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Capítulo 2.
A invenção da África
“Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”.
(Provérbio africano)
O provérbio que escolhemos para iniciar este capítulo tem como objetivo
fomentar a reflexão acerca da construção de uma historiografia acerca da África. Que
histórias elas contam ou constróem em diferentes momentos? Com que objetivo? Elas
são isentas do contexto em que estão inseridas ou da perspectiva através da qual os
historiadores falam? Como compreender o processo de formação de diferentes discursos
históricos?
O objetivo deste capítulo consiste em problematizar estas questões. É preciso
identificar e caracterizar alguns períodos da produção de uma história africana visando
compreender as suas diferenças e o fato de que a sua construção é marcada por
interesses e perspectivas diversas conforme o contexto. Além disso, temos que ter
presente que a constituição desta área de estudos é caracterizada pela abordagem
interdisciplinar e que várias fontes históricas nos permite construir uma imagem
possível do seu passado.
Bem, você pode estar se perguntando: o que isso tem haver com a prática do
ensino de história da África?
Pois bem, podemos responder essa questão a partir de dois pontos. O primeiro
diz respeito a questão de que para nós saber analisar as abordagens historiográficas
permite identificar com qual delas queremos dialogar para a prática de um ensino sobre
a temática que não esteja carregada de estereótipos e de preconceitos. O segundo se
refere a possibilidade de utilizarmos fontes históricas (orais, escritas, iconográficas)
para o ensino da temática em sala de aula e, portanto, irmos para além apenas do uso do
livro didático.
Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora
“É impossível falar sobre história única sem falar de poder. Há uma palavra, uma palavra da
tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas do poder no mundo, é a palvra
“nkali”. É um substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o outro”. Como nossos
mundos econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do “nkali”. Como
são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente
depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas
de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que
se você quiser destruir uma pessoa, o jeito mais simples é contar a sua história e começar com
“em segundo lugar”. Comece uma história com as flechas dos nativos americanos e não com a
chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o
fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma
história totalmente diferente.”
As palavras acima nos permite pensar: afinal, como esta questão do poder está
presente na produção do conhecimento histórico acerca da África e de suas populações?
Os autores que analisaram a construção da
historiografia africana apontaram alguns
Aqui sugerimos o estudo do texto
pressupostos de como a África é apresentada nas de Boubacr Barry, Senegâmbia. O
produções ocidentais e na dos próprios africanos. A desafio da História regional.
Disponível nas leituras
classificação dessas obras foi realizada por Carlos complementares.
Lopes, cientista social guienense e, segundo o qual,
existiriam três grupos nos quais podem ser
apontadas visões comuns das diversas produções historiográficas acerca da África, a
partir do século XIX, a saber as correntes: da Inferioridade Africana, da Superioridade
Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora
africana e da Nova Escola de Estudos Africanos. Tomando como base essa classificação
realizaremos a discussão que segue.
A base que serviu como concepção teórica para fundamentar esse olhar foram os
sistemas classificatórios, da História
Natural, que a princípio foram
utilizados para classificar o reino Homem selvagem. Quadrúpede, mudo, peludo.
b. Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo
vegetal, mas que acabaram por se negro, liso, espesso; narinas largas; semblante
estender ao humano. A exemplo do rude; barba rala; obstinado, alegre, livre. Pinta-se
cm finas linhas vermelhas. Guia-se por costumes.
Sistema Naturae, de Charles Linné, c. Europeu. Claro, sangüíneo, musculoso; cabelo
1778 que se tornou o marco deste louro, castanho, ondulado; olhos azuis; delicado,
processo, que apresentamos ao lado. perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas.
Governado por leis.
Como se pode perceber, pela d. Asiático. Escuro, melancólico, rígido. Cabelos
negros; olhos escuros; severo, orgulhoso, cobiçoso.
classificação a categorização dos Coberto por vestimentas soltas. Governado por
humanos é explicitamente opiniões.
e. Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos
comparativa e na qual se estabelece o
negros, crespos. Pele acetinada; nariz achatado,
mito da superioridade européia e os lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente.
africanos passam a ser vistos através Unta-se com gordura. Governado pelo capricho.
