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07/04/2021 Negacionismo no poder: Como fazer frente ao ceticismo que atinge a ciência

EDIÇÃO 161 | FEVEREIRO_2020

questões da pós-verdade

O NEGACIONISMO NO PODER
Como fazer frente ao ceticismo que atinge a ciência e a política
TATIANA ROQUE

A crise de confiança na ciência abre espaço para o negacionismo climático em um momento crítico, quando se torna urgente
ampliar a mobilização social em torno da agenda ambiental ILUSTRAÇÃO: JOEL PETTS_2009_ TRIBUNE CONTENT
AGENCY_TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

“Q
ue aquecimento global é esse?”, questionou o deputado
federal Eduardo Bolsonaro num vídeo que gravou para o
YouTube em 2018, durante o inverno nos Estados Unidos.
Vestindo um gorro de lã e diante de um cenário tomado pela neve, o filho
Zero Três do presidente da República manifestou seu espanto com o frio,
que lhe parecia desmentir a mudança climática alardeada pelos cientistas
e pela imprensa. Concluiu com um conselho para seus seguidores: “Não
deixe que o discurso, principalmente dos globalistas, matéria em cima de
matéria, jogando essa mentira para vocês, que ela reste sedimentada
como verdade [sic].”

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O raciocínio ignorou que a ocorrência de invernos rigorosos em algumas


localidades não é incompatível com o aumento da temperatura média da
superfície do planeta – que está cerca de 1ºC mais alta do que era antes da
Revolução Industrial. A suposta “mentira” denunciada por Eduardo
Bolsonaro é endossada por praticamente todos os pesquisadores que se
dedicam à análise do clima global. Um estudo do geólogo americano
James Powell publicado no final do ano passado concluiu que, dentre os
mais de 11 mil artigos científicos publicados sobre mudança climática
entre janeiro e julho de 2019, não havia um único sequer que contestasse
que o planeta está ficando mais quente por causa dos gases de efeito
estufa lançados na atmosfera por atividades humanas.

A atitude do deputado reflete a descrença com que o conhecimento


científico vem sendo tratado por alguns setores do governo e da
sociedade. Até pouco tempo atrás, quando queríamos sustentar uma
afirmação sem argumentar demais, bastava dizer: “É comprovado
cientificamente.” Mas essa tática já não tem mais a mesma eficácia, pois a
confiança na ciência está diminuindo. Vivemos hoje um clima de
ceticismo generalizado, uma descrença nas instituições que favorece a
disseminação de negacionismos, encampados por governos com políticas
escancaradamente anticientíficas. É o caso de Donald Trump, que está
tirando os Estados Unidos do Acordo de Paris, pelo qual quase duzentos
países haviam se comprometido em 2015 a tentar conter os prejuízos
causados pelo aquecimento global; e de Jair Bolsonaro, que também
comanda um governo contrário às ações para combater a mudança
climática.

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Algumas pesquisas confirmam a crise de confiança que atinge, ao mesmo


tempo, a ciência e a política. O fenômeno da pós-verdade – esse momento
que atravessamos no qual fatos objetivos têm menos influência na
opinião pública do que crenças pessoais – é um sintoma extremo dessa
crise. Muita gente não enxerga que a ciência, assim como a política, existe
para beneficiar a sociedade. E esse desencanto produz um terreno fértil
para movimentos anticiência e teorias da conspiração (além de fomentar
extremismos). A pós-verdade, assim, não designa apenas o uso
oportunista da mentira (embora ele seja frequente). O termo sinaliza,
acima de tudo, um ceticismo quanto aos benefícios das verdades que
costumavam compor um repertório comum, o que explica certo desprezo
por evidências factuais usadas na argumentação científica. Diante disso,
contradizer argumentos falsos exibindo fatos reais pode ter pouca
relevância em uma discussão. Evidências e consensos científicos têm sido
facilmente contestados com base em convicções pessoais ou experiências
vividas – como se viu no vídeo de Eduardo Bolsonaro e como se percebe
todos os dias nas redes sociais.

