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moringa.

v8n1p117-127 | E-ISSN 2177-8841

CORPO-VOZ-RITUALIDADE: Primeiras Abordagens

Body-Voice- Rituality: Initial Approaches

Fernando Aleixo
Universidade Federal de Uberlândia - UFU

Resumo: Este artigo apresenta princípios com os quais trabalho atualmente nas
fases introdutórias na abordagem da relação corpo-voz-ritual, no contexto de forma-
ção artística. Inicialmente, busquei por meio de relatos de experiências estabelecer
uma definição para a condição denominada dimensão sagrada da voz. Posterior-
mente, relacionei os caminhos percorridos que referenciam os respectivos estudos,
apresentando - ao mesmo tempo - uma sistemática pedagógica que norteiam as
pesquisas sobre a voz e a fala poética.

Palavras-chave: voz-ritual; corpo-voz; fala poética.

Abstract: This article presents principles with which I currently work in the introduc-
tory phases in the approach of the body-voice-ritual relationship, in the context of
artistic training. Initially, I sought through experience reports to establish a definition
for the condition called the sacred dimension of the voice. Later, I related the paths
traveled which refer to the respective studies, presenting - at the same time - a peda-
gogical systematics that guide research on voice and poetic speech.

Keywords: Voice-ritual; Body-voice; Poetic speech

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O convite para produzir um artigo para Delimitando o termo voz sagrada


compor uma sessão temática desta revis-
ta denominada Som e Cena apresentou- Nos anos de 2015 e 2016 realizei um
-se, de início, como um desafio: de que estágio de pós doutorado na Cidade do
modo abordar a questão da voz do ator Cabo, África do Sul2. Nesta ocasião, de-
enquanto sonoridade da cena. Embora a senvolvi o projeto Voz e Rituais3 que teve
relação pareça direta, ou seja, o ator fala como ênfase pesquisar a questão da voz
ou vocaliza e isto gera um material sonoro no contexto de diferentes manifestações
que passa a compor os signos constru- rituais como possibilidade de estudo con-
tores da cena, a questão colocada como ceitual e prático na relação corpo-voz-per-
desafio é ainda muito complexa se con- formance. Mais precisamente, a proposta
siderarmos os conceitos envolvidos em teve como objetivo desenvolver um estu-
uma perspectiva ampliada. Neste sentido, do sobre tradição oral africana (HAMPA-
o primeiro alargamento que me parece TÉ BÂ, 1980) no contexto específico do
importante apresentar é justamente uma trabalho de formação artística, ou seja,
delimitação do tema: consideramos que, observar em que medida essa tradição é
do ponto de vista da manifestação da voz, atualizada enquanto potência do “trabalho
todo o som em cena é vibração e rever- sobre si”, no processo de formação de
beração de impulsos de vida, emanados novos bailarinos e atores, considerando
dos corpos e das várias materialidades práticas pedagógicas que envolvam es-
presentes. Partirei justamente deste con- tudos corporais de identidade, memória,
torno de definição para apresentar uma tradição, ritualidade, expressão e poéticas
abordagem artística pedagógica com a do movimento.
qual trabalho atualmente. Convém es-
clarecer que quando abordo a questão Nos trabalhos de campo foi possível ob-
pedagógica, estou evidenciando a for- servar o cotidiano de um país que reco-
mação artística em nível de graduação nhece oficialmente 11 idiomas. Dentre
e, portanto, enfatizando uma abordagem estes idiomas o Zulu é uma das línguas
para uma faixa etária média de 17 a 22 maternas mais falada. O convívio com
anos. Contudo, isto não representa uma os diferentes agentes desta cultura me
restrição, apenas um realce. De certo revelou inúmeras manifestações tradicio-
modo, pode-se dizer que este artigo atu- nais, hábitos e costumes ligados a uma
aliza e complementa o texto publicado cosmovisão específica. Um aprendizado
neste mesmo periódico no ano de 2010 peculiar que destaco, deu-se na relação
com o título Reflexões sobre aspectos do dia-a-dia com Mama4. Este encontro
pedagógicos relacionados ao trabalho proporcionou-me uma vivência sobre a
vocal do ator1. 2 Estágio de pós doutorado realizado na Escola de Dança
da University of Cape Town no período de julho de 2015 a
1 ALEIXO. Fernando M. Reflexões sobre aspectos pedagó- junho de 2016.
gicos relacionados ao trabalho vocal do ator. Moringa, João 3 Projeto desenvolvido com o apoio da CAPES-MEC.
Pessoa, Vol. 1, n. 1, 103-116, janeiro de 2010. 4 Nome fantasia.

