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A Experiência do Espírito (1)

Júlio Paulo Tavares Zabatiero

1. Experiência de Participação

A característica mais elementar e fundamental da experiência do


Espírito é a de participação. O Espírito Santo age na pessoa humana a fim
de torná-la participante – (a) de Deus (Jo 14,16-31; Rm 8,1ss), ou da
natureza divina (II Pedro 1,4); (b) do povo de Deus (Atos capítulos 1-2; cf. I
Co 12,12-13); (c) da nova criação, ou do mundo que está sendo renovado por
Deus (II Co 5,17; Hb 2,5-18). Como tal, a experiência da participação é
experiência da gratuidade divina, da graça (ou amor) de Deus derramada
sobre a humanidade pecadora e sobre toda a criação (cf. Rm 5,1-11) – é
porque Deus nos ama que, graciosamente, Ele nos concede a bênção de
participarmos nEle e em toda a sua criação. No vocabulário neo-
testamentário, o termo mais comumente usado para participação é o termo
comunhão (koinonia, em grego). Comunhão é “ser como um”. A experiência
do Espírito é, assim, experiência de tornar um aqueles que estavam
separados, divididos, alienados (cf. João 17; Ef 4,1-6).
O Espírito nos torna participantes de Deus porque é Ele quem, como
representante da Trindade, concretiza no crente a justificação (Jo 16,7s.; Rm
6,13s.22 ), a regeneração (Jo 3,3-5; Tt 3,5-7; I Pe 1,3), a santificação (Rm
8,30; Gl 5,19-22; I Ts 5,23) e a libertação (II Co 3,17; Rm 5-8). Todos esses
termos – justificação, regeneração, santificação, libertação; e mais: salvação,
adoção, novo nascimento, redenção, resgate, reconciliação – são metáforas
que descrevem, cada um à sua maneira, destacando aspectos diferentes, a
multiforme graça de Deus que deseja que toda a sua criação esteja debaixo
de seu amor e de sua vontade. Cada uma dessas metáforas possui uma

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ênfase específica mas, no final das contas, todas são descrições parciais de
uma mesma e magnífica realidade, que é o agir de Deus que nos coloca de
volta na vida plena em comunhão com Ele e com toda a sua criação, que nos
torna participantes de Sua própria vida e ação. Se você refletir sobre cada
uma delas separadamente, poderá notar o aspecto de participação na
divindade que cada uma delas destaca. Por exemplo: a adoção e a
regeneração destacam que somos feitos filhos e filhas de Deus; a
santificação, que somos feitos santos como Deus é santo; e assim por diante.
Nos escritos paulinos, a metáfora mais comum para a participação na
divindade, efetuada pelo Espírito em nós, é a do “estar em Cristo”. Mediante
a ação do Espírito Santo, toda pessoa que crê e se entrega ao Deus gracioso,
é colocada em Cristo, ou seja, se torna participante da vida de Cristo, e o
próprio Cristo se torna participante e mesmo a realidade da vida de quem
crê, conforme diz Paulo: “Estou crucificado com Cristo; logo já não sou eu
quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne,
vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por
mim” (Gl 2,19-20). No Evangelho de João, a noção da participação na
divindade é descrita principalmente mediante a afirmação de que Deus Pai e
Deus Filho se tornam um naqueles que crêem, e vice-versa. Por exemplo:
“Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em
mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és
tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo
creia que tu me enviaste” (Jo 17,20-21, grifo meu). Note a dimensão
missionária, testemunhal da participação e unidade do povo de Deus em
Cristo e no Pai – para que o mundo creia que tu me enviaste.
Nas teologias ocidentais (tanto católicas como protestantes), esta
ênfase mística não tem sido muito ressaltada, especialmente por causa dos
antigos debates sobre a doutrina da justificação pela fé – doutrina que foi
interpretada quase que sempre de forma forense, ou seja, entendida a
justificação como um ato judicial de Deus que declara justa a pessoa que crê
em Cristo. Se, porém, entendemos também a justificação como um ato real e
transformador de Deus – tornando justa a pessoa que crê – recuperamos