N
o mundo todo, as pessoas vêm manifestando uma confiança apenas
moderada na ciência, mesmo nas nações mais ricas. Nos países com
renda de média para alta – grupo em que o Brasil se enquadra –,
54% dos habitantes confiam medianamente na ciência. O resultado foi
obtido pelo Wellcome Global Monitor, um levantamento britânico de
2018 que investigou como a população de mais de 140 países se posiciona
em relação a questões de ciência e saúde.

O resultado mais interessante é a correlação entre a desconfiança na


ciência e o descrédito de outras instituições: quem duvida do
conhecimento científico geralmente desconfia também dos governos, das
Forças Armadas ou da Justiça. Além disso, pesa bastante o modo como a
população percebe o impacto dos resultados científicos em sua vida
cotidiana: pessoas que afirmam ter uma existência confortável confiam
mais na ciência do que aquelas que se dizem em dificuldades.
Obviamente, a exposição à ciência durante o percurso escolar e o acesso
aos meios de comunicação são determinantes para gerar confiança no
conhecimento científico. Mas fatores como a distribuição de renda

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também entram na equação: sociedades mais desiguais tendem a


desconfiar mais da ciência.

Você acha que a ciência o beneficia pessoalmente ou beneficia a maioria


da sociedade? Quem respondeu “não” foi classificado como “cético”. No
Brasil, esse grupo representa 23% da população. Um resultado alarmante,
em sintonia com a média da América do Sul, onde dois em cada cinco
habitantes percebem uma desconexão entre ciência e sociedade – e isso
independentemente de sua faixa de renda. Em nosso continente, a taxa de
confiança nas instituições é bem menor do que em outras partes do
mundo, o que se reflete num maior descrédito na ciência, em hospitais e
clínicas médicas.

Mesmo em países de renda alta, pessoas que dizem ter uma vida difícil
têm probabilidade três vezes maior de serem céticas do que aquelas que
alegam viver em condições confortáveis. Ou seja, a atitude das pessoas
em relação à ciência parece estar ligada aos benefícios tangíveis em suas
vidas cotidianas. E o ceticismo é estimulado pela percepção de uma
distância entre os resultados da ciência e os problemas enfrentados no dia
a dia. Esse é o alerta mais importante, tanto para cientistas quanto para
políticos.

A ciência e a tecnologia vão aumentar o número de empregos na sua


localidade? “Não, de jeito nenhum” foi a resposta de 42% dos mil
brasileiros pessoalmente entrevistados durante a pesquisa, resultado que
ajuda a explicar a desconfiança. Mesmo que uma parcela de igual
tamanho tenha dito que a ciência e a tecnologia podem criar empregos, é
significativa a descrença de que trarão soluções para demandas urgentes.

O fundamentalismo religioso tem inquietado o meio intelectual. Com


razão, pois 75% dos entrevistados dizem que, quando a ciência discorda
de sua religião, seguem a orientação religiosa. Essa tendência é
influenciada pela importância crescente da religião na vida cotidiana de
muitas pessoas. O pertencimento à comunidade religiosa gera confiança,
fazendo com que pastores, padres ou irmãos de fé sejam mais ouvidos do
que figuras públicas, políticos ou cientistas.

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A pesquisa mostrou ainda que um terço dos brasileiros não confia muito
nos funcionários das organizações não governamentais, sendo que quase
metade da população confia apenas em alguns deles. Nos últimos meses,
o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros atacaram frontalmente as
ONGs, principalmente as que atuam na área ambiental, insinuando que
poderiam estar por trás das queimadas na Amazônia ou do
derramamento de óleo que atingiu as praias do Nordeste. A desconfiança
nas ONGs ajuda a entender por que essas alegações sem fundamento não
motivaram grande indignação junto à sociedade.

No meio de tantas notícias ruins, um resultado positivo: 80% dos


brasileiros acham que as vacinas são seguras. Uma explicação possível é
o sucesso das políticas públicas de vacinação, ao menos até 2018. É
apenas um palpite, mas ações governamentais bem-sucedidas podem
estar conseguindo convencer a população de que instituições, governos e
cientistas, nesse caso, trabalham em prol do bem-estar da sociedade.
Ainda assim, não podemos baixar a guarda: nos últimos anos, o índice de
cobertura vacinal contra várias doenças vem caindo, e o sarampo, que
havia sido erradicado do Brasil no passado, voltou em 2019. Ainda falta
compreender melhor os fatores por trás desse fenômeno, mas ele talvez
indique que movimentos antivacina estejam, neste exato momento,
conquistando mais adeptos.

