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Escola Estadual Julio Strubing Muller

Disciplina: História
Professores: Thales Biguinatti Carias e Wellington Ernani Porfírio
Material apostilado para os meses de novembro e dezembro (2ºs anos)
Habilidade trabalhada: (EM13CHS104) Analisar objetos e vestígios da cultura
material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que
caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no
tempo e no espaço.

Nome do(a) Aluno(a):


Turma:

Iluminismo: Ideologia fundamental dos direitos humanos

Na apostila de outubro, tivemos a oportunidade de conferir uma definição ampla


dos direitos humanos e estabelecer algumas relações entre esses direitos e a colonização;
mais precisamente, a colonização como conceito derivado da ocupação feita por europeus
em territórios da América, África e Ásia. Nessa oportunidade, esperamos ter ficado claro
que os direitos humanos são uma reposta histórica à colonização e que, uma vez
declarados, o grande desafio foi (e continua sendo) fazer com que todo e qualquer ser
humano tenha acesso garantido a esses direitos básicos.
A grande contradição que está nessa relação entre colonização e direitos humanos
tem como base um momento específico da história (século XVIII), onde se formou e foi
se espalhando um conjunto de ideias que ficou conhecido como Iluminismo. Nossa
apostila de novembro tem como objetivo verificar com mais atenção o que foi o
Iluminismo para compreendermos melhor qual o papel dele nessa história, dando
destaque para o debate levantado na Europa e, posteriormente, revisando como ele foi
fundamental para a Revolução Francesa.
É justamente esse o motivo que nos levou a colocar precisamente este título para
a nossa apostila: nossa proposta é mostrar a vocês o Iluminismo como uma ideologia e,
também, como uma ideologia fundamental para os Direitos Humanos. Por isso mesmo,
uma preocupação é importante: hoje em dia, a palavra ideologia está na boca do povo.
Como já havíamos dito na apostila de outubro, muitas pessoas utilizam essa palavra com
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o sentido de se referir a algo ruim, ou mesmo falso, por não corresponder com a realidade
dos fatos. Na sua forma conceitual, a ideologia não deixa de ter esse significado, mas ela
é muito mais do que isso. Portanto, para compreendermos melhor qual o papel do
Iluminismo na fundamentação dos direitos humanos, precisamos compreender melhor o
que é ideologia.
Uma forma interessante de se compreender o que é a ideologia está contida nos
escritos e pensamentos do filósofo da linguagem de origem russa, chamado Valentin
Volóchinov. Volóchinov defende a ideia de que a ideologia é algo que existe em qualquer
linguagem. Vamos explicar um pouco melhor isso... Você já parou para refletir que todos
os nossos pensamentos são pensados em termos de linguagem? Você já tentou pensar
algo que não pode ser expresso numa palavra ou numa imagem? Em algum momento,
você já se pegou conversando com você mesmo, não é? Obviamente, a sua “conversa”; o
seu pensamento, é sempre em português (a não ser que você seja fluente e conviva com
pessoas de outra língua), como também sempre pode ser expresso com palavras. Ninguém
pensa num estado de vazio absoluto. Tudo o que nós pensamos; tudo o que é fruto do
nosso raciocínio, pode ser comunicado por meio da linguagem e da língua.
Para Volóchinov, essas características do ser humano mostram que nenhum
indivíduo consegue viver sem se comunicar. O ato de se expressar e de se comunicar faz
parte da natureza humana. E, de acordo com ele, essa comunicação é essencialmente
coletiva. Para que haja entendimento e comunicação, é necessário que todos os falantes
de uma língua tenham um conjunto de símbolos que vão expressar algum significado.
Esse significado pode ser simples (objetivo) ou complexo. Quando o significado é
simples, todos nós usamos uma palavra (um símbolo) querendo dizer literalmente aquilo
que ele representa. Por exemplo: “Pão”. A palavra “pão” tem um significado simples:
trata-se de um alimento que pode ser encontrado, praticamente, em qualquer lugar do
mundo, embora feito de formas muito diferentes umas das outras.
Porém, essa mesma palavra pode ter um significado complexo... Pense em um
pão... Agora, adicione ao seu pensamento, o vinho: o que temos com essas duas palavras?
O pão e o vinho, separadamente, são dois tipos de alimentos. Mas juntos, eles têm uma
ideia que é maior do que isso; muito mais complexa. Está inscrito na cultura milenar
cristã, onde o pão e o vinho representam o corpo e o sangue de Cristo. Nós só sabemos
disso porque foi passado de geração em geração. Porque o pão e o vinho, juntos, são um
símbolo para o corpo e o sangue de Cristo.
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Imagine que você esteja conversando com uma pessoa que não saiba sobre isso:
que não saiba que o pão e o vinho representam o corpo e o sangue de Cristo. Se esse virar
o tema da conversa e você falar de pão e vinho sem explicar o significado
religioso/cultural que essas duas palavras têm, muito provavelmente a pessoa que te ouve
não vai entender nada do que você está falando. Se isso ocorrer, vocês não estarão se
comunicando.
Para Volóchinov, a ideologia é quando essa comunicação existe em nível
