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3º Colóquio Internacional

FITA

ANAIS

11 a 14 de agosto de 2018
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Cultura e Eventos
Florianópolis/SC
ISSN: 2359-5469

TÍTULO
3º Colóquio Internacional FITA - Anais

ORGANIZAÇÃO
Profa. Dra. Maria de Fátima de Souza Moretti

COMISSÃO CIENTÍFICA
Profa. Dra. Maria de Fátima de Souza Moretti (UFSC)
Profa. Dra. Elisana de Carli (UFSC)
Prof. Dr. Rafael Luiz Marques Ary (UFSC)
Porf. Me. Luiz Gustavo Bieberbach Engroff (UNESC)
Me. José Ricardo Goulart (UDESC)

REVISÃO
Lucas de Lima

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária


da
Universidade Federal de Santa Catarina

C718a Colóquio Internacional FITA (3.:2018:Florianópolis,SC)


Anais do 3° Colóquio Internacional FITA [recurso
eletrônico] : o teatro de sombras e o teatro de objetos
/ coordenação, Maria de Fátima de Souza Moretti. –
Dados eletrônicos. - Florianópolis : UFSC/CCE, 2018.

Disponível em:
http://coloquiofita2018.blogspot.com/p/anais.html

Evento realizado na Universidade Federal de Santa


Catarina, no período de 11 a 14 de junho de 2018.

ISSN: 2359-5469

1. Festivais de teatro. 2. Teatro. 3. Artes cênicas


I. Moretti, Maria de Fátima de Souza. II. Título.

CDU: 792

Elaborado pelo bibliotecário Jonathas Troglio – CRB 14/1093


Coordenação do Colóquio
Profa. Dra. Maria de Fátima de Souza Moretti

Comissão Organizadora
Profa. Dra. Maria de Fátima de Souza Moretti
Esp. Zélia Regina Sabino
Prof. Me. Luiz Gustavo Bieberbach Engroff
Me. José Ricardo Goulart

Comissão Científica
Profa. Dra. Maria de Fátima de Souza Moretti (UFSC)
Profa. Dra. Elisana de Carli (UFSC)
Prof. Dr. Rafael Luiz Marques Ary (UFSC)
Porf. Me. Luiz Gustavo Bieberbach Engroff (UNESC)
Me. José Ricardo Goulart (UDESC)

Equipe de Produção
Blenda Emanuelle da Trindade
Fabrícia Elisa Souza
Igor Gomes Farias
Laura Wilbert Gedoz

Monitoria
João Carlos Quinalha Silva
Larissa Siedschlag
Luiz Felipe de Melo Braga
Márcia Cavalheiro
Mariana da Silva Longen
Mariana Paladino

Núcleo Técnico
Ivo Godois
Dayane Ros
Priscila Costa
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Comissão Científica do Colóquio Internacional FITA.......................................................................................... 6

DAS MARGENS DO RIO NEGRO À CENA DE MAMULENGOS


Márcio Silveira dos Santos ............................................................................................................................................. 8

CHIKAMATSU MONZAEMON: É O DRAMA QUE SE ADAPTA AO ATOR, OU O CONTRÁRIO?


Paulo Ricardo Berton .................................................................................................................................................... 21

O III COLÓQUIO INTERNACIONAL FITA: REFLEXÕES SOBRE TEATRALIDADE E


PERFORMATIVIDADE
Gilson Motta ...................................................................................................................................................................... 35

DRAMATURGIA DO BARROCO HABANERO, OU A POÉTICA DO OBJETO EM PROJEÇÃO: 10


ANOS DE LABORATÓRIOS EM EL ARCA, TEATRO MUSEO DE TÍTERES
Liliana Pérez Recio ......................................................................................................................................................... 51

KANTOR E O TEATRO DE ANIMAÇÃO: UMA LINHA TÊNUE


Igor Gomes Farias ........................................................................................................................................................... 66

CONGAS, BOTAS, SAPATOS, SAPATÕES E SANDÁLIAS: OBJETOS E IMAGENS DO LIVRO EU


SOU UMA LÉSBICA, DE CASSANDRA RIOS (1983), NA CONSTRUÇÃO DE UM PROCESSO COM
TEATRO DE FORMAS ANIMADAS
Tuany Fagundes Rausch .............................................................................................................................................. 81

RELATO SOBRE O ESPETÁCULO E.N.T.R.E. NO III COLÓQUIO INTERNACIONAL FITA


Maria de Fátima de Sousa Moretti (Sassá Moretti);
Larissa Christina Siedschlatg ..................................................................................................................................... 93
APRESENTAÇÃO

Neste ano de 2018, após dois anos de ausência no calendário artístico-pedagógico


da Universidade Federal de Santa Catarina, voltamos a realizar o Colóquio Internacional
FITA. O cronograma de ações estendeu-se por quatro dias, de 11 a 14 de junho, oferecendo
palestras, mesas de conversas, oficinas, apresentações teatrais e performances artísticas,
totalizando cerca de trinta ações.
O intercâmbio entre pesquisadores e artistas vindos de vários estados brasileiros
e países distintos auxiliou na difusão de conhecimentos acerca do teatro de animação que
propôs o pensar sobre o teatro de sombras e o teatro de objetos. Os trabalhos
apresentados tornaram-se os eixos norteadores para as discussões e aparecem neste
compêndio que publicamos em nosso blog, para que outros interessados nas discussões
possam ter um maior contato na posteridade.
Fazem parte deste rol de artigos, as experiências do dramaturgo Márcio Silveira
dos Santos e sua narrativa sobre um pedaço de madeira recolhido às margens do Rio
Negro e sua transformação em um dos personagens de um espetáculo teatral do Rio
Grande do Sul.
Paulo Ricardo Berton nos apresenta o autor dramático japonês Chikamatsu
Monzaemon e sua escrita tanto para o teatro de bonecos (Bunraku) como para o teatro de
atores japonês (Kabuki). Através de outra perspectiva, Gilson Motta traz recortes de sua
participação como coordenador junto ao Laboratório de Objetos Performáticos da Escola
de Belas Artes da UFRJ, alinhavando com suas experiências dos trabalhos expostos e
apresentados durante o Colóquio. O referido trabalho versa ainda sobre temas
contemporâneos como as questões da teatralidade e performatividade.
Liliana Pérez Recio compartilha suas memórias, junto aos processos de
desenvolvimento do teatro de sombras cubano, a partir da perspectiva da Companhia El
Arca. Igor Gomes Farias apresenta as aproximações entre o teatro de animação e a obra
do diretor polonês Tadeusz Kantor. Tuanny Fagundes Rausch insere a questão de gênero
em sua Pesquisa ao aproximar a obra da escritora lésbica Cassandra Del Rio ao processo
de montagem de um espetáculo de teatro de animação.
Maria de Fátima de Souza Moretti, juntamente com sua bolsista PIBIC Larissa
Christina Siedschlatg, elaboram o relato sobre o espetáculo E.N.T.R.E., que realizou

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apresentações durante o evento, com foco na adaptação da performance em diferentes
espaços públicos e na recepção do público presente.
Os sete artigos que compõem este documento reafirmam a pluralidade de pesquisas na
linguagem do teatro de animação e contribuem efetivamente para alcançar os resultados
que se almejam desde a primeira edição do evento: a difusão do conhecimento a partir de
pesquisas teóricas e práticas oriundas de muitas partes do Brasil e do mundo.

Boa leitura!

Comissão Científica do Colóquio Internacional FITA

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DAS MARGENS DO RIO NEGRO À CENA DE MAMULENGOS

Márcio Silveira dos Santos1


Resumo
O presente trabalho retrata o caminho percorrido por um pedaço de madeira, enquanto
objeto/matéria orgânica sem vida, encontrado e recolhido nas margens do Rio Negro, na
Cidade de Manaus, no Estado do Amazonas, e que é transformado, ganhando formas no
teatro de Mamulengos na Cidade de Canoas, no Estado do Rio Grande do Sul, bem como a
sua ressignificação de objeto inanimado em objeto animado, das correntezas dos rios da
Amazônia ao palco dos bonecos no sul do Brasil. Partes da escrita deste trabalho foram
realizadas a partir do ponto de vista de um narrador na primeira pessoa, onde o próprio
pedaço de madeira relata suas travessias, a partir de seu ambiente natural para outro
habitat, onde é transformado pelas mãos do bonequeiro em objeto animado: um
personagem no espetáculo As Gineteadas do Valente Toninho Corre Mundo na Estância de
Cidão Dornelles.
Palavras-chave: Teatro de Animação. Mamulengo. Dramaturgia. Processos de Criação.
Grupo TIA-Teatro Ideia e Ação.

Abstract
The present paper portrays the path traveled by a piece of wood as a natural and lifeless
organic object/material, found and collected on the banks of the River Negro, in Manaus
city, Amazonas State, which is later transformed and given form at the Mamulengos
Puppet Theater, in Canoas city, Rio Grande do Sul State, and the resignification of that
inanimate object into an animated one, from the Amazon rivers currents to the stage of a
puppet theatre in the south of Brazil. Parts of the writing in this paper were done from the
point of view of a first-person narrator, the piece of wood itself that narrates its crossing
from its natural environment to another habitat, where it is transformed by a puppet
maker into an animated object: a character of the spectacle As Gineteadas do Valente
Toninho Corre Mundo na Estância de Cidão Dornelles.
Keywords: Puppet Theater. Mamulengo. Dramaturgy. Creating Processes. Grupo TIA-
Teatro Ideia e Ação.

Introdução
O presente texto é parte integrante do que venho desenvolvendo na pesquisa de
meu doutoramento em teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina, objetivando
contextualizar, descrever e analisar os procedimentos de criação de dramaturgias para o
teatro de rua, tendo como recorte quatro textos que escrevi para diferentes grupos de
teatro de rua. A saber: O Dilema do Paciente, encenado pelo Grupo Manjericão (RS), As
Gineteadas do Valente Toninho Corre Mundo na Estância de Cidão Dornelles, encenado pelo

1
Márcio Silveira dos Santos é dramaturgo, ator, diretor, professor, pesquisador teatral. Integrante do Grupo
Manjericão, de Porto Alegre – RS. Possui Licenciatura e Mestrado em artes cênicas pela UFRGS. Doutorando em
Teatro pelo Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina.

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Grupo TIA - Teatro Ideia e Ação (RS), As Aventuras do Fusca à Vela, encenado pelo Grupo
UEBA Produtos Notáveis (RS), Comédia com Farinha, encenado pelo Grupo Quem Tem
Boca é Pra Gritar (PB). Meu propósito é realizar um estudo sobre a pluralidade das
dramaturgias para o teatro de rua brasileiro, levando em consideração as múltiplas
dimensões do mesmo, numa perspectiva de reflexão crítica acerca do contexto das
políticas culturais do país.
O objetivo aqui é mostrar um pouco do processo de constituição do espetáculo de
teatro de mamulengos As Gineteadas do Valente Toninho Corre Mundo na Estância de Cidão
Dornelles, encenado pelo Grupo TIA - Teatro Ideia e Ação (RS). Minha contribuição vai
além do fato de ter escrito a dramaturgia para o grupo encenar, pude também coletar
madeiras para o espetáculo ao longo de minhas viagens pelo Brasil através do Grupo
Manjericão, do qual sou integrante. Acompanhei também, por um período, o processo de
criação da peça até sua estreia.
A ideia de colocar algumas partes da escrita neste trabalho por meio do ponto de
vista do pedaço de madeira coletado nas margens do Rio Negro, importante afluente no
Estado do Amazonas, acompanhando a transformação desta madeira até sua confecção
em boneco de mamulengos, se deu pelo fato de que na minha redação de tese desenvolvo
uma proposta que apresenta uma estrutura diferente em teses de teatro, por mesclar
ideias advindas do universo dos estudos literários2, em especifico da modalidade da
Escrita Criativa3.
Na tese proponho um trabalho que se aproxima de uma incompletude de gêneros,
ou que propõe um jogo com os gêneros literários e estruturas da escrita. Passando pelo
dramático, o acadêmico-científico, o ensaio, o artigo, o relato, a crônica, a experiência, a
narração, os fragmentos, os resíduos, as anotações, as referências, as memórias. Como um
flâneur4 da linguagem e comunicação escrita. Portanto, também torno mais lúdico e
expositivo o processo de criação dramatúrgica e de criação do espetáculo aqui em
questão. Traço aqui uma escrita neste caminho, onde há presença de uma estrutura de

2
Disponível em: < http://www.pucrs.br/humanidades/programa-de-pos-graduacao-em-letras/>.
3
A modalidade de Escrita Criativa, presente nos cursos de Letras de muitas universidades do país, investiga desde
a forma interdisciplinar a gênese de textos literários e não literários, sua relação com outras linguagens, até a
inclusão do escritor no sistema literário, apoiada em teorias críticas da literatura e em documentos de escritores
sobre seus processos de criação. Seu foco volta-se à criação literária e seus fundamentos estéticos, à crítica
genética, às relações entre literaturas e outras mídias, produção de roteiros teatrais e fílmicos e criação de textos
não literários.
4
Walter Benjamin. Baudelaire e a Modernidade, 2015.

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texto, tanto no âmbito acadêmico-científico quanto no texto dramático (pilar central da
pesquisa), por meio da narrativa do Pedaço de Madeira, sobre sua própria trajetória de
transformação de objeto à deriva (inanimado) em personagem teatral (animado). Uma
mescla interessante entre linguagens no bojo das ciências humanas.

Das margens do Rio Negro...

Figura 01: Três momentos do mesmo habitat no Rio Negro, Manaus (AM)

Fonte: SILVEIRA, Márcio. 2015

Um pedaço de madeira: - No início era tudo calmo no balançar das folhas e galhos ao
vento quente. A floresta seguia o curso de sua história, as árvores num contínuo de sua
existência: germinar, crescer, frutificar e seguir o novo ciclo. Assim se mantém até os dias
de hoje, a não ser que ocorra algum imprevisto que possa interromper esse fluxo da
natureza. Interrupções que geralmente acontecem através de derrubada das árvores, que
pode ser por ação de ser humano através das queimadas, como também derrubadas para
plantio de pasto e alimentos. Outra forma pode ser algum desvio no caminhar da natureza
ao redor, como por exemplo: desmoronamento de barrancos, enchentes avassaladoras,
ventos tempestuosos que com sua força arrancam florestas inteiras do solo arenoso típico
da região amazônica, deixando rastros em quilômetros de destruição. Em situações assim,
muitas árvores morrem e poucas sobrevivem na persistência de brotar novamente.
Algumas árvores derrubadas são reutilizadas ou destruídas pelo ser humano. Mas a vida
é feita de surpresas e no meu caso, um simples pedaço de madeira, tive uma segunda
chance, ou talvez possa dizer que sigo revivendo, renascendo toda vez que o mestre

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mamulengueiro me pega na mala e bota boneco pra brincar na empanada divertindo a
piazada. Vou contar a minha história até aqui, por meio da minha narrativa e com a ajuda
do Márcio Silveira. Sim, ele mesmo, o artista que me resgatou da margem do Rio Negro e
me levou pra andar de avião atravessando as regiões do Brasil até chegar ao sul do país,
onde passei a integrar uma trupe de artistas de rua. O Grupo TIA – Teatro Ideia e Ação, da
Cidade de Canoas, no Estado frio do Rio Grande do Sul, pois de onde venho frio é algo que
aparece uma vez na vida e meio fraquinho. Lá onde eu nasci, no meio da floresta, muita
coisa pode acontecer, mas frio como esse do sul é bem difícil, viu! Eu estava à deriva,
depois que me tiraram da mata eu perdi a memória, não consigo me lembrar até hoje o
que me aconteceu depois que eu caí da árvore.

Figuras 02 e 03: Ribeirinhos e residências no Rio Negro, AM.

Fonte: SILVEIRA, Márcio. 2015

Posso ter sido um pedaço de uma canoa, de uma casa flutuante, de um trapiche, ou
posso ter caído nas águas do Rio Negro e ficado a ver navios por muito tempo. Depois, só
me recordo do dia ensolarado em que cheguei perto da areia quentinha de Manaus e o
Márcio me resgatou. Foi bem assim como estou te dizendo, quando eu olhei pra ele tive a
impressão de que ele já estava me olhando fazia tempo, só esperando que eu chegasse
mais perto e me esticasse na água até a mão dele, que me pegou com carinho e atenção.
Falou comigo e disse que a gente ia viajar, ou melhor, que a minha vida seria de muitas
viagens a partir daquele dia. Ah! Aviso você que está lendo esse texto que eu vou e volto,
tá? De vez em quando eu chego aqui pra contar um pouco de como me senti nesta
aventura. Inté.

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... à cena de mamulengos
O Grupo TIA - Teatro Ideia e Ação, em uma década e meia de trabalho ininterrupto,
procura manter os pés fincados no teatro popular comunitário, com trabalhos de
palhaçaria, bonecos e Cenopoesia – cuja linguagem cênica e poética foi desenvolvida pelo
escambista Ray Lima. Com o espetáculo As Gineteadas do Valente Toninho Corre Mundo na
Estância de Cidão Dornelles, considerada pelo grupo uma nova denominação: “mamulengo
gaúcho”, o grupo ganhou projeção nacional e tem circulado com frequência pelo Brasil e
por países do MERCOSUL. Destaco o trabalho que desenvolve nas comunidades em
situação de risco na Cidade de Canoas (RS), onde promove oficinas, formação de plateias
e temporadas de grupos que passam por sua sede, localizada no centro da comunidade,
na Praça da Juventude, no bairro Guajuviras, o mais populoso da cidade. O grupo me
convidou para escrever uma peça calcada na linguagem do mamulengo, típica do Nordeste
brasileiro, a ser transposta para a cultura do Rio Grande do Sul. A imagem que me veio foi
a de que quisessem transpor as águas do rio São Francisco para o Lago-Rio Guaíba que
banha as cidades de Porto Alegre e Canoas. Proposta feita, desafio aceito.
O espetáculo teve sua estreia na transição de 2013 para 2014, como parte do
projeto "Mamulengo como via de reflexão social", contemplado na 1ª edição do Prêmio
Empreendedor Cultural, que o grupo desenvolveu junto a uma equipe constituída de
profissionais de várias partes do Brasil. A direção ficou a cargo do pernambucano Danilo
“Canhotinho” Cavalcante, uma das referências de uma safra de mamulengueiros que
saíram do nordeste há décadas e espraiaram a técnica de botar bonecos pelo resto do país.
A parte musical, orquestrada por Fernanda Beppler, transformou a atriz Mariana Abreu
numa espécie de Mateus, personagem-músico que enquanto toca também faz contraponto
de diálogo com os bonecos. O ator Marcelo Militão é quem dá vida-manipula, é o
bonequeiro-alma-voz dos bonecos. A estética visual do trabalho, os bonecos e a empanada
passaram pelas mãos de Renan Leandro. Como o projeto prima pela fusão de culturas do
Brasil, principalmente das culturas gaúchas e nordestinas, na construção dos bonecos
foram utilizadas madeiras de vários estados brasileiros como o Mulungu, Cedrinho, Pinus,
Ingá, Canela, Castanheira e Cumaru.

Dramaturgia para mamulengo gaúcho


No teatro de mamulengos a grande maioria dos seus fazedores diz que não é
preciso um texto escrito, preferem manter a vertente inicial da “brincadeira” (como

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chamam o ato de apresentar), calcada no improviso. Um dos mais famosos
mamulengueiros, o Severino Alves Dias, conhecido como o Doutor Babau (o personagem
Babau também era uma figura totêmica do bumba-meu-boi), trabalhou em Recife por
muitos anos e exerceu muita influência sobre os bonequeiros que vieram depois dele.
Segundo Hermilo Borba Filho, Babau possuía uma capacidade inventiva das mais
poderosas, tanto no criar bonecos, pois possuía em torno de setenta bonecos, como na
capacidade do improviso.
Todos os grandes mamulengueiros em atividade nos dias de hoje, tais como:
Mestre Zé de Vina, Mestre Gilberto Calungueiro, Meste Saúba, Mestre Zé Lopes, Mestre
Augusto Bonequeiro, Mestre Valdeck de Garanhuns, Mestre Danilo “Canhotinho”
Cavalcante, dentre outros, possuem um roteiro “na cabeça” onde uma história
desencadeia a outra e mais outra, ou uma sequencia de quadros dramatúrgicos que se
estruturam a partir do tipo de personagem botado na brincadeira, quase tudo inventado
na hora. Buscam situações baseadas no cotidiano do povo, no cordel, nas histórias do
sertão, etc. Também variam conforme as circunstâncias e de acordo com a reação do
público. O que lembra, muito, os personagens e encenações dos artistas da Commedia
dell’arte italiana. Sobre a questão dramatúrgica dos mamulengueiros e mamulengueiras,
o pesquisador Felisberto Sabino da Costa nos diz que:

O conhecimento dramatúrgico não é fruto de um aprendizado sistemático, dá-se por


intuição, no ofício artístico, em pesquisas individuais e em ateliês e oficinas. Neste
sentido, a participação em festivais e as viagens são verdadeiros celeiros de
aprendizagem [...] o bonequeiro apreende de forma não sistematizada, em contato com
outros artistas, mediante a observação e a experimentação. (COSTA, 2016, p. 323).

Trabalhei por meses no texto, a partir das poucas dramaturgias para mamulengo
publicadas, e compreendi melhor a estrutura que tem por base a palavra. Tanto nas obras
teóricas de Hermilo Borba Filho como nas de Fernando Augusto, os textos teatrais eram
transcritos propositalmente como haviam sido gravados na época: ao vivo, em fitas
cassetes. Ou seja, há ali os erros de português, concordâncias, acentuações, etc, que
transformam a dramaturgia em um verdadeiro tesouro de pesquisa linguística. Mantendo
o texto como dito na fala coloquial-original, os pesquisadores permitiram que tivéssemos,
nos dias de hoje, uma noção muito próxima de como eram as apresentações, as
dramaturgias, as fontes, as características de cada mamulengueiro e seu universo
peculiar.
É possível perceber que nas manifestações mais tradicionais do teatro de bonecos,
como o Mamulengo, a dramaturgia desse tipo de teatro se baseia na palavra. Pode-se

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afirmar que é um teatro de texto, mas com a peculiaridade de tratar-se de um teatro
onde a palavra sustenta o jogo, sem com isso abdicar das ações próprias da linguagem
do boneco. [...] Os diálogos presentes nos textos de teatro de bonecos fazem impulsionar
a ação. Não são diálogos ou monólogos que se encaminham na direção de
questionamentos psicológicos ou existenciais. (BELTRAME, 1997, p. 79).

Partindo da ideia de que a palavra sustenta o jogo, a estrutura em quadros, cenas


ou “passagens” como dizem alguns mamulengueiros (passagens: de pretexto, narrativas,
de briga, de danças e de peças ou tramas), que vai além do diálogo dos bonecos com os
músicos, com Mateus, com o próprio manipulador e com o público, pude estruturar uma
dramaturgia coesa com nossas especificidades gaúchas perfazendo uma “transcriação
poética”. (CAMPOS, 2011).

Figuras 04 e 05: Transformação da madeira em boneco

Fonte: ABREU, Mariana e SILVEIRA, Márcio. 2015

Nas referências dos animais, ressaltei a Cobra M’boitatá, uma das mais conhecidas
lendas do sul. Ainda das lendas, utilizei a lenda do Mbororé, sobre o espírito de um índio
velho missioneiro que amaldiçoado guarda um tesouro jesuíta dentro de uma casa sem
portas e janelas, criando assim uma atmosfera de desafio à coragem dos pretendentes à
mão da filha do estancieiro Cidão Dornelles, um típico dono de fazenda. Há o personagem
titulo da obra, um esperto-malandro-arlequinesco como o “Ginete” Toninho Corre mundo,
um domador de cavalo, peão de estância, teatino dos campos e cidades, de estrutura
semelhante ao Benedito ou Bastião e a tantos outros no mamulengo. Enfim, foi possível

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uma fusão da cultura nordestina com a cultura gaúcha através de um teatro de bonecos
que ainda há de gerar muitos frutos e pesquisas.

Figura 06: Toninho e o fantasma Figura 07: Toninho e o diabo


De MBororé

Fonte: SILVEIRA, Márcio. 2015 Fonte: SILVEIRA, Márcio. 2015

A transfiguração
O universo do mamulengo é pura transfiguração. Convida o espectador para entrar
nesse universo imaginário, onde tudo é apenas sugerido. Os bonecos possuem, na
verdade, metade do corpo que, na extensão da mão do bonequeiro, é animado. Na grande
maioria das vezes, em suas características faciais, eles não possuem abertura de boca, e
suas falas são entrecortadas, sumárias. Aliás, na peça As Gineteadas do Valente Toninho
Corre Mundo na Estância de Cidão Dornelles, a equipe liderada por Renan Leandro
conseguiu um ótimo efeito nos traços esculpidos na madeira.
O público entra na brincadeira para poder acompanhar o que se lhe apresenta. Os
animais têm papeis fundamentais no mamulengo. A cobra, por exemplo, é a primeira que
representa o espirito do mal, engolindo os personagens e tudo mais com sua bocarra.
Como no caso da Cobra M’boitatá, parte da lenda gaúcha, que engole todos os demais
personagens da peça e outros objetos que não estavam no contexto, mas que fazem

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referência aos dias de hoje, pois é retirado de um boneco de pelúcia da “galinha
pintadinha” cinco vezes maior que a Cobra M’boitatá.

Figura 08: Toninho e a Cobra M’boitatá

Fonte: SILVEIRA, Márcio. 2015

Algum espectador desavisado pensará que colocar uma “galinha pintadinha”


dentro da estrutura da peça seja algo que destoa, mas há aqui uma quebra
interessantíssima, que causa estranhamento. O grupo nos leva ao universo fronteiriço
entre duas culturas populares muito distantes territorialmente e ao mesmo tempo tão
cheias de semelhanças (a colonização portuguesa que o diga). Então, se pensarmos do
ponto de vista de significado, entenderemos que a ruptura proposital é fruto da mais fina
ironia. Aqui o dramaturgo entra em sintonia com o que acreditava Eric Bentley (1991) na
busca de um “dramaturgo como pensador do seu tempo”, mostrando ao público atual
(dito pós-moderno, contemporâneo, virtual, etc) um boneco de pelúcia “pop” perecível e
passageiro nos dias de hoje, em contraponto ao boneco de madeira “popular” resistente
as intempéries, as proibições e aos modismos, há séculos.
Uma das características que perpetua a arte do teatro de mamulengos é a simbiose
do homem com o boneco. “A matéria do homem se junta à matéria do boneco para uma
transfiguração. A alma do homem dá ao boneco também uma alma e, nesta pureza,
realizam um ato poético.” (FILHO, 2007, p. 100). O mesmo para o público, pois havendo

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também a comunhão do espectador com a brincadeira poética dos mamulengos, pode-se
assim ter uma transfiguração lúdica e divertida. E, em especial, nesta cena da Cobra
M’boitatá, onde nosso herói Toninho Corre Mundo aniquila a temível M’boitatá e o público
vai ao delírio.

Vertentes históricas
Há muitas versões para o surgimento do mamulengo e de onde vem esta
denominação. Alguns historiadores traçam linhas do tempo desde a vinda dos imigrantes
europeus, pois os bonecos estavam em alta na Europa no período das grandes navegações.
Outros remetem a “animação” dos bonecos do presépio do nascimento de Cristo, e a
utilização deste recurso pela Igreja para doutrinar fieis através da representação de autos
litúrgicos. Um dos grandes, senão o maior pesquisador desse assunto, o pernambucano
Hermilo Borba Filho, traçou algumas hipóteses durante suas pesquisas em meados do
século XX. O pesquisador foi direto na fonte, ainda estavam vivos muitos dos grandes
mestres mamulengueiros, que hoje são referências históricas na constituição do universo
dos mamulengos. Praticamente os criadores, ou aperfeiçoadores, da brincadeira de “bota
boneco”.
Uma das hipóteses parte do personagem Mané Gostoso, um boneco desengonçado
que exibe “movimentos nas pernas e braços, que se agitam por meio de cordões”. É um
personagem do Bumba-meu-boi que, por haver inter-relação com os divertimentos
populares, tornou-se personagem do teatro de bonecos e por isso ainda hoje, em algumas
regiões do Brasil, a brincadeira de mamulengo é chamada de Mané Gostoso.