Uma lição a ser tirada dos dados é que precisamos de mais diálogo,
melhores estratégias de convencimento e iniciativas de divulgação
científica abertas à autocrítica. Não basta defender a ciência a partir de
posições de autoridade, calcadas na superioridade ou na neutralidade do
saber científico. Sustentar uma verdade afirmando apenas que “é
comprovada cientificamente” pode reforçar a indiferença ou mesmo
gerar irritação.

T
alvez o efeito mais deletério da crise de confiança seja o de abrir
espaço para o negacionismo climático. Coincidência ou não, a
desconfiança atinge a ciência em um momento crítico, quando se
torna urgente ampliar a mobilização social em torno da agenda
ambiental. Se quisermos cumprir o objetivo do Acordo de Paris de limitar

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o aquecimento do planeta a 1,5ºC ou no máximo 2ºC em relação ao


período pré-industrial, temos que agir com firmeza desde já.

Admitir a verdade científica sobre a causa humana do aquecimento


global implica em transformações radicais na economia e na política, o
que exige rever atitudes cristalizadas em nossos modos de vida. Hábitos
de consumo e locomoção, padrões alimentares, perspectivas de futuro
para os filhos, tudo isso precisa mudar. Como convencer as pessoas de
que algum sacrifício vale a pena sem oferecer a elas garantias de que
todas essas mudanças poderão criar um mundo melhor? Sem enxergar
benefícios tangíveis em suas vidas cotidianas, aqui e agora, as pessoas
provavelmente continuarão desconfiadas. E a negação pode se tornar
uma alternativa tentadora. Sobretudo porque o negacionismo não se
apresenta como tal, e sim travestido de “polêmica”.

Há três décadas, uma ação concertada de organizações negacionistas


tenta contestar verdades produzidas pela ciência do clima. Em outubro
de 2019, a House of Representatives – o equivalente à Câmara dos
Deputados nos Estados Unidos – instalou uma comissão para investigar
campanhas que visavam desacreditar afirmações científicas sobre o
aquecimento global, bancadas pela indústria do petróleo. Por mais
expressivos que sejam os recursos investidos nessas campanhas, seu
alcance não pode ser explicado exclusivamente pelos interesses
econômicos e políticos dos responsáveis. Talvez apenas hoje possamos
medir os efeitos do novo tipo de propaganda inventado na época.

Os “mercadores da dúvida” começaram a agir nos anos 1990, quando se


consolidava o consenso sobre o papel do dióxido de carbono e outros
gases de origem humana no agravamento do efeito estufa (o termo vem
de Merchants of Doubt, um livro essencial sobre o negacionismo
climático lançado em 2010 por Naomi Oreskes e Erik M. Conway e sem
edição brasileira – a obra inspirou também um documentário
homônimo). Naquela década, publicavam-se pesquisas confirmando o
alarme e reuniões mundiais buscavam soluções comuns (como a
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro). Essas iniciativas
geraram fatos políticos inéditos, produzindo convergência entre

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adversários – incluindo democratas e republicanos, nos Estados Unidos –


em torno da necessidade de combater as causas do aquecimento global.

O consenso incomodava principalmente um setor: as empresas de


petróleo, maiores responsáveis pelo efeito estufa. Essas empresas não
deixaram barato e adotaram a única estratégia possível para frear o
consenso científico que se consolidava: semear a dúvida. O mesmo tipo
de propaganda já tinha sido usado pela indústria do cigarro, nos anos
1950, ao tentar disfarçar como polêmica o consenso científico sobre as
doenças causadas pelo tabaco. Como era impossível negar o aquecimento
global antrópico, a única saída era travesti-lo de controvérsia.
Profissionais treinados para polemizar com cientistas conseguiram
espaço na mídia, explorando o condicionamento dos jornalistas a “ouvir
os dois lados” envolvidos em questões contenciosas. De verdade
inconveniente, o aquecimento global antrópico acabou associado na
opinião pública a uma “controvérsia” que nunca houve entre os
climatologistas.