complexo. O pão e o vinho, separadamente, são muito importantes, mas têm um
significado simples: todos entendem como alimentos. O pão e o vinho, no seu significado
complexo, para que sejam entendidos, dependem que todas as pessoas da conversa
tenham tido contato com toda a cultura cristã que dá uma importância sagrada para esses
dois alimentos.
Se você entende esse significado complexo, você teve contato com essa cultura e
você sabe se comunicar dentro dela. O que vai possibilitar essa comunicação é a
ideologia, ou seja, a capacidade que nós temos de construir significados complexos ao
longo da história e transmiti-los como valores e pensamentos já “pré-formados”. Eles
acabam, dessa forma, orientando a nossa forma individual de entender e de comunicar
com o mundo. Às vezes, nós pensamos em termos de ideologia e não nos damos conta
disso. Alguns significados complexos são tão difundidos e reforçados no nosso
pensamento que nós pensamos que eles são tão simples quanto o nome de algum alimento
ou objeto. É por isso que, quando falamos em ideologia, no senso comum, estamos
dizendo que é algo falso. Porque a ideologia está tão reforçada na nossa mente, que nós
agimos como se esse significado fosse algo natural, mas, na verdade, ele é fruto da história
humana e, por ser fruto da história humana, pode ter o seu significado mudado com o
passar do tempo.
O Iluminismo cabe muito bem para esse exemplo: a ideia de que todo indivíduo é
livre pelo simples fato de ser humano pode parecer natural; o mais lógico e até óbvio para
algumas pessoas. Mas nem sempre foi assim. Essa ideia só começou a se difundir com
força no século XVIII, por meio do Iluminismo. É uma ideologia porque é um significado
complexo: teve que ser construído ao longo da história da humanidade. Se não fosse
assim, a escravidão sequer teria existido. Mas a realidade é que ela existiu e existiu de
várias formas: seja na Roma antiga ou na colonização dos países africanos, a escravidão
existiu porque era forte a ideia de que as pessoas são diferentes e, por serem diferentes,
tinham direitos e deveres diferentes. As pessoas que “mereciam” ser escravizadas eram
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as pessoas que, por algum motivo, eram consideradas um ser humano de nível inferior;
ou até mesmo um não-humano... um animal.
Considerando essa questão, quando falamos no Iluminismo como ideologia, não
estamos falando de algo ruim; muito pelo contrário: estamos afirmando que o Iluminismo
é um significado complexo que foi construído com o objetivo de substituir um outro
significado complexo, que era o da dominação com base na diferença dos seres humanos.
Portanto, afirmar que todos os seres humanos são iguais é uma ideologia (uma boa
ideologia) que foi construída para combater uma ideologia perversa. É assim que nós
agimos política e socialmente. É preciso encarar a ideologia como parte das nossas vidas
e formas de pensar, cabendo então buscar conhecer as ideologias que parecem naturais
para nós e começar a questionar sobre sua validade ou não.
Ainda assim, o Iluminismo não se resume a isso. Como toda ideologia, ele possui
seus fundamentos; sua base de ação e seus problemas. O que nós faremos, daqui para
frente, é mostrar um panorama da forma de pensar da ideologia iluminista pelas palavras
de um dos mais influentes filósofos desse momento, o alemão Imanuel Kant.
No ano de 1784 (final do século XVIII e apenas 5 anos antes da Revolução
Francesa), um jornal publica um texto de Kant que respondia à pergunta: “O que é o
Iluminismo?” A resposta de Kant acabou sendo publicada com esse título e virou um
texto marcante e que nos diz muito sobre como os próprios iluministas compreendiam o
movimento que estavam formando.
Nesse texto, Kant define o Iluminismo como o momento em que a humanidade
passa para a sua “maioridade”. Ao tratar o iluminismo como o momento em que a
humanidade atinge a maioridade, Kant quer dizer o seguinte: Até aquele momento (século
XVIII), a humanidade vivia dependente de coisas que eram “maiores” do que os seres
humanos. Ele faz isso, acusando os antigos reis da Europa que governavam com base na
ideia de que eles eram enviados por Deus à terra. Para Kant, essa dependência da religião
para governar os súditos era sinal de que a humanidade não tinha maturidade suficiente
para governar a si mesma. Os que se deixaram governar estavam na “menoridade”.
Quando vem o Iluminismo, a Revolução é tanta que pode-se falar que a humanidade
atingiu a sua “maioridade”; ou seja, que a humanidade agora pode se emancipar.
De acordo com Kant, a religião deveria ser separada do governo. O problema não
estava nas pessoas acreditarem ou não numa religião. O problema era quando essas
pessoas abriam mão de sua liberdade para deixarem um “rei divino” decidir pela vida
delas. Para Kant, as causas desse problema eram, basicamente, duas: 1 – ou as pessoas
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eram ignorantes e (na sua ignorância, abriam mão da sua liberdade); ou 2 – As pessoas,
tendo o conhecimento necessário, não tinham coragem para irem em busca de sua
liberdade.
Prestem atenção em como ele coloca isso no texto; principalmente ao se referir
sobre a segunda causa da “menoridade” (a de que as pessoas conhecem, mas não estão
muito dispostas a buscar pela liberdade):