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ancestralidade, a tradição, a transmissão, sentou-me um novo universo de sentido


a reverência, a escuta e a espiritualidade. da manifestação da voz, determinando
Mama era uma senhora que trabalhava o que passei a denominar dimensão sa-
na comunidade em que eu vivia. Foram grada. Esta dimensão considera a voz
muitas narrativas compartilhadas com o enquanto fenômeno vibratório que pos-
contínuo esforço da compreensão do in- sibilita religar a vida com forças cósmi-
glês sul africano. Mama relatou que havia cas que agem no ser humano, assume
recebido um chamado dos seus ances- uma função sagrada, de conexão com a
trais para se tornar curandeira e assim dimensão sutil que constitui o indivíduo.
colaborar com a família e os membros
de sua comunidade cultural. O chamado O contato com Mama me ensinou que a
havia sido efetivado por meio de sonhos. voz emitida com respeito, amor e reverên-
Após ter recebido e aceitado este chama- cia tem um alto poder de reverberação no
do ela precisava passar por um estágio espaço e nos corpos presentes. Possui,
de preparação - estágio este que estava ainda, uma força curativa à medida que
em desenvolvimento - coordenado por colabora para o equilíbrio energético e
um mestre curandeiro que atuava como emocional.
uma espécie de Xamã. Percorrido este
caminho ela passaria a ser uma curan- Outra experiência do referido estágio que
deira de doenças físicas, emocionais e me possibilitou a abertura de sentido do
espirituais. trabalho vocal foi o Indigenous Choral
Festival5, um trabalho de cantos tradi-
Dois pontos deste convívio me tocaram cionais performados em coro que teve
profundamente e me acompanham até como objetivo a preservação de tradi-
hoje: a primeira é a escuta dos ances- ções e de diferentes culturas, bem como
trais, a manutenção de um canal aberto, a transmissão e sensibilização dos jovem
sensível, conectado com a ancestrali- sobre a importância de se reverenciar os
dade e com toda a tradição perpetua- ancestrais e de construir o espírito Ubun-
da. Um outro ponto é o poder de curar; tu6. Tal experiência me fez observar que
atualmente conhecido como Sangoma, certos cantos, mantras e orações não só
o curandeiro tradicional é portador de permitem a reintegração com a dimen-
diferentes conhecimentos cosmológicos, são sagrada, como também impactam
medicinais, fitoterápicos, espirituais e cul- diretamente no entorno da comunidade
turais. Conduz processos de preparação, do tempo presente: religa e harmoniza o
de manutenção da cultura e da tradição, 5 Festival realizado no Teatro Artscape, trata-se da edição
práticas e cerimônias espirituais de cura. do segundo semestre de 2015.
6 Há vários significados para a palavra Ubuntu; a mais pró-
xima que reconheci nos relatos de pessoas com as quais eu
Esta experiência, somada às práticas am- convivi diz que “eu sou uma pessoa através de outras pesso-
pliadas que tenho pesquisado nas áreas as e minha humanidade está ligada à sua”; o espírito Ubun-
tu está ligado à importância da comunidade pois aquilo que
da educação, da arte e da medicina, apre- eu faço afeta a todos globalmente.

