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25/04/2021 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça


Processo: 4738/15.0T8MAI-A.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
CONFISSÃO DE DÍVIDA
HIPOTECA
ESCRITURA PÚBLICA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 23-02-2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A RVISTA E ORDENADA A REMESSA AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO PARA
CONHECER DA NULIDADE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Se nas alegações da apelação foram colocados em questão os
fundamentos para fazer accionar a cláusula penal contratualmente
estabelecida, e ao mesmo tempo se requer, subsidiariamente e ex novo, a
redução dessa cláusula, a Relação incorre na nulidade de omissão de
pronúncia ao excluir do objecto do recurso o pedido de redução, sem que
antes tenha apreciado da existência dos fundamentos para fazer accionar
essa cláusula.
II - Sendo a nulidade cometida na Relação, deve o processo baixar a essa
instância para o respectivo suprimento, nos termos do art. 684.º, n.º 2, do
CPC.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 4738/15.0T8MAI-A.P1.S1


6ª SECÇÃO (CÍVEL)
REL. 164[1]
*
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
AA, residente na Avenida …., ….., instaurou acção executiva para
pagamento de quantia certa, no valor global de 218333,45 €, contra BB,
residente na Avenida de …., …, e CC, residente na Rua das …., ….,
apresentando como título executivo uma escritura pública de “Confissão de
Dívida e Hipoteca” e alegando que os Executados deixaram de pagar as
prestações acordadas nessa escritura a partir de Outubro de 2011, no valor
global de 132 916,79 €.

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Invoca ter direito ao valor da cláusula penal estabelecida no mesmo