A preguiça e a covardia são as causas de os homens em tão grande parte,


após a natureza os ter há muito libertado do controle alheio,
continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e
também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É
tão cômodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por
mim, um diretor espiritual que em vez de mim tem consciência moral,
um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu
próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso
simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa
aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo
sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito
perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a
superintendência deles. Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus
animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas
pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as
encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se
tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois
acabariam por aprender muito bem a andar. Só que um tal exemplo
intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores.

Esse trecho nos permite perceber o motivo pelo qual o Iluminismo é uma
ideologia. O entendimento que Kant demonstra ter da humanidade parte do princípio de
que todo ser humano, por natureza, é capaz de ser livre. E isso, por causa da capacidade
que temos de raciocinar e de exercer o livre pensamento. Para ele, essa capacidade deveria
ter fundamentado uma sociedade livre, mas isso não ocorreu até o momento em que ele
escreve seu texto. Tudo por simples preguiça ou covardia. É cômodo deixar com que os
mais capacitados pensem e decidam por mim. Em alguns casos, essa é uma crítica válida.
Porém, o que Kant faz é levar esse raciocínio para todas as pessoas e sociedades
que existiram antes do iluminismo. O seu texto coloca a questão de se deixar controlar
pelos outros não como uma questão do seu próprio momento (da Europa absolutista do
século XVIII), mas como uma questão de toda a humanidade até a chegada do
Iluminismo. Antes do Iluminismo, não havia pensamento; não havia liberdade. A questão
fica ainda mais grave quando ele se refere ao “belo sexo” (que é uma forma antiquada e
preconceituosa de se referir à mulher; ao gênero feminino) como um tipo de ser humano
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que tem mais dificuldade em pensar por conta própria e, por isso, fica mais dependente
dos outros; dos pais, do marido, etc.
É assim que o Iluminismo funciona como uma ideologia: Ele pretende fazer com
que as suas ideias (fruto do pensamento de um grupo de filósofos europeus do século
XVIII) se confundam com ideias naturais e, portanto, com verdades absolutas. Quando
se trata de afirmar que todo e qualquer ser humano é livre e igual em direitos, isso é
fundamental nos dias de hoje. Porém, quando se trata de estabelecer a visão que a Europa
tem do mundo como a única válida para toda a humanidade, o iluminismo como ideologia
passa a ser um problema. É justamente por causa dessa contradição que nós ainda
convivemos com o desafio de considerar outros povos e outras culturas tão humanos e
livres quanto nós próprios.
Como superar essa questão? Talvez, seja o próprio Kant quem nos forneça a
resposta. Para ele, a liberdade mais fundamental é a liberdade de pensamento e de
divulgação crítica deste pensamento. Vejam o exemplo do seguinte trecho do mesmo
texto: “Mas, para esta ilustração1, nada mais se exige do que a liberdade; e, claro está, a
mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a
de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos”.
Para vocês entenderem melhor o que ele quer dizer com “uso público da razão”,
é importante vocês compreenderem as duas funções com as quais usamos a razão,
segundo Kant. O uso privado da razão seria aquele que nós exercemos quando estamos
em algum cargo (de um governo; de uma empresa; de uma escola; de uma igreja). Nesse
caso, nós usamos a nossa razão para cumprir com alguma tarefa. Num governo,
dependendo do nosso cargo, nós usamos a razão para melhorar o atendimento ao público
e para fazer com que esse atendimento seja mais eficiente; ou seja, mais barato e de
qualidade. Numa empresa, nossa razão é usada para garantir que o nosso produto ou
serviço oferecido consiga concorrer com os demais, atraindo mais clientes e gerando
lucro. Tudo isso de acordo com aquilo que o cargo e o lugar que nós estamos espera que
consigamos executar. Por outro lado, o uso público da razão não se prende a esses
objetivos e tarefas particulares.
O uso público da razão visa, justamente, encontrar os motivos pelos quais nós
exercemos essa ou aquela função. O uso público da razão questiona sobre as bases da
sociedade e busca decidir se essas bases são justas ou não. Para Kant, a liberdade