O debate não era honesto, pois tais campanhas difamavam lideranças da


causa ambiental e autores de estudos sérios sobre o efeito estufa, que
chegaram a ter suas vidas devastadas. Nesse contexto, surgiu a alcunha
de “melancia” para acusar ambientalistas de serem “verdes por fora e
vermelhos por dentro”. A brincadeira não foi inócua: de modo jocoso,
disseminou-se a acusação de que ecologistas famosos eram, no fundo,
comunistas disfarçados. A suspeita fez com que alguns cientistas
verdadeiros – especialistas em áreas distantes da climatologia, mas
engajados na missão anticomunista – aderissem ao negacionismo
climático. Eram poucos, mas ajudaram a legitimar a comunidade dos
autodenominados “céticos do clima”. Disseminava-se um argumento
similar ao que tem sido defendido por Jair Bolsonaro: sob o disfarce das
causas verdes, haveria um complô internacional para diminuir a
liberdade de escolha dos cidadãos e o poder de empresas que os
beneficiam, pois produzem riquezas e garantem uma posição soberana
para o país. No Brasil de hoje, supostos integrantes desse complô
ganharam o apelido de “globalistas”.

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É
impressionante o número de ingredientes da atual crise da verdade que
já estavam presentes na estratégia dos mercadores da dúvida: falsa
simetria na argumentação científica (“ouvir os dois lados”);
acusação de complô comunista; proliferação de think tanks para
diminuir o poder de universidades e centros científicos legítimos; teorias
conspiratórias; formação de especialistas por meio do manejo de mídias
alternativas. Nem sempre a atuação dos negacionistas teve sucesso. Na
Wikipédia, “aquecimento global” e “mudanças climáticas” alinham-se
hoje com os termos estabelecidos pela ciência. Ainda assim, na versão em
português houve editores que tentaram apresentar o consenso como
controvérsia, o que ainda se nota em verbetes menos acessados, conforme
mostrou um estudo feito por Bernardo Esteves, repórter da piauí, e
Henrique Cukierman, pesquisador da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.

Seria exagero dizer que movimentos anticientíficos estejam ganhando o


debate. Mas seria autoengano, por outro lado, negligenciar o quanto eles
têm minado consensos sobre agendas e políticas públicas. Embora venha
sendo fomentado há tempos, o negacionismo ganhou espaço inédito em
governos de extrema direita ao redor do mundo. Obviamente, o caráter
oficial amplifica seu poder de convencimento. Só que esses governos
contam com um apoio razoável da população, que parece não se
incomodar com afirmações e atitudes flagrantemente anticientíficas de
seus líderes.

O caso do Brasil é exemplar. Uma pesquisa do Datafolha divulgada em


dezembro passado mostra que Ricardo Salles, ministro do Meio
Ambiente que não considera o aquecimento global um problema
prioritário para sua pasta, é considerado ótimo ou bom por 27% dos
entrevistados, e regular por 38%. Os números são altos, principalmente
depois das queimadas na Amazônia e do vazamento de óleo em nossa
costa, sem nenhum plano de contenção à altura. No geral, mantém-se um
patamar razoável de aprovação a ministros caricatos, que nos
surpreendem a cada dia com declarações absurdas.

A crise de confiança pode ajudar a explicar a indiferença dessa parcela da


população em relação à veracidade das declarações de quadros do
governo. Não é que tantas pessoas acreditem no que eles dizem, é que

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boa parte delas não se importa. A fragilização do tecido social e das


instituições abre espaço para um ceticismo generalizado, que se traduz
em rejeição ao “sistema” como um todo. É nesse terreno fértil que
atitudes negacionistas podem proliferar e conquistar mais apoio.
Lideranças conservadoras garantem poder político dialogando com o
sentimento de deboche que acompanha o ceticismo. Mas, além da
descrença, o cético se caracteriza por uma predisposição constante para a
dúvida. Assim, a estratégia torna-se ainda mais eficaz quando
posicionamentos políticos aparecem disfarçados como “controvérsias”.
Há uma ironia nesse fenômeno, pois o “ceticismo” produzido
artificialmente, mero eufemismo usado pelos negacionistas, pode se
disseminar mais facilmente ao repercutir um ceticismo real. No caso do
meio ambiente, as consequências de não interromper desde já a
ampliação da esfera de influência de opiniões anticientíficas, mesmo
quando parecem apenas suscitar dúvidas, são especialmente
preocupantes, pois serão irreversíveis.