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esta dimensão mística da experiência do Espírito, ou da vida cristã. Com
isto, damos à palavra mística um novo sentido, não mais uma questão de
experiências emocionais e privativas intensas, mas a plena e real
participação na obra de Deus – e mesmo na própria divindade – aberta a
todo o que crê, pela graça de Deus. Experiência, em vários sentidos, inefável,
indizível, inexplicável, mas não menos real!
Tendo sido feitos participantes dEle, também somos tornados
participantes de um novo povo, de uma nova comunidade – a que
costumamos chamar de Igreja, o povo de Deus. Para descrever a
participação no povo de Deus, Paulo também prefere usar a expressão em
Cristo (um equivalente dessa expressão é encontrado na metáfora da igreja
como Corpo de Cristo). A experiência do Espírito é experiência de nos tornar
participantes, em Cristo, do povo de Deus – povo composto de pessoas
libertadas, santas, eleitas e amadas de Deus, pessoas transformadas e
transformadoras, pessoas que são constantemente guiadas pelo Espírito e
por Ele transformadas para se tornarem mais semelhantes a Jesus Cristo,
mediante a vida comunitária, a adoração e o estudo da Palavra de Deus (cf.
Ef 4,1-24; Cl 3,1-17; etc.). A nova comunidade a que pertencemos é
comunidade de adoração a Deus – no culto, na vida e na missão (cf. Rm
12,1-2), é comunidade cuja natureza é agir de forma semelhante a Jesus
Cristo, seu cabeça e seu rei. Na terminologia paulina, ser batizado no
Espírito é ser mergulhado dentro do corpo de Cristo, é ser feito participante
do povo de Deus: “Pois em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um
só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós
foi dado beber de um só Espírito” (I Co 12,13).
Uma nova comunidade, um novo povo que é primícias de uma nova
humanidade. Não se pode pensar na participação na igreja de Deus, de
forma desvinculada da participação na nova humanidade que Deus está
fazendo – Efésios 2,11-22. A igreja é primícias, penhor, e não a realidade
toda. A igreja é o povo de Deus que, tendo experimentado a libertação pelo
Espírito, se torna mensageira e portadora dessa libertação para toda a
humanidade. Um erro, infelizmente muito comum entre cristãos, é deixar de

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perceber que a igreja não é o ponto de chegada do agir de Deus, mas um pit
stop (uma parada que carros de corrida fazem para se reabastecer, ou trocar
pneus, ou se preparar para continuar a corrida). Participar da natureza
divina é participar da ação libertadora de Deus que alcança toda a
humanidade (I Tm 2,4). A igreja não é um fim em si mesma, ela é o meio de
Deus para a salvação de toda a humanidade (I Pedro 2,9-10). Devemos evitar
o orgulhoso e arrogante erro de pensar que a eleição divina nos coloca em
uma situação de “privilégio”, que nos faz “melhores” do que as pessoas que
estão fora da igreja. Fomos eleitos em Cristo para darmos testemunho da
graça de Deus, para abrirmos as portas da família de Deus a toda a
humanidade – que é amada intensamente por Deus (cf. Jo 3,16). Se não
entendemos bem isto, não entenderemos a natureza missionária da Igreja.
A salvação não abrange só a humanidade, mas também de toda a
criação: “pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por
causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será
redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de
Deus. Porque sabemos que toda a criação a um só tempo geme e suporta
angústias até agora” (Rm 8,20-22). A experiência do Espírito não nos tira do
mundo (cf. Jo 17,15), mas nos torna parceiros de Deus na libertação de toda
a criação, nos torna participantes da nova criação de Deus (II Co 5,17), o que
podemos chamar de dimensão ecológica da salvação. Durante muito tempo
se falou da salvação como ser salvos do mundo – e em um sentido, isto está
correto, se entendemos o mundo como a estrutura pecaminosa, o estilo de
vida contrário à vontade de Deus. Mas é preciso, também, falar da salvação
como ser salvos com o mundo – se entendemos o mundo como a criação
divina. A experiência do Espírito nos torna participantes dos novos céus e
nova terra que Deus está criando para revelar e concretizar no final dos
tempos. A experiência do Espírito nos coloca, enfim, em comunhão com
Deus, com o povo de Deus, com a humanidade e com toda a criação que
gemem e clamam, ansiando pela salvação ofertada graciosamente por Deus
em Cristo Jesus.
Tudo isto aponta para um objetivo: participamos de Deus para sermos