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passado, presente e futuro. São aconte- uma prática denominada Une introduction
cimentos presentes que rompem as fron- à l’exploration du chant vibratoire9, as
teiras da razão e possibilitam um contato atividades ocorreram por meio de uma
profundo com uma dimensão própria sutil, imersão de seis dias com trabalhos diá-
universal e atemporal. rios. Para além do conteúdo propriamente
dito das dinâmicas do trabalho corporal e
Referências e Arquétipos que dos cantos, esta experiência se revelou
amparam a prática como importante aprendizado à respeito
da tradição e das formas tradicionais; per-
A proposição pedagógica com a qual mitiu-me lançar um novo olhar para estes
trabalho atualmente está alicerçada em conceitos bem como e, principalmente,
quatro experiências. Além da pesquisa para a questão de uma transmissão rigo-
já citada de pós doutorado que abordou rosa, que respeita e reverencia o legado
o tema voz e rituais, outras três práticas cultural e artístico deixado pelos nossos
consolidam e fundamentam a metodo- ancestrais (TINTI, 2006).
logia. A primeira é o trabalho que deno-
minei corporeidade da voz que organiza Uma terceira referência a ser comparti-
com conjunto de ações voltado para o lhada foi o curso de Noções Básicas de
desenvolvimento de um saber sensível Antroposofia aplicada a saúde, promovi-
na relação do empenho técnico e poético do pelo Instituto Ajnar e ministrado pela
da voz. A respeito deste trabalho já há Dra. Tânia Helena Alvares10 no ano de
publicado um considerável número de 2014. O curso percorreu conteúdos da
artigos e livros7 onde são apresentadas Antroposofia enquanto uma ciência que
as fundamentações e os procedimentos considera o ser humano nas suas dimen-
deste trabalho. sões física, vital, emocional e espiritual.
Foram abordados conteúdos sobre as
Outra experiência prática que orienta esta leis que regem o desenvolvimento físico,
proposição foi o contato com Maud Ro- psíquico e espiritual nas fases da vida;
bart8. No ano de 2014 foram realizados Imaginação, inspiração e intuição; etapas
ateliês e encontros semi-públicos pro- de desenvolvimento da prática meditati-
movidos em parceria pelas Universida- va; O sistema neurossensorial, rítmico e
de Federal de Uberlândia, Universidade metabólico. O pensar, o sentir e o agir e
de São Paulo e Universidade Estadual suas relações com o processo de saúde
de Campinas. O ateliê foi constituído de e doença. Quadrimembração do corpo,
7 Ver livros: corporeidade da voz: voz do ator (ALEIXO, os quatro elementos, os quatro órgãos e
2007) e corpo-voz: revisitando temas, revisando conceitos os quatro temperamentos. Atuação das
(ALEIXO, 2016)
8 Maud Robart nasceu no Haiti, em Port-au-Prince. No 9 Tradução minha: Uma introdução à exploração do canto
período de 1977 a 1993, Maud colaborou com Jerzy Gro- vibratório.
towski em diferentes fases e programas: “Teatro das Fontes”, 10 Dra. Tânia é médica antroposófica da CRPICS (Centro
“Objective Drama” e Workcenter of Jerzy Grotowski. Atual- de Referência em Práticas Integrativas e Complementares)
mente vive na França. da Secretaria Municipal de Saúde de Uberlândia.

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forças planetárias e das forças zodiacais Os objetivos principais destas fases são:
na psique e no corpo humano. Também, a) despertar - no âmbito do corpo - a
foram desenvolvidas outras práticas como consciência mais profunda da condição
a terapia floral de Bach e terapia Reiki somática do aluno: posturas, hábitos,
nível I e II (ALVARES, 2015). padrões de movimento, respiração, ali-
nhamento, etc;
Iniciações introdutórias b) no âmbito psíquico identificar padrões
de expressões nas dimensões do pensar,
A ação pedagógica que venho desenvol- sentir e agir;
vendo junto ao curso de teatro da Uni- c) No âmbito da individualidade vocal des-
versidade Federal de Uberlândia está pertar a consciência para as caracterís-
ancorada nas disciplinas ligadas aos con- ticas vocais: timbre, ritmos, tonalidades,
teúdos de voz: consciência vocal, técnica intensidade, articulações, tessituras, etc.,
vocal I e II. Eventualmente sou também e a relação destas características com as
responsável pela disciplina Corpo-voz questões próprias emocionais, culturais,
do curso de dança, grau bacharelado, sociais.
desta mesma universidade. No contex-
to destes componentes curriculares, e Para cada encontro há um conjunto de
respeitando as diretrizes pedagógicas, ações práticas e conteúdos específicos
mudanças e adaptações são necessárias a serem trabalhados. No contexto deste
em função de cada grupo e condições artigo optei em apontar as referências
de trabalho. Contudo, há uma sistemá- chaves do trabalho ao invés de descrever
tica de abordagem que preservo com o pormenorizadamente os procedimentos
intuito de orientar os alunos a seguirem práticos, uma vez que as condições téc-
por um caminho de aprendizagem visan- nicas apresentadas poderão determinar
do uma trajetória de autoconhecimento. mudanças e adaptações dos exercícios
Deste modo, as considerações que se- e das dinâmicas.
guem apresentam aquilo que denomino
de iniciações introdutórias do trabalho Primeira Iniciação: a evocação do EU
de corpo-voz-ritualidade. Esta sessão
introdutória é desenvolvida em três fases São muitas as dimensões que compõe a
concentradas nas três primeiras aulas/ experiência humana de modo que o ser
imersões. Cada fase/encontro está no- humano não está revelado para si mesmo
minada simbolicamente de acordo com completamente no âmbito dos sentidos
os objetivos e o foco do trabalho: e da consciência. Esta primeira prática
visa a sensibilização e o despertar de
Primeira iniciação: a evocação do EU; uma percepção ampliada do corpo. Para
Segunda iniciação: o culto da MORTE; isso o trabalho se apóia na visão antro-
Terceira iniciação: a celebração da VIDA. posófica do homem como um organismo
trimembrado constituído de um sistema