documento, no valor de 124.999,88 € (correspondente ao valor de 4.166,66
€ multiplicado pelas 30 prestações em falta).
Refere ainda que, entretanto, os executados liquidaram, através de diversas
entregas, a quantia global de 58.333,24 €, cifrando-se o valor em dívida em
189.583,43 €, acrescido de juros de mora.
Os executados vieram deduzir oposição à execução, mediante embargos,
alegando, em síntese:
- A exequente não cumpriu cabalmente a sua prestação, na medida em que
ocultou a situação tributária da Lusore relativamente aos anos fiscais de
2009 e 2010, em que a gerência cabia àquela, levando a que os executados
tivessem de liquidar à Autoridade Tributária 36.659,96 € de IRC e
13.710,89 € de IVA;
- Terá, por conseguinte, de ser reduzido ao valor de 200.000,00 € o
montante de 51.051,85 €;
- Os elementos determinantes para a fixação do preço foram os
equipamentos existentes e, sobretudo, a perspectiva de recebimento, ao
abrigo do contrato n.º 2008/…., firmado com o IAPMEI, de um incentivo
reembolsável de 177.496,19 €, que poderia ser convertido em incentivo não
reembolsável até 73,13% do seu valor (129.802, 96 €), acrescido de um
prémio de realização no valor máximo de 122.496,29 €;
- Algumas das despesas efectuadas durante o período de gestão da
exequente não puderam ser consideradas pelo IAPMEI, pelo facto de não
terem sido documentalmente demonstradas;
- A exequente bem sabia que não estava em condições de provar
documentalmente as referidas despesas, mas ocultou esse facto aos
executados, quer durante as negociações, quer no momento da outorga das
escrituras;
- Em virtude da falta de cumprimento dessa condição, exclusivamente
imputável à exequente, o IAPMEI resolveu o Contrato de Incentivos e
notificou a Lusore para a devolução do montante de 41.198,21 €;
- Assim, têm os executados direito a haver da exequente a quantia
correspondente ao valor que a sociedade deixou de beneficiar pelo facto de
a sua candidatura não ter sido deferida, devendo considerar-se não apenas a
parte não reembolsável do incentivo (129.802,96 €), como o prémio da
realização (122.496,29 €), num total de 252.299,25 €;
- Os executados aperceberam-se desses factos tendo contactado a exequente
para que fosse encontrada uma solução, o que não aconteceu;
- A suspensão dos pagamentos acordados resultou da circunstância de se
terem detectado os vícios supra descritos;
- Não há, por isso, qualquer incumprimento dos executados que justifique o
accionamento da cláusula penal, bem como dos juros e compensação de
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outras despesas.
Feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou os embargos
improcedentes, ordenando o prosseguimento da execução.
Os executados interpuseram recurso de apelação, que também foi julgado
improcedente, embora tenha modificado alguma da factualidade vinda da 1ª
instância, na sequência da impugnação da matéria de facto deduzida pelos
apelantes.
Continuando inconformados, apresentaram os executados recurso de revista,
por entenderem que não se verifica uma situação de dupla conforme, na
medida em que o acórdão recorrido se baseou em fundamentos de facto e de
direito radicalmente distintos dos que constam da sentença da 1ª instância.
Concluem as alegações da revista do seguinte modo:
1. É fundamento do presente recurso a nulidade do acórdão recorrido por
omissão de pronúncia (arts. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC), e a violação da lei
substantiva na modalidade de erro na interpretação e aplicação do direito, no
que concerne à repartição da culpa na responsabilidade contratual (art. 570.º
do CC), ao regime da venda de coisa onerada ou defeituosa (arts. 805.º,
811.º e 813.º do CC) e à redução da cláusula penal (art. 812.º do CC), e na
modalidade de erro na escolha e determinação da norma aplicável no que
respeita à clausula penal (art. 334.º do CC).
2. A admissibilidade do presente recurso de revista resulta da circunstância
o acórdão da Relação confirmar a decisão de 1.ª instância com fundamentos
de factos e de direito radicalmente distintos, não se verificando a dupla
conforme a que se refere o artigo 671º, n.º 3, do CPC.
3. Com efeito, o Tribunal da Relação procedeu à modificação da matéria de
facto dada como provada, alargando substancialmente a base factual da
decisão e assim o âmbito subjetivo e objetivo do alcance do caso julgado
material; e, por outro lado, operou um distinto enquadramento jurídico dos
factos provados, ao deslocar a base normativa da improcedência em 1ª
instância assente na inexigibilidade do contra crédito dos embargantes (nos
termos dos arts. 847º, n.º 2, do CC), para a aventada falta de “due diligence”
na aquisição da empresa por banda dos executados, e consequente
irresponsabilidade da embargada pelo incumprimento pontual da sua
prestação, ao mesmo tempo que conjetura, ainda que para a excluir, a
disciplina do erro sobre a base do negócio (previsto no art. 252.º do CC) e o
regime da compra e venda de coisa defeituosa (nos termos previstos no art.
905.º e ss. do CC).
4. O Tribunal da Relação situou o litígio no domínio da responsabilidade
contratual (arts. 798.º e ss. do Código Civil), mas deu como verificado que
os compradores/embargantes não usaram da diligência devida ou exigível,
tendo agido com culpa e concorrido para a produção dos danos,
circunstância que excluiria a responsabilidade da embargada, por força do
artigo 570.º do Código Civil.

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5. Não podem os recorrentes acompanhar este raciocínio do Tribunal da