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co-missionários com Ele na salvação de todo o cosmos, de toda a criação:
“mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas
testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até
aos confins da terra” (At 1,8); “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo:
Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei
discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as cousas que vos tenho
ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do
século” (Mt 28,18-20). Participamos de Deus para sermos co-enviados com o
Filho de Deus para a libertação de toda a criação: “Assim como tu me
enviaste ao mundo, também eu os envio ao mundo. E a favor deles me
santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na
verdade” (Jo 17,18-19), e mais: “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja
convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo
dito isto, soprou sobre eles, e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20,21-
22). Participamos de Deus para que Cristo reine sobre toda a criação: “E pôs
todas as cousas debaixo dos seus pés e, para ser o cabeça sobre todas as
coisas, o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo
enche em todas as cousas” (Ef 1,22-23)

2. Experiência de liberdade

A noção de libertação, na Bíblia, tem sua origem no êxodo dos hebreus


do Egito (especialmente Êxodo cap. 3). A noção teológica de libertação possui
duas dimensões principais: (a) a dimensão política – libertar é livrar alguém
do domínio injusto de outra pessoa, livrar um grupo de pessoas da
dominação por uma estrutura política, ou libertar uma nação da dominação
por outra; e (b) a dimensão pessoal – libertar é livrar uma pessoa do
sofrimento pessoal e da falta de dignidade humana causadas pela
opressão/escravidão. A mais bela e mais ampla descrição teológica da
libertação está em Êxodo 3,7-10: “Disse ainda o Senhor: certamente vi a

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aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos
seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento, por isso desci a fim de livrá-lo da
mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e ampla,
terra que mana leite e mel; o lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do
ferezeu, do heveu e do jebuseu. Pois o clamor dos filhos de Israel chegou até
mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo.
Vem, agora, e eu te enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de
Israel, do Egito”.
Repare nos verbos que descrevem a ação de Deus: Ele vê, ouve,
conhece, desce para fazer subir, e envia Moisés para libertar o povo do Egito.
Libertar é uma ação pessoal de Deus, que se torna solidário com o povo e
com a pessoa oprimida/escravizada, e modifica essa situação – em parceria
com o próprio ser humano. Deus mesmo desce para fazer parte da situação,
experimenta (conhece) a situação de dor, sofrimento e opressão, e não se
resigna com ele – mas, ouvindo o clamor das pessoas escravizadas, liberta-
as e faz aliança com elas. Compare esta descrição da ação de Deus na
libertação dos hebreus com a ação de Deus na libertação de toda a criação,
conforme descrita em o Novo Testamento. Na pessoa de Jesus, Deus mesmo
assume plenamente a condição humana – envia o Filho (Deus-homem), que
desce para fazer toda a criação subir à presença de Deus; vê e ouve o
sofrimento das pessoas, e o conhece em sua própria carne – e se torna o
“Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. A experiência da libertação,
concretizada pelo Espírito em nós, é a experiência de nos unirmos a Cristo,
de participarmos com Ele na ação libertadora do Deus Triúno. Segundo “o
testemunho do Novo Testamento as experiências de Deus feitas pelos
homens que se encontram próximos de, ou em comunhão com Jesus, são
experiências de libertação: Libertação das doenças e possessões demoníacas,
libertação das humilhações e das ofensas sociais, libertação dos 'ímpios
poderes deste mundo' e, como o apóstolo Paulo o realça de uma maneira
especial, libertação da força do pecado e do poder da morte (Rm 7 e 8).”1