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neurosensorial, rítmico e metabólico. Ba- as vogais e consoantes:


ses orgânicas das atividades do pensar,
sentir e agir. A Ciência Espiritual nos ensina que
nos tempos antigos especialmente na
Atlântida, existia uma espécie de língua
Caminhos: primordial da Humanidade, um idioma
em toda a superfície da Terra. A “lin-
A porta é um portal, a sala um templo para guagem” naqueles tempos recuados
o aprendizado, o trabalho uma celebração emanava, muito mais do hoje, das pro-
e as ações um ritual de iniciação. Eu pos- fundezas da alma. Pode-se perceber
esse fato pelo seguinte: no período
so criar uma realidade e atribuir sentido atlântico, as impressões do exterior
para tudo que vivencio e realizo. Deste atuavam de modo tal sobre os homens
modo, podemos estabelecer contratos e que a alma, ao pretender exprimí-las,
acordos no ato de nos reconhecermos, era obrigada a manifestar-se pela ar-
valorizarmos e qualificarmos o encontro ticulação de uma consoante. O que
existia no espaço tendia a ser imitado
para que o trabalho se torne possibilidade pela consoante. Os gemidos do vento,
de transformação. É necessário um gran- o rugido das ondas, a proteção ofereci-
de esforço e empenho coletivo para que da por um teto, davam origem a senti­
um espaço de troca e compartilhamento mentos que se exprimiam pelas conso-
de experiências possa ser estabelecido. antes, que eram uma imitação desses
fenômenos ou coisas. Ao contrário, as
Certamente que aqui tocamos questões impressões interiores de sofrimento e
éticas, em valores humanos como o res- de alegria, ou as sensações de outro
peito, a atenção, o cuidado e o acolhimen- ser, eram imitadas com a expressão de
to. Para o encontro, para o estar com o uma vogal. Isso demonstra que a alma,
outro eu preciso estar comigo e, portanto, por meio da linguagem, sente-se em
íntima comunhão com os fenômenos
despertar a atenção e tomar consciência ou entidades exteriores. (STEINER,
de tudo que me atravessa e acontece. 1991, p. 23)

Este primeiro encontro/iniciação está vol- Nesta etapa iniciamos o trabalho com
tado para o desenvolvimento de dinâmicas as vibrações ou ressonadores confor-
corporais para despertar a consciência da me abordado no trabalho corporeidade
pele, dos músculos e da estrutura óssea. da voz. Com a imagem da consoante
Também, para sensibilizar o sistema de M trabalha-se a questão do princípio do
produção vocal. São programados exer- espaço enquanto permissão, confiança
cícios envolvendo a produção, reconhe- e aceitação. Abrir espaços internos no
cimento e simbolização das vogais e das corpo para que o corpo acolha o espaço
consoantes. Rudolf Steiner, fundador da externo. Aqui utilizamos uma imagem ger-
Antroposofia, em uma das conferências minadora: eu não projeto o meu corpo no
publicadas no livro A Direção Espiritual do espaço, mas sim eu abro espaço no meu
Homem e da Humanidade nos apresenta corpo para que o espaço externo adentre,
considerações sobre a língua primordial, ocupe, interaja, preencha, etc. Acrescen-