Relação, desde logo porque não ficou provado que os
embargantes/compradores não tenham analisado previamente a
contabilidade da sociedade ou que não tenham suscitado quaisquer
esclarecimentos à vendedora acerca de questões contabilísticas/financeiras
da sociedade, assim como não foi dado como não provado que o tenham
feito.
6. Não existindo qualquer suporte fáctico a esse respeito, o Tribunal da
Relação não podia ter concluído sem mais que os lesados/embargantes
omitiram o seu dever de “due diligence”.
7. Mais: infere-se da prova documental junta aos autos pela própria
embargada/vendedora que, aquando das negociações da venda da empresa
aos embargantes/compradores, foi solicitado à Administração Tributária que
certificasse se a Lusore era devedora à Fazenda Pública de quaisquer
contribuições ou impostos, tendo certidão negativa de dívida fiscal sido
entregue aos embargantes/compradores.
8. Ora, a Administração Tributária, que tem acesso direto a todos os
documentos contabilísticos dos contribuintes, goza de amplos poderes
coativos no âmbito dos procedimentos de inspeção e regularização tributária
e dispõe de quadros técnicos especializados, não foi capaz de detetar
quaisquer irregularidades tributárias na Lusore senão aquando da Ação
Inspetiva realizada em 2012.
9. Pelo que não pode razoavelmente impor-se aos embargantes/compradores
que, com base na mera análise dos documentos que lhe fossem facultados
pela vendedora – e note-se que tratando-se de documentos na
disponibilidade da compradora a mesma poderia omitir a apresentação
daqueles que lhe conviesse – “descobrissem” irregularidades que a própria
Administração Tributária não fora capaz de “desvendar”.
10. A tónica aqui não incide na falta de diligência dos
embargantes/compradores - que agiram com a prudência que é de esperar
atento o padrão do homem médio ao exigirem uma certidão fiscal que lhe
certifica a inexistência de dívidas e consequente situação tributária
regularizada -, mas na falta do cumprimento dos deveres de informação e
boa-fé contratual a que a vendedora/exequente estava obrigada a cumprir
aquando da venda da sociedade.
11. Deveres que o Tribunal da Relação …. reconhece e não deixou de
proclamar teoricamente – pode ler-se no acórdão recorrido que “o vendedor
tem a obrigação de fornecer ao comprador um conjunto de informações
completas e verdadeiras quanto ao objeto do negócio e de transmitir a
sociedade livre de ónus ou defeitos” –, embora no momento da aplicação
prática tenha obliterado as ideias que, em abstrato, tão judiciosamente
sustentou.
12. Em face do que antecede, andou o Tribunal da Relação ao ter sufragado
o entendimento que no caso concreto os embargantes/compradores não
cumpriram com o ónus de “due diligence”, seja porque não foram dados
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como provados ou não provados quaisquer factos a esse respeito (tornando


infundado o juízo de valor formulado), seja porque as provas existentes
apontam até em sentido contrário (tornando-o arbitrário).
13. A aplicação do artigo 570.º do CC no domínio da responsabilidade
contratual, supõe uma mais exigente conceituação do nexo de causalidade e
do padrão de atuação do lesado à luz do paradigma do bonus pater familias
e da atuação que seria de exigir no caso concreto.
14. Na situação sub judice, não ficou provado qualquer facto do qual se
possa extrair a conclusão de que os embargantes omitiram o seu dever de
“due diligence”, menos ainda que essa omissão ou negligência possa
qualificar-se como não aceitável de acordo com um padrão negocial justo e,
por isso, merecedora de um forte juízo de censura determinante da
supressão do seu direito à indemnização ou – porque o contrato ainda não
estava integralmente cumprido à data do incumprimento pelo vendedor – da
redução do preço acordado.
15. Pelo que andou o tribunal da Relação ao ter considerado aplicável no
caso concreto a norma do artigo 570º do Código Civil.
16. E mesmo que o artigo 570º do Código Civil fosse concretamente
aplicável ao caso – o que não se concebe – sempre a consequência dessa
aplicação haveria de ser diferente da pura e simples supressão do direito do
lesado à indemnização ou à redução do preço, antes cabendo ao Tribunal
graduar a consequência jurídica consoante a gravidade relativa da conduta
de cada uma das partes, em ordem a manter preservado um equilíbrio
negocial mínimo.
17. Não é isso que acontece se, como fizeram as instâncias, se decidir que
os embargantes estão obrigados a pagar a totalidade do preço de €
250.000,00 fixado para o contrato e ainda a quantia de € 124.999,88 a título
de cláusula penal, por uma empresa que, à data da aquisição, não tinha
atividade, não dispunha de stock, não apresentava clientela, nem ativos. E
tudo isto a somar à quantia de € 54.563,97 que tiveram de desembolsar para
regularizar a situação fiscal da Lusore em virtude de irregularidades
cometidas antes da transmissão das quotas.
18. Não sendo admitida a redução do preço, o “do ut des” do contrato fica
francamente desequilibrado: em vez de um pagamento de € 250.000,00 por
uma empresa com igual valor, temos, de um lado, € 429.563,85; do outro,
pouco mais do que 0.
19. Entendeu o Tribunal da Relação, a propósito das dívidas fiscais, que da
não inclusão na escritura pública dada à execução de uma cláusula de
garantia em que as partes acordam sobre a distribuição do risco e da
especial proteção do adquirente permite inferir que não quiseram distribuir
por qualquer forma o risco da transmissão da sociedade. E para a Relação
não distribuir o risco da transmissão da sociedade significa, na prática, que a
totalidade do risco impende sobre o adquirente.