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Podemos entender o uso do termo “Ilustração” como um despertar da consciência de busca pelo
conhecimento.
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fundamental deve ser a do uso público da razão porque é esse tipo de uso da razão que
vai questionar se a sociedade que vivemos é justa ou não; se ela está certa ou errada; se
devemos continuar ou mudar o nosso rumo como grupo. Em outras palavras, o uso
público da razão é o que faz com que uma sociedade consiga governar a si mesma sem
depender de terceiros (uma igreja; um rei; um colonizador) dizendo o que e como fazer.
Se vocês conseguiram acompanhar o nosso raciocínio, desde outubro até agora,
vão compreender que essa ideia de uso público da razão vai ser a ideologia perfeita para
fazer com que a Europa se levante contra os governantes absolutistas. A essa altura da
história, já não é mais admissível um rei governar com base na ideia de que ele é um
enviado de Deus. Por meio do Iluminismo, a sociedade europeia vai se julgar capaz de
governar a si própria. O meio que eles encontraram para isso foi substituir a monarquia
pela República. Assim, eles substituíram o governo do rei e da nobreza pelo governo do
povo.
Ainda no que diz respeito a colocarmos o Iluminismo como uma ideologia (ou
seja, como um conjunto de pensamentos que orienta as pessoas na sua forma de
compreender e se comunicar com o mundo), devemos ressaltar o caráter estético desse
movimento. O Iluminismo não possui esse nome à toa. Ele deriva de “Luz”. A proposta
é a de que esses homens iriam iluminar o mundo com suas ideias. A luz que exerceria
esse trabalho era a luz da razão. Para eles, o período anterior, ou seja, a Idade Média, era
o contrário do Iluminismo. Portanto, se o iluminismo era Luz e razão, a Idade Média era
trevas e ignorância. Percebem como essa questão entre luz e trevas também está presente
no texto de Kant? A diferença é que ele usou os termos “maioridade” e “menoridade”;
como se os povos da Idade Média fossem crianças que só viriam a ser adultos com a
chegada do Iluminismo e o advento da razão. Em paralelo, a Idade Média seria um
período de trevas onde a razão iluminista iria iluminar e guiar a humanidade para um
novo tempo.
Nesse sentido, a razão significa, para o Iluminismo, uma espécie de farol,
responsável por guiar a humanidade no caminho da liberdade. Para Kant e os iluministas,
nós só somos livres no momento que conseguimos usar a razão como instrumento para
discernir o certo do errado e, nesse processo, governar a nós mesmos. De acordo com o
iluminismo, portanto, a pessoa livre é aquela que é mestre de si mesmo. Isso pode parecer
óbvio para nós. Porém, só parece óbvio porque, no século XVIII, foi uma ideia inovadora
e revolucionária e que, apesar de todos os problemas, conseguiu se consolidar na nossa
forma de pensar, se tornando uma ideologia.
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ATIVIDADE:

Como nós pudemos perceber, desde a origem, o Iluminismo teve seus problemas.
O mais grave deles foi querer colocar o ponto de vista do europeu daquele momento como
o ponto de vista correto e válido para toda a humanidade. No entanto, o avanço político
que a Europa teve com o Iluminismo é inegável. A substituição das monarquias
autoritárias pelas democracias republicanas sobrevive até hoje. Como nem tudo são
flores, as repúblicas estão tendo que lidar com um problema não previsto pelos
iluministas: a era da informação massiva, por meio da internet.
Na concepção kantiana, o conhecimento é libertador. Ousar conhecer é uma tarefa
de libertação. Como já falamos, a libertação, no raciocínio de Kant, é a capacidade que
temos de governar a nós mesmos tomando decisões racionais e com critérios éticos. Hoje
em dia, temos acesso à informação e ao conhecimento como nunca tivemos na história da
humanidade, nem mesmo no auge do Iluminismo. Ainda assim, o governo republicano se
vê ameaçado. O escândalo de 2016 (quando se acusou a Rússia de usar os mecanismos
das redes sociais para interferir nas eleições dos Estados Unidos) permanece como um
problema. O uso da internet tem sido feito não para disseminar a informação a favor da
liberdade, mas para confundir e levar a população a tomar decisões com base em
interesses particulares. Nesse contexto, vale a pena lembrarmos dos iluministas e do uso
público da razão.
Com base nessa introdução, a atividade proposta é a seguinte:
- Façam a leitura do texto abaixo (uma matéria jornalística sobre as ferramentas
de informação na internet).
- Depois de ler o texto, elabore uma redação dissertativa de, no mínimo, 30 linhas
com o tema: “o uso público da razão na era da informação digital”.
- O texto deve expressar a sua opinião sobre o assunto, mas deve estar bem
argumentado. Para isso, você pode se apoiar na nossa apostila; no texto que vai logo
abaixo e em qualquer outra fonte de informação que você achar necessária.
Os critérios para correção serão: 1 - Clareza na exposição do argumento (coesão
e coerência textual) e 2 - Capacidade de diálogo com as informações trazidas pela
apostila, pela matéria jornalística e/ou por outras fontes que você julgar necessárias.
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João Brant: Modelo de aplicativos de mensagens enterra o debate público


João Brant
10-13 minutos

[RESUMO] Autor argumenta que modelo de comunicação de massa anônimo e


opaco dos aplicativos de mensagens enterra o debate público e favorece a disseminação
de conteúdos falsos, o que abala os pilares da democracia. Uma solução seria alterar a
arquitetura desses serviços de modo a permitir a identificação dos responsáveis por
viralizar informações ilícitas, mantendo-se, contudo, os mecanismos de privacidade nas
conversas interpessoais.