No Brasil, é mais do que óbvio que a ascensão da extrema direita tem


relação direta com o negacionismo climático, alçado a política de Estado
por Jair Bolsonaro. Não faltam exemplos de ações que corroboram esse
diagnóstico. Durante a campanha, Bolsonaro prometeu tirar o Brasil do
Acordo de Paris, a exemplo do que Trump fizera nos Estados Unidos,
com base no temor tão antiquado quanto infundado de
internacionalização da Amazônia. O presidente voltou atrás dessa
decisão, mas nomeou um ministro do Meio Ambiente que flerta com
think tanks negacionistas norte-americanos e um chanceler que considera
o aquecimento global (ou “climatismo”, como ele prefere dizer) um
complô de inspiração marxista. Em agosto, o presidente pediu a cabeça
de Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe), por divulgar dados corretos sobre a explosão do desmatamento na
Amazônia – no fim do ano, o anúncio da taxa anual divulgada pelo
próprio Inpe deu razão a Galvão, com um aumento de quase 30%, o
maior registrado neste século. O negacionismo não se restringiu à
Esplanada dos Ministérios: em 2019, parlamentares da base de apoio de
Bolsonaro convocaram para uma audiência no Senado pesquisadores que
contestam o aquecimento global antrópico, embora não tenham trabalhos
relevantes publicados sobre o tema e nem sejam reconhecidos como
autoridade por especialistas.

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Se em países como Estados Unidos, Austrália e Reino Unido o


negacionismo climático é alimentado por agentes financiados pela
indústria dos combustíveis fósseis, no Brasil é principalmente o
agronegócio que ajuda a disseminar as contestações à ciência do clima.
Trata-se justamente do setor econômico que mais contribui para o
aquecimento global em nosso país: juntos, o desmatamento e a
agropecuária que se instala nas terras destituídas de sua cobertura
vegetal respondem por dois terços de todos os gases do efeito estufa
emitidos pelo Brasil.

O agrônomo Evaristo de Miranda, chefe da Embrapa Territorial,


conseguiu espalhar o argumento falso de que a extensão da floresta deixa
pouco espaço para a agropecuária. Unidades de conservação, áreas
indígenas, assentamentos de reforma agrária e florestas preservadas em
imóveis rurais inviabilizariam o desenvolvimento nacional. Além disso,
pitadas conspiratórias tornam seu argumento sedutor: a agenda
ambiental vigente seria parte de um plano de países desenvolvidos para
expandir suas próprias economias agrícolas, bloqueando o potencial
competitivo do Brasil nesse setor. As inverdades na argumentação de
Miranda já foram amplamente denunciadas (veja, por exemplo, o vídeo
Fatos Florestais, produzido pelo Observatório do Clima). Ainda assim, o
pesquisador da Embrapa tornou-se o braço direito de Jair Bolsonaro e
conselheiro intelectual de Ricardo Salles, que aceitou o posto de ministro
depois que o próprio Miranda declinou o convite para ocupá-lo.

Luiz Carlos Molion, meteorologista aposentado da Universidade Federal


de Alagoas e um dos mais conhecidos negacionistas brasileiros, no ano
passado fez uma série de palestras sobre a Amazônia e o clima global
promovida pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC), que também o
convidou para falar no Senado. Bittar é o mesmo que propôs, junto com o
senador Flavio Bolsonaro, o filho Zero Um do presidente, um projeto de
lei para acabar com a reserva legal prevista no Código Florestal – a área
das propriedades rurais que os produtores são obrigados a manter
preservada (o projeto foi retirado pelos proponentes meses depois).
Molion se vale de mentiras há muito desacreditadas pela ciência do clima
– como a de que o aquecimento é provocado por fatores naturais como os
ciclos da atividade solar –, que o público leigo não detecta por serem

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apresentadas com verniz científico, amparadas por gráficos e jargões


técnicos.