É possível que a palavra mamulengo tenha vindo do nome de Mané Gostoso: Mamu,
diminutivo de Manuel, com a substituição do n pelo m para torna-lo mais brando, mais
ao jeito da própria figura, juntando-se ao sufixo lengo, de lengo-lengo, corruptela de
lenga-lenga, expressão onomatopaica do barulho monótono que faz o boneco ao ser
movido por um movimento da mão, dando cambalhotas, ficando de cabeça pra baixo,
com uma perna atrás da orelha, etc. (FILHO, 1987, p.69).

O Mamulengo não era o divertimento, mas sim o nome do boneco, que por extensão
deu o nome ao jogo, a brincadeira de Mamulengos. Outra hipótese levantada por Hermilo
Borba Filho:

Há muito tempo atrás ouvi também referência ao mamulengo como sendo “a


brincadeira do molengo”. – “Vamos ver a brincadeira do molengo?” – José Petronilo
Dutra, mamulengueiros em Surubim, com quase setenta anos de idade, me confirmou
essa designação, ouvida na sua infância. A palavra mamulengo, então, viria da palavra

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molengo. Houve uma reduplicação (mo) e uma dissimilação (ma) da primeira sílaba, o
u substituindo o o, por eufonia, na palavra molengo, embora alguns autores ainda
escrevam a palavra assim: mamolengo. O uso do plural, em certos autores, indica ainda
mais claramente que se trata de nome de bonecos que, depois, batizaram o espetáculo.
(FILHO, 2007, p. 69 - 73).

Ou como cita Ângela Escudeiro: “O molengo, momolengo, mamolengo, mamulengo


vem de mão mole, molenga, típico do nordeste brasileiro. É o “boneco brasileiro” surgido
em Pernambuco com características bem regionais.” (ESCUDEIRO, 2007, p.19).
Entre os personagens-bonecos de destaque nos mamulengos há o Diabo, que não
poderia faltar (é figura indispensável nas peças de mamulengos, reminiscência dos autos
litúrgicos). Ele chega sempre com pompa de maioral. No espetáculo do Grupo TIA ele
possui as guampas (ou aspas) feitas de parafusos, lembrando a tenacidade e frieza do
metal. Toninho, após o susto diante do cruz-credo-que-coisa-feia, dá-lhe umas bordoadas.
É importante frisar que o ato de bater, no universo do mamulengo, deriva de muitas
tradições de representação do suplicio do ser humano. Remete, entre outras questões, aos
escravos que apanhavam sem poder se defender e que através da brincadeira dos bonecos
poderiam buscar alguma espécie de sublimação.

Ator-animador-manipulador
Marcelo Militão, ator-palhaço e bonequeiro, encarou o desafio de manipular uma
dezena de bonecos na peça, tarefa árdua tanto na questão do ritmo como também no
trabalho físico, pois demanda preparação ou estar com a estrutura corporal em dia para
tal trabalho. É impressionante a exigência física do teatro de bonecos para com o ator-
manipulador. Vejamos a parte principal, a mão:

A possibilidade de movimentos da mão só se compara à dos olhos. Ferramenta das


ferramentas, nas palavras de Aristóteles, a mão estrutura-se em vinte e sete ossos,
constituindo um sistema articulatório extremamente refinado. A mão constitui-se de
oito ossos no punho; cinco ossos metacarpianos (que ficam na região da palma) e
catorze falanges (ossos dos dedos). Tem-se 17 músculos intrínsecos (que começam na
mão), que possibilitam movimentos finos e os posicionamentos da mão; e 21
extrínsecos (que começam no braço) responsáveis pelos movimentos de força e tração.
(COSTA, 2008, p. 15-16).

Militão acompanha o insano ritmo que os mamulengos pedem. Há sempre um tempo


“X” no ritmo de cada história, em cada “entrada” de bonecos na brincadeira. Quando
Toninho Corre Mundo entra em cena, Militão consegue dar vida e alma ao personagem
principal como braseiro em dia de fogueira junina. O mesmo para cenas entre
personagens masculinos e femininos. Nota-se que está pegando o ritmo das falas, e não é

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à toa, pois seu diretor Danilo “Canhotinho” é hoje um dos mestres em tipos e modulações
de vozes bonequeiras. O bonequeiro tem mão precisa na manipulação das figuras
fantásticas como a cobra e o diabo, mantem os olhos dos bonecos como se nos olhos do
espectador.

É comum ouvir de atores-animadores que “o boneco olha com a cabeça e não apenas
com o olho”. O olhar adquire importância fundamental quando o boneco, antes do início
de determinadas ações, olha para o ponto exato de deslocamento. A precisão do seu
olhar indica ao espectador o que deve ser observado. Isso exige um amplo e definido
movimento de cabeça, para dar a clara sensação de que o boneco olha. (BELTRAME,
2008, p. 29).

Outro fator vital na encenação de mamulengos é a simbiose do manipulador com o


boneco. Nesta tríade “magia-energia-simbiose” preconizada por Ana Maria Amaral, sobre
a massa e a matéria que resignifica o objeto sem vida em boneco ativo, ela nos diz:

O homem primitivo acreditava que em todas as coisas, mesmo as inanimadas, existiam


seres vivos, animados, que provocavam o fenômeno da vida. [...] nossa concepção de
alma. [...] sua ausência permanente seria a morte. Ausências temporárias podiam
acontecer, sem causar-lhe mal. Saíam ou entravam no corpo através dos orifícios.
(AMARAL,1997, p. 86).

O Grupo consegue através da manipulação de Militão esta simbiose, traçando novo


patamar de (r)existência do objeto transposto à cena viva e latente diante do público.
Pedaço de madeira: - Pessoal, voltei! Pra encerrar, por que o espaço e tempo tá pequeno
nesta vida pra gente ficar parado lendo. A minha história no mamulengo ficou assim ó:
Nesta história você verá as aventuras e peripécias do aventureiro gaudério Toninho Corre
Mundo, que certo dia inventou de se espraiar pro sul do sul e se aprumar num emprego
de ginete domador de cavalo xucro, lá na estância de Seu Cidão Dornelles. Mas os fatos
despencam pra outras aventuras: tem assombração, Cobra Grande, Diabo, muito
suspense, humor e, claro, uma pitada de romance, que é pra arrancar um friozinho na
barriga. Então, pra finalizar convido a todos e todas pra cantarem comigo esta linda
canção. E até a próxima. Fui!

Flor do Mamulengo
(Luís Fidélis-Juazeiro do Norte-CE)

Eu sou a flor de mamulengo / Me apaixonei por um boneco


E ele “neco” de se apaixonar/ “Neco” de se apaixonar (bis)/ E ele “neco”
Já estou com os nervos a flor do pano/ De desengano vou ter um treco

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E ele “neco” de se apaixonar/ “Neco” de se apaixonar (bis)/ E ele “neco”
(Refrão)
Se no teatro eu não te atar/ Boneco eu juro vou me esfarrapar,
Eu não consigo viver sem teu dengo/ meu mamulengo (bis)
E ele “neco” de se apaixonar/ “Neco” de se apaixonar (bis)/ E ele “neco”
(Refrão)

REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. Teatro de Animação. Ateliê Editorial: SP, 1997.

BELTRAME, Valmor Níni. Princípios técnicos do trabalho do ator-animador. (In) Teatro de


Bonecos: Distintos Olhares sobre Teoria e Prática. Valmor Níni Beltrame, Org. Florianópolis:
UDESC, 2008.

___________. A Dramaturgia do teatro de bonecos para crianças. (in) Continente Sul Sur, Nº 5 –
Revista do Instituto Estadual do Livro. Porto Alegre: 1997.

BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a Modernidade. Tradução João Barrento. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador – um estudo da dramaturgia nos


tempos modernos. Tradução de Ana Zelma Campos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.

ESCUDEIRO, Ângela Maria. Cassimiro Coco de Cada Dia – Botando Boneco no Ceará.
Fortaleza: IMEPH, 2007.

CAMPOS, Haroldo de. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora.


Belo Horizonte: FALE/UFMG – Laboratório de edição, 2011.

COSTA, Felisberto Sabino da. A Poética do Ser e não Ser: Procedimentos


Dramatúrgicos do Teatro de Animação. EDUSP: SP, 2016.

_______. Algumas PALAVRAS sobre a arte da manipulação (ou animação) ou conforme os


desideratos de cada qual. (In) Teatro de Bonecos: Distintos Olhares sobre Teoria e
Prática. Vamor Níni Beltrame, Org. Florianópolis: UDESC, 2008.

FILHO, Hermilo Borba. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. – 2ª ed. – Rio de janeiro:


INACEN, 1987.

______. Espetáculos Populares do Nordeste. – 2ª ed. - Recife: Fundação Joaquim


Nabuco, Ed. Massangana, 2007.

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CHIKAMATSU MONZAEMON: É O DRAMA QUE SE ADAPTA AO
ATOR, OU O CONTRÁRIO?

Paulo Ricardo Berton1


Resumo
Esta comunicação explora as possíveis razões de Chikamatsu Monzaemon (1653-1725),
célebre autor dramático japonês, que escrevia tanto para o teatro de bonecos (Bunraku)
como para o teatro de atores (Kabuki), ter variado a sua dedicação a estes dois gêneros ao
longo da sua trajetória literário-teatral, a partir de considerações a respeito da arte da
atuação de H. von Kleist, M. Maeterlinck e G. Craig.

Palavras-chave: Escrita Dramática. Teatro de Bonecos. Teatro de Atores. Atuação


Teatral.

Abstract
This paper explores the possible reasons why Chikamatsu Monzaemon (1653-1725), an
illustrious Japanese playwright who wrote for both the puppet theater (Bunraku) and the
actor’s theatre (Kabuki), has varied his dedication to these two genres along his literary-
theatrical trajectory, from considerations about the art of acting by H. von Kleist, M.
Maeterlinck and G. Craig.

Keywords: Dramatic Writing. Puppet Theater. Actor’s Theatre. Theatre Acting.

“A Arte existe no limite tênue entre a realidade e a ilusão”.


(Chikamatsu Monzaemon)

O teatro asiático se apresenta sempre como um desafio para o ocidente.


Começando pelo crítico teatral estadunidense John Gassner, que já se justifica ao se
arriscar a traduzir as formas dramáticas japonesas para o seu leitor em poucos
parágrafos: “Para usar da mais extrema economia ao iniciar o leitor ocidental em suas
colossais complexidades” (Gassner, 1991). Este desafio, ou conforme Gassner, estas
complexidades, no entanto, se revestem de fascínio, no momento em que se toma contato

1
Professor PhD Adjunto IV da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), P.R.Berton é dramaturgo, diretor
de teatro e professor. Possui graduação em direção teatral/UFRGS (1999) e mestrado em teoria literária/PUCRS
(2007). De 2007 a 2010, viveu nos EUA, onde recebeu o diploma de PhD em teatro pela University of Colorado
at Boulder - bolsista de doutorado integral pela CAPES/Fulbright. Coordena o NEEDRAM – Núcleo de Estudos
em Encenação e Escrita Dramática, que organiza o SBEDR (Seminário Brasileiro de Escrita Dramática) e a
companhia teatral Miletrê. Atualmente leciona teoria teatral, encenação teatral e escrita dramática no curso de
Artes Cênicas da UFSC, e é docente do curso de pós-graduação em Literatura (PPGLit) da UFSC.

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com este teatro nascido de contextos sociais e convenções culturais tão próprias. Nomes
de peso e funções diferentes, no processo de uma composição cênica na tradição teatral
ocidental, entre eles Yeats, Brecht, Claudel, Stanislavski e Meyerhold, reconhecem a
influência desta tradição asiática em suas ideias e trabalhos. As peculiaridades são muitas.
Nesta comunicação iremos tratar especificamente de um dramaturgo célebre do período
Edo, fase da história do Japão sob a égide do clã Tokugawa que se estende de 1603 a 1868:
Chikamatsu Monzaemon (1653-1724). Além da qualidade notória de suas peças, ele se
dedicou a duas formas teatrais aparentemente opostas: o Kabuki, que era representado
por atores humanos, e o Bunraku, um teatro de bonecos, ou seja, representado por objetos
animados. Na sequência, vamos tratar de pensadores teatrais do ocidente que
problematizavam esta oposição, argumentando que os atores animados seriam mais
eficientes na transmissão de ideias e de sentimentos do que suas versões de carne e osso.
Antes de mais nada, é importante contextualizar o surgimento de Monzaemon e
dos gêneros para os quais ele escrevia seus textos dramáticos.
O período histórico que antecede a subida ao poder dos Tokugawa equivaleria à
Idade Média do Ocidente. Dentro de uma hierarquia social muito rígida, num ambiente
encharcado de religiosidade, iria surgir uma forma teatral palaciana e elitista conhecida
como Noh. Este gênero foi desenvolvido primeiramente por Kan’ami (1333-1384) e
posterioremente pelo seu filho Zeami (1363-1443). O pai foi o responsável por fundar o
gênero, mesclando elementos do Sarugaku-noh, uma forma popular que apresentava
espetáculos de variedades através de formas como o kuse – uma canção narrativa popular
da época – e como o mai – uma dança rítmica. Importante ressaltar que as trupes de
Sarugaku-noh já eram convidadas para se apresentar em templos budistas e santuários
xintoístas, as duas principais religiões do Japão. Com o advento do Noh, como um gênero
específico, as trupes passaram a ocupar prédios religiosos particulares, como por exemplo
o santuário Kanzen-za em Nara, ‘sede’ da trupe de Kan’ami e Zeami. Além do ritmo lento
característico do Noh, as tramas consistiam em monodramas nos quais: “o evento crucial
na vida do protagonista (o papel do shite, ou fazedor), frequentemente o espírito em luto
de uma pessoa morta, era lembrado e reencenado numa cena de kuse-mai” (Brandon,
1993, p.145, tradução nossa).2

2
The crucial event in the life of a chief character (the shite, or Doer, role), often the grieving spirit of a dead
person, was remembered and re-enacted in a kuse-mai scene.

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O povo propriamente dito ficava excluído destas apresentações. Por outro lado,
esta era uma estética que não os interessava, pelo seu caráter contemplativo e metafísico.
Esta lacuna estética seria preenchida com o surgimento de duas novas formas teatrais,
que a exemplo do Noh, é o produto da junção de diferentes gêneros anteriores: o Bunraku
e o Kabuki. Além de oferecerem um realismo ausente no Noh, um tom melodramático ao
gosto das classes urbanas populares e elementos cênicos e de atuação sensacionais, estas
novas formas teatrais serão estimuladas pela ascensão da burguesia com a chegada do
período Edo, pela urbanização crescente das grandes cidades como Kyoto, Osaka e Tokyo
(que na época se chamava Edo, por ser a sede do palácio do clã Tokugawa), e pela busca
por uma arte que falasse diretamente aos comerciantes e trabalhadores em geral.

Os profissionais e comerciais Kabuki e Bunraku são produtos de uma sociedade


mercantil, inquieta e assertiva que floresceu nas grandes cidades de Kyoto, Osaka
e Edo (Tokyo) sob o governo xenofóbico de uma sequência de Shoguns Tokugawa
(1603-1868). Trupes dos dois gêneros competiam pelo mesmo público. Eles se
apresentavam em teatros que ficavam lado a lado e por décadas eles pegaram
emprestados elementos cênicos e textos dramáticos um do outro. Semelhantes
em certos aspectos, no entanto estes gêneros se desenvolveram a partir de
diferentes antecedentes e tinham objetivos artísticos bem diferentes
(BRANDON, 1993, p.147, tradução nossa).3

Este intercâmbio estético que se dava entre os dois gêneros vai acabar se refletindo
na própria escrita dramática de Monzaemon. No entanto, antes de tratarmos da obra deste
dramaturgo, vamos nos deter nas formas teatrais Kabuki e Bunraku, a fim de verificar as
semelhanças e especificidades mencionadas por Brandon na citação acima.
A origem do Kabuki está na apresentação de formas seculares de danças religiosas
(ennen) e folclóricas (odori) por parte de trupes itinerantes de atores. Quando a dançarina
Okumi resolve estabelecer um palco fixo no santuário de Kitano, e mais tarde no leito seco
do rio Kami, nos quais ela apresentava esquetes sobre a vida contemporânea à frente de
telas pintadas, o gênero se afirma como um entretenimento de caráter popular. A
princípio interpretada por prostitutas e depois por prostitutos, a sanção Tokugawa para
a prática de duas profissões, deu lugar a grupos profissionais de atores homens mais
velhos, o que contribuiu de forma decisiva para o sucesso do Kabuki.

3
Professional, commercial Kabuki and Bunraku are products of a restless, assertive, mercantile Society that
flourished in the great cities of Kyoto, Osaka and Edo (Tokyo) under the xenophobic rule of successive Tokugawa
Shoguns (1603-1868). Troupes of the two genres competed for the same audiences. They performed in theatres
side by side and over the decades they borrowed each others’ successful plays. Alike in certain ways, nonetheless
they evolved out of different antecedents and they attempt mutually distinct artistic aims.

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O outro gênero que surge com o período Edo e a urbanização veloz do Japão, o
Bunraku, possui diferentes fontes. Os bonecos já estavam presentes tanto nos rituais
xamânicos em que estes eram destruídos com um propósito simbólico de purificação,
quanto nas trupes itinerantes vindas da Coreia e da China. A música vem de um alaúde de
três cordas chamado shamisen. A função da narração, elemento tradicional da cultura
japonesa, era assumida pelo tayu, que cantava, recitava e entoava o texto. A presença dos
manipuladores em cena é posterior à presença do músico e do narrador. O fascínio do
público para com a complexa técnica da manipulação dos bonecos fez com que estes
passassem a ser visíveis pelo público.
Com o tempo, os dois gêneros abocanharam o público mais popular, ou seja, todos
aqueles que não pertenciam à aristocracia. Palcos móveis, o uso de água e lama em cena e
o elemento psicológico crescente nas tramas tornaram o Bunraku e o Kabuki as formas
teatrais preferidas do público japonês urbano.
Diferentemente do Noh, cujas convenções eram rígidas, estas formas teatrais do
período Edo eram bastante flexíveis, e além de usar os temas do momento em seus textos
e encenações, se apropriavam daquilo que funcionava num ou no outro gênero.
O Bunraku copiou a estrutura dramática mais coerente do Kabuki, a narração em
primeira pessoa e os movimentos mais naturalistas dos seus intérpretes. O Kabuki, por
sua vez: “técnicas de movimentação de bonecos, a música gidayu4 e narrações em terceira
pessoa” (BRANDON, 1993, p.149, tradução nossa).5
Curiosamente o Kabuki, que é interpretado por atores humanos, se tornou ao final
deste processo de mútua influência mais convencionado, enquanto que o Bunraku, no qual
o protagonismo é dos seres animados, no caso os bonecos, adquiriu características mais
realistas. Isto deu margem neste trabalho às reflexões dos pensadores teatrais que serão
tratadas na parte final deste artigo.
Será neste ambiente de trocas estéticas entre o Kabuki e o Bunraku que irá
florescer a escrita dramática de Chikamatsu Monzaemon.
Donald Keene, que traduziu quatro peças deste autor japonês para o inglês, em sua
introdução afirma que:

Eu escolho Chikamatsu porque ele é o maior escritor dramático deste período


Tokugawa, provavelmente da literatura japonesa – e é ali que a atividade literária
acontece nesse período. Chikamatsu chega por vezes a ser chamado de “O

4
Termo ligado a Takemoto Gidayu, tayu que estabeleceu a música-padrão do Bunraku que se mantém até hoje.
5
Puppet movement techniques, gidayu music and third-person narrations.

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Shakespeare Japonês” [...] e, assim como Shakespeare é a quintessência do
Elizabetano, Chikamatsu pode ser considerado como a quintessência do período
Genroku6 (1688-1703) (KEENE, 1961, tradução nossa).7

Chikamatsu Monzaemon nasceu numa família de samurais e tendo servido várias


casas nobres, depois de seu pai, um médico, ter perdido o status concedido a doutores que
serviam os daimyos, e tendo se tornado um samurai sem um senhor (ronin), adquiriu
educação e cultura repletas de referências artísticas e literárias. A habilidade com que ele
constrói as suas extensas tramas e a beleza de suas tramas passionais atestam para esta
formação privilegiada.

As passagens narrativas de Chikamatsu contêm seções de grande beleza verbal,


especialmente as cenas de viagem dos amantes (michiyuki). Ele usava técnicas
verbais de aliteração (kakekotoba, ‘palavras-pivô’) – nas quais uma palavra dá
um determinado sentido para a frase precedente e um outro sentido para a frase
seguinte – e palavras aparentadas entre si (engo), como, por exemplo, neblina,
chuva, orvalho e umidade que expressam imagens aparentadas de erotismo
(BRANDON, 1993, p.160-1, tradução nossa).8

Suas temáticas replicavam os gostos da sociedade Tokugawa através das famosas


histórias de amor que culminavam num duplo suicídio (shinjumono). Pode-se classificar
o gênero da maioria dos seus textos dramáticos como ‘realismo doméstico’, antecipando
uma escola estética ocidental que viria acontecer apenas duzentos e cinquenta anos mais
tarde.
O mais curioso em relação a Monzaemon está no fato de ele ter escrito tanto para
o Kabuki quanto para o Bunraku, antes destes gêneros se autoinfluenciarem. Sua primeira
obra dramática seria escrita para o Bunraku: Os Herdeiros de Soga (1683). Entre 1684 e
1695 ele transitou entre os dois gêneros, sendo que as peças para Kabuki eram escritas
para um renomado ator da época, Sakata Tojuro. Entre 1695 e 1705 ele se dedicou
exclusivamente ao Kabuki. A partir de 1706, com a aposentadoria iminente de Tojuro e a
popularidade crescente do Bunraku, Monzaemon se transfere para Osaka e passa a se
dedicar ao teatro de bonecos japonês Bunraku. É deste período aquela que é considerada
pela crítica especializada senão a sua melhor peça, com certeza a mais popular: As

6
Outra denominação do período Edo ou Tokugawa.
7
I choose Chikamatsu because he is the greatest dramatist of this Tokugawa Period, probably of Japanese
literature--and that's where the literary action is in this period. Chikamatsu is even sometimes called the “Japanese
Shakespeare” [...] and, as Shakespeare is the quintessential Elizabethan, Chikamatsu may be seen as the
quintessential representative of the Genroku period (1688-1703).
8
Chikamatsu’s narrative passages contain sections of great verbal beauty, especially lovers’ travel scenes
(michiyuki). He used verbal techniques of alliteration (kakekotoba, ‘pivot words’) – in which a word contributes
one meaning to the phrase preceding and a different meaning to the frase following – and related words (engo),
as, for example, mist, rain, dew and wetness convey related images of eroticism.

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Batalhas de Koxinga (Kikusenya Kassen, 1715). Enquanto as temporadas de Bunraku
duravam apenas poucas semanas ou meses, esta peça ficou em cartaz por dezessete
meses. Aqui, Monzaemon enveredou pela história para contar a restituição de uma
dinastia chinesa através de uma personagem histórica, Koxinga. A ação está permeada por
eventos espetaculares e cheios de grand-guignol: se em dado momento uma criança é
salva ao ser retirada do ventre de sua mãe grávida e morta, noutro um tigre auxilia
Koxinga a combater os capangas do vilão e, por fim, este vilão perfura seus olhos como
um sinal para que os tártaros iniciem a invasão da China.

Figura 1 – Retrato de Chikamatsu Monzaemon e o seu testamento final

Fonte: Wikipedia. Disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Chikamatsu_Monzaemon>

Em 1703, Monzaemon escreve a sua peça de maior qualidade dramática: Os


Suicídios de Amor em Sonezaki, também para o teatro Bunraku. Esta obra se enquadra no
estilo sewamono, de caráter mais lírico e ambientação contemporânea, em oposição ao
estilo jidaimono, mais marcial e ambientado num momento histórico anterior, como
Kikusenya Kassen.
O fato de ter escrito mais de cem peças para Bunraku e apenas trinta para Kabuki
atesta sua dedicação maior para o gênero do teatro de bonecos. Outro fator que aproxima

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a escrita dele do teatro de bonecos é a chegada de Takeda Izumo para substituir Takemoto
Gidayu na administração do Takemoto-za, em Osaka. Izumo vinha de uma outra tradição
do teatro de bonecos, que usava fantoches e bonecos mecânicos (Gerstle, p.21). As
encenações passaram a mostrar uma maior teatralidade com o uso de acessórios e de
cenários mais espetaculares.
As suas ideias sobre arte em geral estão compiladas provavelmente pelo amigo
Hozumi Ikan, um mestre confucionista, no prefácio de Naniwa Miyage (1738), e
problematizam o paradoxo da arte teatral que se situa entre o real e o ficcional.

A arte existe no limite tênue entre realidade e ilusão. De fato, enquanto as


pessoas favorecem hoje em dia o realismo, o ator no palco tende a copiar o
gestual e a fala de um homem real; no entanto, um homem real alguma vez coloca
ruge ou pó de arroz no seu rosto como o ator faz? Ou, seria uma garantia de
entretenimento se um ator, considerando que um homem de verdade não usa
nenhuma maquiagem, aparecesse no palco com sua barba comprida e a cabeça
raspada? É isso que eu quero dizer com o limite tênue entre realidade e ilusão. É
ilusão, mas ao mesmo tempo não é ilusão; é realidade, mas também não é
realidade. O entretenimento está entre os dois. (UEDA, 1960, p.108, tradução
nossa).9

O que precisa ser contextualizado aqui é que o Kabuki era visto pelos japoneses
como uma arte extremamente realista, e isto incomodava Chikamatsu, que entendia que
a arte deveria estar num território intermediário entre o real e o ilusório. A menção à
barba comprida e à cabeça raspada é uma crítica a este gosto pelo realismo, mostrando
que, quando no palco, a realidade pura só afasta o espectador. E este vai ser um princípio
básico do Bunraku: o distanciamento do real. Para Chikamatsu: “a representação de uma
motivação interna, ao invés da cópia fiel de uma ação externa, é o que dá vida ao drama
assim como à história” (UEDA, 1960, p.109, tradução nossa).10 Ao mesmo tempo,
Chikamatsu entendia que a arte deveria ser uma imitação da vida e não uma simbolização
da mesma, razão pela qual ele nunca se interessou pelo teatro Noh. Por se situar num pólo
intermediário entre o realismo do Kabuki e o simbolismo extremado do Noh, que o autor
dramático japonês passou a se dedicar exclusivamente ao Bunraku. Na defesa do patético,
Monzaemon acreditava que ele deveria estar na própria ação dramática, construída no

9
Art exists in the thin margin between reality and illusion. Indeed, as the people nowadays favor realism, the
retainer on the stage tends to copy the gestures and the speeches of a real retainer; but, does a real retainer ever
puts rouge or powder on his face as an actor does? Or, would it prove entertaining if an actor, holding that a real
retainer wears no make-up, should appear on the stage with his beard growing wild and his head shaven? This is
what I mean by the thin margin between reality and illusion. It is illusion, and yet it is not illusion; it is reality, and
yet it is not reality. Entertainment lies between the two.
10
The representation of an internal motive, rather than the faithful copy of an external action, is what gives life to
drama as well as to a story.

