a ela que nos 106 ef er queira com 0 mesmo afeto exclusive. A exclusividade requer a reciprocidladle, 0 acordo do outro, sua vontade, Assim, 0 ‘amor finico faz fronteita com outro dos elementos constituti- vos: a liberdade, Nova prova do que observel anteriormente: nenhum dos elementos primordiais tem vida aut6noma; cada tum esti relacionado com os outros, cada um os determina € € determinaco por eles. Dentro dessa mobilidade, cada elemento é invariivel. No caso do amor tinico € uma condigAo absoluta: sem ela ndo ha amor. Mas nfo somente com ela: € necessario que concor~ ram, em maior ou menor grau, os outros elementos. O clesejo de exclusividade pocle ser mero afa de posse. Esta foi a pai fo analisacla com tanta sutileza por Marcel Proust. O verda- deiro amor consiste precisamente na transformagio do apeti- te de posse em entrega. Por isso pede reciprocicade e assim transtorna radicalmente a velha relagto entre dominio e ser- vidio. O amor Gnico é 0 fundamento dos outros componen- tes: todos nele repousam, também € ele o eixo € todos giram a seu redor. A exigéncia de exclusividade € um grande misté- rio: por que amamos esta pessoa @ no outra? Ninguém ja~ mais péde esclarecer esse enigma, a nfo ser com outios enig- mas, como o mito dos andréginos em O banquete. © amor nico € uma das facetas de outro grande mistério—a pesson humana, Entre o amor tinico e a promiscuidade ha uma série de pradagbes € matizes. Contuco, a exclusividade & a exigéncia ideal ¢ sem ela nao ha amor. Mas a infidelidade nao € 0 pio de cada dia dos casais? Sim, ¢ isso prova que Ibn Hazm, Gui nizelli, Shakespeare e © proprio Stendhal nao se enganaram: ‘oamor 6 uma paixto que todos ou quase todos veneram mas {que poucos, muito poucos, vivemn realmente. Admito, claro, que nisso como em todas as demais coisas ha gravs ¢ mati- zes, A infidelidade pocle ser consentida ou nao, freqiente ou ocasional. A primeira, a consentida, se praticada s6 por uma 107

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