Outro negacionista conhecido no Brasil, o geógrafo Ricardo Felicio, da


Universidade de São Paulo, ganhou popularidade com uma entrevista
que deu em 2012 a Jô Soares, que não contestou seus disparates sobre a
mudança climática. Hoje Felicio defende, em diversos veículos da
imprensa, que o aquecimento global é uma discussão meramente
ideológica. Em 2018, o professor da USP se candidatou à Câmara dos
Deputados pelo PSL, mas não se elegeu.

Jair Bolsonaro, seus ministros e sua base de apoio no Congresso reforçam,


a cada dia, o poder dessa rede de conselheiros, com papel essencial na
conquista de um público amplo que endosse escolhas políticas
desastrosas.

Todo esse plano pode parecer invencível se olharmos apenas para o lado
conspiratório. Vale a pena lembrar, porém, que estratégias apoiadas no
ceticismo frutificam em um tecido social desgastado. Não fosse isso,
mesmo com dinheiro, think tanks, falsos cientistas, robôs ou
influenciadores digitais treinados, a repercussão poderia ser mais restrita.
A prova é que esses “cientistas” negacionistas já atuam há tempos, mas
não causavam tanto estrago. O pulo do gato da extrema direita foi
vampirizar a desconfiança de parte considerável da opinião pública para
legitimar governantes com posições anticientíficas e inserir o
negacionismo na máquina estatal.

C
omo agir diante disso? Antes de tudo, é importante notar que o
desinteresse é o problema principal. Não existe – ainda? – uma
adesão maciça ao anticientificismo: as pessoas querem ser mais
ouvidas e ter suas razões consideradas. Por isso, é um péssimo começo de
conversa apontar a ignorância ou a crença religiosa como culpadas pela
crise da verdade.

Uma pesquisa feita no Brasil em 2019 indica que a ciência ainda tem
crédito junto à população, mas a desconfiança está aumentando. O

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Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, órgão do Ministério da Ciência,


Tecnologia, Inovações e Comunicações, comparou a opinião de diferentes
estratos sociais, analisando também sua evolução no tempo.

A ciência e a tecnologia trazem mais malefícios ou benefícios para a


humanidade? Somando as pessoas que responderam “só benefícios” com
as que disseram “mais benefícios do que malefícios”, o total é de 72%. E
esse percentual não muda significativamente quando focamos nos
estratos de rendas mais baixas. No entanto, mesmo que seja importante
manter algum otimismo, não podemos relaxar. Entre 2015 e 2019, o
percentual de “só benefícios” caiu muito (de 53% para 30%), ao mesmo
tempo em que aumentou o percentual dos que dizem trazer “mais
benefícios do que malefícios” (de 19% para 41%). Há um dado importante
que desestabiliza explicações fáceis baseadas apenas na renda: na faixa
dos que ganham mais de dez salários mínimos, a queda do entusiasmo é
ainda mais perceptível. A visão positiva ainda é expressa por 77% das
pessoas nesse estrato, mas o percentual dos que enxergam só benefícios
caiu de 61%, em 2015, para 26%, em 2019. No mesmo período, a dúvida –
contida na expressão “mais benefícios do que malefícios” – aumentou de
24% para 51%. Ou seja, a desconfiança não chega a ser majoritária, mas o
ceticismo se insinua, independentemente do estrato social dos
entrevistados.

Será que os brasileiros se sentem contemplados pelo modo como são


tomadas as decisões sobre ciência e tecnologia? Parece que nem tanto. É
praticamente consensual, em todas as faixas de renda, a reivindicação de
que a população seja ouvida quanto aos rumos da ciência e da tecnologia.
A proporção dos que concordam totalmente com essa afirmação, somada
a dos que concordam em parte, chega a 83%.

Atender a uma demanda como essa não é simples. Nos meios


acadêmicos, aumenta a consciência de que pesquisadores devem se
comunicar melhor e fazer mais divulgação científica. É um ótimo começo,
porém a população parece querer também participar das decisões. Mas
como tornar democráticas escolhas sobre temas complexos abordados na
ciência? Lidar com evidências, manejar dados e experimentos, dominar
bibliografias e estabelecer colaborações são ingredientes da prática
científica que exigem treino, protocolo e dedicação. Por isso, é difícil

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compartilhar todos esses processos com não iniciados. Simplificando as


coisas, o desejo de participação, expresso na pesquisa, pode não ser o de
opinar em todas as etapas da produção científica. Talvez reflita uma
demanda por mais informação a respeito das consequências das escolhas
dos cientistas, permitindo a um público mais amplo interferir na
avaliação de prioridades.