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to a este trabalho dos ressonadores um traz o impulso e a coragem para a fala


referencial arquetípico que, do ponto de (MORAES, 2015). O trabalho consiste em
vista da Antroposofia, encontramos nas reconhecer e equilibrar a emanação desta
forças planetárias e zodiacais. Tais forças força peculiar a cada individualidade, a
configuram os órgãos, o corpo humano qual alicerça suas bases sobre o desen-
e possuem funções físicas e qualidades volvimento da motricidade realizado no
psíquicas (BURKHARD, 2011). primeiro ano de vida da criança (KÖNIG,
2014). Muito podemos inferir desta fase
Do ponto de vista das forças zodiacais quando iniciamos o trabalho vocal.
trabalhamos com o arquétipo de touro.
Este arquétipo está ligado à região cer- Na Antroposofia, contamos ainda com o
vical, à tireoide, ao pescoço e a força estudo da biografia humana que permite
expressiva da vontade. Neste sentido, revisitar as fases anteriores da vida para
falar é um processo taurino. compreender e transformar o momento
presente. Este estudo se coloca como
um grande aliado do trabalho vocal pois
colabora para um diagnóstico e reconhe-
cimento daquilo que determina o modo
individual de ser e estar no mundo no
presente. A fala se desenvolve no segun-
do ano de vida e é um aprendizado que
se edifica através da imitação. A criança
nos primeiros sete anos de vida trabalha
seu processo de individuação através da
transformação de toda substância cor-
poral herdada, imprimindo suas próprias
características em toda sua organização
física, a partir de uma orientação dos pais
ou cuidadores. Até os nove anos de idade
a criança imita o gesto anímico dos pais,
e na expressão vocal podemos identificar
como se deu a construção desta etapa
(KÖNIG, 2014).
Figura 1: diferentes imagens do zodíaco relaciona-
As disposições atávicas, aquilo que é
das com diferentes regiões do corpo (BURKHARD,
implantado em nós para manifestar-se
2011, p.174) mais tarde, estando portanto submetido
às leis de hereditariedade, não depen-
Do ponto de vista das forças planetá- de das relações do homem com seus
rias vamos trabalhar com o arquétipo de semelhantes. A hereditariedade nos
dá um organismo em que a segun-
Marte que atua na região da laringe e

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da dentição se efetua aos sete anos. Segunda Iniciação: o culto da MORTE


Portanto, um ser humano poderia ficar
isolado numa ilha deserta sem deixar
de trocar os dentes, caso seu cresci-
O conceito do trabalho desta etapa está
mento se efetuasse normalmente. Mas amparado em uma questão disparado-
ele só aprende a falar quando seu ser ra: o que é que em mim precisa morrer
anímico recebe uma incitação por ser para que novos conhecimentos possam
o elemento permanente que persiste nascer (?). Esta é uma condição primeira
através das existências terrenas. O
homem forma o germe da evolução de
para a elevação do nosso pensamento
sua laringe no período em que ainda para além da estrutura dicotômica, da
não tem consciência de seu próprio eu. insegurança e do medo. Neste sentido,
Antes do mais afastado ponto que sua é necessário o exercício da renúncia dos
memória atinge, ele começa a formar conhecimentos já fixados e apreendidos,
a própria laringe, a fim de que esta se
torne o órgão da palavra. (STEINER,
e a expansão na busca por novas pos-
1991, p. 10) sibilidades, entendimentos, abordagem,
olhares, presenças e acontecimentos. A
A biografia estuda o desenvolvimento morte, neste caso, simboliza o movimento
humano do ponto de vista físico, psíqui- que nos transporta e revela o desconhe-
co e espiritual em ciclos de sete anos. cido. A abertura para o início de um novo
No âmbito desta abordagem, o trabalho ciclo, para uma mudança profunda de
considera com mais evidência os três reconhecimento de si mesmo.
primeiros setênios: 0 a 7; 7 a 14; 14 a 21
anos. Nesta fase os alunos são encora- Ao voltarmos a atenção para o trabalho
jados a pesquisarem alguns eventos de cíclico orgânico do corpo como a motri-
sua biografia11: cidade, a circulação sanguínea, os rit-
mos respiratório e cardíaco, entre tantas
a) como foi o seu nascimento? funções biológicas e físicas, é possível
b) como foi a alimentação nos primeiros reconhecermos rapidamente o constante
períodos: amamentação, alimentos es- processo de renovação, variação, troca,
pecíficos, leites, etc? desenvolvimento, substituição e mudan-
c) quais foram as suas primeiras impres- ças que envolvem a manifestação da vida.
sões sensoriais?
d) como e quando foi o início do seu ca- Caminhos:
minhar e do seu falar?
e) como era a casa, o lar, o ambiente e Convivemos cotidianamente com ciclos
as pessoas responsáveis pelo cuidado? naturais como o dia e a noite, as estações
f) como era a relação com os familiares do ano, o dormir e acordar, a inspiração
próximos? e a expiração, a alimentação, a sístole e
a diástole. O nosso sistema rítmico, que
envolve respiração e circulação sanguí-
11 A maioria das questões foi tirada do livro de
Burkhard Tomar a vida nas próprias mãos (2010). nea, é responsável pelo equilíbrio entre

