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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA

Celso Suckow da Fonseca

VICTÓRIA ROMANO

ESCLARECIMENTO E DEBATE PÚBLICO

Rio de Janeiro, RJ
2021
Sapere aude!, dizia Horácio, ainda na Roma Antiga. Mais de um milênio
depois, Immanuel Kant se apropria da citação latina e a transforma no lema da
Revolução Francesa, movimento histórico e de caráter popular que mudou os rumos
do mundo no século 18. Foi esta fase da história que inspirou e ilustrou os
pensamentos do filósofo prussiano, que divulga em seu texto “Pergunta: o que é o
esclarecimento?” a seguinte ideia: somente através do exercício da razão pública,
isto é, do compartilhamento de conhecimento, é que a humanidade alcançaria a
maioridade do pensamento. Somente através do debate e refinamento de ideias é
que se alcançaria o esclarecimento.

Portanto, para Kant, a iluminação das ideias se alcançaria pelo debate


público. Por mais que em seu texto original este tópico não entre em questão, vale
ressaltar: o debate público e honesto, pois o filósofo termina seu texto em tons
otimistas sobre a época em que vive ser uma de Esclarecimento – que, pelo bom
senso, só pode ser alcançado se os participantes do debate falarem a verdade
acerca do que realmente pensam.

Desta forma, é possível refletir a respeito do iluminismo no século XXI, mais


especificamente, sobre as ideias em debate na nossa era. Quase 3 séculos depois
da publicação do texto de Kant, as suas ideias a respeito da responsabilidade do
próprio homem de se libertar continuam atuais. Diz o prussiano: “A preguiça e a
covardia são as causas pelas quais uma parte tão grande dos homens, libertos há
muito pela natureza de toda tutela alheia comprazem-se em permanecer por toda
sua vida menores...”. O pensamento expressado neste excerto se mostra atual
quando temos uma população dependente de gurus e políticos para posicionar-se a
respeito das pautas mais importantes de nosso tempo.

Tal problemática é muito visível quando se observa o marketing digital


utilizados por políticos nas redes. A estratégia mais comum, que pode ser sentida de
forma expressiva pela população tutelada e por quem tentava se libertar dos tutores,
foi a manipulação de dados. A utilização de empresas de análise de dados virtuais
permitiu a elaboração de algoritmos que bombardeassem de informação quem
pesquisasse sobre certos termos, certos políticos.

O que seria esta ferramenta se não uma forma de minar o esclarecimento de


seus alvos? Ao reforçar crenças e cercar os internautas em bolhas, o algoritmo mina
o exercício do debate público e transforma visões divergentes em inimigas,
dificultando, para não dizer impossibilitando, o exercício da razão pública. Para além
disso, o uso destas estratégias de marketing alimenta um ciclo que torna o usuário
digital dependente de seu guru, de sua referência quase religiosa pela natureza
indubitável de suas palavras. É assim que se cria o raciocínio engessado, ou melhor,
a falta de um.

Nas eleições de 2018, foi possível testemunhar candidatos se tornando


ídolos a serem seguidos, um fenômeno completamente contra o que Kant expressa
em seu texto: acomodados nas opiniões e conceitos que julgavam certos, muitos
eleitores não procuraram outros olhares e muito menos procuraram questionar as
ideias de seus gurus antes de aceitá-las, permanecendo, assim na menoridade da
razão.

A preguiça não é a única forma de permanecer na menoridade, no entanto.


Há aqueles que também se acovardam em pronunciar-se, mantendo seus
pensamentos para si e prejudicando a refinação do conhecimento.

O resultado desses acontecimentos é o empobrecimento crônico do debate


público que, sem contribuidores, passa a cair na mesmice e não representa mais a
construção do saber. Muito pelo contrário, cai na pior definição possível da
expressão, porque debater virou sinônimo de discordar, e discordância significa
defender a todo custo suas próprias crenças em ouvir o que o outro tem a dizer.

O debate público virou um espaço de embate de dogmas. A razão pública


não tem mais uso, sendo todo e qualquer espaço destinado a utilização da razão
privado. O exercício do saber público é sujeitar-se a represália e a ataques de uma
sociedade extremamente tutelada e paralisada, incapaz de pensar por si própria.
Uma população que, confortável, ou amedrontada, ou até mesmo envergonhada não
ousa a alcançar a maioridade.

Sapere aude! é uma expressão que precisará ser gravada a ferro nos
mecanismos de funcionamento da humanidade pois, ao contrário da visão otimista
de Kant, que disse que o século 18 era uma época de Esclarecimento, o século 21 é
uma perda gradativa do mesmo, com o cercamento das pessoas em bolhas que não
estimulam a razão pública e, por consequência, não aos poucos perdem a
capacidade de debater com outros sem atacá-los.

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