Introdução

A pandemia e as eleições reaqueceram o problema da desinformação nos


aplicativos de mensagens. Como mostrou uma reportagem da Agência Pública, a partir
de pesquisa da UFMG e da USP, 7 das 10 imagens mais compartilhadas em grupos de
WhatsApp nos primeiros três meses da pandemia eram falsas, e 60% ligavam a Covid-19
a uma conspiração chinesa.
No caso das eleições municipais, ainda não dá para saber o impacto da
desinformação, até porque o pico da poluição informacional costuma se dar perto do
pleito, mas já há em vários estados processos sobre notícias falsas na Justiça Eleitoral.
Embora a real dimensão do problema seja invisível, a parte exposta já assusta.
Uma sociedade democrática não pode naturalizar o fato de uma parte significativa das
informações consumidas pela população ser falsa ou enganosa.
Também não deve ser naturalizada uma suposta falta de soluções. Há ações que
podem enfrentar o principal problema: o enterramento do debate público nos aplicativos
de mensagens. Antes de entrar nas sugestões, porém, vale aprofundar o diagnóstico.
Ornitorrinco digital
Os serviços de mensagens são, ao mesmo tempo, meio de comunicação
interpessoal e meio de comunicação viral. Na comunicação interpessoal (entre indivíduos
ou em grupos), garante-se, quando há criptografia, a privacidade das conversas,
fundamental no diálogo privado.
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Por outro lado, se tomarmos o exemplo do WhatsApp, permite-se que cada usuário
participe de até 10 mil grupos com até 256 integrantes (acessíveis inclusive por links
abertos) e de ilimitado número de listas de transmissão com até 256 membros cada.
Esse arranjo possibilita a viralização de mensagens para milhões de pessoas em
minutos, sem identificação do remetente inicial.
O WhatsApp alega que mensagens que viralizam amplamente são apenas 0,5%
do total. A questão central, contudo, não é o número relativo, mas o absoluto. A empresa
informa que são veiculadas globalmente 80 a 100 bilhões de mensagens por dia; 0,5%
disso representa 400 a 500 milhões de mensagens.
Considerando o número de usuários no Brasil, é possível supor que pelo menos
10% dessas mensagens circulem aqui, ou seja, no mínimo 40 milhões. No período
eleitoral, é provável que esse número cresça.
O número absoluto é, portanto, alto e relevante, independente de ser pequeno
relativamente ao total de mensagens. Em um exemplo grosseiro, é como se na década de
1990 fossem comparados o número diário de matérias de TV e o de ligações telefônicas.
O primeiro seria bem menor, mas com muito mais impacto na democracia pelo seu caráter
maciço.
As mensagens virais se multiplicam nos aplicativos em um ambiente opaco. Não
há um painel público em que sejam postadas —elas só são visíveis pelos destinatários.
Você pode ser vítima de uma campanha de difamação que alcança metade da população
e não saber disso. Ou pode até saber, mas não terá como se defender. Perspectivas
circulam sem o contraditório. Notícias falsas se disseminam sem oportunidade de
questionamento.
Aqui vale dizer: a criptografia, às vezes apontada como problema, não deve levar
a culpa. Aplicativos sem criptografia também são opacos, e ela é essencial para garantir
confidencialidade na faceta interpessoal dos serviços.
As mensagens virais também se aproveitam de o anonimato ser regra geral no
WhatsApp. A longa história de boatos na política sempre se valeu do anonimato, mas a
diferença é que eles antes circulavam boca a boca ou em panfletos apócrifos. No mundo
da internet, passam a ter impacto gigantesco.
O anonimato na comunicação de massa é importante como exceção para proteger
pessoas e grupos vulneráveis, mas quando se torna regra gera dois problemas. Primeiro,
a circulação de conteúdo sem autor impede, na prática, a responsabilização moral e legal.
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Isso cria um mecanismo de incentivo à distribuição de conteúdos enganosos ou calúnias


com finalidade política.
O segundo problema do anonimato como regra é que ele abre caminho para a
exploração perniciosa de fragilidades da psicologia humana. Conteúdos sem autoria são
mais facilmente repassados, porque não dependem da credibilidade do autor e não
responsabilizam moralmente quem repassa.
Além disso, mesmo que sua funcionalidade principal não seja guiada por
algoritmos e inteligência artificial, a própria arquitetura do aplicativo e seus recursos
induzem determinadas condutas. Como aponta a antropóloga Letícia Cesarino, o
ambiente dos grupos fechados é marcado por ritmo intensivo, confiança baseada em
relações pessoais, fusão de contextos pessoais, sociais e profissionais e isolamento do
contraditório.
O isolamento é reforçado pela lógica de comunicação viva e síncrona de
ambientes privados. Nesse tipo de espaço, torna-se custoso emocionalmente participar de
debates com contraditório forte. A tendência gradual é os grupos se tornarem mais
homogêneos.
O enterramento do debate público
Esse problema afeta a democracia em vista do lugar que os aplicativos de
mensagens ocupam no processo de formação da opinião. No Brasil, pesquisa do Instituto
Reuters com a Universidade de Oxford mostra que, em 2020, as mídias sociais
ultrapassaram a televisão como fonte de notícias. O WhatsApp aparece junto com o
YouTube como a principal rede social para uso geral e como a segunda principal fonte de
notícia, atrás apenas do Facebook.
Não há dúvida de que aplicativos de mensagens têm enormes contribuições
sociais. O problema é que o modelo de comunicação de massa opaca e majoritariamente
anônima, que caracteriza os aplicativos, implica o enterramento do debate público.
Impede que haja escrutínio de ideias e dificulta a visibilidade de perspectivas
contraditórias.
Sem transparência, a confiabilidade da informação é diretamente fragilizada. Em
arenas de discussão visíveis ao público e com responsabilidade moral e legal dos
interlocutores, a mentira tem menos chance de prosperar. Talvez por isso o problema de
notícias falsas não fosse tão relevante até 2014.
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É pilar da democracia que os cidadãos estejam bem informados para a tomada de