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20. A argumentação do acórdão recorrido assenta numa errada subsunção


dos factos e numa equivocada interpretação das normas jurídicas aplicáveis.
21. Em primeiro lugar, importa sublinhar que o negócio atípico de
transmissão indireta de empresa a que se reportam os autos foi celebrado
verbalmente, isto é, sem que tenha sido levado a escrito pelas partes.
22. Se o negócio celebrado entre as partes – a transmissão da totalidade das
participações sociais da Lusore e, por essa via, a compra e venda, indireta,
da empresa – não revestiu a forma escrita, não pode razoavelmente exigir-se
a adoção de forma escrita qualquer cláusula de garantia ou de distribuição
do risco.
23. Ademais, convenhamos que o negócio aqui em causa é um negócio de
“sucatas” em que as partes envolvidas eram conhecidas de há longos anos,
tratavam-se por “tu”, não se trata de um negócio entre sociedades com
vastos impérios empresariais que dominam ou têm uma posição relevante
no mercado nacional e quiçá internacional, em que por força da concreta
atividade desenvolvida, dos investimentos efetuados, estão assessoradas de
uma vasta equipa técnica de advogados, contabilistas, gabinetes de
assessoria.
24. Por outro lado, e contrariamente ao que parece entender a Relação …..,
se não tiver sido estipulada uma cláusula de garantia – ou, o que é o mesmo,
se não tiver sido feita prova dessa estipulação –, o contrato ficará sujeito ao
regime legal geral previsto na lei para a falta de cumprimento ou do
cumprimento defeituoso do contrato.
25. A maior ou menor relevância dos vícios deve ser aferida em face da
situação subjacente da sociedade e do seu potencial para afetar o equilíbrio
das prestações recíprocas das partes, importando sempre analisar o contexto
negocial e a informação trocada entre as partes.
26. Se a sociedade tiver apenas um ativo (por exemplo, um imóvel, um
crédito avultado), a relevância do ativo no contexto da sociedade e, logo, no
negócio, leva a que se centre mais o conteúdo da garantia e relevância dos
vícios no ativo em causa.
27. No caso em apreço, a sociedade “praticamente não tinha clientela, o
valor do seu stock era quase nulo, não dispunha de créditos a receber e
apresentava uma atividade residual”, a vendedora entregou aos compradores
uma certidão negativa de dívida fiscal, e a empresa tinha como ativo o
direito ao recebimento de um incentivo reembolsável até ao valor de € 177
496,19, que poderia ser convertido em incentivo não reembolsável até ao
montante de € 129 802,96, acrescido de um prémio de realização no valor
máximo de € 122 496,29.
28. É manifesto que o não recebimento do montante do incentivo e a
existência de dívidas fiscais avultadas representam um vício coberto pela
garantia edilícia geral, que resulta do regime do incumprimento ou do
cumprimento defeituoso do contrato (arts. 798º e ss. do CC) e, mais em