A reivindicação por mais participação nas decisões é um indício de que a


desconfiança na ciência está ligada à crise da democracia. Durante muito
tempo, cientistas tiveram uma espécie de carta branca para enunciar
verdades a partir de métodos aos quais poucos têm acesso. É como se
existisse um acordo tácito: “Acreditem, pois possuímos os atributos
necessários para a realização de verificações consistentes.” Esse acordo
não está mais funcionando, ao menos não como antes.

Ocorre algo similar com diferentes profissionais da verdade, cujas


afirmações costumavam ser legitimadas a priori, com base na autoridade
para lidar com informações não acessíveis a todos. Além de cientistas,
jornalistas, intelectuais, professores e experts têm sido questionados,
dificultando sua atuação como mediadores entre o poder político e o
público em geral. Intermediários sempre tiveram um papel importante
no sistema de pesos e contrapesos que faz com que a democracia
funcione, o que vai além dos momentos eleitorais.

Atualmente, lideranças desprovidas de qualquer credencial técnica ou


acadêmica reivindicam autoridade para enunciar verdades, pois o
contato direto com o público, favorecido pelas redes sociais, dispensa
mediações. É assim que novos formadores de opinião conquistam
seguidores e disputam a prerrogativa de influenciar o poder público. No
Brasil, como vimos, chegam a participar ativamente do governo.

Disputar espaço com esses novos atores usando diplomas ou


reconhecimento acadêmico não parece a melhor estratégia. A fragilização
da democracia decorre também da descrença em soluções tecnocráticas,
vistas como elitistas e pouco permeáveis à opinião das pessoas comuns.
Portanto, reafirmar verdades científicas a partir de posições de
autoridade pode ser um tiro no pé.

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O desafio de fazer mais e melhor divulgação científica ganha relevância


estratégica em tempos de emergência climática. Entender que há uma
desconfiança legítima – que atinge boa parte da população – é essencial
para acolher as dúvidas e iniciar uma conversa com quem ainda não se
mobiliza pela questão ambiental. O diagnóstico da crise mundial de
confiança na ciência, discutido no início deste artigo a partir da pesquisa
Wellcome Global Monitor, não menciona as mudanças climáticas.
Contudo, os resultados fornecem pistas valiosas sobre os caminhos a
seguir. Insistir apenas na reafirmação do consenso científico sobre o
aquecimento global antrópico é insuficiente. Ao fragilizar a imagem da
ciência – vista como pouco dedicada a obter benefícios para os problemas
cotidianos dos cidadãos –, a desconfiança gera dificuldades para a
agenda climática.

D
epois de décadas realizando encontros e participando ativamente
da costura de acordos internacionais pelo clima, é preocupante que
a causa ambiental não seja popular no Brasil. Culpar os atuais
governantes não basta. O desinteresse de governos, mesmo progressistas,
em relação ao tema reflete a indiferença da maior parte da população,
confirmada pela ausência desse debate nas campanhas eleitorais. Não é
por falta de conhecimento científico que a agenda ambiental não mobiliza
os brasileiros. Mesmo entre as organizações que lutam há tempos pela
preservação do meio ambiente, nota-se uma dificuldade de tornar essa
pauta mais abrangente.

Medidas para evitar o colapso climático precisam ser vinculadas a


valores mais amplos do que a preservação da vida no planeta. É essencial
que essa agenda consiga apontar saídas para as aflições do presente: só
assim poderá ser vista como uma aposta interessante. O papa Francisco,
cujo pontificado tem sido marcado pela preocupação ambiental, tem um
diagnóstico elucidativo sobre a anestesia que envolve o tema: “Este
comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de
vida, de produção e consumo”, escreveu Francisco em Laudato Si’, sua
encíclica de 2015 dedicada à causa ambiental. “É a forma como o ser
humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta

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07/04/2021 Negacionismo no poder: Como fazer frente ao ceticismo que atinge a ciência

não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age
como se nada tivesse acontecido.”