1 MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis:


Vozes, 1999, p. 102s.
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Repare na integralidade da ação libertadora na vida do ser humano –
ela inclui a dimensão físico-corpórea, a dimensão corpóreo-espiritual, a
dimensão psíquica, a dimensão social, a política e a dimensão cósmica (a
pertença do ser humano ao mundo criado). Quero destacar dois aspectos da
liberdade, que é o efeito concreto da ação libertadora do Espírito:
(1) somos libertados para sermos livres
Pode parecer estranho afirmar que somos libertados para sermos
livres, mas esta é uma redundância necessária. Após a saída do Egito, os
hebreus, no deserto, se assustaram com a liberdade e a responsabilidade
que ela traz consigo, e se tornaram murmuradores contra Deus e quiseram
voltar às panelas do Egito (Êx 16,1-3). Não é fácil viver em liberdade, pois as
pessoas acabam se acostumando a viver na opressão, ou na escravidão, que
é mais simples, aparentemente mais confortável e menos desafiadora do que
viver em liberdade. É mais fácil nos conformarmos com o mundo do que
sermos transformados por Deus para transformar o mundo (Rm 12,1-2). O
cristão, não mais escravizado ao pecado, ao mundo, ao diabo e à carne, nem
sempre sabe viver em liberdade, e por isso é exortado a viver efetivamente a
liberdade no Espírito: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou.
Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão”
(Gl 5,1). Normalmente, pensamos na liberdade apenas como liberdade de, e
não também como liberdade para. Somos livres do pecado para o amor –
quem foi libertado do pecado se transformou em escravo de Cristo, escravo
da liberdade, escravidão que é, paradoxalmente, liberdade – pois livres do
pecado, estamos sujeitos a Deus, em Cristo Jesus (cf. Romanos 6).
Diuturnamente a vida cristã é uma luta contra os apelos da escravidão
– o mundo nos chama a sermos seus escravos: para viver de forma
individualista e consumista; a carne nos chama a sermos seus escravos:
para viver de forma ímpia e egocêntrica; o diabo nos tenta a sermos seus
escravos: para viver de forma mentirosa e violenta; o pecado nos chama a
sermos seus escravos: para não vivermos em santidade e justiça. Por isso, a
liberdade cristã no Espírito é processo contínuo de conflito e de resistência
contra todos os apelos da falsa liberdade sem Deus – apelos atraentes,

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hipnotizadores, mas mentirosos e escravizadores. Viver no Espírito é resistir
contra toda dominação e escravidão, é lutar – com a energia de Deus – para
viver em liberdade, a liberdade de filhas e filhos de Deus, livres para amar,
livres para participar de Deus em sua ação missionária no mundo.
(2) somos libertados para sermos santos
Pecado e carne são termos técnicos de Paulo para descrever a condição
humana (e de toda a criação) de escravos da morte, do Reino das trevas, do
pecado, ou da carne. A libertação (ou redenção, resgate, salvação,
justificação, reconciliação, regeneração), por sua vez, é o mais poderoso ato
de Deus em relação à sua criação escravizada. O Espírito concretiza em nós
a libertação de Deus em Cristo, ou seja, nos livra de um reino de pecado,
morte, opressão e dor; para um reino de justiça, santidade, vida, liberdade e
comunhão (cf. Rm 6,1-23; Cl 1,13-14; etc.). A forma mais plena da
escravidão humana é a impiedade (ímpia é a pessoa que não se parece com
Deus, que não age como Deus). Pecado não pode ser entendido apenas como
os atos pecaminosos que cometemos, mas como uma estrutura de vida a que
estamos submetidos. O pecado nos escraviza na medida em que nós,
humanos, preferimos viver desfrutando dos prazeres enganosos do mundo e
da falsa liberdade do conformismo aos nossos limites. É mais fácil viver
praticando pecados, do que viver em santidade. É mais fácil viver na carne,
do que viver em santidade.
Santidade é uma expressão da liberdade em Cristo, mas quantas vezes
o povo de Deus confundiu santidade com escravidão – com legalismo! “Ó
gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi
Jesus Cristo exposto como crucificado? Quero apenas saber isto de vós:
recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé? Sois assim
insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais agora vos
aperfeiçoando na carne? (Gl 3,1-3). Toda a carta aos gálatas é um apelo de
Paulo aos cristãos gálatas para não se deixarem escravizar pela Lei, mesmo
pela Lei de Deus que é santa, justa e boa. Aos colossenses, Paulo adverte
contra o mesmo perigo, enfatizando que a prática das obras da lei, que uma
vida religiosa e moralista, sem Cristo, não tem valor algum contra a carne,

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pelo contrário, é uma expressão da carne (Cl 2,16-23). Até hoje há cristãos
que confundem santidade com moralismo; santidade com religiosidade;
santidade com obediência às regras da instituição eclesiástica. Santidade é a
manifestação da liberdade de vivermos de forma semelhante a Jesus Cristo.
Santidade é a expressão da liberdade de andarmos no Espírito, frutificando
nEle, com Ele e por meio dEle (Gl 5,13-26).