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concreto, da disciplina da venda de coisa onerada (art. 905º do CC) ou


defeituosa (art. 913º do CC).
29. Será tipicamente um ónus ou encargo a situação de passivo oculto, em
que uma dívida a terceiro não surge no balanço entregue ao comprador, ao
passo que deve ser considerada como defeito uma situação de incorreção de
balanço devido a uma sobrevalorização de ativos.
30. No caso em apreço, os embargantes/recorrentes tiveram de pagar à
Administração Tributária, em

relação ao ano de 2009 (ano durante o qual é pacifico que a sociedade ainda
pertencia à embargada) cerca de € 22.109,06 (vinte e dois mil cento e nove
euros e seis cêntimos), concretamente: (a) a quantia de € 858,44 (Ponto 13
dos factos Provados); (b) a título de IVA, custas e juros a quantia
proporcional de € 15.288,20 (Ponto 14 dos Factos Provados); (c) por conta
do processo contraordenacional a quantia proporcional de € 5.962,42 (Ponto
16 dos Factos Provados).
31. Ao referido valor acresce ainda o valor despendido pelos embargantes
na escritura, registos e impostos referentes à hipoteca constituída a favor da
Administração Tributária como garante do cumprimento dos valores
devidos pelo exercício de 2009 e 2010, no valor de € 681,00 (Ponto 15 dos
Factos Assentes).
32. As referidas irregularidades tributárias configuram uma situação de
passivo oculto que os executados não esperavam ter de liquidar e que
respeitam a factos que não pode ser-lhes imputado.
33. Nessa medida, aplicando-se o regime da venda de coisa onerada, têm os
embargantes o direito a verem reduzido do preço em dívida a quantia de €
22.790,06 (cfr. arts. 905.º e 911.º do CC).
34. Por outro lado, considerando que a Lusore não recebeu o valor do
incentivo do IAPMEI, valor esse que constituía o único ativo da sociedade e
que naturalmente foi tido em conta pelas partes na definição do conteúdo do
contrato, é legítimo concluir que a exequente não cumpriu cabalmente a sua
prestação já que se verificou uma situação de relevante discrepância no
valor do ativo, com grave violação das expectativas dos compradores e do
equilíbrio negocial global.
35. Nessa medida, aplicando-se o regime da venda de coisa defeituosa, têm
os embargantes o direito a verem reduzido o preço em dívida nos termos
que o tribunal considere ajustados, em harmonia com a desvalorização
resultante da limitação ou defeito, mas sempre em medida não inferior ao
montante do preço ainda por pagar (cfr. arts. 911.º e 913.º do CC).
36. Com relevo para o acionamento da cláusula penal, constata-se que os
embargantes por conta da quantia confessada no título dado à execução (€
200.000,00) liquidaram à embargada o valor global de € 135.416,45, assim
encontrado: € 74.999,88 (ponto 8 dos Factos Provados) + 2.803,33 (Ponto 8
dos Factos Provados) + € 58.333,2 (Ponto 9 dos Factos Provados).
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37. Pelo que, à data Pelo que, à data do último pagamento efetuado, (abril
de 2014 – ponto 9 dos Factos Provados), o valor do capital em dívida
ascendia a € 64.583,55 [assim encontrado: € 200.000,00 - € 135.416,45 = €
64.583,55]).
38. Em sede de recurso de apelação, os embargantes/recorrentes reiteraram
inexistir incumprimento contratual legítimo a acionar a cláusula penal,
argumentando existir a propósito uma errada interpretação do direito
aplicável e subsunção jurídica dos factos violadora dos artigos 405.º, n.º 1,
428.º, 810.º, n.º 1, e 812.º, todos do Código Civil; e a título subsidiário
requereram a redução da cláusula penal fixada nos termos do artigo 812.º do
CC.
39. Porém, o Tribunal da Relação pronunciou-se apenas acerca do
peticionado a título subsidiário, não tendo discorrido uma linha que seja, e
muito menos proferido qualquer segmento decisório, acerca da alegada
inadmissibilidade do acionamento da cláusula penal sufragada pelos
recorrentes a título principal no seu recurso de apelação.
40. Tendo o coletivo de juízes deixado de se pronunciar sobre questões que
deviam ter sido apreciadas pois que ínsitas no objeto do recurso de
apelação, o acórdão recorrido enferma de nulidade, a qual se invoca para e
com os devidos efeitos legais, nos termos dos arts. 615.º, n.º 1, al. d), e art.
674.º, n.º 1, al. c), do CC.
41. Sem prejuízo da referida nulidade, a cláusula penal pode ser reduzida
pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente
excessiva, ainda que por causa superveniente; sendo admitida a redução nas
mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida (cf.
art. 812.º, n.ºs 1 e 2, do CC).
42. A questão do concreto valor devido a título de cláusula penal foi
equacionada já aquando da dedução dos embargos à execução (no art. 33.º
desse articulado, os embargantes insurgiram-se contra o valor peticionado a
título de clausula penal, impugnando o alegado no art. 6.º do Requerimento
Executivo).
43. E ainda que assim não fosse, sempre se deverá entender que a redução
ao abrigo do referido normativo atua oficiosamente por se tratar de uma
norma de ordem pública, inspirada em fortes razões de ordem moral e
social, levando a que prevaleça sobre convenções privadas, conforme
sufragado por ANA PRATA, Cláusulas de Exclusão e Limitação da
Responsabilidade Contratual, Almedina, 1985, pág. 642.
44. Mas mesmo a corrente jurisprudencial que entende não poder a redução
equitativa da cláusula penal com fundamento no artigo 812º do CC ser
decretada oficiosamente pelo tribunal, considera que essa pretensão não
necessita de ser formulada expressamente e pode sê-lo apenas de forma
implícita, designadamente quando o devedor se insurja contra o montante da
pena – como aconteceu nos embargos de executado.