“Ainda que a influência direta de Hegel na elaboração da história da África tenha sido fraca, a
opinião que ele representava foi aceita pela ortodoxia histórica do século XIX. Essa opinião
anacrônica e destituída de fundamento ainda hoje não deixa de ter adeptos. Um professor de
história moderna na universidade de Oxford, por exemplo, teria declarado: ‘Pode ser que, no
futuro, haja uma história da África para ser ensinada. No presente, porém, ela não existe; o que
existe é a história dos europeus na África. O resto são trevas... e as trevas não constituem tema
de história. Compreendam-me bem. Eu não nego que tenham existido homens mesmo em
países obscuros e séculos obscuros, nem que eles tenham tido uma vida política e uma cultura
interessantes para os sociólogos e os antropólogos; mas creio que a história é essencialmente
uma forma de movimento e mesmo de movimento intencional. Não se trata simplesmente de
uma fantasmagoria de formas e de costumes em transformação, de batalhas e conquistas, de
dinastias e de usurpações, de estruturas sociais e de desintegração social...’ Ele argumentava
que ‘a história, ou melhor, o estudo da história, tem uma finalidade. Nós a estudamos (...) a fim
de descobrir como chegamos ao ponto em que estamos’. O mundo atual, prosseguia ele, está a
tal ponto dominado pelas idéias, técnicas e valores da Europa ocidental que, pelo menos nos
cinco últimos séculos, na medida em que a história do mundo tem importância, é somente a
história da Europa que conta. Por conseguinte, não podemos nos permitir ‘divertirmo-nos com o
movimento sem interesse de tribos bárbaras nos confins pitorescos do mundo, mas que não
exerceram nenhuma influência em outras regiões’”.
Fage, 1982, p. 49. As citações utilizadas por Fage da palestra do referido professor no texto
foram tiradas da abertura do primeiro ensaio de uma série de cursos proferidos pelo mesmo
intitulada a Ascensão da Europa Cristã, em 1963.
Como coloca Ki-Zerbo (1982, p. 39): “A história da África não será escrita por
frenéticos da reivindicação. Nem pelos diletantes acadêmicos. Tratar-se-á de pesquisa
humanista. Ela será escrita, sobretudo, por africanos que entendam o passado como o
local de onde se deve haurir energias espirituais e rituais de viver”.
É importante fazer referência aqui ao contexto de produção dessa corrente dos
estudos africanos. De acordo com Blajberg, no contexto do pós-guerra com o processo
de descolonização e a entrada maciça dos africanos como sujeitos na História e Ciências
Contemporâneas, começa a perder terreno o exotismo científico que cercava os Estudos
Africanos — o Estudo da África em sua totalidade passa a considerar o vínculo colonial
que se afrouxa e a estudar criticamente todas as outras abordagens que tinham
proeminência anteriormente. Ganha espaço na discussão a Sociologia e, principalmente,
a Sociologia do (sub) Desenvolvimento.
A partir das experiências e desilusões que seguem à independência gradual ou
violenta dos povos africanos, na década de 60, e com a caracterização de relações
neocoloniais entre os países avançados da Europa, América e Ásia e as ex-colônias da
África, os Estudos Africanos passam a ser permeados de enfoques funcionalistas ou
marxistas, com destaque para a disciplinas Antropologia, Sociologia e Ciência Política,
mas já se referem a uma área de conhecimento mais ampla de orientação interdisciplinar
que envolve também a Arte e a Arqueologia, a Economia, a História, a Geografia, a
Linguagem e a Literatura, a Lingüística Comparada, a Música, a Política, a Religião, a
Filosofia e os Estudos das Ideologias. Além
disso, mas não menos importante, as lutas
Aqui sugerimos o acesso a dois materiais
por libertação da África do jugo colonial, as que estão disponíveis para você. O
denúncias da existência do racismo e da primeiro é o texto de Hernandez no qual
ela aborda o movimento pan-africano, as
exclusão das populações de origem africana suas características, os seus pensadores,
na diáspora e a própria historiografia vão seus pressupostos teóricos e de ação. O
estar pautada nas ideias pan-africanistas e segundo é o vídeo da entrevista com
Abdias Nascimento uma das principais
de negritude. Estas que influenciaram o referências brasileiras no que se refere
pensar sobre a África e, também, sobre as ao movimento negro e, portanto, aos
ideais pan-africanistas no nosso
populações africanas na diáspora e as suas contexto.
referências culturais e históricas. A ideia
primordial é a de valorização do legado
africano e negro, para o mundo. Portanto, aqui o conceito de negro é incorporado e
reinterpretado a partir de uma perspectiva positiva, ou seja, existe um conjunto de
valores culturais do mundo negro que se expressam nas suas vidas, nas suas instituições
e nas suas obras que possuem uma mensagem a dar a humanidade (APPIAH, 1997).