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conflito entre o dever e a vontade subjetiva, e jamais no tom de voz do ator ou numa trama
maniqueísta e melodramática. O conflito nas suas peças sempre envolverá alguma
questão moral ligada à honra das personagens, sentimento característico da classe dos
samurais, da qual ele era originário.
Em se tratando de formas inanimadas, a ação precisava necessariamente ser
transmitida pelo texto dramático, ou seja, pelas palavras. Isto certamente empoderava o
autor, mas ao mesmo tempo garantia que os atores – neste caso os bonecos manipulados
pelos bonequeiros – não pudessem corromper as ideias contidas no texto. Para
Monzaemon:

Joruri11 se diferencia de outras formas de ficção uma vez que, por ser
primariamente ligado a bonecos, as palavras deveriam todas serem coisas vivas
nas quais a ação é o elemento mais importante. Já que o Joruri é representado em
teatros que trabalham numa competição acirrada com o Kabuki, que é a arte dos
atores vivos, o autor dramático precisa transmitir para os bonecos de madeira
animados uma variedade de emoções e conseguir, desta forma, atrair a atenção
e interesse do público. (GERSTLE, 2001, p.25, tradução nossa).12

Esta importância da palavra aliada à instabilidade física e emocional do corpo do


ator fez com que vários pensadores teatrais criassem um fascínio pela figura do ator
inanimado, nas suas mais diferentes formas. Ecoando assim a ida definitiva da escrita
dramática de Chikamatsu Monzaemon para o Bunraku, iremos abordar agora, de forma
breve, o pensamento teatral de três figuras importantes do teatro ocidental dos séculos
XIX e XX.
Heinrich von Kleist (1777-1811), é um autor dramático alemão romântico que irá
se utilizar da figura da marionete para se contrapor ao pensamento clássico hegemônico
no teatro, surgido com a parceria estética entre Schiller e Goethe. Em 1810, ele escreve
um ensaio, segundo Carlson: “notável e evocativo [...] que se antecipou ao fascínio
exercido pelos fantoches nos teóricos do drama um século depois” (1995, p.182). Seu
início é memorável, lançando a semente da curiosidade, qualidade fundamental de um
bom autor dramático:

Eu disse para ele que eu tinha ficado surpreso de tê-lo encontrado por mais de
uma vez assistindo ao teatro de marionetes, que acontecia na praça do mercado,
o qual alegrava o povo através de pequenas peças burlescas com canto e dança.

11
Outra denominação do Bunraku.
12
Joruri12 differs from other forms of fiction in that, since it is primarily concerned with puppets, the words should
all be living things in which action is the most important feature. Because joruri is performed in theatres that
operate in close competition with those of kabuki, which is the art of living actors, the author must impart to lifeless
wooden puppets a variety of emotions and attempt in this way to capture the interest of the audience.

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Ele me garantiu que a pantomima destes bonecos era uma garantia de
entretenimento, e não escondeu a opinião de que um dançarino, que quisesse se
aperfeiçoar, poderia aprender muito com os bonecos (KLEIST, 1810, p.1,
tradução nossa).13

O título desta obra é Sobre o Teatro de Marionetes. Kleist argumenta que: “uma
marionete pode dançar com uma graça impossível ao ser humano porque carece de
autoconsciência e não consegue, como um ator humano, falsificar a dança “concentrando
a alma (vis motrix) em nenhum outro ponto que não o do centro de gravidade do
movimento” (CARLSON, 1995, p.182). Kleist retoma a oposição entre atores vivos e atores
animados que caracterizou o teatro de Chikamatsu Monzaemon quando se pergunta: “E a
vantagem, que esse boneco teria sobre dançarinos vivos?” (KLEIST, 1810, p.1, tradução
nossa)14. Para Kleist: “a graciosidade dos títeres e animais decorre da sua inocência não
conspurcada pela intervenção da consciência; bem ao contrário de Schiller, que julgava
consistir a graça, em última análise, na harmonia entre natureza e espírito” (ROSENFELD,
2008, p.43). Como um bom romântico, Kleist acreditava nos extremos e desdenhava a
harmonia entre natureza e espírito, entre realidade e ideia. Assim ele defendia que:

No momento em que o homem se reflete ao espelho enganador da ‘reflexão’,


escapa-lhe a beleza imaculada do gesto. A graça pertence somente ao ser que não
possui consciência nenhuma ou ‘consciência infinita’ – à marionete, portanto, ou
ao Deus. (ROSENFELD, 2008, p.44)

O que torna a experiência humana trágica é a consciência e o intelecto. A ignorância


permite a felicidade. Kleist não chegou a escrever para o teatro de animação, como fez
Monzaemon, mas suas personagens possuem características que remetem aos seres
animados e inconscientes. Sobre Das Kättchen von Heilbronn (1808) nos diz Rosenfeld:

Catarina é antitrágica par excellence, pois é a imagem da moça ‘marionete’. Una


em si mesma, segue em estado de inconsciência sonambúlica, imperturbável, o
mandamento do seu coração amoroso. É, entre todas as figuras de Kleist, a mais
feliz: não tem consciência, só sentimentos. A doce graça da sua inocência infantil
é a própria graça divina. (ROSENFELD, 2008, p.45-6)

Outra personagem célebre de Kleist, que compartilha as características não-


conscientes com Catarina é Frederico, na peça Prinz Friedrich von Homburg (1810).

13
Ich sagte ihm, dass ich erstaunt gewesen wäre, ihn schon mehrere Mal in einem Marionettentheater zu finden,
das auf dem Markte zusammengezimmert worden war, und den Pöbel, durch kleine dramatische Burlesken, mit
Gesang und Tanz durchwebt, belustigte. Er versicherte mir, dass ihm die Pantomimik dieser Puppen viel
Vergnügen machte, und ließ nicht undeutlich merken, dass ein Tänzer, der sich ausbilden wolle, mancherlei von
ihnen lernen könne
14
Und der Vorteil, den diese Puppe vor lebendigen Tänzern voraus haben würde?

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A peça é emoldurada por duas cenas em que o príncipe se encontra em estado
sonambúlico [...]. Na cena final, Frederico, submerso no estado inconsciente das
marionetes, vê-se glorificado como vencedor, a fronte coroada de louros. Na cena
final, enquanto aguarda em estado sonambúlico a morte livremente aceita,
realiza-se a profecia do seu sonho inicial. Dir-se ia, aliás, que de fato passa grande
parte da peça num mundo onírico: não acredita nunca na execução da sentença.
Somente desperta no momento da crise, diante da sua sepultura. (ROSENFELD,
2008, p.48)

Kleist faz uso de gestuais e movimentos dos seres animados, que não possuem
consciência da sua própria existência, para combater o sonho clássico de Schiller e Goethe
na coexistência dos princípios da natureza e do espírito e adotar uma postura radical e
extremada: ou o espírito se transforma totalmente em natureza ou a natureza se
transforma totalmente em espírito. Um sonho utópico para combater a descrença na
ordem universal. Pois ao final de Prinz Friedrich von Homburg: “vence o sonho sobre a
morte” (ROSENFELD, 2008, p.49).
No início do século XX, vamos nos deparar com outro artista teatral cuja teoria será
de enorme influência para a quebra de vários paradigmas e que irá, na mesma linha de
Monzaemon e Kleist, defender os seres animados na cena.

Ontem eu fiz a seguinte pergunta para os alunos da minha escola dramática:


‘Vocês consideram a marionete natural?’ ´Não.’ Responderam em uníssono. ‘O
que!’ Respondi indignado. ‘Não é natural? Todos os seus movimentos falam com
a voz perfeita da natureza. Se uma máquina tentasse se mover imitando os seres
humanos, isso sim seria não natural. Agora pensem comigo: a marionete é mais
do que natural; ela tem estilo – e isso quer dizer, unidade de expressão; por isso
o teatro de marionetes é o verdadeiro teatro’. (CRAIG, 1983, p.26, tradução
nossa)15

Edward Gordon Craig (1872-1966) é um dos nomes mais controversos da história


do teatro. Conforme Walton:

Sua reputação hoje em dia é muito bizarra. Todos aqueles com o mínimo de
interesse pelo teatro do passado e do presente conhecem o seu nome mas a
maioria deles pelas razões equivocadas. “Ele não foi aquele cujo cenário era lindo
no papel mas assim que ele foi erguido ele desabou?” “Ele não queria se livrar do
ator em prol do boneco?” “É certo que ele foi um dos teóricos da virada do século
que escreveu muito mas nunca realizou nada. Ele ainda estava vivo em 1966?”
(WALTON, 1983, p.1-2, tradução nossa)16

15
To the pupils in my dramatic college I put the following question yesterday: ‘Do you consider the marionette
natural?’ ‘No.’ They answered with one voice. ‘What!’ I replied indignantly. ‘Not natural? All its movements
speak with the perfect voice of its nature. If a machine should try to move in imitation of human beings, that would
be unnatural. Now follow me: the marionette is more than natural; it has style – that is to say, unity of expression.;
therefore the marionette theater is the true theatre.’
16
His reputation today is an odd one. All those with even a passing interest in the theatre past and present know
his name but most of them for wrong reasons. ‘Wasn’t he the man whose scenery looked fine on paper but fell
down as soon as it was put up?’ ‘Didn´t he want to do away with the actor in favour of the puppet?’ ‘Surely he

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Num momento histórico do teatro em que a supremacia hierárquica no processo
teatral é o ator, e não mais o texto ou o encenador, é esperada uma revolta quando:

Craig condena a arte de interpretar, afirmando que ela não pode em absoluto ser
chamada de uma arte, já que o ator, sendo de carne e osso, é sempre presa de
emoção, e a emoção introduz o acidental, que é inimigo da arte (CARLSON, 1995,
p.297).

Estas ideias aparecem no artigo de 1908 intitulado The Actor and the
ÜberMarionette. Nele, Craig se apoia no teatro de animação para propor um tipo de ator
que não sucumba mais às suas emoções ordinárias, o que caracterizava o estilo de atuação
realista utilizado pelo seu padrasto, Henry Irving, e pela sua mãe, Ellen Terry. Esta reação,
que Freud taxaria de edípica, encontra sustentação teórica nos princípios simbolistas, que
rejeitam a imitação do real como princípio estético fundamental. Para Craig: “O ator, tal
como o conhecemos, ligado à natureza, deve desaparecer; em seu lugar deve vir a ‘figura
inanimada – o ÜberMarionette’, figura da visão simbolista que ‘não competirá com a vida’,
mas ‘irá além dela’, ao transe e à visão” (CARLSON, 1995, p.297). Os termos que Craig usa
enveredam pelo aspecto espiritual da arte, mas podemos afirmar que tanto ele quanto
Monzaemon, privilegiam o caráter artificial do teatro, uma arte que mesmo fazendo
sempre referência às questões do humano, não deve procurar uma mimese absoluta, mas
fugir da ilusão de realidade. O artista britânico conclui:

A gente não deveria olhar pra frente com esperança aguardando o dia que nos
trará de volta a figura, ou a criatura simbólica, feita também pela destreza do
artista, para que a gente possa novamente ganhar a ‘nobre artificialidade’ da qual
fala o velho escritor?” (CRAIG, 1983, p.86, tradução nossa).17

Por fim, corroborando a predileção dos artistas teatrais pelos atores não-vivos
apresentados até aqui neste artigo, iremos trazer para a discussão o escritor dramático
belga Maurice Maeterlinck (1862-1949). Segundo Carlson: “Como Appia e os simbolistas
em geral, ele via o interesse anterior pelo teatro pelo acidental e pelo realista como uma
barreira à expressão mais profunda” (CARLSON, 1995, p.287). Seu famoso artigo O
Trágico na Vida Cotidiana (1896), busca solucionar esta repulsa pela ilusão de realidade
na cena através do que ele conceitua como ‘teatro estático’. O ator praticamente imóvel,

was one of those theorists from the turn of the century who wrote a lot but never did anything. Was he really still
alive in 1966?
17
May we not look forward with hope to that day which shall bring back to us once more the figure, or symbolic
creature, made also by the cunning of the artist, so that we can gain once more ‘the noble artificiality’ which the
older writer speaks of?

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então, não se aproximaria de um objeto, de um boneco parado ou de uma sombra?
Maeterlinck afirma que:

Eu passei a acreditar que ele, imóvel como ele está, no fundo vive numa realidade
mais profunda, mais humana e numa vida mais universal do que um amante que
estrangula a sua parceira, o capitão que vence uma batalha ou “o marido que se
vinga em nome de sua honra” (MAETERLINCK, 2000, p.385, tradução nossa). 18

O teatro físico e violento o incomodava profundamente. Ele acreditava que os


conflitos se davam no interior das personagens, por isso as ações físicas deviam dar lugar
às palavras. Sua recusa ao ator de carne e osso era mencionada constantemente em seus
escritos: “Toda obra-prima é um símbolo, e o símbolo nunca pode suportar a presença
ativa de um homem” (CARLSON, 1995, p.288). O fascínio pelas marionetes já aparece
quando escreve os seus primeiros textos dramáticos, que reverberando Chikamatsu
Monzaemon, eram previstos para este gênero específico de teatro de animação. Booth
comenta que:

O próprio Maeterlinck disse que queria escrever uma peça ‘no estilo de
Shakespeare para um teatro de marionetes’. As personagens não apenas devem
ser feitas por marionetes (teria sido dito que ‘estes fragmentos psicológicos não
aguentariam o peso de um ator’, apesar de eles terem sido representados em
cena na verdade por atores humanos) mas são bonecos nas mãos do destino; eles
não têm o poder de mudar as suas circunstâncias (BOOTH, 2011, p.5, tradução
nossa).

Mais uma vez será o teatro de animação que irá solucionar os problemas estéticos
destes pensadores teatrais. Tão determinista quanto o estilo realista, ao qual Maeterlinck
se opõe, o simbolismo busca um ator que não seja o ‘pesado’ e material ator do realismo.
As marionetes conseguem realizar o teatro estático e imóvel sem falhas e ao mesmo
tempo, quando manipuladas, sugerem que suas vidas estão sendo dirigidas por uma
entidade superior.
Voltamos então, depois de ilustrarmos o uso do teatro de animação como uma
solução estética para as ideias de Kleist, Craig e Maeterlinck, para nosso ponto de partida,
o dramaturgo japonês Chikamatsu Monzaemon. Percebe-se que o apreço pelo teatro de
animação, para cada um destes artistas, se justifica antes de tudo por questões ideológicas
e não estéticas. Os quatro artistas de uma certa forma enxergam a arte do teatro como
algo artificial que, mesmo referenciando o real, não busca a sua imitação direta.

18
I have grown to believe that he, motionless as he is, does yet live in reality a deeper, more human and more
universal life than the lover who strangles his mistress, the captain who conquers in battle, or “the husband who
avenges in his honor”.

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Monzaemon, com a defesa de que o teatro se encontra num limbo entre a ilusão e a
realidade. Kleist, com sua oposição à harmonia clássica de Weimar e a defesa da presença
da beleza na inconsciência. Craig, com a incapacidade de um ator de alcançar a perfeição
na cena, pois corre o risco de ser traído pelas suas emoções. E por fim Maeterlinck, na
busca de um teatro estático, silencioso e impotente frente às forças do destino.
Monzaemon responde então ao título deste trabalho, mostrando que quem deve se
adaptar é o ator, e não o drama, buscando ferramentas psicofísicas que o permitam jogar
um determinado gênero e materializar um princípio estético-ideológico. Atuar no limite
entre a ilusão e a realidade, não mostrar a consciência da personagem, tornar-se uma
supermarionete ou manter-se estático em cena exige uma preparação cuidadosa e uma
grande dose de generosidade por parte do intérprete. Não é uma questão de hierarquia
das funções no processo teatral, mas uma questão de compreender qual é o trabalho de
um e qual é o trabalho do outro, para que juntos, consigam construir uma obra de arte
memorável, para quem faz e para quem assiste.

REFERÊNCIAS
BRANDON, J. Asian Theatre. Cambridge: Cambridge UP, 1993.

BOOTH, F. Introdução. In: BOOTH, F. (Ed.) The Marionette Plays of Maurice


Maeterlinck. New York: Lulu, 2010.

CARLSON, M. Teorias do Teatro: Estudo Histórico dos Gregos à Atualidade. São Paulo:
UNESP, 1995.

GASSNER, J. Mestres do Teatro I. São Paulo: Perspectiva, 1991.

GERSTLE, C.A. Chikamatsu: Five Late Plays. New York: Columbia UP, 2001.

KEENE, D. Four Major Plays of Chikamatsu. New York: Columbia UP, 1961. Disponível
em: <http://www.washburn.edu/reference/bridge24/Chickamatsu.html>. Acesso em:
09 jun. 2018.

KLEIST, H. von. Über das Marionettentheater. Hp Joachim Schmid, Zürich, jun 2018.
Disponível em: <http://www.joachimschmid.ch/docs/DTxKleisHeiMario.pdf>. Acesso
em: 10 jun. 2018.

MAETERLINCK, M. The Tragic in Daily Life. In: GEROULD, D. (Ed.) Theatre, Theory,
Theatre. New York: Applause, 2000.

ROSENFELD, A. O Teatro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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UEDA, M. Chikamatsu and his ideas on Drama. Educational Theatre Journal, Baltimore,
vol. 12, n. 2, p. 107-112, 1960.

WILTON, J.M. (Ed.) Craig on Theatre. London: Methuen, 1983.


---. Introdução. In: WILTON, J.M. (Ed.) Craig on Theatre. London: Methuen, 1983.

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O III COLÓQUIO INTERNACIONAL FITA: REFLEXÕES SOBRE
TEATRALIDADE E PERFORMATIVIDADE

Gilson Motta1

Resumo
O presente artigo foi desenvolvido a partir das experiências vivenciadas no III Colóquio
Internacional FITA – Festival Internacional de Teatro de Animação: O teatro de sombras e
o teatro de objetos. Considerando o recorte temático do Colóquio, o artigo relembra temas,
discussões e alguns espetáculos apresentados, além de traçar uma reflexão sobre as
experiências cênicas desenvolvidas no Laboratório Objetos Performáticos de Teatro de
Animação, laboratório que coordeno desde 2012, na Escola de Belas Artes (EBA) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. A referência a estas experiências se dá na
medida em que elas convergem com as discussões efetuadas no Colóquio, envolvendo
temas de relevância para o pensamento artístico contemporâneo, como teatralidade e
performatividade.
Palavras-chave: Teatro de Objetos. Teatro de Sombras. Performance.

Abstract
This article has been drawn from the experiences I had at the III International Colloquium
FITA - International Festival of Puppet Theater that discussed shadow puppetry and
theater of objects. Considering the theme of the Colloquium, this article recalls themes,
discussions and some shows presented, and reflects on the scenic experiences that have
been made at the Laboratory of Performing Objects for Puppet Theater, which I have been
coordinating since 2012 at the School of Fine Arts in the Federal University of Rio de
Janeiro - UFRJ. The reference to those experiences occurs due to their convergence with
the discussions carried out at the Colloquium, involving topics of relevance to
contemporary artistic thought, such as theatricality and performativity.
Keywords: Theater of Objects. Shadow Puppetry. Performance.

Os objetos e a teatralidade
No III Colóquio Internacional FITA, o tema do objeto foi introduzido pela atriz e
diretora Sandra Vargas, do Grupo Sobrevento de Teatro de Animação. Numa estimulante
fala que estabeleceu a distinção entre teatro de formas animadas e teatro de objetos, ela
descreveu o modo como o objeto é utilizado – forma, função, movimento, carga simbólica
–, discutiu as formas de jogo do ator-performer no teatro de objetos, além de mencionar
vários artistas e textos sobre o tema2. Sandra Vargas apontou para um aspecto que me

1
Gilson Motta é artista e pesquisador de artes cênicas, professor de Estética Teatral e de Teatro de Formas no
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), da Escola de Comunicação da UFRJ.
2
Uma das referências interessantes fornecidas pela atriz foi o trabalho de Shaday Larios. Disponível em:
<http://www.titeresante.es/author/shadaylarios/>. Para as questões que desenvolverei na primeira parte deste
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despertou a atenção mais profundamente. A atriz mencionou uma experiência
desenvolvida no Espaço Sobrevento, onde a história do objeto foi o ponto de partida para
se descobrir a história do espaço e, evidentemente, das pessoas que habitam naquele
espaço. Tratava-se assim de se ver, por intermédio dos objetos, a história que estava
escondida atrás deles e, assim, se chegar a história das pessoas e do espaço.
A perspectiva lançada por Sandra Vargas propiciou a conexão com várias
discussões e conceitos de arte contemporânea, especificamente sobre o objeto na arte,
mas também me trouxe à mente a memória de uma performance que eu havia realizado
com os alunos dos cursos de Artes Cênicas. Em 2016, ofereci um curso cujo tema era o
caminhar como prática estética. Em linhas gerais, o caminhar como prática estética é uma
tendência da arte moderna que começa a se desenvolver a partir dos dadaístas e
surrealistas, ganhando um aporte teórico e conceitual mais sólido com o movimento
situacionista, passando pela land art até chegar às diversas práticas contemporâneas.
Evidentemente, o curso envolvia as ações de caminhar e a criação de performances e
intervenções com base em caminhadas. Realizamos caminhadas numa das praias que
banha a ilha do Fundão3. A proposta de se caminhar pela ilha se mostrava, inicialmente,
como forma de exploração cartográfica e de exercício do método psicogeográfico
proposto pelos Situacionistas. Sabendo de antemão que a referida praia era imprópria
para o banho, devido à intensa poluição da baía de Guanabara, o que nos interessava era
pensar o efeito dessa experiência sobre a sensibilidade e os afetos e, além disso, o que esta
experiência poderia gerar como produção artística. A primeira visita à praia causou-nos
uma forte impressão, pois não tínhamos a dimensão da enorme quantidade de resíduos
sólidos que chegavam até a ilha: brinquedos, vestimentas, acessórios, utensílios,
mobiliário, aparelhos eletrodomésticos, objetos decorativos, etc. A lembrança dessas

artigo, indico o texto: Teatro de objetos documental, onde a autora faz menção aos objetos marcados por
acontecimentos catastróficos. Disponível em: <http://www.titeresante.es/2016/08/teatro-de-objetos-documental-
derivaciones-del-teatro-de-objetos-hacia-lo-documental-por-shaday-larios/>.
3
A ilha do Fundão é, na verdade, uma ilha artificial, resultado de um projeto de aterramento que agregou oito
ilhas: a ilha do Fundão, a ilha do Pindaí do Ferreira, Pindaí do França, Bom Jesus, Sapucaia, Baiacú, Cabras e
Catalão. Esse aterramento se deu entre os anos de 1949e 1952. Há vários textos e imagens disponíveis na internet
que tratam da história desta ilha. Indicarei aqui alguns deles, disponíveis em:
<http://www.rioquepassou.com.br/2007/05/18/aerea-fundao-final-dos-anos-50/>;
<http://www.gfdesign.com.br/canaldofundao/1945-1992.php>;
<https://medium.com/@mo.re.no/como-a-ufrj-foi-parar-na-ilha-do-fund%C3%A3o-1f9985e92685>;
<http://rioonwatch.org.br/?p=23997>.

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visitas à fétida praia me veio à mente no decorrer da fala de Sandra Vargas, na medida em
que a atriz falava do objeto como linguagem, da carga simbólica presente no objeto e, em
especial, da relação do objeto com o tempo: a história que os objetos trazem por si
mesmos e a história pessoal que é mediada ou potencializada pelos objetos4. Assim, o
passeio pela praia, cuja estreita faixa de areia era coberta de objetos, despertava em nós
questões como: a quem pertenceram todos aqueles objetos? Que pessoas os haviam
utilizado? Em que espaço eles estavam antes de se tornarem lixo? Qual a sua origem? Que
relação afetiva as pessoas haviam tido com aqueles objetos? Junto com essas, emergiam
também reflexões sobre a sociedade de consumo, sobre o ciclo de vida dos objetos, sobre
a relação entre aqueles objetos e o seu lugar de origem, pois, segundo Deyan Sudjic (2010,
p. 54), “os objetos não existem no vácuo: são parte de uma complexa coreografia de
interações”. Em termos concretos, uma cabeça de uma boneca de plástico nos fazia pensar
na casa da criança que brincava com a boneca (o lugar onde a boneca era guardada, suas
possíveis roupas, seu lugar numa estante ou armário, nas condições socioeconômicas
dessa criança, etc). Em suma, os objetos encontravam-se lá, disponíveis, de forma que o
ato de olhar para eles já potencializava a imaginação, sugerindo narrativas – pois eles
pareciam pedir para que sua história fosse contada – e uma “coreografia de interações”.
Detenhamo-nos nestas palavras/ideias – olhar, narrar, mover/dançar, imaginar
como ação de criar um espaço fictício – pois elas nos remetem ao próprio ato de
instauração da teatralidade que, segundo Josette Féral, estaria associada sobretudo a um
modo de olhar.
A condição da teatralidade seria, portanto, a identificação (quando é produzida
pelo outro) ou a criação (quando o sujeito a projeta sobre as coisas) de um outro
espaço, espaço diferente do cotidiano, criado pelo olhar do espectador que se
mantém fora dele. Essa clivagem no espaço é o espaço do outro, que instaura um
fora e um dentro da teatralidade. É um espaço fundador da alteridade da
teatralidade. (FERAL, 2015, p. 86)

A pergunta que Sandra Vargas dizia fazer aos objetos – “como transformar isso
em teatro?” – é, em si, um modo de olhar instaurador da teatralidade. Junto ao grupo de
alunos que frequentava o curso nos perguntávamos o que fazer, pois não tínhamos a
certeza sobre a linguagem artística que seria utilizada. Sabíamos apenas que o elemento

4
É neste sentido que o conceito de “objetos marcados por acontecimentos catastróficos”, de Shaday Larios dialoga
diretamente com este tipo de objeto encontrado na praia da ilha do Fundão. Segundo a autora, estes objetos teriam
um potencial poético, um valor documental, uma história e uma carga dramática, na medida em que seriam ”seres
sobreviventes”, que trariam em si um outro tipo de vitalidade.
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itinerante deveria fazer parte da proposta artística. O processo de discussão gerou três
projetos de performance: quatro instalações e duas performances itinerantes, uma
chamada de Divagação do amanhã5, outra chamada Iemanjá não mora mais no mar6.
Juntos, estes projetos artísticos formariam o que chamamos de “Cortejo praiano”7, a saber,
uma caminhada com o público/participante pela praia e pela região e entorno. Durante
este trajeto, o público veria as instalações e acompanharia as duas performances
itinerantes.
No que se refere às instalações, cada uma explorava um aspecto temático e um
tipo de objeto. Uma consistia numa composição com garrafas plásticas e copos que eram
colocados numa árvore. Duas buscavam reconstruir aposentos de uma moradia: um
quarto de criança, devido à grande quantidade de brinquedos encontrados; outra
reconstituía uma espécie de cozinha; uma outra instalação lidava com a acumulação de
sapatos. Assim como ocorria com muitos dos objetos encontrados, muitos tênis e sapatos
considerados de grandes marcas, encontravam-se agora reduzidos à condição de lixo, de
produto destituído de qualquer valor. Essas instalações lidavam com a problematização
acerca da relatividade do valor dos produtos comercializados numa sociedade
excessivamente consumista. Os objetos evocavam uma presença: a memória, a infância,
os bens de consumo das pessoas de baixa renda (visto que boa parte dos resíduos se
origina de regiões onde há carência de saneamento básico), entre outras.
A performance Divagação do amanhã dialogava com duas questões: a
comemoração dos 200 anos da Escola de Belas Artes, da UFRJ e a poluição das águas da
baía de Guanabara. Na ação, dois performers caminhavam pelo Campus com trajes feitos
com resíduos sólidos, mas cujas linhas lembravam, ao mesmo tempo, o estilo da
vestimenta usada por volta de 1816, na ocasião em que a Escola de Belas Artes foi
fundada, e um traje futurista. Deste modo, a performance trazia a seguinte reflexão: com
a acelerada degradação e poluição das águas, o que irá ocorrer com a baía de Guanabara
no futuro? Já a performance Iemanjá não mora mais no mar trazia uma discussão sobre a
perda do espaço da praia e do mar, como lugares de culto e ritual religioso. Na

5
Esta performance foi criada pelos estudantes Anna Limazzi e por Filipe Santos e contou com a colaboração de
outros estudantes que contribuíram para a criação dos trajes.
6
Esta performance foi criada pela atriz Flávia Coelho e contou com a colaboração de outros estudantes que
contribuíram para a criação do traje e do suporte com rodas.
7
Para maiores informações sobre essa e outras performances realizadas pelo Laboratório Objetos Performáticos
de Teatro de Animação, acessar: <www.objetosperformaticos.com.br>.
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performance, Flávia Coelho, vestida como Iemanjá, se deslocava simbolicamente das
águas para a terra. A poluição desqualifica a água como elemento de purificação, de
limpeza, mas também desqualifica a praia como lugar de oferendas. Desta forma, em todas
as obras, a discussão ecológica dialogava com elementos de ordem social e política. Ora,
de modo geral, a relação entre a arte e o lixo abre espaço para a discussão de vários temas
que transcendem o campo estético e penetram em territórios de cunho social e político,
como o consumo, os produtos descartáveis, a reciclagem, a sustentabilidade, o meio
ambiente, entre outros. Isto porque a análise do lixo permite vislumbrar todo um sistema
econômico, comercial, social e político. Em outras palavras, a vida cotidiana se mostra
indiretamente por intermédio do lixo, como se o lixo fosse um espelho da civilização de
consumo. Em When trash becomes Art, Lea Virgine, cita o livro do economista Guido Viale,
Un mondo usa e getta, que se utiliza desta imagem do espelho para se referir ao lixo,
trançando a crítica do consumismo:

[...] o lixo constitui um mundo próprio, complexo e simétrico ao mundo da


mercadoria. Um mundo que, por trás do espelho em que a civilização de consumo
adora admirar-se e criar sua própria autoconsciência, restaura nossa
compreensão da verdadeira natureza dos produtos que povoam nossas vidas
cotidianas. O desperdício da sociedade industrial e, de maneira muito particular,
o lixo produzido pela civilização de consumo, é em certo sentido a escória dessa
atividade sistemática de roubo e de desperdício dos recursos naturais, nas quais
se baseiam [...] O lixo é, de fato, um enorme depósito de informações de grande
valor e não apenas para o mundo científico. […] É fácil dizer o porquê: o lixo é
uma documentação direta, minuciosa e incontroversa dos hábitos e formas de
comportamento daqueles que o produziram, além das crenças e percepções que
eles têm de si mesmos. (VERGINE, 2007, pg. 11-12).