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as funções dos sistemas neurossensorial,


que envolve o sistema nervoso e órgãos Praticamente, o exercício da caminha-
dos sentidos, e o metabólico motor que da com cristal nos permitirá trabalhar as
envolve vísceras abdominais e membros. forças opostas que agem sobre o corpo:
Corporalmente, os órgãos rítmicos estão atração e repulsa, gravidade e leveza,
situados na região torácica: coração e movimento e atrito. Esta dinâmica possui
pulmões, protegidos pelas costelas. Con- uma estrutura simples que parte da ima-
tudo, a respiração envolve todo o corpo gem de caminhar lento com duas taças de
uma vez que ela ocorre em cada célula; cristais delicados equilibrados nas mãos,
do mesmo modo o sistema circulatório enquanto trabalha-se a respiração e os
está composto por artérias, capilares, ressonadores. Continuamos a encorajar
veias distribuídas por todo o nosso cor- os alunos com a pesquisa e revisão dos
po. A prática desta etapa nos permite eventos biográficos:
reconhecer no corpo o processo rítmico
respiratório. A respiração aqui envolve Questões biográficas:
muito mais do que inspiração e expiração, a) Com que idade você ingressou na es-
permite trabalhar os padrões de pensa- cola?
mento e de ações. Ainda, considerando o b) Com que idade você foi alfabetizado?
simbolismo da morte enquanto passagem c) Qual sua lembrança dos professores
de ciclo, trabalhamos com a possibilidade e das matérias preferidas?
de integrar este estado de equilíbrio entre d) Como foi a sua educação religiosa?
o pensar, sentir e agir nas experiência e) você desenvolveu alguma atividade
cotidianas. Adquirirmos novos hábitos artística?
de escuta, observação, e sensibilização f) Você desenvolveu alguma atividade
de si mesmo nas pequenas coisas do esportiva?
cotidiano. Neste sentido, as mudanças
ou novas formas de comportamento pre- Terceira Iniciação: a celebração da VIDA
cisam ser incorporadas internamente e
aplicadas nas ações diárias, com a inten- Esta etapa vai enfatizar o RENASCIMEN-
ção de transformarmos velhos padrões TO, a valorização da vontade, do desejo,
que não estejam alinhados com os novos da abertura dos canais sensíveis para
caminhos almejados. novos aprendizados. É o germinar de
novo como possibilidade de lançar luz
A prática pretende, por um lado, reco- sobre o sentido mais profundo da vida, da
nhecer e tomar consciência de formas existência. É a criação da possibilidade
e conceitos já instituídos e, por outro, de uma nova jornada, um novo caminho
liberar o pensar, o sentir e o agir de dis- de busca e conhecimento.
torções, vícios e padrões que não sejam
vitalizantes e alinhados com propósito de Ao iniciar esta terceira fase o aluno já
trabalhar a força da existência. tomou contato com questões próprias