Essa perspectiva de análise da história africana teve como marco a publicação da
coleção, patrocinada pela UNESCO, denominada de História Geral da África (reeditada
Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora
Se nos fosse possível viajar pelas muitas culturas da África naqueles anos –
desde os pequenos grupos de caçadores-coletores bosquímanos, com seus
instrumentos da Idade da Pedra, até os reinos haussás, ricos em metais
trabalhados –, teríamos sentido, em cada lugar, impulsos, idéias e formas de
vida profundamente diferentes. Falar de uma identidade africana no século
XIX – se identidade é uma coalescência de estilos de conduta, hábitos de
pensamento e padrões de avaliação mutuamente correspondentes (ainda que
às vezes conflitantes), em suma, um tipo coerente de psicologia social
humana –, equivalia a dar a um nada etéreo um local de habitação e um nome
(1997, p. 243).
Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora
Mas é preciso considerar que toda e qualquer produção historiográfica deve ser
percebida no seu contexto de produção e, neste especificamente da corrente da
superioridade africana, podemos considerar que esta foi fundamental para a construção
de uma história revisada que acabou servindo de base para posteriores estudos. A
coleção História Geral da África e seus historiadores acabaram por firmar a
historiografia africana. Mais do que isso: configurou com positividade toda uma
referência histórica que precisava ser explicitada.
E aqui vale estabelecer uma referência ao que foi assinalado no Capítulo I acerca
do ensino de História da África. As próprias Diretrizes determinam que não se trata de
substituir uma visão eurocêntrica por um afrocêntrica mas de pensar a articulação e o
ensino de forma a compreender as diversas histórias que compõem a humanidade. No
nosso entendimento as Diretrizes estão apontando para o cuidado com uma afinação
irrestrita a esta corrente historiográfica da superioridade africana.
Além disso, como afirma Appiah, a resposta correta ao eurocentrismo não é
certamente um afrocentrismo reativo, mas uma nova compreensão que humanize todos
nós, através do aprendizado de pensar além da raça (1997, p. 19). Vale lembrar aqui,
também, a reivindicação de Fanon (1952, p. 185) em prol de uma história da
humanidade para todos, seja qual for a sua cor. Por isso, pertencia-lhe tanto a guerra do
Peloponeso quanto a invenção da bússola. Por ser homem, todo o passado do mundo era
seu, e não apenas a revolta de São Domingos. (FANON, 1952, p. 185).
em cada uma das suas partes como uma entidade histórica, mas apesar dessas diferenças
não se perde de vista a noção de totalidade histórica africana, a exemplo da questão da
ancestralidade e da tradição oral, que você irá estudar no capítulo IV.
O estado atual dos Estudos Africanos é caracterizado, principalmente, por uma
vasta revisão bibliográfica produzida tanto por intelectuais africanos como outros de
diferentes nacionalidades que rompem com a historiografia colonialista tornando
possível a interação global de perspectivas que se relacionam e desconstroem a visão de
produções eurocêntricas e colonialistas. A premissa essencial destes novos estudos é a
descolonialidade do olhar e, portanto, da abordagem, como propõe Mignolo. E é nesta
perspectiva que abordaremos no Módulo II as temáticas relativas as histórias de
algumas sociedades africanas entre o século XV e XIX.
seriam os mais velhos. Sobre esta questão você estudará especificamente no capítulo IV
deste módulo. Por ora nos interessa ressaltar que mesmo referenciando o trabalho com a
tradição oral o autor vai atentar para os cuidados no seu uso como qualquer outro
relativo aos documentos escritos, por exemplo, como colocamos anteriormente.
Principalmente, em relação a oralidade é preciso perceber o próprio contexto de sua
criação pois fora deste perde seu sentido. Ela é fortemente ambígua, envolvida por
apologias, alusões, subentendidos e provérbios que as pessoas encontram como base
para explicar, ser, estar e transformar o seu mundo. Embora a citação a seguir seja
extensa pensamos ser fundamental a sua reprodução para o entendimento daquilo que o
autor quer afirmar.
Um exemplo que nos parece interessante é aquele que foi disponibilizado para
na Plataforma e que se refere a alguns contos africanos transformados num programa de
rádio por acadêmicas do curso de História da UDESC. Sugerimos que você escute o
áudio e levante questões: como posso utilizar este material em sala de aula? O que estes
contos e lendas me informam sobre as sociedades que os produziram? Como
problematizar essa fonte? O que ela implica em perceber? É possível trabalhar de forma
interdisciplinar com esses contos? Como você faria isso? Podemos ou devemos
valorizar as tradições orais, por exemplo, que nossas crianças na escola trazem de seu
ambiente familiar? Qual a importância de fazer isso?
Introdução aos Estudos Africanos e da Diáspora
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