3. Experiência de conflitividade escatológica

A experiência do Espírito, que é de participação e liberdade, também é


de conflitividade escatológica. Segundo o Novo Testamento, nós já vivemos no
fim dos tempos (Mc 1,14-15; Mt 4,12-17; Hb 1,1-2). Este tempo entre a
vinda e a volta de Jesus é o tempo escatológico, o período da missão da
Igreja, da esperança do povo de Deus e da criação (Rm 8,23-25). Neste tempo
escatológico, a experiência do Espírito é experiência de primícias e de penhor
(cf. Ef 1,13-14; I Co 15,23) – o penhor é o sinal de que o pagamento pleno
ainda será realizado, e as primícias são a gratidão pela colheita que ainda
não está concluída. Como experiência escatológica, a nossa participação em
Deus e a nossa liberdade no Espírito ainda não são vivenciadas em sua
plenitude – por isso, ainda pecamos, ainda sofremos, ainda gememos, ainda
duvidamos, ainda lutamos. Por isso, a experiência do Espírito é experiência
de conflitividade (Gl 5,16-23; Rm 8,1-17). O grande inimigo da experiência
do Espírito em nós é a carne.
Carne, na teologia paulina, não é o corpo humano, mas a disposição
humana de viver longe da comunhão com Deus, fora do reino de Deus,
distante do amor divino. Viver na carne significa viver exclusivamente com a
energia humana, exclusivamente com objetivos humanos, exclusivamente
com valores e conhecimentos deste mundo. Todo ser humano sem Cristo,
vive na carne, dela é escravo, a ela serve e dela recebe a morte como
recompensa – pois “toda a carne é erva, e toda a sua glória como a flor da
erva; seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do Senhor” (Is

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40,6-7). A espiritualidade cristã é, primordialmente, uma vida cotidiana de
conflito entre o Espírito de Deus e a carne. Nesse conflito, cada cristã e
cristão é chamado a escolher, constantemente, seguir o Espírito e não a
carne - “porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne,
porque são opostos entre si; para que não façais o que porventura seja do
vosso querer” (Gl 5,17). Esta é a mística cristã, a mística da entrega total, da
plena rendição da pessoa à direção do Espírito, porque o querer humano,
mesmo o do crente, é impotente contra o pecado e a carne (Rm 7,14-24). Não
é mística de resignação, mas de resistência. Ser espiritual não é ser fraco,
resignado, entregue aos desejos carnais do pecado. Ser espiritual é ser uma
pessoa firme, resistente; pessoa que, na força do Espírito Santo, resiste a
todos os apelos de volta à escravidão da vida sem Deus. Resistir, mediante a
submissão (o colocar-se debaixo da missão de Deus), mediante a entrega
ativa, mediante a fé corajosa que atua pelo amor, mediante o permitir que o
Espírito faça em nós o querer de Deus.
Essa conflitividade é pessoal (cada um de nós a experimenta), é
comunitária (o povo de Deus a experimenta) e cósmica (o mundo todo a
experimenta): “O conflito entre 'espírito' e 'carne' no homem é nada mais
nada menos do que a ponta antropológica da apocalíptica universal, segundo
a qual 'este mundo passa', porque a nova criação de todas as coisas já teve
início com a ressurreição de Cristo dentre os mortos. Por isso nós não somos
remidos do mundo, mas, sim, com o mundo. A experiência cristã do Espírito
não nos separa do mundo. Quanto maiores as nossas esperanças para o
mundo, tanto mais profunda passa a ser nossa solidariedade com seus
sofrimentos e seus gemidos”2. A carnalidade é o constante chamado para o
ser humano viver conforme os valores do mundo, conforme os padrões do
século, conforme os prazeres carnais, conforme a mentira e a violência
satânicas. Um cristão carnal é uma pessoa que, tendo conhecido a Cristo,
anula e apaga o Espírito de Deus em sua vida, e se entrega à carne para
viver o estilo de vida deste mundo. Um cristão espiritual é, ao contrário, uma

2 MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida. Uma pneumatologia integral. Petrópolis:


Vozes, 1999, p. 92
10 Unida Teologia da Espiritualidade
pessoa que se entrega ao Espírito, dá liberdade ao Espírito, em sua vida,
para agir e transformá-la em conformidade com o caráter de Cristo (Ef
4,17ss; etc.). Por isso, um cristão espiritual é sempre uma pessoa
missionária, que constantemente ora, estuda a Palavra, adora a Deus e, na
comunhão do povo de Deus, sob a força do Espírito Santo, luta o bom
combate, vivendo de forma santa, justa e piedosa no mundo, dando sempre
testemunho de Jesus Cristo em tudo que faz neste tempo escatológico, de
primícias e penhor, ainda não de realização, mas de resistência, e de
esperança segura e certa.

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