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45. Sem prejuízo do que antecede, no domínio da redução da cláusula penal


vem constituindo ainda entendimento prevalecente de que será sempre
legítimo o recurso oficioso ao instituto de abuso de direito consagrado no
artigo 334.º do CC para conseguir a redução de cláusulas penais, sempre
que se constate que as mesmas se revelam manifestamente excessivas ou
desproporcionadas ao fim que visam prosseguir e ao conteúdo do direito
que se propõem realizar.
46. Ora, considerando que os executados à exequente a quantia global de €
135.416,45, isto, é o correspondente a 67,71% do valor acordado entre as
partes (€ 200.000,00) – cf. Pontos 3, 8 e 9 dos Factos Provados -; tendo
ainda em consideração que no mesmo período os embargantes foram
obrigados a pagar à Administração tributária a título de IRC, IVA, Coima,
juros e despesas administrativas o valor global de € 53.882,97; e que
naquele mesmo período tiveram de devolver ao IAPMEI a quantia de €
41.198,21, necessariamente ter-se-á de concluir que os embargantes
lograram afastar a presunção de culpa estabelecida no artigo 799º do CC.
47. A cláusula penal não é de funcionamento automático, só podendo
funcionar havendo culpa do devedor, devendo, no caso, ter-se por excluída.
48. Mas ainda que assim não se entenda – o que apenas se equaciona por
dever de patrocínio – revela-se exacerbado, ofensivo dos limites impostos
pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito
reportar o incumprimento dos embargantes, para efeitos de delimitação do
valor da cláusula penal, a setembro de 2011, numa altura em que estavam
em dívida € 124.999,88, quando posteriormente a essa data os embargantes
entregaram ainda em pagamento à exequente quase outro tanto, mais
concretamente € 60.416,57 (€ 2.083,33 em outubro de 2011, e € 58.333,24
de novembro de 2011 a abril de 2014).
49. Pelo que, fixando-se à referida data o incumprimento em € 64.583,55, o
valor devido a título de cláusula penal não pode exceder de modo algum o
referido montante, embora se ouse entender e peticionar que o mesmo deva
ser reduzido para valor inferior, nunca superior a € 10.000,00 (dez mil
euros), atentos os circunstancialismos atrás apontados.
Contra-alegou a recorrida, batendo-se pela improcedência da revista, sem
prejuízo de entender que esta não é admissível por se verificar uma situação
de dupla conforme.
*
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes, as
questões a dirimir são as seguintes:
a) nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (artigo 615.º, n.º
1, al. d), do CPC),
b) violação da lei substantiva na modalidade de erro na interpretação e
aplicação do direito, no que concerne à repartição da culpa na
responsabilidade contratual decorrente da venda de coisa onerada ou
defeituosa (artigos 805.º, 811.º e 813.º do CC);
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c) redução da cláusula penal (artigo 812.º do CC).