decisão. Estar bem informado, todavia, depende do acesso a informações plurais, diversas
e confiáveis. Nesse sentido, liberdade de expressão e acesso à informação são siameses.
O problema é que esses valores democráticos não são levados em conta pelos
aplicativos. Não é suficiente quebrar os monopólios ou tentar inibir comportamento
abusivo dos usuários se a própria arquitetura dos serviços induz esses comportamentos.
A armadilha está no fato de que o caráter interpessoal de parte das mensagens atrai
para todo o serviço, inclusive para as mensagens virais, um modelo de tratamento de
dados próprio das comunicações privadas, baseado em privacidade e confidencialidade.
O debate público nas democracias, contudo, precisa de luz.
Há saídas
No Brasil, a questão aparece no projeto de lei de enfrentamento à desinformação
que está em análise na Câmara dos Deputados, depois de passar pelo Senado. O polêmico
artigo 10 buscou mitigar uma parte dos problemas com a rastreabilidade de mensagens
virais, que ofereceria elementos de investigação para identificar os responsáveis por
informações ilícitas. Sou a favor desse caminho, mas reconheço que traz riscos, como
apontam seus críticos, pela fronteira turva entre comunicação interpessoal e comunicação
viral.
De qualquer forma, soluções técnicas poderiam mitigar não só o problema da
responsabilidade, pela identificação de remetentes de mensagens, mas também o da
opacidade. Para ao mesmo tempo proteger a comunicação interpessoal e jogar luz sobre
a comunicação viral, os serviços de mensagem poderiam oferecer ao usuário a
possibilidade de separar as funções.
Isso seria feito, por exemplo, com a oferta de recurso para o criador da mensagem
optar sobre a possibilidade ou não de encaminhamento. Seria análogo ao que faz o
Facebook quando oferece ao usuário a alternativa de a postagem ficar restrita a amigos
ou ser pública e compartilhável.
Se os aplicativos condicionassem a viralização a uma autorização do usuário,
conseguiriam proteger completamente as mensagens interpessoais e ao mesmo tempo
jogar luz sobre as mensagens virais. Seriam dois paradigmas distintos dentro do mesmo
serviço, a serem escolhidos pelo usuário.
Medidas como essa, embora simples, alteram a modelagem do serviço. Porém, se
não houver regras definidas em lei, as empresas não mexerão nos produtos, sob pena de
perder usuários para concorrentes.
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A solução proposta é apenas um dos caminhos possíveis —certamente há outros,


que devem ser debatidos. A arquitetura dos serviços de mensagens não leva em conta
valores democráticos e cria, na prática, um ambiente suscetível à manipulação por grupos
políticos com poder econômico, sem responsabilização por mentiras e ataques.
Se esses serviços têm centralidade na formação da opinião da sociedade, como
acontece no Brasil, isso contamina todo o ambiente informacional. A consequência é a
violação do direito de acesso à informação diversa e confiável, componente central do
direito à liberdade de expressão, pilar da democracia.

FONTE: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/10/modelo-de-
aplicativos-de-mensagens-enterra-o-debate-publico.shtml último acesso em 03 de
novembro de 2020.

A PESQUISA REALIZADA PARA A ELABORAÇÃO DESTE MATERIAL


RECORREU AOS SEGUINTES DOCUMENTOS

BRANT, João. Modelo de aplicativos de mensagens enterra o debate público.


Matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/10/modelo-de-aplicativos-de-
mensagens-enterra-o-debate-publico.shtml último acesso em 03 de novembro de 2020.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Iluminismo? Disponível em:
http://www.uel.br/cch/his/arqdoc/kantPDEHIS.pdf . Último acesso em 03 de novembro
de 2020.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. SP: Ed. 34, 2017.

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