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específicas corporais e emocionais e, Caminhos:


também, já mobilizou e reconheceu es-
tagnações e hábitos que podem estar Se pensarmos no caminho do aprendiza-
bloqueando novas experiências. Tam- do enquanto uma peregrinação rumo ao
bém, já diagnosticou padrões comporta- lugar sagrado que é o conhecimento de
mentais que revelam traços e qualidades si mesmo, podemos aproximar sentidos
da sua individualidade. Neste sentindo, ampliados para o trabalho prático. As pri-
foi preparado um campo propício para meiras questões que propomos é: o que
seguir no caminho das mudanças, das de essencial eu levaria nesta jornada de
transformações. peregrinação? O que é fundamental e o
que é desnecessário? Do que eu posso
Aqui há a preparação para a jornada de abrir mão, renunciar, para tornar o cami-
estudo e pesquisa sobre questões téc- nhar mais leve e ágil? Aqui a celebração
nicas que possibilitem a conexão com tem um duplo sentido: enaltecer minha
os impulsos de vida, com o sentido da força, coragem e vitalidade; e promover
existência, com a plenitude e com a con- a vida coletivamente. Assim trabalhamos
dição de criação. Neste ponto podemos com uma dinâmica/ritual para promoção
retomar o alargamento apontado no iní- de um canto coletivo capaz de reverberar
cio deste texto: todo o som em cena é em cada e em todos: tocar as memórias,
vibração e reverberação de impulsos de os vividos; reativar a vontade, o desejo,
vida, emanados dos corpos e das várias a ação. O cantar aqui é explorado como
materialidades presentes. Em verdade, prática voltada para restabelecer o equilí-
conforme nos indica Kaká Verá, a vida brio físico, psíquico e social do indivíduo.
humana é onda e vibração: Aqui trabalhamos ainda com dois arqué-
tipos imprescindíveis como dois pólos da
Comparando o pensamento da sabedo- vida humana: a criança que me ensina
ria oriental, africana e indígena sobre a a estar inteira e sensível para aprender
definição do ser humano, torna-se claro
que somos espírito e não matéria. Apro- sobre o mundo e a vida; e o velho que me
fundando um pouco mais a definição de aconselha, me protege e orienta com sua
espírito que, em sua raiz etimológica, experiência e sabedoria. Estes arquétipos
adquire também o sentido de “Sopro”, são qualidades que estão em cada um,
existe a mesma equivalência na língua em todas as etapas da existência.
Tupi, cujo nome é “ayvu”. Assim, a tra-
dição Tupi define o ser humano como
um som, uma vibração. Quando, por Jornada em processo...
sua vez, comparamos com os estudos
mais avançados da ciência de hoje, Após estas fases de introdução, o per-
particularmente a física quântica que curso de desenvolvimento vocal seguirá
também define a matriz do ser humano
como onda e vibração. (JECUPÉ, 2015) na articulação do trabalho técnico com a
essência orgânica da vida, pois, do ponto
de vista da ritualidade da voz, a prática

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está empenhada na busca do autoco-


nhecimento e na clareza de que se os HAMPATÉ BÂ, Hamadou. A tradição viva
alcances estiverem conectados com a In: KI-ZERBO, Joseph (org.). História Ge-
verdade interior de cada um, se consti- ral da África I. Metodologia e pré-história
tuirá como um processo curativo, capaz da África. São Paulo: Ed. Ática/UNESCO,
de potencializar a força criativa do artista. 1980.
Esta jornada está em desenvolvimen-
to nas pesquisas atuais e os resultados JECUPÉ, Kaká. Entrevista. Revista Pon-
poderão ser publicados posteriormente. tifex: ciência, filosofia, arte e tradições
sapienciais, Rio de Janeiro, Vol. 1, n. 02,
Referências Bibliográficas 2015. Disponível em: www.revistaponti-
fex.org.br
ALEIXO, Fernando M. Corporeidade da
voz: voz do ator. Campinas: Komedi, MORAES, Wesley Aragão. Medicina An-
2007. troposófica: Um pararadigma para o sécu-
lo XXI. São Paulo: Editora ABMA, 2015.
ALEIXO, Fernando M. Corpo-voz: re- KÖNIG, Karl. Os três primeiros anos da
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Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 1, jan/jul 2017, p. 117a127

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