Nas performances que realizamos, optamos pela ressignificação e diluição do


objeto: em alguns casos, o objeto deixou de ser ele mesmo, disfarçando sua forma e função
originais, para ser outra coisa, como por exemplo, parte de um vestido; em outros casos,
ele se tornou um elemento estrutural, o corpo se torna quase um objeto, o objeto é uma
extensão do corpo (processo de o corpo tornar-se objeto foi lembrado na palestra do
professor Felisberto Sabino), como na performance Iemanjá não mora mais no mar.
Voltando à fala de Sandra Vargas, o que se nota é que o teatro de objetos caminha
justamente numa direção radicalmente oposta a essa.
Segundo Sandra Vargas, na poética do teatro de objetos, o objeto não modifica
sua forma nem é utilizado numa função diferente daquela que seria a original. O objeto
não é diluído, modificado ou ressignificado. Além disso, a força desta poética não se

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encontra na manipulação dos objetos, mas sim na valorização de seu poder simbólico e
metafórico. No Colóquio FITA, a experiência do espetáculo Sófridas, da companhia Trip
Teatro de Animação, possibilitou-nos entender perfeitamente esses princípios. Contudo,
penso que, além deste seu caráter exemplar, o espetáculo possuía grande força
justamente por aproximar-se daquilo que Josette Féral denomina de teatro performativo.
Isto é, embora se enquadre como um espetáculo teatral, numa teatralidade que se
constrói, entre outros elementos, pela repetição de um gesto banal – o retirar objetos de
dentro de uma bolsa – de modo a se criar uma espécie de ritual, a força do espetáculo
Sófridas advém também de alguns elementos oriundos da linguagem da performance, ou
seja, de uma forma artística que rejeita o teatro. Josette Féral nos sugere que é justamente
tal contaminação do teatro pela performance que vem sendo responsável por uma
renovação da linguagem teatral, num processo que a autora designará como teatro
performativo. Ora, em Sófridas tal contaminação se faz presente, por exemplo, no fato de
as atrizes – Tati Mileide Danna e Thyara Cristina do Nascimento – se apresentarem como
performers, mantendo, inclusive, seus nomes originais, o que evidencia que elas não estão
interpretando personagens; no fato de haver a inserção de elementos autobiográficos na
dramaturgia; na presença de um texto performativo, isto é, indissociável da cena; no fato
de se privilegiar o fazer, a execução, na medida em que durante todo o tempo o objeto é
mostrado em ação, em performance, rompendo com a ideia de representação; e, ainda,
numa certa antiteatralidade que evidencia o jogo8. Se todos esses elementos apontam
para uma dimensão performativa, por outro lado, o espetáculo nos reserva, no seu final,
um grande “golpe de teatro”: no momento em que as cortinas se abrem e uma grande
quantidade de objetos é revelado, agora não mais como objetos cênicos, mas como objetos
destinados ao comércio, ao consumo, há um verdadeiro “golpe de teatro”, pois, não se
sabe, imediatamente, se o bazar é algo real, ou se é uma ficção. As fronteiras entre o real
e o fictício se embaraçam. Ao mesmo tempo, ainda contaminados pelas histórias que os
objetos mostraram, ficamos imaginando – instaurando a teatralidade por intermédio do
olhar – as diversas histórias contidas naqueles objetos, transformados agora em
mercadorias. A ideia do bazar, por sua vez, é uma forma de negar o processo de

8
Sobre esses temas, ver: FERNANDES, Silvia. Teatralidades contemporâneas, In Teatralidades contemporâneas,
São Paulo: Perspectiva, 2010.
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obsolescência do objeto, é um modo de subverter a lógica do consumo da sociedade
capitalista, recusando o desperdício.
O que se nota é que o teatro de objetos – tal como apresentado pela Trip Teatro
de Animação – dialoga de modo estimulante com aquela linguagem que negligencia o
teatro, isto é, a performance, e, ao mesmo tempo, evidencia a teatralidade, por fazer com
que o objeto, em sua crueza, abra as portas do imaginário e do poético, fazendo a
passagem do aqui para um outro lugar.

Figura 01: Resíduos sólidos em praia na ilha do Fundão

Fonte: MOTTA, Gilson. 2016

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Figura 02: Resíduos sólidos em praia na ilha do Fundão

Fonte: MOTTA, Gilson. 2016

Figura 03: Performance Divagação do amanhã

Fonte: MOTTA, Gilson. 2016

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Figura 04: Performance Iemanjá não mora mais no mar

Fonte: MOTTA, Gilson. 2016

Teatro de sombras e performatividade


Esse diálogo com o teatro performativo também parecia estar presente em dois
outros espetáculos apresentados no COLÓQUIO FITA: Años Luz, da companhia Luz, Micro
y punto e E.N.T.R.E, da Compagnie Théàtre d’Images.
Meu primeiro contato com o trabalho da companhia Luz, Micro y punto se deu no
IV FIS, em Taubaté, onde a companhia apresentou o espetáculo Om, el funambulista. Esse
espetáculo possui características singulares que o fazem romper com uma estética do
teatro de sombras marcada pelo ilusionismo. A técnica empregada – a projeção de
imagens em retroprojetores – já valoriza o ato de mostrar o próprio fazer, a execução das
ações – procedimento este que tanto pode ser associado a uma estética do teatro épico,
como também do teatro performativo. Outro fator que aproxima o espetáculo de
procedimentos anti-ilusionistas é a proposta de interação com o público. Um exemplo de
fusão desse duplo procedimento – evidenciar o ato de fazer e interagir com o público –
encontra-se numa bela cena onde um coração feito de gelatina é projetado e depois
partilhado com o público, que comendo a gelatina, come o coração do personagem central.

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Nota-se aqui um interessante jogo entre o real e o fictício, a suspensão da ação fictícia gera
consequências para o plano da ficção. Estes níveis de deslocamento também se fazem
presentes em Años luz. Neste espetáculo, a companhia utiliza a mesma técnica de projeção
com aparelhos retroprojetores, criando belas e instigantes imagens. Por sua natureza,
esta técnica implica a presença visível das performers, valorizando a dimensão da
execução. No entanto, durante o espetáculo há um jogo de presenças, dado pelo
deslocamento espacial das performers Chantal Franco e Patrícia Toral, que ora conduzem
a história, projetando as imagens, ora são parte da história, como personagens. Este duplo
nível de presença é acrescido de um terceiro, pois, em certos momentos, as performers
aparecem como sombras, numa tela central. Años luz, joga, portanto, com a representação,
fazendo rupturas, cortes, deslocamentos entre os planos de visibilidade. Mas, em minha
opinião, o interessante do espetáculo se dá pelo fato de esse deslocamento se operar de
forma não linear, não lógica, ou melhor dizendo, a lógica que encadeia as ações é própria
da razão poética. Em minha experiência do espetáculo, associei esta razão poética à
performance de Veronica Galan, isto é, à musicalidade. O espetáculo se inicia mostrando
bloqueios criativos da musicista /compositora e, em determinado momento, a
criatividade vai se liberando pela sonoridade que, ao liberar-se, cria os planos de
visibilidade, se transformando em imagens, em corpos, em personagens e em sombras.
Como o pássaro, que é um personagem do espetáculo, a criatividade não pode ser
aprisionada numa gaiola. Assim, a performatividade do espetáculo é acentuada, na
medida em que ela evidencia o próprio processo de feitura do espetáculo: a música
manipulando a visualidade, as imagens sendo manipuladas pelas performers, as
performers jogando consigo mesmas como personagens, as imagens interferindo na
música, e assim, sucessivamente.
No espetáculo E.N.T.R.E, este mesmo diálogo se dá com a dimensão do fazer, de
um fazer que não é representação, mas sim ação real. O espetáculo possui uma estrutura
muito simples: no palco, apenas um ator; na plateia, uma artista visual que, com tintas e
outros materiais de pintura, cria imagens em tempo real que são projetadas no palco, por
intermédio de um retroprojetor; um ambiente sonoro interage com o ator e as imagens.
O espetáculo foi originalmente criado para espaços alternativos, mas, na ocasião do FITA,
ele foi apresentado num teatro, o que implicou em algumas mudanças de sentido.
E.N.T.R.E situa-se justamente num limite entre o teatro e a performance, na medida em
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que contém elementos próprios da arte da performance, como a valorização do tempo
real, a espontaneidade da action painting, a presença do acaso, do caráter não repetível
da ação e a dimensão do acontecimento. Por outro lado, há elementos que o enquadram
na linguagem teatral, como a estrutura musical e textual – um ou mais poemas que são
ditos em off – que criam uma estrutura cênica, um enquadramento teatral. Este elemento
teatral era reforçado pelo fato de o grupo estar se apresentando num teatro. Assim, o
espetáculo oscila entre duas linguagens, cabendo destacar a criação em tempo real que
reforçava o caráter performativo do espetáculo.
A participação, em tais experiências cênicas, mostra como o teatro de sombras
contemporâneo desenvolve-se numa zona de limite e de tensão entre o teatro e a
performance. Neste sentido, gostaria de fazer referência aqui a uma performance com
sombras que realizei recentemente e que pude expor durante minha comunicação no
Colóquio FITA. Trata-se da performance Luz é sombra, dedicada à vereadora Marielle
Franco.
No teatro de sombras a dramaturgia é inseparável da espacialidade. Embora,
aparentemente, esta “regra” possa se aplicar a toda forma teatral, no caso do teatro de
sombras, há uma questão técnica que é indissociável da estética: a relação entre as fontes
de luz os corpos/objetos projetados e o suporte de projeção é, em si mesmo, um elemento
dramatúrgico. Em Schattentheatre / Shadow Theatre, Band 4: Beyond the Screen, Fabrizio
Montecchi denomina de “projection apparatus” – que traduzimos por “dispositivo de
projeção” – o conjunto formado pelo espaço cênico, as fontes de luz, o suporte de projeção
e os corpos/objetos que serão projetados.

Mas o que é um dispositivo de projeção? É um espaço tridimensional cujos


limites são estabelecidos pela fonte de luz e pela tela de projeção. Dentro deste
espaço, um corpo-objeto se move (ou é movido), criando a sombra. Um
dispositivo de projeção não é determinado apenas pela posição dos elementos
que são utilizados no espaço, mas também por suas características qualitativas.
Se você alterar o tipo de fonte de luz, objeto-corpo ou suporte para projeção, a
qualidade da sombra criada também será alterada (MONTECCHI, 2015, p. 67).

Retomando um pouco a ideia das performances itinerantes, eu vinha alimentando


há algum tempo a intenção de criar uma performance com sombras no espaço urbano,
onde o suporte de projeção seria constituído pela arquitetura, e o espaço cênico seriam as
ruas da cidade. É claro que essa intenção caminhava junto com uma busca de aproximação
mais direta entre a arte e a vida, assim como a busca de uma ação artística mais imediata
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que envolvesse um processo de elaboração menos extenso do que a pesquisa teatral feita
na sala de ensaio. O elemento decisivo que deu corpo ou concretude a esta intenção foi,
infelizmente, uma tragédia.
Em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco foi brutalmente assassinada.
O fim trágico de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, interrompendo uma
carreira política promissora, comoveu o Brasil e obteve repercussão mundial,
mobilizando muitos ativistas em sua reivindicação por justiça. Passado um mês após o
assassinato, houve uma grande manifestação na cidade do Rio de Janeiro, chamada
“Amanhecer Marielle”.
O assassinato de Marielle Franco fez ressurgir em mim a questão acerca do sentido
da arte nesses tempos marcados por uma grave crise política, social e espiritual: tempos
de golpe de Estado, de recrudescimento da extrema direita, do aumento da pobreza e da
violência, do desmonte de diversas conquistas sociais e trabalhistas, tempos de ódio e de
intolerância. Em suma, vivemos em tempos sombrios. Esse conjunto de fatores me
fizeram querer levar à frente a ideia de produzir um teatro de sombras itinerante no
espaço urbano.
A partir da visão do desenho do perfil de Marielle Franco – cuja autoria eu
desconheço – me veio a ideia de transformá-lo numa silhueta para ser projetada em
espaços públicos. Do ponto de vista técnico, isto seria possível com a utilização de uma
lanterna de LED de grande potência: 3.240.000 lumens e 1.088.000 watts. Esse tipo de
lanterna possibilita a projeção de sombras mesmo em espaços com certa luminosidade.
Assim, criei uma silhueta do perfil de Marielle Franco. Em seguida, juntamente com os
membros do Performers sem Fronteiras (PsF)9, fizemos uma intervenção na sexta-feira
Santa, dia 30 de março de 2018. Evidentemente, esta data não foi escolhida ao acaso, visto

9
Em 2015, foi formada a plataforma Performers Sem Fronteiras (PsF), que reúne performers de diversas
nacionalidades que realizam projetos artísticos, culturais e terapêuticos com e para vítimas de traumas de choque
(conflitos armados, migrações, guerras, catástrofes naturais) ou traumas de desenvolvimento (pessoas idosas,
pessoas adoentadas, internadas em hospitais psiquiátricos, órfãos, entre outras situações). Essa plataforma está
vinculada a um projeto de pesquisa coordenado pela artista e pesquisadora Tania Alice, na Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), e possui a forma legal de uma Associação Artística ("Lei de 1901") em
atividade, fundada na França. A plataforma conta com um núcleo de artistas e pesquisadores, como Diego Baffi,
Diogo Resende, Fernanda Paixão, Gilson Motta, Marcelo Asth e Tania Alice. Para mais detalhes acessar:
<www.performerssemfronteiras.com>.
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conter um forte poder simbólico religioso: o dia da morte de Cristo, que precede a
ressureição.
Esta primeira intervenção foi bastante experimental, seja pelo fato de haver a
dependência de se encontrar um lugar adequado para a projeção (buscávamos um
suporte para a projeção – uma fachada de um prédio, uma parede – que estivesse
relativamente escuro, mas que, ao mesmo tempo, se encontrasse numa região
relativamente movimentada, para que os transeuntes pudesse ver a imagem), seja pelo
fato de não sabermos como manipular a silhueta: alguns achavam que ela deveria ficar
estática, outros, como eu, acreditava que a silhueta devia mover-se, isto é, deveria ser
animada pelo performer. Nesta primeira tentativa, obtivemos um bom resultado nos
Arcos da Lapa. Este lugar era interessante, não somente por ter sido o último lugar em
que Marielle Franco compareceu para uma reunião política, como também por agregar
um grande número de pessoas. Na projeção feita nos Arcos algumas pessoas se
aproximaram de nós e se emocionaram com a imagem, de tal forma que, a projeção foi o
ponto de partida para um contato com as pessoas, mantendo a proposta de uma
performance de caráter relacional.
Cerca de duas semanas depois, houve o evento “Amanhecer Marielle”. Nele, na
parte da noite, haveria uma grande marcha que partiria dos Arcos da Lapa em direção ao
bairro do Estácio, local onde a vereadora foi assassinada. Essa caminhada agregava
diversos valores: era uma caminhada política, era uma peregrinação, era uma caminhada
espiritual. Atentos a este deslocamento, eu e Tania Alice optamos por não acompanhar a
caminhada desde o início, mas sim por encontrar o grupo durante o percurso. No
momento em que a passeata chegava ao Estácio, local onde há um casario antigo e onde
as ruas carecem de uma forte iluminação, nós fizemos a projeção no casario, a cerca de
100 metros diante do grupo que vinha à frente na passeata. O resultado foi muito
impactante para todos os participantes, na medida em que parecia a todos que a sombra
de Marielle Franco convocava-os para seguir em frente. Tal como ocorre em muitos textos
do teatro ocidental, a figura de um morto parecia retornar para pedir justiça10.
A partir dali, fomos caminhando sempre à frente da passeata, buscando lugares
que pudessem favorecer a projeção. Desta forma, o projeto de se fazer uma intervenção

10
Sobre este tema indico o interessante livro organizado por François Lecerce, Dramaturgies de l’ ombres. O livro
reúne vários artigos abordando esta temática no decorrer da história do teatro ocidental.
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itinerante com sombras mostrava ser possível. Encontramos duas superfícies bastante
apropriadas e, numa delas, ocorreu que, no momento da projeção, um grupo presente na
passeata tocava tambores. Consegui manipular a silhueta de modo a seguir algumas
batidas dos tambores, ou seja, a silhueta ganhava movimento, ganhava vida: a morta
clamava por justiça, convocando os passantes. Estes aplaudiam comovidos como se
expurgassem a tragédia, curando-se de um mal, livrando-se de um trauma, reacendendo
a esperança. A vida transbordava da morte. A sombra era luz. A luz era sombra.

Figura 05: Performance Sombra é luz.

Fonte: ALICE, Tania. 2018.

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Figura 06: Performance Sombra é luz.

Fonte: ALICE, Tania. 2018.

Conclusão
As análises precedentes, baseadas em alguns espetáculos e em discussões
presenciadas no III COLÓQUIO INTERNACIONAL FITA, giraram em torno dos conceitos de
teatralidade e de performatividade, tal como desenvolvidos por autores como Josette
Féral, Silvia Fernandes e Renato Cohen. Busquei aqui estabelecer ligações entre esses
conceitos, o teatro de objetos e o teatro de sombras. Para tanto, além de tecer comentários
sobre os espetáculos vistos no Colóquio, busquei também aproximar a minha experiência
no mesmo com a minha atividade como artista e pesquisador das artes cênicas. A prática
e a teoria são interdependentes, uma estimula a outra, uma redireciona a outra, num
processo de constante renovação. Desse modo, ouvir alguns colegas que participaram do
Colóquio, como Sandra Vargas, Felisberto Sabino, Fabiana Lazzari, Walmor Nini Beltrame,
entre outros, e assistir os espetáculos, mostra-se como uma experiência de grande valor,
por nos apontar novas perspectivas conceituais, autores que até então desconhecíamos,
técnicas teatrais e problemas estéticos, entre outros. Em suma, a participação em
Colóquios apresenta-se sempre como uma ocasião oportuna para a construção e a
desconstrução de modos de ver, sentir, pensar e fazer.

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REFERÊNCIAS
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2004.

FÉRAL, Josette. Além dos limites. Teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva,
2015.

FERNANDES, Silvia. Teatralidades contemporâneas, In Teatralidades


contemporâneas, São Paulo: Perspectiva, 2010.

LARIOS, Shaday. Teatro de objetos documental. Derivaciones del teatro de objetos hacia lo
documental. Disponível em: <http://www.titeresante.es/2016/08/teatro-de-objetos-
documental-derivaciones-del-teatro-de-objetos-hacia-lo-documental-por-shaday-
larios/>. Acesso em: 28 jul. 2018.

LECERCE, François. Dramaturgies de l’ombre. Rennes : Presses Universitaires de


Rennes, 2005.

MONTECCHI, Fabrizio. Schattentheater/Shadow Theatre. Band 4: Jenseits der


Leinwand. Band 4: Beyond the Screen. REUSCH, Rainer (org). Internationales
Schattentheatre Zentrum, Schwabisch Gmund:Einhorn-Verlag + Druck GmbH, 2015.

REUSCH, Rainer. Schattentheater / Shadow Theatre. Band 3: Theoria + Praxis.


Schwabisch Gmund:International Schattentheater Zentrum, Einhorn-Verlag, 2015.

SUDJIC, Deyan. A linguagem das coisas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.

VERGINE, Lea. When Trash Becomes Art. Milano: Skira Editore S.p.A, Palazzo Casati
Stampa, 2007.

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DRAMATURGIA DO BARROCO HABANERO, OU A POÉTICA DO
OBJETO EM PROJEÇÃO: 10 ANOS DE LABORATÓRIOS EM EL
ARCA, TEATRO MUSEO DE TÍTERES

Liliana Pérez Recio1


Resumo
Este artigo relata algumas experiências do desenvolvimento do teatro de sombras
cubano, na segunda década do século XXI, por meio do relato da produção de espetáculos
que determinaram a poética da companhia El Arca. São analisados aspectos relativos à
utilização de objetos, como portadores de memórias que constituíram as metáforas
germinativas, para uma teatralidade do jogo das evocações para além das
representações. Traça-se um paralelo entre o modo como o Barroco foi sendo apropriado
e utilizado em Havana, guardando características locais, e o modo como a arte do teatro
de sombras na companhia foi sendo assimilado.

Palavras-chave: Teatro de Sombras. Objetos projetados. El Arca. Cuba. Barroco.

Resumén
El artículo relata algunas experiencias del desenvolvimiento del teatro de sombras
cubano en la segunda década del siglo XXI, por medio del relato de la producción de
espectáculos que determinaron la poética del grupo El Arca. Son analizados aspectos
relativos a la utilización de objetos, como portadores de memorias, que constituirán las
metáforas germinativas, para una teatralidad del juego de las evocaciones más allá de las
representación. Se traza un paralelo entre el modo como el Barroco fue siendo apropiado
y aplicado en La Habana, guardando características locales, y los recursos con los que el
arte del teatro de sombras fue siendo asimilado en la producción del grupo.
Palabras claves: Teatro de Sombras. Objetos proyectados. El Arca. Cuba. Barroco.

“Mas chega-se a se perguntar, hoje, se não se oculta uma grande sabedoria nesse
‘mal traçado’, que ainda parece ditado pela necessidade primordial-tropical-de
brincar de esconde-esconde com o sol, burlando-lhe superfícies, arrancando-lhe
sombras, fugindo de seus tórridos anúncios de crepúsculo” (CARPENTIER,
online)2.

1
Diretora teatral, atriz titereteira, licenciada em Teatro pelo Instituto Superior de Arte (2000) de Havana, Cuba.
Integrou o elenco do Teatro Nacional de Guiñol durante nove anos. Trabalhou como atriz no cinema, rádio e
televisão em Cuba. Fundou El Arca – Teatro Museu de Títeres, em Havana. Tem estudado, pesquisado e feito
residências artísticas na Argentina, Bélgica, Espanha, Uruguai e no Institut International de la Marionnette, em
Charleville-Mézières, França. Em 2017, ingressou no Programa de Pós-graduação da Universidade do Estado de
Santa Catarina – UDESC. Desde 2018, participa do trabalho editorial da revista Móin-Móin.
2
“Pero llega uno a preguntarse, hoy, sino se ocultaba una gran sabiduría en ese "mal trazado" que aún parece
dictado por la necesidad primordial –trópica– de jugar al escondite con el sol, burlándole superficies, arrancándole
sombras, huyendo de sus tórridos anuncios de crepúsculos” (CARPENTIER, Disponível em:
<http://www.iaph.es/revistaph/index.php/revistaph/article/view/301/301#.W4NRBuhKjIU>. Acesso em: abr.
2018). Tradução nossa.
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Em Havana, Cuba, eu nunca iria falar em público do nosso próprio trabalho
realizado no El Arca - Teatro Museo de Títeres3. Digo "nosso" porque sempre fomos uma
equipe. Aqui, no abraço dos bonequeiros catarinenses, talvez por conta da saudade, eu
senti de repente o impulso humilde de compartilhar nossa história recente. Apenas para
contar como foi o início da linguagem da luz naquela outra ilha, e como, no nosso caso,
essa luz tem sido atravessada pelos nossos objetos. É nessa encruzilhada, entre o objeto e
a luz, provavelmente também por saudade, que falarei do "meu Barroco Habanero". Rogo
então, que me acompanhem nesta curta viagem até minha Havana.
O Barroco nas fachadas de Havana acontece com o auxílio da luz. Não são grandes
os ornamentos, mas o sol esculpe a pedra, e das sombras sai uma beleza em ondas que se
derramam sobre a cidade nas horas em que mais esquenta o sol até o fim da tarde. É
preciso apenas um feixe de ondas, uma pequena insinuação na pedra para que a luz faça
o resto, um vai e vem sem a violência exuberante de colunas que ascendem retorcidas,
apenas uma fachada que se frisa, como o mar no terral. Na cidade das colunas4, os
transeuntes procuram alívio embaixo das sacadas, nos portais infinitos que percorrem as
grandes avenidas. Neste caso, como barroquismo cubano, entendemos não aquele
barroco que demarca uma época e um espírito, mas o entendemos à maneira de Alejo
Carpentier5:

Mas Cuba, por sorte, foi mestiça, como o México e o Peru. E como toda
mestiçagem, por processo de simbiose, de adição, de mescla, engendra um
barroquismo. O barroquismo cubano consistiu em acumular, colecionar,
multiplicar colunas e colunatas em tal excesso de dóricos e coríntios, de jônicos
e compostos, que terminou o transeunte por esquecer que vivia entre colunas,
que era acompanhado por colunas, que era vigiado por colunas que lhe mediam
o peito e o protegiam do sol e da chuva e até era cuidado pelas colunas nas noites
de seus sonhos (CARPENTIER, online) 6.