*
II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
A factualidade que a Relação …. deu por consolidada foi a seguinte:
1. Nos finais de 2009, a Embargada abordou os Embargantes no sentido de
lhes propor a venda da sociedade “Lusore, Lda.”, pessoa colectiva n.º
508307910, pelo preço de 250.000,00 € (duzentos e cinquenta mil Euros),
negócio que estes aceitaram celebrar com a Embargada (por acordo).
2. A título de sinal, os Embargantes entregaram à Embargada a quantia
global de 50.000,00 € (cinquenta mil Euros), em duas tranches,
respectivamente de 10.000,00 € (dez mil Euros) e 40.000,00 € (quarenta mil
Euros) (por acordo).
3. Por documento intitulado “Confissão de dívida e hipoteca” outorgado por
escritura pública no Cartório Notarial da Dr.ª DD, em 19 de Março de 2010,
os Executados confessaram-se devedores à Exequente do remanescente do
preço da compra e venda da sociedade “Lusore, Lda” ainda em dívida, no
valor de 200.000,00 (duzentos mil Euros) (por acordo).
4. Os executados assumiram o pagamento da referida quantia em dívida à
exequente em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de
4.166,66 € cada uma, vencendo-se a primeira no dia 20 de Abril de 2010 e
as restantes em igual dia dos meses subsequentes (por acordo).
5. De acordo com o estipulado na aludida escritura pública, em caso de falta
de pagamento pontual de qualquer uma das prestações os executados
ficaram obrigados a pagar à exequente uma cláusula penal de valor idêntico
às prestações em falta (por acordo).
6. Como garantia de pagamento de todas as responsabilidades assumidas
pelos executados, o executado BB constituiu a favor do exequente hipoteca
voluntária sobre a fracção autónoma identificada na escritura pública de
confissão de dívida ora referida (por acordo).
7. À data da compra e venda da referida sociedade pelos Embargantes,
aquela praticamente não tinha clientela, o valor do seu stock era quase nulo,
não dispunha de créditos a receber e apresentava uma actividade residual.
8. Os executados pagaram na íntegra as prestações que se venceram até ao
mês de Setembro de 2011 (primeiras 18 prestações), no valor de 74.999,88 €
e liquidaram em Outubro de 2011 o montante de 2.083,33 € (por acordo).
9. Os executados liquidaram à exequente, através de diversas entregas, o
montante de 58.333,24 €, tendo deixado de efectuar qualquer pagamento a
partir de Abril de 2014 (por acordo).
10. A exequente renunciou à gerência da dita sociedade e assinou e entregou
aos executados os requerimentos e demais documentos necessários ao
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registo das referidas transmissão de quota e renúncia na Conservatória de