Talvez a ofensiva da extrema direita abra caminho para ações mais


efetivas também dos setores da sociedade que não se alinham com o
governo. Estratégias de divulgação científica, especialmente no caso da
mudança climática, precisam partir de novas premissas e abordagens,
abertas à constituição de uma imagem da ciência distinta daquela que
habitou nosso imaginário durante as últimas décadas. Em outros
momentos históricos, a ciência não adquiriu legitimidade de modo
automático. A percepção dos benefícios científicos e tecnológicos ajudou
a moldar a relação do público com os cientistas. O século XX, por
exemplo, com suas bombas atômicas e naves espaciais, associou à ciência
uma imagem de força e poder – inicialmente destrutivo, mas logo
associado à promessa de um futuro melhor. Já a climatologia tem uma
natureza bem distinta, pois lida com simulações de cenários pessimistas
para as próximas décadas, construídas por modelos diversos e
dependentes de muitas variáveis. Além de ser uma área recente.

O climatologista francês Hervé Le Treut admite que o negacionismo


climático desenvolveu-se a partir de fragilidades reais da ciência do
clima. “Digamos que a ciência, porque segue uma ética – o que também é
sua força –, é fácil de contestar”, afirmou o pesquisador em setembro
passado ao jornal francês Le 1. Ou seja, a ciência só afirma algo quando
tem certeza absoluta, e a climatologia levou alguns anos para obter
resultados seguros. Enquanto havia apenas presunção das mudanças
climáticas antrópicas, os cientistas foram cautelosos em suas afirmações,
o que é correto, mas tal atitude abriu espaço para a ação dos
negacionistas. Mais tarde, entre o final dos anos 1990 e início dos 2000,
quando as provas já eram robustas, não foram suficientes para
“convencer atores que não queriam ser convencidos”.

A maior riqueza da ciência não são as certezas produzidas ao fim do


processo de investigação, e sim o modo qualificado de tratar as dúvidas
durante esse processo. Ser cético é o que se exige de todo cientista. Por
isso, “ceticismo” é um termo desvirtuado para designar os negacionistas,
e a ciência precisa reivindicá-lo. Incertezas, perguntas, problemas e
questões em aberto são matérias-primas da ciência e podem ser usadas

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para valorizar o ceticismo. Faz falta, contudo, explicitar melhor os


processos que permitem à ciência extrair, das dúvidas iniciais, algumas
certezas.

Em novo livro publicado no final de 2019, Why Trust Science? (Por que
confiar na ciência?), sem edição em português, Naomi Oreskes sugere
que a confiança na ciência deve ser reconquistada por seu caráter
consensual, mais do que por sua autoridade. O método científico e as
evidências empíricas são insuficientes: cientistas se autocriticam e
criticam uns aos outros antes de tirar conclusões. Por isso, o grau de
diversidade e de abertura de uma comunidade é essencial para garantir a
confiabilidade do conhecimento obtido. A capacidade de se autocorrigir
depende do trabalho coletivo e da possibilidade de desenvolver
experiências e simulações reprodutíveis em culturas e contextos diversos.
Esses atributos diminuem o peso da autoridade e podem ajudar a
mobilizar mais pessoas para apreciar a ciência do clima, para além da
comunidade de iniciados.

Ao mesmo tempo, será necessário reforçar os desdobramentos políticos


ligados à agenda ambiental. No fim das contas, é preciso que as pessoas
efetivamente se importem com o colapso climático para que considerem
modificar seus modos de vida, mas também para que vislumbrem desde
já algum ganho que compense o esforço. Como a vida não está nada boa
para a maioria das pessoas, não parece impossível convencê-las de que
vale a pena uma aposta inovadora. Momentos de crise podem suscitar
novos arranjos políticos que tenham impacto no presente e ajudem a lidar
com os desafios que temos diante de nós. Ações coletivas podem ser mais
eficazes do que certezas e verdades contra o negacionismo. Por isso,
estratégias científicas e políticas precisam andar de mãos dadas.

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