3
Fundada em 2010, a Instituição foi constituída a partir do grupo de teatro focado na pesquisa da linguagem de
animação, a organização da coleção do museu e a articulação da programação estável da sala de teatro dedicada,
consequentemente, ao teatro de animação.
4
Segundo a batizara Alejo Carpentier, no artigo aqui citado de título homônimo.
5
Alejo Carpentier nasceu em Havana, em 26 de dezembro de 1904. Foi membro fundador do chamado "Grupo de
Minorista". A partir de 1924, ele organizou vários Concertos de Nova Música. Em 1928 foi preso por motivos
políticos. Pouco depois, foi para Paris onde dirigiu a revista IMAN. Em 1937 ele participou do Congresso dos
Escritores, realizado em Madrid e Valência. Retornando a Cuba em 1939, trabalhou em rádio e fez várias
investigações musicais. Em 1945, mudou-se para Caracas, onde permaneceu até 1959, ano em que retornou ao seu
país. Mais tarde ele viveu em Paris, onde fazia parte da representação diplomática de Cuba, até sua morte em abril
de 1980.
6
“Pero Cuba, por suerte, fue mestiza, como México o el Alto Perú. Y como todo mestizaje, por proceso de
simbiosis, de adición, de mezcla, engendra un barroquismo, el barroquismo cubano consistió en acumular,
coleccionar, multiplicar, columnas y columnatas en tal demasía de dóricos y corintios, de jónicos y compuestos,
que acabó el transeúnte por olvidar que vivía entre columnas, que era acompañado por columnas, que era vigilado
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Sob o amparo desses pátios coloniais7, coloridos pelas claraboias em vitrais,
nascem nossos experimentos “sombristas”. Sem linhas diretas de transmissão, nem
tradição, o Teatro de Sombras cubano do século XXI, vai florescer a partir de 2008. Porém,
existem antecedentes de cenas (de sombras) dentro de peças8, experimentos com
projeções, até se perder nas origens do cinema e dos espetáculos com vidros pintados em
lanternas mágicas.
Na aurora do século XXI, eu tive como primeira referência, ao vivo, um espetáculo
do México que passou por Cuba. Desde então, comecei a sonhar em fazer Teatro de
Sombras e meu primeiro desejo foi trabalhar com retroprojetores, junto com a linguagem
visual da gravura. Naqueles anos não consegui nem os retroprojetores, nem um artista da
gravura para empreender o projeto comigo. Mas, foi precisamente em 2008, após ter o
privilégio de receber e trabalhar, por duas semanas, nas oficinas ministradas por
Frabrizio Montecchi, junto com outros artistas da companhia Teatro Gioco Vita, que se
abriu um novo e frutífero caminho para a história do Teatro de Sombras em Cuba. A
primeira montagem que resultou da oficina recebida no Taller Internacional de Títeres de
Matanzas (TITIM)9, foi Como de la noche al día , do grupo teatral La marea. Era uma
narração de histórias, com música ao vivo e uma grande tela para sombras. Paralelamente,
Ricardo Cobo, na cidade de Santi Spiritus, começava suas pesquisas para El Lucero del
Alba, estreado em 2010, com o grupo Baúl mágico e La Comarca. Na cidade de Camagüey,
debutou com seu primeiro trabalho de sombras com a peça Andando por la sombrita e
organizou em 2011, o primeiro encontro de teatro de sombras, chamado de Asombrarte10.
Lembro-me como Fabrizio Montecchi foi cuidadosamente nos conduzindo às
profundezas oníricas das sombras. Generoso, compartilhou conosco todas suas pesquisas,
esclarecendo que, em um curso, o que vemos são os princípios do trabalho dos outros,

por columnas que le medían el tronco y lo protegían del sol y de la lluvia, y hasta que era velado por columnas en
las noches de sus sueños” (CARPENTIER, Disponível em:
<http://www.iaph.es/revistaph/index.php/revistaph/article/view/301/301#.W4NRBuhKjIU>. Acesso em: abr.
2018). Tradução nossa.
7
Pátio central rodeado de galerias suportadas por colunas.
8
Tenho apenas algumas notícias de uma peça intitulada La batalla de los Yacarés, estrelada por Alberto Palmero,
do Teatro de Sombras de La Habana, no Teatro Nacional em 1990. Pude ver algumas das silhuetas que restaram
dessa peça no estúdio de Nilza Reyos. Além disso, ele participou do programa Sombras chinesas, primeiro
programa na televisão nacional cubana, a utilizar esta técnica. Ver em DIÉGUEZ, 2012, pág. 79.
9
Desde 1994, quando foi fundado por René Fernández, o Teatro Papalote, espaço de intercâmbio e formação para
os bonequeiros cubanos, vem trazendo grandes mestres do teatro mundial, o que veio a compensar a falta de um
curso de formação em teatro de títeres no país.
10
Ver VALIÑO, Omar. Mosaico Titiritero. La Habana: Tablas, 2012.
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princípios que só farão sentido, e vão nos levar para frente, depois de muitas horas de
pesquisa própria, fechados no escuro com uma fonte de luz para investigar. Finalmente,
nos últimos dias ele falou de técnicas, de lâmpadas e materiais: policarbonato, tintas para
vitral, lâmpadas General Electric11; e eu, naquele momento pensava na generosidade do
Gioco Vita, que trouxera todos aqueles materiais para nos ensinar, para termos a
oportunidade de experimentá-los. Cuba é um país embargado que sofre um bloqueio
comercial e financeiro pelos Estados Unidos há quase 60 anos. Assim que, de tudo aquilo,
o que não era muito caro para nossos experimentos, era simplesmente inalcançável. É,
talvez, dessas carências que nasce para meu trabalho a compreensão do bloqueio como
princípio para o teatro de sombras. Deixar passar ou não deixar passar a luz. Do bloqueio
da luz e das comportas que a deixam passar, no objeto, é que extraímos a informação
necessária para a leitura da imagem na cena.
Depois da oficina em Matanzas12, eu estava determinada a trabalhar com as
sombras. Nas viagens às montanhas de Holguín13, em 2008, tive a chance de brincar com
crianças de comunidades de difícil acesso, usando silhuetas de papelão, velas e lanternas.
Na sequência, Manneken-Pis14, resultou da oficina de teatro de sombra com crianças
ministrada por mim na Vitrina de Valônia (2008)15. O trabalho brincou com a possível
origem do mito do Manneken Pis, ícone da cidade de Bruxelas. Na espera de parcerias com
artistas visuais, na carência de recursos para construir, desenvolvi minha pesquisa em
conjunto com as crianças da turma.
Nessas condições fiz a escolha de trabalhar com brinquedos. Há anos, Enrique
Lanz16, também no TITIM, nos advertiu que deveríamos trabalhar com "o que tivéssemos",
no lugar de ficarmos parados pelo "o que não temos". Desse modo, decidimos trabalhar

11
A General Electric é um conglomerado americano fundado em 1892 pela fusão de parte da Thomson-Houston
Electric Company e da Edison General Electric Company. O bloqueio comercial dos Estados Unidos a Cuba
proíbe a compra de produtos norte-americanos.
12
Província ocidental ao leste da capital habanera onde tem lugar o Taller Internacional de Títeres de Matanzas,
TITIM.
13
Província localizada ao norte oriental da ilha de Cuba.
14
O atual Manneken Pis é originário de 1619, quando as autoridades de Bruxelas pediram ao escultor Jerome
Duquesnoy para fazer uma estátua de um menino que, segundo uma das muitas lendas, teria evitado um terrível
incêndio na cidade urinando em uma chama.
15
Instituição fomentada por Wallonie Bruxelle International em parceria com a Oficina del Historiador de la
Ciudad de La Habana, a promoção da cultura Belga.
16
Mestre em Arte Educação, Professor do Seminário de Dramaturgia da Facultad de Arte Teatral da Universidad
de las Artes, Cuba. Dramaturgo, poeta, fundador de El Arca, Teatro Museo de Títeres. Tem publicado em várias
línguas textos dramáticos e teóricos, tanto para crianças, quanto para adultos.
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com o conflito do obstáculo, desenvolver aquilo que nasceria a partir da carência e que
acabaria nos proporcionando um grande achado. Finalmente, após alguns anos, aquele
desejado parceiro para a gravura chegou, e os retroprojetores também. Chegaram depois
de muito trabalho em solidão, e depois de muita persistência, sem deixar-nos vencer por
aquilo que "não tínhamos”.
Ao falar sobre essa carência, sobre o que não tínhamos, retorno à ideia de falar
sobre um barroco cubano, se é que poderíamos falar de um barroquismo cubano que
transcende épocas e estilos. Seguramente, é sobre isto que o arquiteto Taboada discursa:

Na arquitetura, o barroco cubano tem características próprias dadas pelos


materiais de construção disponíveis, principalmente pedras que devido a sua
fragilidade não poderiam ser trabalhadas com a exuberância típica do barroco
em outras latitudes, e também as condições climáticas e geográficas em geral,
que demandam adaptações necessárias que na ordem prática eram muito sui
generis [...] tudo isso condicionou as peculiaridades impostas pelos materiais e
mão-de-obra disponíveis naquele período remoto (TABOADA, 2001, pág.897).

Pensando nessa ideia de "adaptação", segundo as necessidades, que imprimiriam


características particulares a determinado estilo, traço um paralelo com a poética que é
criada a partir dos meios disponíveis utilizados nas produções espetaculares. Para
escolher os brinquedos, como meio narrativo na montagem do espetáculo Manneken-Pis,
tivemos vários argumentos. Pelo fato das crianças serem pequenas e contar com pouco
tempo para a construção das silhuetas, privilegiamos a experiência propriamente teatral,
para além da construção. Sendo uma obra feita por crianças e para crianças, resultou-me
coerente que a visualidade viesse dos objetos do universo infantil: os brinquedos.
Peças de lego, pequenos soldados, plantas de maquete e carrinhos habitaram a tela
e deram corpo às sombras por meio de sua projeção, o que conjuntamente contribuiu para
o desempenho dos infantes, assumindo um caráter lúdico. Dessa experiência não se
conservaram fotografias (lembrando que no ano de 2008, nem todo mundo tinha uma
câmera disponível). Lembro (e agradeço), a doação do professor Jean Luc Slock, que nos
forneceu as primeiras lâmpadas alógenas para viabilizar o espetáculo e poder "sombrear".
Recordo com deleite infantil a riqueza de nossas cenas de batalhas que alcançaram grande
dinamismo por meio da animação da fonte de luz que produzia uma iluminação a qual
perpassava nossas maquetes de brincar.
Foi no Palácio de Conde Cañongo, na Plaza Vieja, em Havana, onde criamos
Manneken-Pis, e onde teve lugar o primeiro laboratório de sombras da nascente
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companhia El Arca, até se instalar na sua sede definitiva localizada na Casa Pedroso. Dali
viria ao mundo, nas penumbras desse palácio barroco, sob o amparo de colunas e vitrais:
El gato de Lilo (2010). Primeiramente, foram realizados uma oficina e um laboratório para
transmitir aos membros da recém fundada companhia uma sensibilidade sombrista, bem
como difundir os meios mediante os quais se expressar na nova linguagem que, de forma
coletiva, estreávamos. O texto dramático começou a ser pensado já nesse contexto e teria
várias etapas em diálogo com os referentes literários, depoimentos, poemas e objetos;
sendo que, com o autor do texto do espetáculo, Maikel Rodríguez de la Cruz, trabalhamos
de forma colaborativa nas improvisações e nos experimentos visuais. Isto, de certa forma,
retroalimentou tanto o trabalho dele como autor quanto o trabalho dele na criação das
silhuetas dos personagens e os cenários de papel recortado17. Maikel veio junto conosco
na experimentação de materiais e técnicas construtivas para silhuetas, trazendo seus
conhecimentos na linguagem da gravura, até a conjunção dos cenários por ele criados com
projeções digitais elaboradas junto com Mario David Cárdenas (1985). Na produção do
espetáculo todos colaboramos em tarefas diversificadas: o desenhista atuava, o
dramaturgo construía, os bonequeiros emprestavam os próprios corpos às personagens-
sombras.
Nesse sentido, para falar de nossa identidade como companhia, sediada em
Havana, formada por uma mistura de gerações, de diversas procedências e formações:
emerge novamente a associação com a ideia de um "barroquismo", que Carpentier
descreve como espírito barroco, legitimamente antilhano, mestiço advindo da
transculturalização nas nossas ilhas do "mediterrâneo americano", que se traduziu em
um irreverente e descompassado jogo de entablamentos clássicos, onde convivem entre
fontes e colunas marmóreos leões emblemáticos com índias que reinam sobre golfinhos
gregos, como habitantes da floresta das colunas. Apesar de que, como Taboada (1931)
explica, o Barroco rejeitado no século XIX como coisa de mal gosto, que lembrava demais
a metrópole espanhola, para o seguinte século, aparece como o lugar onde o cubano se
reconhece e vai se procurando, se não no barroco, num “barroquismo à habanera”.
Proponho um diálogo com a defesa ao barroco18 insular do arquiteto Taboada

17
Além das sugestões de construção recebida na oficina com Giocco Vita, o trabalho de artistas como
Lotte Reiniger (1899 –1981) e Jiří Trnka (1912-1969), foram importantes referências.
18
Arnold Hauser explicou a categorização de Wölfflin dizendo que a busca de um efeito não-linear, essencialmente
pictórico e não gráfico, procurava criar uma impressão de ilimitado, imensurável, infinito, dinâmico, subjetivo e
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mediante o qual, perceber os mecanismos com os quais esse barroquismo tem marcado a
produção teatral da companhia El Arca e de que modos se expressa. Por exemplo, nas
argumentações para o artigo Del barroco colonial cubano, Taboada fala dos muros dos
prédios: "O uso de alvenaria tradicional e o de uma pedra extraída da plataforma insular
predomina. Portanto, temos material de origem marinha, verdadeiro recife, cheio de
fósseis e cavidades que impossibilitam o tamanho em escala reduzida"(TABOADA, 2001,
pág.899). Tais muros, largos e pesados, que exibem nos cortes das pedras caracóis
fossilizados e corais aderidos, proporcionaram-nos a frescura e proteção necessárias para
as longas horas de pesquisa na sombra. Se cumpre na sala do Teatro El Arca, na casa
Pedroso, a tipologia que descreve Taboada: "o mezanino surge da divisão do piso principal
do térreo, que é mantido pela porta, pelo corredor e pelas galerias do pátio, criando assim
um interessante conjunto de escalas pequenas e monumentais." (TABOADA, 2001, pág.
899). Sendo que tais contrastes de escala formarão parte do repertório expressivo de
nosso teatro no escuro; além de determinar o formato do trabalho, tendo uma tela
retangular - sendo a boca do palco muito baixa por causa do teto que é também chão do
mezanino - o que enfatiza para o público a expectativa sobre uma qualidade ligada ao
cinema.
Para falar do trabalho da visualidade com Maikel Rodríguez de la Cruz, gostaria de
trazer mais uma reflexão do arquiteto: "a personalidade do barroco colonial cubano é
caracterizada pela simplicidade da volumetria arquitetônica, a clareza de leitura de seus
desenhos e o charme do traçado de seus moldes e acabamentos."(TABOADA, 2001, pág.
900). Estas características são identificáveis no trabalho dos cenários do espetáculo El
gato de Lilo, feitos em papel recortado e inspirados na linguagem da gravura, para conter
as personagens no plano das silhuetas projetadas. Este mesmo princípio das gravuras
também foi utilizado nas montagens das cenas com atores na hora de entender a dinâmica
da atuação na sombra. Não estava Rodríguez de la Cruz ciente destas coincidências, não
entrou nas suas pesquisas o Barroco como motivo. Apesar disso, é possível perceber,
semelhante aos paradigmas estilísticos do barroco que alberga na relação com a luz
diversos tipos de claraboias, vigias, ojo de buey, a profusão de acessos aos planos de ação

inapreensível; o objeto se tornava um devir, um processo, e não uma afirmação final. A preferência pela
espacialidade profunda sobre a rasa, acompanhava o mesmo gosto por estruturas dinâmicas, a mesma oposição a
tudo o que parecia por demais estável, a todas as fronteiras rígidas, refletindo uma visão de mundo em perpétuo
movimento e mudança.
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do espetáculo que, por meio das fontes da luz, o texto dá ao espectador. Percebe-se
também que a subordinação da composição à um eixo central de simetria e a enfermiça
procura da profundidade se manifestam por causa da necessidade de gerar espaços onde
os personagens projetados pudessem agir dentro dos cenários que Maikel designou.
O que estamos chamando de "barroquismo", como abundancia de elementos
diversos, que em seu conjunto geram uma composição mais que eclética, regida pelas
forças dos trópicos, a natureza insular, as marcas pós-coloniais e as exigências adaptativas
à escassez permanente, junto com a promiscuidade e a miscigenação, naquele ambiente,
se manifestou na abundância, diversidade e funções dos objetos que povoam a cena. Do
objeto em projeção desdobram-se várias funções dramatúrgicas: função transicional,
como interface emocional, como veículo da memória, pelo qual público e personagens
pulam de uma dimensão ou plano dramático para outro e transitam por entre elipses de
tempo. A função metafórica está contida na mutabilidade do objeto em projeção, pelas
atribuições, interpretações que o público lhes confere. Em El gato de Lilo, o objeto é sujeito
de transição dramática visto através da sua, junto a sua morfologia projetável (quanto às
zonas de bloqueio, opacidades e comportas) ao prover, não simplesmente as conexões
históricas entre os diversos universos ficcionais do texto, mas as próprias visualidades em
que cada um deles se define a partir, por exemplo, da fonte de luz selecionada. Podemos
identificar alguns dos papéis exercidos pelos objetos sugeridos pelo texto ou trazidos na
encenação tais como:

● O estereoscópico dá passo à imagem digital, na textura das velhas fotografias


e às cores.
● A luz da lanterna resulta da situação dramática onde o texto declara que
faltou luz.
● Uma janela que se abre gera um amanhecer.
● Um mosquiteiro se instala no tempo de um pôr de sol.
● O espelho é potenciado, para além de seus usos como mecanismo de
projeção, como metáfora do alter ego do protagonista.
● Da arca das lembranças anacrônicas da avó saem rendas, crochê, leques, até
o livro pop art que vem a introduzir o universo das silhuetas como dimensão
da narrativa dela.
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● O espaço da "realidade" da avó é explorado por ela desvelando para o público
a natureza realista dessa dimensão, mesmo nas sombras, por contraste como
a dimensão narrativa das silhuetas. Sendo que os objetos são trazidos da
realidade, mesmo que intervindos para propiciar sua projeção, como é o caso
do rádio.
● Uma fonte de luz não justificada aparece para gerar a presença da menina.
Sua luz, qual câmera em mão, faz-se de seguidor e assistimos a subjetividade
da personagem que por meio dela se nos revela.

Finalmente, no grande epílogo do espetáculo, as imagens nos diferentes planos


convergem, feito alcançado por meio do auxílio do vídeo, que fez coincidir os personagens
humanos e não humanos. Tal convergência acontece utilizando a luz do projetor digital
que projeta simultaneamente: a subjetiva da vista pela janela, fazendo projeção das
silhuetas com a própria fonte de luz, o que as faz presente no marco da janela e ainda
acompanham as sombras dos corpos dos atores para, chegado o momento certo, fazer sair
de cena a sombra da projeção do corpo do protagonista, duplicado agora em um terceiro
plano por meio do vídeo.
Quero insistir que nosso maior desafio na montagem do espetáculo El gato de Lilo
consistia, em analogia com o que Taboada identifica como dificuldades do barroco em
Cuba, nos materiais com os quais contávamos e na quantidade de mãos disponíveis, sendo
que tudo acabou se resolvendo apenas entre quatro atores que assumiam infinitas tarefas
ao longo da peça. Mais de 150 apresentações ocorreram, entre turnê nacional e viagens a
outros países.
Um espetáculo todo feito com silhuetas de "cartolina bristol", varetas de guarda-
chuva e com a grande sorte de poder contar com um projetor digital, albergando uma
desproporção barroquista entre artesanato e sofisticação tecnológica.
Em Los músicos de Bremen (2010)19, só foram projetados, outra vez tendo como
fonte de luz o projetor digital, os corpos dos bonecos feitos de garrafas recicladas que
encarnavam os personagens protagonistas, para criar o artifício da assombração aos
bandidos. Retomamos também os cenários projetados depois de terem sido pintados

19
Oficina ministrada como parte do Programa da UNICEF no Centro Histórico da cidade.
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pelas crianças e digitalizados; o que lhes dava a chance de trabalhar, para além da
animação, se expressando também na concepção do espaço de representação. Este
trabalho dos cenários desenhados pelas crianças que participaram da oficina confere
autenticidade à peça, permitindo novamente a projeção de uma visualidade proveniente
das crianças como protagonistas do processo criativo delas.
Para Bastian e Bastiana o la verdadera historia de como papá y mamá se hicieron
novios (2015)20, a dimensão do desafio nos fez retornar à sombra e à projeção de objetos,
desta vez mais conscientes do foco da pesquisa. Na casa dos Escravos, na casa Pedroso,
uma das últimas sobreviventes das casas senhoriais do século XVII habanero, com seus
arcos, seus ângulos jamais retos, seus recolhimentos e sua vastidão, Mozart não teve como
ser clássico. Recebemos a encomenda do Lyceum Mozartiano. Bastian y Bastiana é ópera
prima de um Mozart adolescentes e o pedido de Ulises Hernández21 era um espetáculo
para criança, no marco do segundo Festival Mozart en La Habana.
Eu acabava de receber como donativo para a companhia o retroprojetor do
professor Tito Loréfice22. Como vemos, os sonhos, se não os abandonamos, se realizam.
Depois de 5 anos, novos atores habitavam El Arca. A escolha pela sombra não significou
um caminho seguro ou confortável, significou, ao contráro, uma nova escuridão, uma nova
exploração na qual eu ia conduzindo meus jovens colegas de olhos ainda vendados. A
incursão foi muito rica. Da pesquisa com materiais e objetos no retroprojetor nasceu uma
dramaturgia visual, uma parábola habanera do amor dos adolescentes mozartianos. Seres
híbridos, sugeridos, reconstituídos emergiram da máquina de costurar transformada por
nós em quimérico objeto, com um retroprojetor dentro dela fazendo as funções de
lâmpada para mesa de cabeceira no quarto das crianças. Angélica tem pesadelos, chama
os pais, pede para a sua mamãe lhe contar uma história de ninar. A mãe diz impaciente

20
Versão por Maikel Rodríguez de la Cruz como dramaturgo a partir da ópera Bastian e Bastianne de W. Amadeo
Mozart (1768), com uma visualidade proposta por Laura Liz Gil, Rigel Gonzáles y Lázaro Emilio Hernández, sob
a minha direção.
21
Pianista e compositor cubano. Destaca-se como instrumentista e pedagogo. Fundou El Lyceum Mozartiano de
La Habana, em 2009, patrocinada pela Oficina del Historiador de la Ciudad de La Habana, a Fundación
Mozarteum de Salzburgo (Austria) e o Instituto Superior de Arte.
22
Tito Lorefice (1957), é um marionetista, ator, diretor teatral e professor. Dirige o departamento de teatro de
fantoches e objetos no Instituto de Arte Mauricio Kagel, da Universidade Nacional de San Martín. Ele também
dirige a companhia de teatro de bonecos. Por 24 anos, ele faz parte do Grupo de Marionetes do Teatro San Martín,
em Buenos Aires. Ele é, desde 2012, membro do Comitê Executivo da UNIMA internacional e Presidente da
Comissão de Formação Profissional. Colaborou com a antiga Comissão para a América Latina. Ele é o Secretário
Geral da UNIMA Argentina.
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que não sabe contar histórias, que o que ela sabe é costurar. Angélica reclama que o pai
sempre o faz, pergunta se o pai está trabalhando, se demora para voltar. A mãe encontra
uma solução entre os vinis de um velho toca-discos: há histórias cantadas. Angélica ainda
pede a história de como papai e mamãe se tornaram namorados. A mãe tenta negociar
pondo no toca-discos a história cantada. Angélica pede para a mãe ficar no quarto e ainda
não apagar a luz. Com os primeiros acordes a mãe vai trabalhar na máquina de costura. O
público assiste, na tela que faz as paredes do quarto, à narração da mãe por meio de suas
costuras que viram os sonhos de Angélica. Numa segunda etapa de trabalho, com dois
retroprojetores simultâneos, a pesquisa se radicalizou no universo das costureiras. Não
se visava utilizar silhuetas desenhadas. Foram construídos personagens com objetos
encaixados visivelmente e técnicas daquele universo referencial. Na pequeníssima
superfície do retroprojetor como palco, os atores foram desafiados a animar com agulhas
de crochê, botões, tesouras, bastidores para bordado, alfinetes que tinham a chance de
sugerir um universo visual para além de suas materialidades. A escolha dos objetos se
centrou nas suas naturezas projetáveis e na capacidade evocativa, metafórica das
sombras que deles se obtinham. Foram meses de pesquisas organizadas em duas etapas,
tendo como resultado uma primeira mostra de “trabalho em processo”, em 2015 e a
estreia, em 2016. Lembro que durante o segundo Festival Mozart en La Habana, um dos
representantes da Fundação Mozarteum de Salzburgo, expressou-se com admiração pelo
poder cativante daquele universo nascido da poética do cotidiano, do diminuto. Na
Havana do século XXI, por meio de nossa proposição pela simplicidade, a atenção de
jovens armados com telefones celulares foi captada. Conseguimos dialogar com eles sobre
amor, ativando artefatos arcaicos, apelando pela afetividade dos objetos na nossa
memória; o que talvez para a modernidade líquida, seja barroquista demais!
Até a chamada desse colóquio, eu não tinha racionalizado a constância deste
cruzamento em que objetos são projetados para nossas animações sombristas; o que ao
cabo de dez anos quiméricos, só consigo compreender em sua hibridez, como esse
barroquismo que acontece além de nossa consciência, e onde hoje venho a me reconhecer
tendo vocês como testemunhas. Talvez seja ali, na hedônica, agônica fricção dos
cruzamentos onde a animação aconteceu. E já que andei todo este tempo me
acompanhando de Alejo Carpentier, gostaria de parafraseá-lo com a epígrafe do seu

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romance23: "Na harpa, quando ressoa, há três coisas: a arte, a mão e a corda. No homem:
o corpo, a alma e a sombra". Acabo assim este meu relato sobre El Arca e a Sombra.

REFERÊNCIAS
CARPENTIER, Alejo. La ciudad de las columnas. España: Revista PH, número 14, 1996.
Disponível em:
http://www.iaph.es/revistaph/index.php/revistaph/issue/view/14/showToc#.W4NKyOhKjIU.
Acesso em: 10 de abr 2018.

DIÉGUEZ. Dianelis. Las joyas titiriteras de Gastón. La Habana: Tablas, 2012.

TABOADA, Daniel. Del barroco colonial cubano. su expresión en la arquitectura


religiosa de La Habana. Disponível em:
<https://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/3cb/documentos/072f.pdf>. Acesso em: 10
abr. 2018.

VALIÑO, Omar. Mosaico Titiritero. La Habana: Tablas, 2012

APÊNDICE

Figura 01: Palácio de Conde Cañongo

Fonte: RECIO, Liliana, 2010

23
CARPENTIER, Alejo. El arpa y la sombra. Madrid: Ed. Siglo XXI, 4ª ed. 1979.

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on

e Figura 02: El Gato de Lilo

Fonte: RECIO, Liliana, 2010

Figura 03: Vídeo projeção, silhuetas e atores em El gato de Lilo

Fonte: RECIO, Liliana, 2010

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Figura 04: Objetos projetados nos cenários de El Gato de Lilo

Fonte: RECIO, Liliana, 2010

Figura 05: Bastian y Bastiana

Fonte: RECIO, Liliana, 2015

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Figura 06: Bastiana navegando em carretel

Fonte: RECIO, Liliana, 2015

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KANTOR E O TEATRO DE ANIMAÇÃO: UMA LINHA TÊNUE

Igor Gomes Farias1

Resumo
Este artigo procura discutir sobre o fluente diálogo entre a obra do encenador Tadeusz
Kantor e o universo do Teatro de Animação. Procuramos estreitar aqui a linha tênue
perceptível entre trabalhos aparentemente tão distintos, mas que se cruzam e contribuem
de forma mútua em diversos aspectos. Partindo das originais utilizações do objeto, bem
como do histórico flerte de Kantor com as formas animadas, expandimos nosso olhar em
torno do uso dos manequins de cera e dos temas ligados à vida e à morte no teatro
kantoriano. Assim, procuramos refletir sobre como estas expressões artísticas podem
estar estreitamente ligadas em muitos aspectos e como contribuem para um teatro cada
vez mais híbrido.
Palavras-chave: Tadeusz Kantor. Teatro de Animação. Objeto.

Abstract
This article brings to discussion the fluent dialogue between the work of the director
Tadeusz Kantor and the universe of Puppet Theater. We try here to narrow the tenuous
line between works that are apparently so diverse, but that also cross and contribute to
each other in different ways. Starting from Kantor’s original uses of the object, as well as
his historical flirtation with the animated forms, we expanded our gaze on the use of wax
manikins and themes related to life and death in the Kantorian theater. Thus we try to
reflect on how those artistic expressions can be closely linked in many ways and
contribute to an increasingly hybrid theater.

Keywords: Tadeusz Kantor. Puppet Theater. Object.

Introdução
Tadeusz Kantor, (1915-1990), destaca-se como um dos grandes nomes do teatro
no século XX. Este polonês era artista plástico, cenógrafo, professor, encenador, ator e
happener. A infinidade de substantivos que o define talvez explique um pouco o seu teatro
marcado pela forte alquimia de elementos que, em cena, eram apresentados sem
hierarquia diante do público (CINTRA, 2012). “O teatro, para Kantor, é o conjunto de texto,
ator, objeto e espectador, e todos igualmente importantes” (AMARAL, 1991, p. 201). Estas

1 Ator e pesquisador. Graduado em Artes Cênicas pela UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina. Integra
o Grupo Teatral Abaporu e o projeto de pesquisa “A Máscara e o Ator: experimentando métodos”, coordenado
pela Profª Maria de Fátima de Souza Moretti, na UFSC.
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características também fazem o teatro kantoriano ser até hoje inspiração para distintas
produções cênicas, tais como o Teatro de Animação – em especial o Teatro de Objetos.
Enquanto estudava na Escola de Belas Artes de Cracóvia, (1934-1939), Kantor teve
contato com o teatro de bonecos através do seu professor Karol Frycz, discípulo de
Edward Gordon Craig (AMARAL,1991). A partir de então, ele flerta com esta técnica,
posteriormente melhor desenvolvida por ele através de seus manequins de cera no seu
espetáculo Cricot2. Estes são apenas alguns apontamentos que começam a desenhar uma
linha tênue entre o trabalho do artista e o teatro de animação.
Desde o início de seu trabalho como encenador, Kantor passa a trazer para a cena
objetos destinados ao lixo, ressignificando-os à sua maneira, junto dos demais
componentes do seu teatro, de modo que diante do público tudo se revelasse de uma
maneira inovadora (CINTRA, 2012). Nos espetáculos de Kantor o objeto não surge mais
somente como um simples instrumento para utilidades comuns em cena. "Em seu teatro,
o objeto é valorizado no sentido de criar a tensão. Tensão que está presente entre os
diversos elementos da cena" (CINTRA, 2012, p. 12). Aqui, portanto, já identificamos uma
utilização fundamental que nos abre caminhos para pensar a obra kantoriana sob a ótica
que propomos neste artigo.

Madeira, ferro, pano, livros, roupas e objetos inusitados ganham uma notável
qualidade tátil e uma intensidade cuja procedência não é fácil de explicar. Um
fator essencial aqui é a sensibilidade do artista Kantor para aquilo que designou
como "objeto miserável" ou "a realidade de mais baixo nível". As cadeiras são
gastas, as paredes têm buracos, as mesas são cobertas de poeira ou cal, os velhos
utensílios se encontram enferrujados, embaçados, gastos, marcados e
manchados. Nesse estado eles manifestam sua vulnerabilidade e com isso sua
"vida" em uma nova intensidade (LEHMANN, 2007, p. 120).

O uso do objeto em cena é um grande elo entre a obra de Tadeusz Kantor e o Teatro
de Animação. Nas encenações kantorianas a cena era recorrentemente invadida por este
elemento, bem como por bonecos de cera que conferiam uma particularidade especial ao
trabalho do polonês durante a segunda metade do século XX (MORETTI, 2003).
Também encontramos esta forte ligação, entre assuntos aparentemente tão
díspares, nas temáticas que estão implícitas nos dois casos: a vida e a morte. Tanto Kantor,
quanto o Teatro de Animação, tratam e perseguem fortemente estes temas. O primeiro
vale-se de sua própria vida para executar um trabalho no qual a morte torna-se uma fonte
inesgotável de inspiração; o segundo tem seu alicerce justamente no contraste
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permanente entre estes temas e tem poder de explicitar a vida em sua ausência, ou seja,
na própria morte.
Tadeusz Kantor modela o que se solidificou na vida comum e transforma isto em
matéria eficaz, num local onde o vazio é potência artística e criadora, buscando espelhar
diante do espectador as dualidades que nos definem enquanto seres humanos. “Toda a
obra de Kantor é bem um diálogo com a realidade, mas, através da realidade degradada,
já é uma aproximação da morte” (BABLET apud KANTOR, 2008, p. 43).
Antes de prosseguir este estudo, no entanto, é necessário ressaltar o fato de que
Kantor nunca se enquadrou completamente dentro do Teatro de Animação. Mesmo tendo
desenvolvido durante sua vida um forte flerte com os recursos dessa modalidade de
teatro, ele desenvolve seu trabalho num campo onde as técnicas animadas não eram os
instrumentos principais. O objeto, segundo alguns críticos da obra kantoriana, surge em
Kantor apenas como mais um dos tantos fatores articulados dentro de um teatro
totalmente completo e amplo (CINTRA, 2012). Entretanto, é possível observar que o
encenador traz em seus trabalhos inúmeras características que o aproximam destas
técnicas e que também passam a servir de modelos a serem seguidos e repensados dentro
deste teatro. Essa, portanto, é a maior importância desta aproximação que propomos.

Para Kantor, a criação artística necessita de enfrentamentos e riscos para que


seja possível se engajar em um processo de descobertas constantes. Por esse
caminho, o problema do objeto torna-se um desafio no conhecimento da sua
gênese e, mais ainda, na direção do entendimento do teatro em um processo de
criação no qual o objeto se torna ator. E no mesmo processo, o ator torna-se
objeto (CINTRA, 2012, p. 16).

Não percebemos em Kantor a forte tendência de seu período histórico em dar


anima aos objetos e transformá-los em bonecos. O que se destaca aqui é uma nova e ampla
percepção do objeto no palco. "Tudo aquilo que está materialmente presente na cena,
mesmo que colocado ao acaso, torna-se significante somente por sua presença no
universo cênico e, consequentemente, possibilita a leitura de algum significado" (CINTRA,
2012, p. 12).
O teatro de animação serve de importante instrumento para Kantor trabalhar suas
apaixonantes temáticas. Os objetos passam a significar muito no universo apresentado
pelo encenador ao público. Seguindo as tendências das vanguardas da sua época, Kantor
percebe nestas técnicas um interessante campo a ser pesquisado e utilizado nos seus

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trabalhos no teatro. "Com Kantor, [...] os atores humanos entram em um espaço de atuação
das coisas. Desaparece a hierarquia que constitui uma necessidade vital para o drama, no
qual tudo gira em torno da ação humana e as coisas existem apenas como acessórios,
como o 'necessário'" (LEHMANN, 2007, p. 121). O objeto torna-se, portanto, tão
primordial quanto o ator, o diretor e os demais elementos da cena.
“Embora o objeto continue a existir e a exibir a sua natureza mesma, as relações
imediatas entre os significantes e os significados são destruídas em função da
reconstrução de um novo conteúdo, ou seja: o objeto não ilustra mais o conteúdo. Ele é o
próprio conteúdo” (CINTRA, 2012, p. 13). Nos trabalhos de Kantor, o objeto compõe
significativamente com toda a estrutura cênica do espetáculo. O objeto aqui também é
poesia, drama, terror e o que mais o encenador quiser que ele seja no seu novo universo
criado na cena.
Assim como ocorre no teatro de animação, fica também evidente como o teatro
kantoriano é fortemente visual. O encenador polonês era mestre na arte de criar imagens
fortes e em como tratar essas em suas criações. "Kantor não cria a imagem pela imagem;
não, ela é constituída de uma série de vivências históricas e de experiências poéticas que
se avolumam e se sobrepõem nesse lugar insólito onde a sua imaginação tem o poder
pleno de liberdade" (CINTRA, 2012, p. 46). As imagens do teatro kantoriano são fruto da
imaginação e da rica memória do artista, que viveu numa Polônia marcada pelos
acontecimentos aterradores do século XX.
As fortes lembranças e as memórias que caracterizam o teatro de Kantor se
relacionam diretamente com o uso dos objetos. Esses integram e interferem
profundamente no jogo que se instaura entre os atores nos palcos. "É quase o caso de
dizer que o diálogo verbal do drama é substituído por um diálogo entre homem e objetos"
(LEHMANN, 2007, p. 121). Com esta importante inserção do objeto e de outras
características que veremos na sequência, a obra de Kantor passa a servir como enorme
fonte de estudos para profissionais que trabalham com o teatro de animação e a inspirar
um teatro cada dia mais híbrido. Todos os fatores que aqui apresentaremos se traduzem
em uma fonte extraordinária de ensinamentos aos profissionais que lidam com esse
gênero teatral até os dias atuais: seja pelo emprego dos objetos, pelos bonecos de cera ou
pelos temas perseguidos em suas composições.

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O objeto cotidiano em cena
Iniciamos nosso estudo procurando entender a origem dos objetos presentes na
cena de Kantor. É preciso compreender de onde o artista polonês retirava os mais
distintos objetos que compunham seus trabalhos, além dos critérios que ele empregava
para estas escolhas. Kantor tinha um olhar seletivo na escolha de tudo que integraria
estética e psicologicamente suas obras. Os chamados ready-mades estão fortemente
presentes nos seus espetáculos. Ele segue alguns exemplos dos artistas de vanguarda de
seu tempo, como Marcel Duchamp e seu urinol exposto como obra de arte em uma galeria
(MORETTI, 2003, p. 104). O polonês persegue estes ideais e, com sua vasta experiência no
campo das artes plásticas, nutre um verdadeiro apreço pelos objetos mais simples, que
para ele eram os melhores para manifestar a sua chamada natureza artística.

De acordo com a sua convicção, os objetos mais pobres, desprovidos de


quaisquer prestígios, são capazes de revelar suas qualidades de objetos em uma
obra de arte. A existência desses objetos, utilizados à imagem do homem, mas
sem nenhuma humanidade, é uma manifestação desse lado tenebroso, noturno,
revoltado e cruel do ser humano (CINTRA, 2012, p. 13).

Kantor procurava sempre utilizar objetos que pertenciam ao dia a dia, que faziam
parte da rotina de vida, e que estavam naturalmente envoltos de uma história e de
inúmeros significados. O encenador falava da ideia de uma realidade de classe mais baixa,
ou seja, de objetos destinados ao lixo. Ele recorria frequentemente às lixeiras e a depósitos
e buscava aqueles objetos que depois de muito uso, já sem muita utilidade nas tarefas
cotidianas, haviam sido descartados por seus donos (CINTRA, 2012, p. 30). O artista os
leva para a cena e transforma-os radicalmente diante dos olhos confidentes do público.
Um dos grandes exemplos de tal utilização são os bancos escolares do seu mais notório
espetáculo: A Classe Morta. Sendo emprestados da vida cotidiana, onde eram
naturalmente destinados ao ensino e relacionados fortemente com a infância, eles se
tornam instrumentos artísticos para provocar a lembrança da morte, remetendo a
túmulos e prisões para as personagens de aparência envelhecida: "por serem
extraordinariamente reais e concretos, os bancos impõem imediatamente a sua presença,
ocupam o espaço de maneira massiva e estável" (KANTOR apud CINTRA, 2012, p. 82).

Todo o trabalho de Tadeusz Kantor foi sempre uma reflexão cruzada entre a arte
e a realidade que se fundamenta, desde o início, no desejo de destruir e
reconstruir a forma a partir da matéria bruta, liberar o objeto de sua função
prática e fazer obra de arte com os dejetos da realidade, com a realidade
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abandonada e esquecida nas lixeiras. Sua arte se situa, então, entre a eternidade
e as latas de lixo, no sentido de a arte tender à eternidade - e somente a arte pode
ser eterna - e através dela o ser humano realiza o desejo de eternidade (CINTRA,
2012, p. 18).

Kantor traz objetos abandonados e já sem uso prático para seus espetáculos. Neles,
o objeto assume uma carga artística, deixa de ser algo esquecido, abandonado por alguém,
e ganha uma importância ímpar na cena. Eles não têm mais o seu brilho original, não são
peças saídas diretamente das prateleiras das lojas. O encenador idealiza objetos que
representam verdadeiros dejetos da vida, que estejam gastos e marcados pela ação do
tempo (CINTRA, 2012, p. 19), e que, mesmo assim, possam ganhar uma nova realidade
nos palcos. Neste ponto podemos fazer uma aproximação com o teatro de animação.
Assim como este teatro tem a capacidade de imprimir vida a algo inerte, conferindo ao
boneco, ao objeto, uma “nova forma de vida”, o objeto kantoriano também trilha um
caminho semelhante.
“Tudo aquilo que está materialmente presente na cena, mesmo que colocado ao
acaso, torna-se significante somente por sua presença no universo cênico e,
consequentemente, possibilita a leitura de algum significado” […] (CINTRA, 2012, p. 12).
Kantor, através de um objeto já gasto e destinado ao descarte, evidencia a arte ali
escondida, uma arte que só se manifesta graças a uma interferência do próprio artista,
que o coloca em uma perspectiva totalmente nova diante do público.

O teatro de formas animadas trabalha muito com o objeto, seja ele o do cotidiano
ou aquele confeccionado especialmente para determinados espetáculos. [...] A
primeira imagem do objeto em cena nos remete sempre ao que ele é no cotidiano,
contudo, à medida que vai recebendo movimentos e sendo mais bem observado,
começa a se modificar. Muitas vezes, o objeto animado serve apenas como
adereço, existindo a tentação de transformá-lo em um simples instrumento de
expressão plástica. Poucas vezes, ele é um personagem completo, mesmo porque
para que ele seja um personagem completo deve ser destituído de sua função
habitual (MORETTI, 2003, p. 38).

A aproximação entre as particularidades do objeto kantoriano e o teatro de


animação prossegue, ainda, ao constatarmos que Kantor também utiliza esse junto à
imagem de seus atores. A vida, presente nesses últimos, e a morte, ainda mais gritante nos
objetos degradados, são aqui também contrastadas. Todos os significados implícitos no
objeto, almejado por Kantor não permitem que o ator relacione-se de maneira comum
com ele. "Ao se utilizar de uma cadeira quebrada, destinada ao lixo por sua falta de
utilidade, este ato de sentar torna-se um ato único, primordial e em meio aos escombros,
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a arte, o teatro, escreve um novo capítulo do gênesis. Uma nova fase de criação, criação
puramente humana" [...] (CINTRA, 2012, p. 31-32). A natureza dos objetos kantorianos,
portanto, influencia fortemente a atuação dos seus atores. É preciso aqui estabelecer uma
nova relação com aquele objeto já carregado de muita história e marcado por degradações
do tempo.

Relação ator-objeto e as maquinarias kantorianas


Kantor cultivava um imenso respeito pelo objeto e também cobrava isso de seus
atores. Podemos perceber aqui mais um ponto que o aproxima muito do teatro de
animação, especialmente do teatro de objetos. Para utilização destes em cena é preciso,
antes de tudo, respeito à sua natureza física. “Kantor sempre criticava a forma com que os
atores tratavam o objeto” (MORETTI, 2003, p. 108).
O novo caminho estabelecido por Kantor se traduz numa relação diferenciada
entre o ator e o objeto: o objeto apresentava-se ao ator de maneiras inesperadas,
chegando a se fundir com ele e tornando-se verdadeira extensão de seu corpo. “Ele
frequentemente repetia, como provocação, que os objetos eram mais importantes do que
eles" (CINTRA, 2012, p. 14). Para alcançar uma melhor relação, é preciso primordialmente
respeito pelo objeto e estabelecer uma relação de igualdade junto a ele. Esta era uma lição
de Kantor a seus atores.
A relação ator-objeto era um elemento de extrema importância no trabalho de
Kantor. Ao longo de seus espetáculos é possível visualizar uma presença cada vez maior
e constante deles no palco, que muitas vezes chegavam a ser praticamente manipulados
pelo ator em cena e surgiam numa espécie de prótese junto ao corpo do artista (CINTRA,
2012, p. 15).
Um dos exemplos mais conhecidos a respeito da fusão objeto-ator no teatro
kantoriano encontra-se no personagem violinista, do espetáculo Wielopole Wielopole.
Kantor faz uma completa fusão entre o homem e seu instrumento musical, que sustenta a
existência de seu dono em cena. Ator e objeto tornam-se um só, não somente pela
estrutura ligada ao corpo da personagem, como também pela caracterização do ator no
mesmo tom de cor e textura do violino. O violino à manivela é aqui uma completa extensão
do seu manipulador, como ocorre frequentemente no teatro de animação. "Aparatos
surreais [...] se acoplam aos membros dos atores de um modo bizarro. As repetições de
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atividades triviais - mas com efeito poético - junto aos objetos ou fazendo uso deles fazem
com que ações sejam experimentadas com uma troca linguística entre homem e objeto"
(LEHMANN, 2007, p. 123).
Estas experimentações do encenador polonês reforçavam ainda mais as tensões no
seu teatro e, aqui principalmente, a existente entre o ator e o objeto. Dentre tantos outros
exemplos em suas obras, Kantor prende o sapato de um de seus atores a uma estrutura
fixa de madeira com rodas de bicicleta (que não tocam o chão) presas nas laterais. O ator,
portanto, não pode se locomover e o único movimento que consegue executar é o de girar
as duas rodas com suas mãos. Aqui o homem torna-se refém e presa do objeto.

Kantor exigia que o ator tivesse com o objeto um contato real e não mecânico.
[...] Quando repetidos, os movimentos ocorrem em um outro sentido, eles deixam
a realidade da vida e passam para a realidade da arte, pois são privados da
prática da vida: Kantor era excepcional em seu culto do objeto. Ele conseguia
provocar situações que levavam o ator a se estender verdadeiramente através
dele, e que articulados no jogo cênico, constituíam-se nos elementos
fundamentais da construção do espetáculo (CINTRA, 2012, p. 15).

O uso do objeto era também uma forma legítima de Kantor mostrar a seu ator o
que almejava ver em cena. Na maioria das vezes o objeto servia de espelho para este. O
encenador fazia um paralelo entre a figura dos dois e chamava a atenção de seu ator para
o objeto como sendo seu parceiro de cena: o objeto é o que ele é na sua realidade e no
palco, não precisa e nem pode fingir ser outra coisa como o ser humano. Além disso, havia
também a busca por atores ready-men, sem precisar representar algo que não sua própria
natureza (CINTRA, 2012, p. 16).
Kantor por diversas vezes contava com atores sem longa experiência profissional,
como no espetáculo O Casamento (1986), no qual trabalhou com inúmeros atores
iniciantes e até não-atores. Esta relação com o objeto, portanto, contribuía ainda mais
para a “preparação” destes, bem como para um resultado mais satisfatório nos palcos. "O
ator deveria incessantemente adaptar o seu jogo à forma do objeto. [...] O ator deveria se
empenhar para dar, de qualquer maneira, vida a essa construção" (CINTRA, 2012, p. 42).
Os próprios objetos que integravam o cenário do espetáculo interferiam efetivamente na
atuação dos atores.
Além dos cenários repletos de objetos retirados do lixo e dos próprios depósitos
dos teatros, Kantor também era mestre em alterá-los radicalmente e construir
interessantíssimas maquinarias para seus espetáculos. Falamos de objetos híbridos, que
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eram resultados de misturas muito curiosas (CINTRA, 2012, p. 94). O encenador utilizava-
se destas para criar uma atmosfera singular na cena e até oferecia inúmeras
possibilidades na sua manipulação. Em diversos casos, por exemplo, o objeto que
acompanha o ator durante a cena pode transformar-se numa outra coisa.
Um dos exemplos mais conhecidos das maquinarias kantorianas é uma criação
presente no espetáculo Wielopole Wielopole, a chamada máquina fotográfica de Kantor.
Este objeto, já carregando o significado de eternizar um momento por meio de uma foto
(paralisando a realidade momentânea ao disparo de um flash), torna-se na sequência uma
metralhadora que extermina as personagens presentes em cena – que são soldados indo
para a guerra. “A metamorfose é evidente, um inofensivo aparelho de uso cotidiano revela
o seu lado mais vil enquanto objeto: um instrumento da morte. Nesse contexto, a
personagem, a profissional da imagem, também revela sua hibridez” (CINTRA, 2012, p.
125). O encenador se vale das simbologias próximas aos dois e de certa maneira funde
ambos num mesmo objeto, que se transforma nos palcos. Em outro caso, no espetáculo
Não Voltarei Jamais, temos também a uma fusão entre um arco de flecha e uma
metralhadora similar.

Em todo objeto em cena, sempre, o significante é significado de alguma coisa e


assim, na medida em que o significado imediato é destruído, um novo significado
se constrói. Porém, o significante e o significado anterior continuam existindo no
mesmo significado. Essa, notadamente, não é uma relação de negação mas de
coexistência. Dessa forma, a máquina fotográfica não se transforma em
metralhadora, mas assume a condição de também ser metralhadora devido ao
seu hibridismo. Essa relação é a circunstância que permite a criação de metáforas
que relacionam a vida com a morte, o instante com a eternidade (CINTRA, 2012,
p.128).

Toda esta pesquisa em torno dos objetos híbridos de Kantor, ampliada com esta
colocação de Cintra, contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento deste trabalho e
desta linha tênue encontrada entre a obra kantoriana e o teatro de animação. Assim como
acontece com a máquina fotográfica-metralhadora, também identificamos aqui uma forte
relação entre os temas desta pesquisa, bem como uma aproximação grande entre seus
significados e elementos. Torna-se difícil em certo momento denominar onde inicia e
onde termina este cruzamento de trabalhos. Precisamos ressaltar aqui a forte qualidade
híbrida de todo o legado de Kantor. Seu trabalho era resultado de uma grande mistura,
que claramente incluía o teatro de animação. Isto fica evidente tanto pelo seu histórico
flerte com as técnicas deste gênero teatral, quanto pela análise de suas produções.
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Embora reconheçamos pontos díspares entre o teatro kantoriano e o de animação,
é cada vez mais perceptível esta proximidade existente entre ambos. Ampliando nossas
discussões abordaremos o que é visivelmente a utilização que mais fortemente aproxima
os assuntos aqui tratados: os bonecos de cera de Kantor.

O boneco de cera e o ator desumanizado

São célebres os bonecos quase em tamanho real que os atores carregam. Para
Kantor, os bonecos são algo como a essência primordial e esquecida do ser
humano, seu Eu-lembrança que ele continua a levar consigo. No entanto, a
significação deles vai mais longe. Em uma espécie de troca com os corpos vivos
e em conexão com os objetos de cena, eles transformam o palco em uma
paisagem de morte em que a transição das pessoas (com frequência agindo a
maneira dos bonecos) para os bonecos (como que animados por crianças) se
torna imperceptível (LEHMANN, 2007, p. 121).

Dentre os elementos que aproximam Kantor do teatro de animação, o


boneco/manequim de cera é sem dúvida o que melhor consolida e ilustra tal aproximação.
O uso deste recurso é amplamente conhecido por todos que estudam a obra do encenador
polonês e destaca-se como uma das principais características do seu teatro. Apesar de
utilizar frequentemente estes objetos, em vários de seus espetáculos, é em sua obra mais
popular, A Classe Morta, que ocorre o ápice da presença dos bonecos de cera na cena
kantoriana.
Curiosamente, o uso dos manequins no teatro de Kantor também é o maior
exemplo da manifestação da morte em cena: "o manequim nada mais é do que a expressão
absoluta da morte, do vazio e da vacuidade" (CINTRA, 2012, p. 223). Nos bancos da classe
de alunos mortos, os manequins são a realidade evidente da morte contrastada com as
personagens degradadas daquele universo. "As figuras de cera são, na verdade, o duplo
dos atores vivos e os atores lembram a imagem dos manequins, o que se pode chamar de
existencial do manequim-figura de cera. Mas existe também uma dimensão histórica, na
qual o manequim simboliza a impotência do homem" (MORETTI, 2003, p. 67).
No teatro de Kantor, a grande maioria dos bonecos de cera era feita à imagem e
semelhança dos atores que os carregavam no palco como duplos de si mesmos - um duplo
inerte e sem vida. "A ideia dominante do espetáculo é fazer as pessoas velhas retornarem
à escola para reencontrarem a sua infância perdida que é simbolizada pelos manequins

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de crianças em uniforme escolar que são carregadas como tumores pelos velhos"
(CINTRA, 2012, p. 175).
Em diversos momentos não é possível identificar quem é humano e quem é boneco,
ambos se perdem no emaranhado de elementos da classe morta de Kantor. Assim como
muitos dos bonecos foram feitos à imagem dos atores, estes últimos também se
aproximam de maneira impressionante dos primeiros por meio de suas caracterizações e
movimentações. Nos bancos da classe morta não sabemos muitas vezes dizer quem está
vivo e quem está morto, "o manequim representa uma espécie de protótipo, um modelo
para o ator, um modelo não no sentido de que o ator deva imitá-lo, mas no sentido de
atuar com o objeto" (MORETTI, 2003, p. 64).
Uma das utilizações recorrentes no teatro kantoriano, e que o direciona ainda mais
para uma relação com o teatro de animação, diz respeito também a uma certa
"bonecalização" do ator. Tanto na composição visual dos atores, como nas próprias ações
realizadas por eles, parecia haver uma enorme preocupação de Kantor em aproximá-los
dos bonecos: "o manequim como cópia do corpo humano, do ator, do personagem, cópia
dele mesmo" (MORETTI, 2003, p. 23).
Em muitos momentos, o contraste ator-boneco ganhava novos níveis ao
desumanizar o primeiro e humanizar o segundo. "Kantor define que o ator não é um
manequim, mas um manequim-ator, ou melhor, uma figura de cera como ator. Ele se diz
um grande admirador de Madame Tussaud e do seu museu de cera. [...] A ilusão de morte
que a figura de cera transmite é o que mais fascina Kantor" (MORETTI, 2003, p. 66). Toda
esta composição acrescentava muito na atuação dos atores e reforçava ainda mais as
temáticas da vida e da morte no seu teatro, bem como delineava uma aproximação com o
teatro de animação, que segue por caminho semelhante.

O ator e a figura de cera, dois elementos do teatro de Kantor se interpenetram. O


ator como figura de cera, a figura de cera como a imagem do ator. O ator dá a
aparência da morte. A figura de cera dá a aparência da vida. Este jogo de
aparências está na base da atuação do ator de Kantor. Para igualar sua presença
e seu poder expressivo, Kantor lhes põe em conflito, um contra o outro. A figura
de cera é um reflexo morto da vida, o ator um reflexo de morte com vida. [...] O
ponto de partida para nossa busca de teóricos que se relacionam ao teatro de
objetos encontra, nos bonecos de cera e nos atores de Kantor, a temática crucial
que norteia seu teatro: o impasse entre a vida e morte (MORETTI, 2003, p. 58).

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O manequim, segundo o próprio Kantor, aparece no seu teatro "como manifestação
da realidade mais trivial. Como um processo de transcendência, um objeto vazio, um
artifício, uma mensagem de morte, um modelo para o ator" (KANTOR apud CINTRA, 2012,
p. 14). Vários atores que trabalharam com Kantor, relatam o fato dele sempre pedir
imensa atenção aos bonecos de cera que estavam no palco junto deles. Esta importância
dada pelo polonês a estes objetos, reflete-se principalmente nesta pluralidade de
significados que eles assumiam em cena. Kantor era apaixonado pelos bonecos de cera,
que funcionavam "como procedimento de transcendência, um objeto vivo, uma
mensagem de morte, uma ilusão e um modelo para o ator. Kantor é seduzido pela figura
de cera, na sua forma humana, na sua existência, e reconhece ali o sintoma da região
sombria da atividade humana" (MORETTI, 2003, p. 67).

Vida e morte: o duplo kantoriano

[…] o teatro é uma atividade que se situa nas fronteiras da vida, no lugar onde os
conceitos da vida perdem razão e significação, em que a loucura, febre, histeria,
delírio, alucinação são as últimas trincheiras da vida frente ao surgimento da
"trupe da morte", seu Grande teatro (KANTOR apud CINTRA, 2012, p. 87).

Ao nos aprofundarmos na obra kantoriana, fica evidente que a morte é o principal


impulsionador para a criação de imagens extremamente perturbadoras nos palcos.
Kantor materializa uma obra que busca a constante reconstrução de memórias e o tratar
de temas universais, em especial a morte – seu tema mais presente e central num lugar
onde o simbólico se faz presente em cada parte. “Eu não imito a morte, eu manipulo seus
signos” (KANTOR apud MORETTI, 2003, p. 67). Esta é a principal imagem de um teatro
que flerta com o absurdo e com a constante construção de emoções, estando no centro da
tensão que se desenha com tudo aquilo que parece não se encaixar na vida cotidiana.
O tema da morte está arraigado em todas as camadas do teatro do artista polonês,
pois ele acreditava que ela se estabelece em vida (CINTRA, 2012, p. 72). Isto talvez nos
ajude a entender melhor o fascínio do encenador pelo assunto, principalmente em sua
última fase que fora denominada por ele, justamente, como Teatro da Morte. Símbolos
relacionados à morte destacam-se e saltam aos olhos nos trabalhos de Kantor. A cruz é
quase que a personagem principal em todas as produções do diretor, e surge em cena das
maneiras mais curiosas possíveis, como no espetáculo Wielopole Wielopole, onde entra

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em cena representando um carro funerário (estando inclinada sobre rodas). Também
aparece como uma espécie de arma sobre os ombros de soldados partindo para a guerra.
"Ao assumir o signo da morte, a cruz se apresenta como fronteira que não significa apenas
o fim da vida, mas o limiar de outra realidade" (CINTRA, 2012, p. 79). Mais do que outra
realidade, a morte na cena kantoriana nos atenta justamente para o fato de estarmos,
ironicamente, cercados por ela durante toda a nossa vida. Isto não somente pelo fato dela
representar nosso inevitável fim, mas principalmente por ela integrar nossa realidade dia
após dia.
Na fase derradeira de Kantor, a tensão entre a vida e a morte torna-se o principal
elemento para a elaboração dos espetáculos do encenador. Descartando a visão
tradicional de construção de personagem aos seus atores, e de um texto preestabelecido,
ele estrutura as situações e os jogos resultantes de suas cenas sobre estes temas. Em Não
Voltarei Jamais (1988), o polonês surpreendeu ao elaborar uma cena muito perturbadora.
Como se estivesse trajado para um casamento, um boneco de cera, feito à imagem de
Kantor, entra em cena numa plataforma de madeira sobre rodas. No entanto, ao seu lado,
substituindo a figura da noiva encontra-se uma urna funerária. Trata-se, portanto, de um
casamento de seu manequim com a morte. "Essa imagem gerou muita polêmica entre
artistas e pensadores, pois se tratava de uma imagem que, para eles, era incompreensível,
sem nenhuma função racional" (CINTRA, 2012, p. 100). Diante de tais reações, o
encenador substituiu posteriormente a figura do caixão por uma atriz vestida de farrapos
e caracterizada como um manequim.

Mesmo a morte sendo recorrente em toda a sua obra, Tadeusz Kantor nunca
esteve interessado em explicá-la como fenômeno. Por se perceber finito
mediante a consciência da própria morte, a arte de Kantor se mostra como
sublimação da vida à espera do inevitável e é através da arte que ele realiza sua
crença na imortalidade da vida depois da morte, e de certa maneira a notória
recusa da própria destruição e o anseio pela eternidade (CINTRA, 2012, p. 209).

O tema da morte integra as produções de Kantor muito antes de sua fase final. Esta
temática sempre atraiu o polonês e permeou toda sua obra e vida. Ele atentava não
somente a uma morte como fim, mas uma morte permanente do ser e de nossa sociedade.
A morte, acima de tudo, representa o começo de algo. Além disso, interessava também a
Kantor lidar com a morte na camada da espera – naquele instante onde viver torna-se

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nada mais do que carregar um fardo, uma espera pela eminente ceifa de nossos males
enquanto seres privados de esperança (CINTRA, 2012, p. 80).
Certamente este assunto pode ser alvo de muitas interpretações, dentro inclusive
do próprio legado deixado por Kantor. No entanto, nos interessa aqui perceber como tudo
isto também aproxima muito o teatro kantoriano do teatro de animação. "No teatro de
Kantor, os polos opostos, morte e vida não se excluem mutuamente. Eles são estruturas
dialéticas inseparáveis, negam-se e se confirmam incessantemente" (CINTRA, 2012, p.
213).
Percebemos que o tema da morte está atrelado às raízes e à história do próprio
Kantor. Morando numa Polônia marcada pela Segunda Guerra Mundial, o artista não
poderia escapar de uma perseguição permanente desta temática em sua vida. Tudo que
ele faz em seu teatro é reflexo da realidade que o cercava. "Kantor aceita a morte como
necessidade de transcendência do pensamento para que a história não seja esquecida e
para que a realidade da morte se mantenha como consciência do devir" (CINTRA, 2012,
p. 214).
Identificamos nas raízes e no desenvolvimento do teatro de animação algo muito
semelhante ao que ocorre com o encenador polonês. É impossível para este teatro não
estar atrelado à temática da morte, pois esta sempre será uma realidade circundante para
ele. Por meio do trabalho com matérias totalmente inertes e opostas à natureza humana,
o teatro de animação faz aflorar a possível vida ali escondida. O duplo entre vida e morte,
portanto, assim como todas as demais características apontadas neste trabalho, caminha
junto com o teatro kantoriano e com o teatro de animação, e reforça ainda mais o diálogo
em torno desta evidente linha tênue que liga estes trabalhos.

REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. O Ator e seus Duplos. São Paulo: Senac/Edusp, 2002.
_________. Teatro de Formas Animadas. São Paulo: Edusp, 1991.

CINTRA, Wagner. No limiar do desconhecido: reflexões acerca do objeto no teatro


de Tadeusz Kantor. São Paulo: Editora Unesp, 2012. ISBN 9788539303830 Disponível
em: <http://hdl.handle.net/11449/113719>.

________. A marionete no espírito das vanguardas históricas – uma desculpa para falar de
Tadeusz Kantor. In: Móin-Móin: Revista de estudos sobre Teatro de Formas Animadas.
Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, ano 2, v. 2, p. 201-216, 2006.
ISSN 2359-5469 Novembro/2018 79
ETIENNE, Alain. Trois cahiers pour Kantor. Théâtre Public 166-167. Paris:
Gennevilliers, 2003.

KANTOR, Tadeusz. O teatro da morte. São Paulo: Perspectiva, 2008.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução Pedro Sussekind. São Paulo:


Cosac Naify, 2007.

MORETTI, Maria de Fátima de Souza. Encanta o objeto em Kantor. 2003. Dissertação de


Mestrado em Literatura. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.

_________. O ator no teatro de Tadeusz Kantor. In: Móin-Móin: Revista de estudos sobre
Teatro de Formas Animadas. Jaraguá do Sul: SCAR/UDESC, ano 1, v. 1, p. 147-166, 2005.

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CONGAS, BOTAS, SAPATOS, SAPATÕES E SANDÁLIAS:
OBJETOS E IMAGENS DO LIVRO EU SOU UMA LÉSBICA, DE
CASSANDRA RIOS (1983), NA CONSTRUÇÃO DE UM PROCESSO
COM TEATRO DE FORMAS ANIMADAS

Tuany Fagundes Rausch1

Resumo
Pretendo expor neste artigo possibilidades de criação em um processo de teatro de
animação. Considerarei objetos e metáforas que a escritora brasileira Cassandra Rios traz
no livro Eu Sou uma Lésbica (1983). Para respaldar essa análise, trarei registros e
apontamentos de pesquisadoras como Sandra Vargas e Felisberto Sabino da Costa. Este
artigo também faz parte do registro de minha participação em palestras e comunicações
no III Colóquio Internacional FITA – Festival Internacional de Teatro de Animação, que
aconteceu em junho de 2018 na cidade de Florianópolis/SC.

Palavras-Chave: Teatro de Animação. Lesbianidades. Cassandra Rios. Colóquio FITA.

Abstract
I intend to show in this article the creating possibilities in a process within Puppet
Theater. Objects and metaphors that the brazilian writer Cassandra Rios brings in her
book Eu Sou uma Lésbica - I am a lesbian (1983), will be considered. To support this
analysis, I will bring records and notes from researchers Sandra Vargas and Felisberto
Sabino da Costa. This article is also part of the material I presented in lectures and
communications in the III International Colloquium FITA – International Festival of
Puppet Theater, which happened in June 2018 in Florianópolis city, Santa Catarina State,
Brazil.

Keywords: Puppet Theater. Lesbianities. Cassandra Rios. Colloquium FITA.

Amor, meu grande amor


Só dure o tempo que mereça
E quando me quiser
Que seja de qualquer maneira

Enquanto me tiver
Que eu seja a última e a primeira
E quando eu te encontrar
Meu grande amor, me reconheça

Música: Amor, Meu Grande Amor | Letra de Angela Ro Ro (1996)

1
Mestranda em Artes Cênicas na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais. Orientada por Maria
do Socorro Calixto Marques. Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Teatro pela Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC) e integrante e co-fundadora da entreAberta Cia Teatral, em Florianópolis/SC.

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Escrevo aqui reflexões feitas no início do mês de março do presente ano, no que
tange à proposta e ao desenvolvimento de minha pesquisa de mestrado, que culminará na
escrita de uma dissertação e na apresentação de um processo criativo em teatro de
animação.
Graduada em Santa Catarina, fui aventurar-me em terras mineiras atrás de algo
que me move há algum tempo, e que me fez dar esse passo arriscado de mudar de cidade,
estado e universidade: meu trabalho com teatro de animação e meu amor por mulheres.
Paradoxalmente, as mulheres mais presentes e importantes para mim até o
momento ficaram em Florianópolis: minha mãe, minha namorada e minha parceira de
companhia teatral - com quem divido os palcos e meu prazer em atuar com teatro de
sombras. Foram elas que me deram apoio total nessa mudança, e é a elas que dedico
minha intensa busca por instrumentalizar-me teórica, poética e tecnicamente nos
caminhos do teatro de animação, buscando criar uma narrativa sobre amor entre duas
mulheres.
Falarei a partir de mulheres, que me trouxeram até aqui, e que me levarão além de
onde estou agora. Mesmo falando de alguns autores, tomo a liberdade de tornar os artigos
femininos como universais neste artigo, visto que mulheres são a maioria em meu
trabalho.
Dito isso, comecemos!
Minha fonte de pesquisa é o livro Eu Sou Uma Lésbica (1983), escrito pela autora
brasileira Cassandra Rios. Essa obra foi publicada primeiramente como folhetins na
Revista Status2, em 1980, e posteriormente, em 1983, como livro pela editora Record.
Já numa primeira leitura, notei grande sensibilidade de Rios ao retratar conflitos e
amores da protagonista da trama. No romance, Flávia narra em primeira pessoa as
memórias de sua infância até a idade adulta. Fala sobre seus amores, relembra desilusões
e reflete como lida com conflitos acerca de sua sexualidade.
Como lésbica, identifiquei-me em muitos pontos com a personagem, mas também
discordei de outros. Apesar do intervalo temporal entre a publicação do livro e o início de
minha pesquisa, além de avanços e retrocessos no que tange as discussões sobre

2
A Revista Status foi a primeira revista masculina do país, famosa por capas e ensaios de artistas seminuas,
publicada pela Editora Três. Ao que consta “Status nasceu como uma publicação sofisticada, para um público de
formação universitária, de classes média e alta, que apreciavam literatura, gostavam de saber de temas atuais de
cultura e política e ler longas entrevistas.” Disponível em:
<https://istoe.com.br/134439_AS+HEROINAS+DA+RESISTENCIA/?pathImagens=&path=&actualArea=inter
nalPage>. Acesso em: 24 jun. 2018.

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homossexualidade, julgo as vivências e questionamentos feitos pela protagonista como
extremamente atuais e dignos de nota.
Cassandra Rios trabalha com autoafirmação entre mulheres lésbicas3, colocando-
nos como mulheres com problemas pessoais, dúvidas, medos, que amam e sentem tesão,
são agentes sexuais que sentem - e fazem sentir - prazer com outras mulheres. São
personagens que refletem sobre sua condição de vida enquanto lésbicas. Isso é uma
perspectiva que contradiz os papéis de gênero pelos quais mulheres seriam responsáveis
dentro de nossa sociedade. A imagem de mulher como um ser frágil, passional, que
necessita de um homem – literal e epistemologicamente - para “ser completa”, é bastante
problematizada nos romances de Rios. Sobre o contexto político e cultural das publicações
literárias de Cassandra Rios, Lucia Facco e Maria Isabel Castro Lima nos dizem que:

O governo militar inseriu o país no contexto da indústria cultural, incentivando


fortemente a produção de arte de baixa qualidade, erroneamente interpretada
como “popular”, oferecendo às massas a diversão barata da televisão, com
programas de auditório, pornochanchadas e telenovelas, amortecendo,
dessa forma, a consciência do povo. Enquanto os intelectuais denunciavam e
protestavam contra os desmandos do governo militar, o público assistia
passivamente aos programas de televisão. [...]
Enquanto desenrolam-se as querelas entre os intelectuais, Cassandra Rios, longe
de ser considerada uma intelectual, aparentemente pairava acima das discussões
políticas. Em meio a um intenso conflito de ideias, ela agradava imensamente a
um público médio, vendendo cerca de 300.000 exemplares por ano. Com o AI-5,
essas questões vão ser colocadas de lado, pois o governo passou a tratar quem a
ele se opunha da mesma maneira violenta. A grande questão passa a ser uma só:
a censura. Nesse contexto, a obra de Cassandra não passou despercebida pelos
censores da Revolução. Segundo o trabalho de pesquisa realizado e publicado
por Creuza Berg sobre a censura nos anos de chumbo, foram estudados
documentos levantados no período entre os anos 1964 e 1984, dos quais cerca
de 30% eram trabalhos vetados por “atentado à moral e aos bons costumes”.
Entre os assuntos atentatórios está o “homossexualismo”, que era classificado
pela censura como atentado à moral (BERG apud FACCO e CASTRO LIMA, 2004,
online)4.

[...] Ao investigarmos os textos de Rios de maneira mais aprofundada,


podemos perceber uma crítica corrosiva ao sistema hetero-patriarcal-
falocêntrico [...], que desestabilizaria, desestruturaria qualquer vestígio de
certeza a respeito de conceitos firme e previamente estabelecidos. Ela opera com
o mesmo instrumental dos tropicalistas a partir do momento em que se apropria

3
Importante pontuar que ao falar de lésbicas não viso abarcar a grande gama de milhares de mulheres, lésbicas ou
não. Como a fonte de estudo e criação de minha dissertação é um livro sobre uma protagonista lésbica cisgênera,
branca, classe média – assim como sua autora e esta autora também o são – proponho um recorte de análise. A
discussão é sobre mulheres cisgêneras, negras e brancas, de diferentes classes sociais, que se relacionam sexual e
amorosamente com outras mulheres. Aponto esses limites como necessários para o aprofundamento de
determinadas questões que acredito serem pertinentes, ainda que não abordem todas as diferentes existências de
mulheres. Viso também respeitar determinados assuntos que ainda não tenho conhecimento suficiente e tampouco
vivências necessárias para que sejam discutidos por mim no curto período disponível para a elaboração de minha
dissertação.
4
Disponível em: <https://www.labrys.net.br/labrys6/lesb/bau.htm>. Acesso em: 24 jun. 2018.

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de um modelo de “cultura de massa”, no caso uma narrativa linear repleta de
sexo, bem ao gosto popular, para subverter o modelo vigente de comportamento
feminino. (FACCO e CASTRO LIMA, 2004, online5. Grifo nosso).

Para quem a conhece e para quem nunca ouviu falar, eis uma brevíssima biografia
de uma escritora polêmica, popular e fortemente perseguida no cenário nacional. A
paulistana Odete Rios, seu nome de batismo, nasceu em 1932. Já em 1948, aos 16 anos,
Cassandra Rios dá as caras pela primeira vez em A Volúpia do Pecado. Assim como a jovem
autora, as protagonistas desse livro são adolescentes. Duas amigas que se apaixonam,
vivem seu amor, se relacionam sexualmente e têm final trágico com a descoberta do
romance por suas mães.
Em 1970 ouve-se os primeiros gritos da censura oficial da ditadura militar (1964-
1985) às produções literárias e artísticas feitas no Brasil. A bela, porém, nada recatada e
muito menos do lar, Cassandra Rios, teve mais de 30 livros censurados6 ao longo desse
período. Ela foi a autora mais vendida na década de 1980, sendo a primeira mulher a
vender um milhão de exemplares no país. Assim, o slogan dado pela Editora Record, A
autora mais proibida do Brasil, não foi à toa7 (PASSATUTO, online, grifo nosso).
No artigo de Facco e Castro Lima, elas apontam perspectivas acerca de duas
personagens lésbicas criadas por Cassandra: Débora, da obra Tessa, A Gata e Flávia, de Eu
Sou uma Lésbica – minha fonte de pesquisa.
Indivíduos pertencentes à sociedade dos anos 60 e 70, estas protagonistas de
Cassandra demonstram o fardo das limitações e proibições que carregam.
Débora, por exemplo, tem a consciência de que sua aparência difere das outras
mulheres e teme ser considerada anormal (RIOS, 1968, p.27).

E quando seus familiares descobrem sua homossexualidade, mandam-


na para longe, achando que ela era uma vergonha (RIOS, 1968, p.26).

Quanto a Flávia, diz que sentia que não podia demonstrar suas emoções e
preferia passar despercebida para não se tornar alvo de chacotas (RIOS, 1981, p.
12-13).

Eu sabia bem o que pensavam e falavam de gente como eu” (RIOS, 1981, p.51).

Flávia e Débora são personagens de seu tempo, com seus questionamentos, seus
medos e preconceitos internalizados, com as limitações impostas a seu gênero.
Personagens urbanas, inseridas no contexto urbano, são mulheres que pensam
em sua condição lésbica. E, ao mesmo tempo em que encerra estas reservas em
Débora e Flávia, Cassandra as desenha felizes e íntegras em sua sexualidade
(FACCO e CASTRO LIMA, 2004, online. Grifo nosso).

5
Disponível em: < https://www.labrys.net.br/labrys6/lesb/bau.htm>. Acesso em: 24 jun. 2018.
6
Nas referências que busquei esse número varia, mas o que prevalece é a estimativa que aponto acima.
7
Para quem se interessar, sugiro um excelente documentário sobre a vida de Cassandra Rios: Cassandra Rios – A
Safo de Perdizes, dirigido por Hanna Korich (2013), 62 min. Disponível para venda ao preço de R$5,00 em:
<https://editoramalagueta.com.br/video-sobre-cassandra-rios/>.

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Infelizmente nos dias atuais a vasta produção literária de Cassandra Rios, e demais
pseudônimos utilizados por Odete Rios, é pouco conhecida e os livros de sua autoria são
raridades, mesmo em sebos ou em lojas virtuais. A autora mais proibida do Brasil,
infelizmente ainda é conhecida como subliteratura, indigna de ser lida.
Uma escritora também muito marcante da década de 1980 é a caribenha Audre
Lorde. Seus textos são muito inspiradores e questionadores, pois refletem críticas à
comunidade feminista da época e pontuam diferenças sociais vividas entre mulheres
lésbicas negras e brancas, principalmente no cenário dos EUA, onde viveu8.
Ela escreveu sobre como a relação entre duas mulheres é uma ponte poderosa de
autoconhecimento e fortalecimento de si mesma. No artigo Os Usos do Erótico: O Erótico
como Poder, Lorde reflete justamente o que o título apresenta. Rechaçada por intelectuais
da “boa literatura”, Cassandra ficou marcada por sua obra homoerótica entre mulheres e
é justamente o poder do erótico entre mulheres que Audre Lorde aprofunda em seu artigo.
Primeiramente, o conceito é longe de ser um sinônimo de pornografia, visto que
esta, para a autora, é diametralmente oposta ao erótico. A pornografia é justamente ação
sexual desprovida de qualquer sentimento, uma tentativa de separar o espiritual do físico,
fazendo com que atos sexuais sejam tidos como banais, desprovidos de caráter político.
Lorde justifica que o erótico, assim como o gozo, faz parte do sexual, mas não só. É um ato
político para conosco e para com a sociedade em que vivemos.

O erótico, para mim, acontece de muitas maneiras, e a primeira é fornecendo o


poder que vem de compartilhar intensamente qualquer busca com outra pessoa.
A partilha do gozo, seja ele físico, emocional, psíquico ou intelectual, monta uma
ponte entre quem compartilha, e essa ponte pode ser a base para a compreensão
daquilo que não se compartilha e diminuir o medo de suas diferenças. [...] Essa
é uma das razões pela qual o erótico é tão temido, e tantas vezes relegado
unicamente ao quarto, isso quando chega a ser reconhecido. Pois uma vez que
começamos a sentir intensamente todos os aspectos de nossas vidas, começamos
a esperar de nós mesmas, e de nossos afãs vitais, que estejamos em sintonia com
aquele gozo que nós sabemos capazes de viver. Nossa sabedoria erótica nos
empodera, se torna uma lente pela qual fazemos um escrutínio de todos os
aspectos de nossa existência, o que nos leva a examiná-los honestamente em
termos de seus significados relativos em nossas vidas. E essa é uma grande
responsabilidade, surgida desde dentro de cada uma de nós, de não nos
conformarmos com o que é conveniente, com o que é falseado,
convenientemente suposto ou meramente seguro (LORDE, 2018, online).

8
Sugiro maior aprofundamento sobre sua obra escrita, principalmente os conceitos que citarei adiante e que
acredito relacionarem-se com o que defendo como pesquisa. Neste breve relato que faço aqui, infelizmente não
cabe um maior desenvolvimento teórico, ainda que pretenda realizá-lo em minha dissertação.

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A importância de Cassandra Rios, no cenário em que produziu suas obras, até os
dias atuais é fato. Com imagens e metáforas literárias que comovem e intrigam leitoras de
diferentes gerações, seus livros ainda possuem pouca popularidade. Optei como fonte da
minha pesquisa seu livro Eu Sou Uma Lésbica (1983). Acredito que através dessa obra
consigamos perceber como o erótico, como Lorde defende, em uma protagonista lésbica,
é uma agência criativa, de decisão e de tomada de posições; agência esta que é sócio-
historicamente negada às mulheres9.
Entretanto, meu trabalho não é somente uma análise literária, mas também uma
criação teatral a partir dessa análise. Sei que não será uma peça que visa retratar a história
do romance, mas ainda não sei definir como será a relação da história com a criação
dramatúrgica.
O que hoje sei é que busco criar uma peça a partir das imagens e metáforas que a
personagem Flávia traz em sua narrativa. Mas afinal, quais são elas? Como as identifiquei?
Para começar a entender meu processo com a obra, eis como foram feitas minhas
primeiras leituras do romance.
Primeiramente dividi a obra Eu Sou uma Lésbica (1983), de Cassandra Rios, em
unidades de análise. Estas consistem em frases e parágrafos que considerei relevantes
para serem trabalhados como pontos de reflexão teórica, além de termos, metáforas e
objetos que podem ser trabalhados no processo criativo teatral.
Ao todo foram separadas cerca de 130 unidades de análise, sendo posteriormente
reagrupadas em categorias de análise. Estas consistem em temas onde se encontram
uma ou mais unidades de análise. Por exemplo: reflexões na infância, cenário, frases sobre
cada personagem lésbica do livro (sejam as ditas por elas ou por outras personagens
sobre elas), amizades, relacionamentos, família de Flávia, entre outras.
Para este artigo, concentrarei na explanação sobre as unidades de análise que
fazem parte da categoria CEN (Cenário). São possibilidades para criação de bonecos,
utilização de objetos, produção de paisagens sonoras, relações entre personagens e
criação de cenas com a linguagem de teatro de sombras. Muitas ainda não sei como podem
ser trabalhadas, e só a partir do processo prático que terei amadurecimentos e ideias

9
Essa afirmação será desenvolvida em minha dissertação prevista para ser defendida em 2019.

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poéticas melhor definidas. Abaixo seguem algumas unidades de análise da categoria CEN
(Cenário) para que melhor se visualize o que apresentei até agora.10

um

dois

três

quatro

cinco

seis

10
Os excertos foram copiados virtualmente do arquivo PDF do livro Eu Sou Uma Lésbica (1983), escrito por
Cassandra Rios, disponível gratuitamente online. Foi o único exemplar que tive acesso dessa edição, feita pela
Editora Record. Não estão em ordem cronológica da história narrada pela protagonista e as anotações abaixo e ao
lado dos parágrafos foram feitas por mim para melhor organização de meus estudos sobre a obra.

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Escolhi os trechos acima para exemplificar diferentes possibilidades existentes na
rica narrativa que Cassandra Rios desenvolveu na obra em questão. Em um, Flávia narra
uma memória de sua infância, um momento no qual ela provavelmente está sozinha no
escuro do seu quarto, ouvindo toda a situação sem literalmente vê-la. Isso me remete a
uma cena no escuro, somente com falas, passos, compondo uma paisagem sonora rica em
detalhes, que nos faz visualizar a situação mesmo no escuro. Também me remete a uma
possível composição em teatro de sombras, criando a partir de memórias infantis, com
possíveis distorções e exageros de sons e imagens.
No trecho dois há uma descrição que achei muito interessante. Por mais que releia
e tente criar formas possíveis de visualizar o que Flávia descreve, não consigo enxergar o
rosto de Célia - uma colega de sua adolescência que a provoca numa festa ao falar das
intenções sexuais de Fábio, outro colega seu. Além de ter que identificar todas essas
características animalescas no rosto de uma pessoa, imaginar ela falando ou mesmo como
seria sua voz é um desafio que adoro aceitar cada vez que leio essa parte.
Os ambientes que compõem a história e o imaginário de Flávia têm íntima relação
com plantas. O jardim da casa de seus pais durante sua infância (presente em quatro) e a
própria metáfora que ela utiliza para se visualizar enquanto uma menina lésbica que
crescia (o criptandro no trecho três).
Conforme Flávia vai narrando suas memórias, vão aparecendo objetos que vão
acompanhá-la durante toda a história. Em cinco, um momento crucial: Flávia encontra o
pé de sandália de sua grande paixão de infância, sua vizinha, dona Kênia, depois que esta
vai embora para outro país. É um episódio muito triste e de extrema introspecção de
Flávia quando ainda criança. A presença de objetos que compõem a narrativa de maneira
fundamental me fez voltar para o teatro de objetos. Complexo e mais potente
poeticamente do que esperava, o teatro de objetos é uma linguagem na qual nem chego a
engatinhar, ainda que esteja estudando e pesquisando, dando meus primeiros passos.
Brincando com objetos, vestuário, plantas e metáforas acerca do vocabulário que
cercam figuras de mulheres lésbicas, como vemos em seis, Cassandra Rios nos brinda com
uma narrativa cheia de jogos semânticos, reviravoltas da protagonista, metáforas e
imagens sobre uma jovem que narra suas relações com outras mulheres.
Essas foram algumas citações e alguns pensamentos que surgiram a partir delas, e
que provavelmente tomarão outras formas quando eu experimentar as ideias na prática.

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Começará então uma nova parte do processo criativo – visto que ele já iniciou com as
leituras e possibilidades de criação listadas até o momento.
Através dos comentários e feedbacks de colegas na aula de Pesquisa em Artes
Cênicas11 e minha participação como ouvinte e comunicadora no III Colóquio
Internacional FITA12, reflito constantemente sobre o andamento de minha pesquisa.
A palestra de Sandra Vargas me fez ver o quanto nada sei sobre teatro de objetos,
o quanto ele é muito mais rico poeticamente do que imaginava. A partir de sua inspiradora
fala, surgiram questões que afetam diretamente minha pesquisa: por que criar história
em cima de um objeto que já é dotado de uma história? Como criar poeticamente através
do que o objeto tem a me oferecer, sem antropomorfizá-lo ou mesmo modificar sua
natureza?
E mais questões: como fazer poesia com objetos sem palavras, mas que não induza
a interpretações distintas e relativistas das que estou propondo em cena? Afinal, por que
criar novas imagens a partir de uma obra literária que já nos oferece tantas imagens e
metáforas sobre da temática proposta?
Em conversa informal, a atriz e diretora, muito generosamente, sugeriu diretrizes
para meu processo de criação. Falou de exercícios de composição justamente para que eu
consiga “dar relevo para essas personagens”. Admirou-me perceber o quanto eu estava, e
estou, sendo muito literal com o livro, sem imaginar as possibilidades de criação que cada
personagem oferece a partir da perspectiva de Flávia. Ou seja, posso e devo ir além do que
Cassandra Rios oferece em sua narrativa.

O Teatro de Objetos é particularmente provocador quando apresenta um


repertório pessoal, autobiográfico, íntimo e autoral do ator, que se expõe através
dos objetos. O grande potencial do Teatro de Objetos não está nas suas
particularidades técnicas, mas, sim, naquilo que é capaz de despertar de mais
profundo e revelador daquele artista, por meio de seus objetos. (VARGAS, 2018,
online)13

A palestra de Felisberto da Costa também foi muito instigante ao trazer


espetáculos de diferentes áreas artísticas - como teatro, dança e performance art - que
trabalham com objetos. E levantou algo que vem ao encontro de um ponto chave de minha

11
Pesquisa em Artes Cênicas é uma disciplina ministrada pelo Profº Dr. Jarbas Siqueira, ofertada pelo Programa
de Pós Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
12
Que aconteceu em Florianópolis/SC, de 11 a 14 de junho de 2018 nas dependências do Centro de Eventos da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
13
Ainda que escrito em 2010 e, segundo a própria autora, desatualizado em alguns pontos, sugiro a leitura do
artigo O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões, que Sandra Vargas escreveu para a Móin Móin – Revista
de Estudos de Formas Animadas.

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proposta de encenação: as questões sociais, que estão em debate atualmente e fazem
parte, querendo ou não, de nossos processos criativos.
Pode parecer algo óbvio, mas ele citou um exemplo que nos faz entender melhor a
complexidade do fato: ao utilizar um lenço como representação de uma mulher - uma vez
que seria leve e delicado, como possivelmente uma mulher seria, essa imagem pode ser
reinterpretada de outra forma, dependendo do público que nos assiste, haja vista as
discussões a respeito do papel das mulheres na sociedade ocidental, além do debate sobre
homossexualidade, e sobre quais seriam os papéis de gênero destinados a mulheres e
homens, por exemplo.
É um fator extremamente latente em minhas reflexões, uma vez que quero em cena
diferentes representações de mulheres lésbicas. Preciso justamente singularizar cada
personagem, mas também não anular seus pontos em comum e divergentes com outras
mulheres, inclusive comigo. Um exemplo hipotético, mas muito instigante: como
representar uma mulher com uma gravata, sem que, à primeira vista o público acredite
que eu esteja falando de um homem? Como apresentar essa personagem com uma gravata
sem intermédio de palavras para que não a confundam com um homem? Seria possível?
São perguntas que até a estreia eu pretendo responder de alguma forma.

Deslocando essa questão para o campo do teatro de animação, dir-se-ia que o


sentido não se encontra nem no ator, nem no objeto e nem no espectador: os
sentidos estão no espaço dramatúrgico (intervalo) criado (constituído) pelos três
corpos. A noção de incompletude remete, também, a uma realização de natureza
inacabada, porém, não faltante. Completamente inacabada, porque não se fecha
em si mesma, ou não “representa um fim em si”, como observado por Dario Fo,
reportando-nos à ideia de duração bergsoniana: conserva-se e ao mesmo tempo
se modifica, momentos que fluem constantemente, envolvendo tensão e
elasticidade. Tomando como exemplo o texto, ele é inacabado porque se joga a
cada vez, não cabe ao ator ou ao espectador “preencher lacunas”, dado que não
se trata de ausência, mas sim de possibilidades. Cabe ao ator jogar com o texto,
assim como ao espectador e aos demais. E o contrário também é verdadeiro: o
texto joga com eles nessas diversas perspectivas. Um texto sempre propõe
acordos temporários. No entanto, o fluir não impede as paradas, ‘o tempo nem
sempre corre. Podemos encontrar ou cavar lugares onde ele congela’, como bem
diz Serres (COSTA, 2011, online. Grifo nosso).

No excerto acima, Felisberto Costa aborda um ponto que acredito ser crucial em
construções dramatúrgicas no teatro de formas animadas: o espaço dramatúrgico que
existe entre ator, objeto e espectador. Meu primeiro contato com esse espaço enquanto
indagação criativa e proposta a ser desenvolvida em ensaios práticos, foi na obra

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Müllermaterial14, direção de Stephan Baumgärtel. Fiz parte do elenco que compôs o
processo criativo e as apresentações de 2014 a 2017.
Depois de um tempo já apresentando percebi o quão valoroso era o trabalho. Não
só no sentido de pesquisa e treinamento cênico, mas também pelo amadurecimento de
minha leitura e compreensão com os textos de Heiner Müller. Nosso trabalho foi com o
material de cada palavra, cada espaço, cada vírgula, que só existia de acordo com as
entonações que dávamos ou suprimíamos. Cada apresentação era uma possibilidade de
perceber sentidos narrativos além do que estava exposto à primeira vista.
Stephan falava do trabalho com as palavras como se fossem tijolos que jogamos,
como bolas que fazemos voar no céu e caírem pesadas lá do outro lado da sala, ou mesmo
como plumas, abraços ou marteladas. São imagens bem abstratas num primeiro
momento, mas quando passamos a nos permitir, pouco a pouco, a explorar as palavras e
frases de formas menos habituais, chegamos a lugares mais profundos do que está escrito,
sendo visto e ouvido pelo espectador. Chegamos realmente a habitar lugares desse
espaço dramatúrgico.
Essa experiência como atriz, ainda que a princípio nada tenha a ver com o que
pesquiso hoje, volta a minha memória em diferentes momentos. Passei a respeitar mais
textos teatrais, tanto em modelos que seriam mais “tradicionais” ou mesmo os que
propõem outras formas de criação de textos, construindo outros conteúdos narrativos
além das palavras escritas.
Essa sensibilidade com textos escritos, que comecei a desenvolver participando de
Müllermaterial, vem crescendo ainda mais com minha fonte de pesquisa sendo um texto
literário. Surpreendo-me cada vez mais com as imagens criadas nos espaços
dramatúrgicos de diferentes textos, com os imaginários que se formam, com as
referências de cada pessoa que os lê.
Considerando tudo isso, caio em devaneio no imenso desafio que propus ao
realizar uma criação cênica com teatro de formas animadas a partir de uma linguagem
que por si já constrói um espaço dramatúrgico - entre quem escreveu, o que está escrito
e quem lê.

14
Müllermaterial foi uma leitura dramática dirigida por Stephan Baumgartel e teve como elenco: Alyssa Tessari,
Leonardo Brandão, Tuany Fagundes, Andrei Rosa e Marco Antonio de Oliveira. Nos ensaios e nas apresentações,
trabalhamos com os seguintes textos de Heiner Müller: Peça Coração, Medeamaterial e o poema Imagens.

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Como lidarei com tantos espaços já preenchidos, outros que devem permanecer
vazios e outros lugares ainda desconhecidos nesses espaços? Como será minha criação
dramatúrgica, qual será sua forma, seus escritos? Que objetos contarão o que não espero
ouvir e que será o que “deve ser dito”? E, além de tudo, como colocarei meu corpo, já com
várias histórias, em cena com tantas outras?
Bom, meu espaço aqui está acabando. A sala de ensaio me espera. Sabe-se lá em
quais espaços iremos nos encontrar novamente... entre imagens, objetos, amor,
indagações...

Até breve!

REFERÊNCIAS
COSTA, Felisberto Sabino da. Sobre relógios e nuvens: mestiçagem, hibridação e
dramaturgias no teatro de animação in Móin Móin: Revista de Estudos de Formas
Animadas: Dramaturgias no Teatro de Formas Animadas. Ano 7 – Número 8 – 2011.

FACCO, Lucia e CASTRO LIMA, Maria Isabel de. Protagonistas lésbicas: a escrita de
Cassandra Rios sob a censura dos anos de chumbo, in Labrys, estudos feministas,
études féministes - agosto/ dezembro 2004- août / décembre 2004 - número 6.
Disponível em: <https://www.labrys.net.br/labrys6/lesb/bau.htm>. Acesso em: 20 mai
2018.

LORDE, Audre. Textos Escolhidos de Audre Lorde. Disponível em:


<http://heresialesbica.noblogs.org>. Acesso em: 20 mai. 2018.

PASSATUTO, Camila. Como a biografia de Cassandra Rios se conecta com a do João


do Rio. Disponível em: <http://www.reversamag.com/biografia-da-cassandra-rios/>.
Acesso em: 20 mai. 2018.

RIOS, Cassandra. Eu Sou Uma Lésbica. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1983.

VARGAS, Sandra. O Teatro de Objetos: história, idéias e reflexões in Móin Móin: Revista
de Estudos de Formas Animadas: Cenários da Criação no Teatro de Formas Animadas.
Ano 6 – Número 7 – 2010.

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RELATO SOBRE O ESPETÁCULO E.N.T.R.E. NO III COLÓQUIO
INTERNACIONAL FITA

Maria de Fátima de Sousa Moretti (Sassá Moretti)1


Larissa Christina Siedschlatg2

Resumo
O presente relato dedica-se a compartilhar a vivência da Cia. Théâtre d’images com o
espetáculo E.N.T.R.E. que integrou a programação do III Colóquio Internacional FITA,
abordando aspectos como tradução, adaptação aos espaços e reações do público. Muitos
são os desafios que envolvem a produção de um espetáculo. Este artigo conta com a
descrição de parte deste processo, desde a chegada dos franceses, até o público se
maravilhar com as imagens propostas.

Palavras-chave: teatro de imagens, sombras, espetáculo.

Résumé
Ce reportage a pour objectif de partager l'expérience du Théâtre d'images avec le
spectacle E.N.T.R.E., qui a intégré la programmation du IIIe Colloque international FITA,
abordant des aspects tels que la traduction, l'adaptation aux espaces et les réactions du
public. Les défis liés à la production d'un spectacle sont nombreux. Cet article décrit la
description de ce processus depuis l’arrivée des Français jusqu’à ce que le public
s’émerveille des images proposées.

Mots-clés: théâtre d'images, ombres, spectacle.

1
Profa. Dra. Curso de Teatro, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Diretora e marionetista.
2
Graduanda de Artes Cênicas na Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do CNPq através do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).

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Apresentação de E.N.T.R.E. no Espaço Arena da UDESC.
Fonte: Arquivo Pessoal

No teatro de objetos/imagem, teatro de imagens ou, ainda, teatro visual não há


obrigatoriamente uma história deliberada como há, geralmente, no teatro de bonecos e
máscaras. O objeto/imagem é muitas vezes utilizado para concretizar alguma ideia e, com
isso, criar metáforas para despertar reações no espectador. Assim ocorre com o
espetáculo E.N.T.R.E., da Cia. Théâtre d’images, que veio direto da França para realizar
três apresentações aqui no Brasil no primeiro semestre de 2018.
As apresentações aconteceram dentro da terceira edição do Colóquio Internacional
FITA em Florianópolis, Santa Catarina. O evento teve como proposta temática "O Teatro
de Sombras e o Teatro de Objetos" e recebeu o espetáculo na UFSC - Universidade Federal
de Santa Catarina e na UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.
Sou coordenadora e uma das curadoras do Colóquio FITA e já havia assistido este
espetáculo, no Festival Mondial de La marionnette em Charleville Mezzières, no ano de
2017. Amei o trabalho pela qualidade das imagens e sombras e os convidei para virem
apresentar em nosso festival, para o público brasileiro. Ao chegar apresentei o espetáculo
para a equipe: Zélia Sabino, Luiz Gustavo e Ricardo Goulart, neste momento,
compartilhávamos do mesmo sentimento, sabíamos que o grupo faria sucesso, mas foi
ainda maior do que imaginávamos. O espetáculo cresceu muito com as apresentações no
espaço da UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina, dentro de um grande auditório,
e nos jardins da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.

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A princípio a companhia viria para participar da décima segunda edição do FITA -
Festival Internacional de Teatro de Animação, mas infelizmente não conseguimos
recursos financeiros suficientes para pagarmos os cachês dos grupos e para as demais
demandas previstas. Tivemos apenas o edital da FAPESC e o edital da SECULT-UFSC como
patrocinadores, diante disto optamos pela realização apenas do Colóquio, que até então
ocorria paralelamente ao FITA.
Portanto, entre os dias 11 e 14 de junho de 2018 organizamos o III Colóquio
Internacional FITA, que foi muito rico em conversas e trocas entre pesquisadores, artistas
e público em geral. O grupo francês apresentou três versões do espetáculo, pois cada
apresentação aconteceu de forma diferente, progressivamente as versões se tornaram
mais ricas em detalhes e ainda mais empolgantes.

Apresentação de E.N.T.R.E. no Auditório Garapuvu


Fonte: Day Ros

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Primeiramente tivemos que decidir onde aconteceriam as três versões do
espetáculo, e também quem participaria como ator/tradutor do poema que seria utilizado
durante a encenação. Para isto tivemos a ajuda de um aluno de graduação da UDESC
(Antonio Cesar Maggioni) que gentilmente e empolgantemente trabalhou com o ator
Julien Mouroux. Eles ensaiaram muito até o momento das apresentações, para que a
harmonia que assistimos fosse possível.
Além de tudo, a companhia francesa também teve a oportunidade de apresentar
uma fala sobre o espetáculo numa mesa de conversas, com tradução ao vivo da aluna de
mestrado Priscila Costa, que está com uma bolsa de estudos em Paris. Essas falas foram
muito importantes, pois pudemos notar que o público ficou apaixonado pelas imagens,
pela performance da artista plástica Gaelle Boucherit, pelo ator e sua desenvoltura, pelo
tradutor e sua dedicação, pelos poemas que encantaram e as demais peculiaridades de
E.N.T.R.E.. A importância se deu também no compartilhar das experiências do grupo, que
através das falas dividiram com os presentes mais particularidades e informações sobre
o trabalho

Cena de E.N.T.R.E. explorando a sombra do ator


Fonte: Day Ros

Torna-se importante salientar que dentro da organização do Colóquio nos


dividimos em tarefas por grupos, para atendermos cada convidado do evento. Para
acompanhar o Grupo Theatre d’Images com o espetáculo E.N.T.R.E, tivemos o suporte da
aluna de graduação da UFSC Blenda Trindade, que escreveu algumas palavras sobre estes
momentos compartilhados com a companhia francesa. Ela nos relata sua vivência:

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“Acompanhei o Grupo Theatre d’Images desde a sua chegada na Universidade no
dia 09 de junho de 2018. Neste dia iniciaram-se os processos para a adaptação da
montagem do espetáculo: planejamento e posicionamento dos equipamentos e
recebimento dos materiais trazidos da França.
A montagem teve início no dia 11 de junho, com a separação dos materiais do
grupo e listar demais materiais necessários para as apresentações. Após a separação,
instalamos o ciclorama no palco do Garapuvu e suspendemos o tecido de sombras
utilizado no espetáculo.
No dia seguinte (12) afinamos o tecido, fixamos as pernas/coxias no palco e
instalamos o projetor de imagens.
O dia da apresentação foi reservado aos últimos afinamentos e ensaios com o ator
brasileiro.
É fundamental para o processo de formação do artista cênico, o acompanhamento
de montagens e a vivência com artistas de teatro profissionais. São nessas experiências
que o artista em formação entra em contato com a realidade e a prática do fazer artístico
e com o mercado de trabalho no qual será inserido após a primeira etapa de formação.
Além das vivências teatrais, o intercâmbio cultural proporcionado pelos artistas é
extremamente engrandecedor (e esta é, com certeza, a maior riqueza e importância do
FITA e do Colóquio FITA). Cada dia mais sou grata pelas oportunidades que o FITA e o
colóquio FITA me proporcionam todos os anos”.
Além de uma das curadoras, sou a coordenadora geral do FITA e do Colóquio FITA,
por isso (portanto) as palavras da aluna Blenda, me deixam cheia de orgulho e de
realização. Realmente é neste sentido que trabalho com os alunos, pensando sempre em
proporcionar experiências para cada um deles e para os atores convidados proporcionar
a alegria de conviver com estes jovens cheios de energia e vontade de aprender.
Durante a estadia dos nossos atores e as apresentações do E.N.T.R.E, pedimos a
algumas pessoas (entre público geral, professores, alunos de artes cênicas e equipe do
evento) para dividirem conosco suas experiências com o espetáculo.
Iniciamos com André Carreira, professor da Universidade do Estado de Santa
Catarina, que nos concedeu algumas palavras sobre o espetáculo:
“O pátio do Centro de Artes em uma noite onde cruzava um vento suave. Poucas
luzes. Uma grande tela branca cortando o espaço que todos chamam de Arena. Esse objeto
branco anunciava um acontecimento que poderia em princípio ser cinema. Logo ao som de

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uma música que preencheu o espaço pode-se perceber que não era cinema, ainda que o
cinema parecia estar ali presente. Um ator e uma construtora de imagens ao vivo nos
ofereceram uma sequência de imagens que foram preenchendo a tela e o piso branco. O
jogo entre o corpo e as imagens também dialogava com a performance da criadora das
imagens debruçada sobre seu retroprojetor. Este componente constituiu, ao longo do
trabalho, um acontecimento instigante para quem observava, tratando de desvendar os
materiais e procedimentos que transformavam aquela tela branca em uma superfície
cromática central na poética do E.N.T.R.E, espetáculo francês que, com apoio do III
Colóquio FITA, se fez presente no campus da UDESC”.

Cena de E.N.T.R.E. vista por trás da tela de projeção.


Fonte: Maria de Fátima Medeiros e Silva

As palavras do professor confirmaram minha intuição quanto a excelente recepção


do público, que deixou claro em cada palavra, gestos e olhares, o quanto gostarau do
espetáculo E.N.T.R.E. Fomos em busca então de mais opiniões, desta vez de alguém de
dentro da produção, Igor Gomes, que é formado bacharel no curso de artes cênicas e que
é um dos produtores do III Colóquio Internacional FITA:

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“No início do mês de junho de 2018 tive contato com a Cia. Théâtre d'images,
participante do 3º Colóquio Internacional FITA, ao qual integro como produtor em
Florianópolis (Brasil). O primeiro contato com o grupo francês se deu no dia 12 de junho,
onde os três artistas estiveram no Centro de Cultura e Eventos da UFSC para conhecerem
seu local de apresentação. Foi interessante notar a surpresa deles com o espaço, novo
dentro da proposta da companhia até ali. Esta seria a primeira vez que o grupo iria ter
contato com as particularidades de um auditório. Entre conversas e análises do local,
foram levantadas algumas possibilidades de trabalho. Em uma opção colocaríamos o
público em cima do palco, juntamente com o ator e técnicos. Em outra ainda, foi cogitada
a possibilidade da primeira apresentação acontecer dentro do Auditório Garapavu e a
segunda, a noite, ocorrer no hall do centro de eventos. Ficou evidente que para a
companhia era interessante se valer das variadas possibilidades, dos novos caminhos que
isto abria a eles, mas permaneceu o que estávamos pensando inicialmente. Assisti a todas
as três apresentações realizadas no Colóquio e foi muito interessante perceber as
diferenças entre elas. Seja pelo público presente, pelo espaço, pelo horário, por surpresas
ou pela própria dinâmica do espetáculo, foi visível como cada apresentação tinha uma
dose de singularidade. Na primeira apresentação muitas crianças estavam presentes, com
reações muito calorosas a tudo que acontecia em cena. Na sessão da noite tudo parece ter
fluido mais, também como um reflexo de um público diferente. É curioso observar como
E.N.T.R.E. nos chama para diferentes olhares enquanto obra artística. Desde os olhares
que se alternam entre a figura do ator no palco, contracenando com as projeções e objetos,
e o trabalho plástico de Gaelle, também nos apresentando uma performance atraente
enquanto manipuladora do que se transforma em projeção na cena, até a camada
profunda e muito poética na dramaturgia.

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Mesa de Conversas com a companhia
Fonte: Igor Gomes

No relato do grupo na mesa de conversas do último dia do evento, Gaelle falou algo
que fez muito sentido. Ela comparou E.N.T.R.E. com a obra "O Pequeno Príncipe", de Saint-
Exupéry, exemplificando como é possível ocorrer camadas distintas de percepção deste
espetáculo. Sinto exatamente isto quando comparo as três apresentações assistidas, bem
como ouço a forma como cada pessoa diferentemente foi tocada pela obra. Todo o
trabalho com as imagens em cena possuí uma dose alta de poesia, que nos abre a inúmeras
interpretações destas próprias imagens em contraste com o texto e as ações do ator. A
última apresentação a meu ver foi a mais bela, e acredito que o fato de ter acontecido em
um espaço aberto foi determinante. E.N.T.R.E. emociona e nos inspira enquanto humanos,
como seres tocados pela beleza estética e pela delicadeza de cada artista responsável por
este espetáculo. Foi lindo observar a grande sintonia entre os membros da companhia,
bem como ter a oportunidade de entrar em contato com um espetáculo tão tocante nesta
terceira edição do Colóquio Internacional FITA”.
No caminho de comentários sobre a obra buscamos alguém que trabalhou dentro
do espetáculo, o ator brasileiro que auxiliou o grupo na leitura do poema em português,
Antonio Cesar Maggioni, ele então nos conta sobre sua vivência com a companhia durante
os ensaios e as apresentações do espetáculo.

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Cena do espetáculo durante o 3º Colóquio Internacional FITA.
Fonte: Maria de Fátima Medeiros e Silva

“Participar das apresentações do espetáculo E.N.T.R.E da Companhia Théâtre foi


uma experiência desafiadora e gratificante, foram momentos de aprendizagem, escuta e
conexão. Quando entrei em contato com os textos do espetáculo percebi que seria um
desafio embarcar em um trabalho que já estava em andamento e do qual eu tinha poucas
informações. Os primeiros contatos aconteceram via e-mail e desde então a dificuldade
de comunicação já se fez presente, eu não falava francês e o grupo não falava português,
encontramos como solução o inglês, idioma que serviu para estabelecermos o primeiro
contato presencial, mas que nenhuma das partes dominava com excelência. A diferença
de idiomas nos exigiu outras formas de compreender e dialogar, a atenção tinha que ser
redobrada e a escuta sempre atenta, para que pudéssemos de alguma forma entrar em
sintonia. Apesar da dificuldade inicial em estabelecer comunicação, logo conquistamos
um espaço de diálogo, onde a escuta tinha papel fundamental, acompanhar os ensaios foi
para mim um forte exercício para a escuta, era preciso sempre estar atendo e percebendo
as lacunas nas quais minha participação era necessária. Esse exercício foi também um
momento de observação e aprendizado, presenciar o trabalho do grupo revelou
diferenças culturais, metodologias de trabalho e também semelhanças entre o contexto
nacional e estrangeiro. Para que tudo isso acontecesse foram importantes também os
momentos de confraternização e de conversa que aconteceram fora da sala de ensaio, sem
dúvidas foi uma experiência de intercâmbio muito rica e transformadora, que me faz
repensar a maneira de se fazer teatro e abriu novas perspectivas de trabalho com arte”.

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A cada relato que recebo me certifico que vários olhares acontecem relacionados
ao espetáculo e relacionado ao intercâmbio que o FITA proporciona. Desta vez recebi um
parecer de um aluno da primeira fase do curso de Artes Cênicas da UFSC, chamado
Vinicius Pasinato Damian:
“Um espetáculo surpreendente com uma estética sofisticada, onde une sombra,
ator no palco e ator criando efeitos visuais através de tintas, areia e pincéis
simultaneamente com o decorrer da peça. Um espetáculo que no nome já diz, E.N.T.R.E.
que faz ligação com ''entre-dois'', nota-se em cena onde os dois atores contracenam
juntos, cada qual com sua função, criando e estabelecendo relações de confusão,
descoberta, enfrentamento, duvida e reconciliação entre eles e inevitavelmente essas
relações nos atingem proporcionando-nos questionamentos e compreensões em relação
ao que está sendo visto e com o que estamos sentindo. Entende-se que o espetáculo conta
com o público também na questão de completar a estória, pois cada pessoa interpreta
conforme sua vivência”.
Diante de tantas palavras poéticas ao longo destes relatos, reitero como uma das
curadoras deste Colóquio, que acertamos em trazer este espetáculo. Através de vários
depoimentos e agradecimentos, constatei como o público em geral se agradou e foi
beneficiado por este trabalho. Percebi durante uma das versões do espetáculo, a emoção
e atenção do público, com a profusão de imagens únicas e irreplicáveis, o texto que
complementava as imagens e a música que preenchia estes espaços plenos de poesia. Um
detalhe a mais eram os olhares para a artista, que produzia as imagens diante de todo o
público, ali mesmo, no meio de todos na busca de imagens diversas e originais (para
aqueles que não viram o espetáculo, a artista plástica Gaelle, permanecia durante o
espetáculo, sentada junto ao público, de onde organizava e produzia as imagens para o
telão, a partir de um retroprojetor e com a ajuda de areia, tinta, água e muita poesia...). Este
misto de aqui agora e imagens poéticas, nos proporcionam a mistura de sentimentos, que
percebemos em cada relato e ficou clara na sensibilidade destes atores, uma visão de
mundo transformada em expressividade.

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