Registo Predial competente, registos esses que se efectuaram em 24/03/2010
(doc. de fls. 16 a 23).
11. No ano de 2012, a “Lusore, Lda” foi objecto de uma acção inspectiva
efectuada pela Administração Tributária, que encontrou irregularidades nos
exercícios fiscais de 2009 e 2010, pelo que tendo por base os elementos
retirados da contabilidade da empresa, bem como os entretanto presumidos,
foi considerado oficiosamente e com recurso a métodos indirectos um
resultado tributável para o exercício de 2009, no valor de 62.536,85 €, e
para o exercício de 2010, no valor de 84.435,53 €, perfazendo o valor global
de 146.972,38 €, a título de IRC.
12. Com recurso aos mesmos métodos, a Administração Tributária
considerou que os valores de omissões de proveitos em cada um dos anos
ascenderam a 121.419,40 € em 2009 e 118.785,80 € em 2010, os quais se
repartiram equitativamente ao longo dos quatro trimestres de cada ano,
apurando os montantes de imposto que não foram entregues nos Cofres do
Estado, nos termos dos arts. 29.º e 41.º do CIVA, de 24.283,88 € para o ano
de 2009 e de 24.351,08 € para o ano de 2010, num total de 48.634,96 €.
13. Após o exercício do contraditório pela referida sociedade e o pedido de
pagamento em prestações foi a dívida fiscal fixada em 858,44 € no que
respeita a IRC do ano de 2009, sendo 745,07 € a título de quantia
exequenda; 11,91 € a título de juros e 101,46 € a título de custas (Processo
….) e 10.523,30 € no que respeita ao IRC de 2010 (Processo …..), sendo
9.792,57 € a título de quantia exequenda, 449,31 € a título de juros de mora
e 218,42 € a título de custas, encontrando-se os referidos valores
integralmente pagos, datando o pagamento final de 2015-11-03.
14. No que respeita a IVA dos exercícios de 2009 e 2010 foi a dívida fiscal
fixada em 28.532,09 €, tendo sido pago pela Lusore a título de capital
(dívida fiscal), juros e custas administrativas referentes ao processo de
cobrança do referido valor (Processo …..) a quantia global de 30.576,39 €, a
qual se encontra integralmente paga desde final de Maio de 2016.
15. Para garantir o pagamento dos referidos valores, foi necessário dar em
hipoteca um imóvel, tendo os ora Executados despendido para o efeito a
quantia global de 681,00 € (seiscentos e oitenta e um euros) respeitante à
escritura, registos e impostos pagos (doc. de fls. 26).
16. As irregularidades fiscais detectadas deram origem ao processo
contraordenacional n.º …. no âmbito do qual foi proferido despacho final
em 09/03/2016 e pelo qual foi aplicado à Lusore, Lda. uma coima única no
valor de 11.848,34 € acrescido de custas processuais no valor de 76,50 €,
cujo valor foi pago em prestações mensais, encontrando-se actualmente o
processo extinto por pagamento, datando o último pagamento de
30/03/2017.
17. Em data anterior à da celebração do contrato dos autos, a “Lusore” tinha
celebrado o Contrato n.º 2008/…. com o Instituto de Apoio às Pequenas e
Médias Empresas e à Inovação, ao abrigo do Programa de Incentivo à
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Inovação do QREN, nos termos do qual tinha perspectiva de recebimento de


um incentivo reembolsável até ao valor de 177.496,19 €, que poderia ser
convertido em incentivo não reembolsável até 73,10% do seu valor
(129.802,96 €, acrescido de um prémio de realização no valor máximo de
122 496,29 €),
18. A “Lusore” apenas recebeu do IAPMEI a quantia de € 41.198,21, valor
este que teve posteriormente de devolver à referida entidade.
19. Por comunicação datada de 11/11/2014, com o teor de fls. 31 e ss. dos
autos, os Embargantes comunicaram à embargada que procediam à
compensação recíproca dos créditos entre as partes, bem como à redução do
preço acordado pela venda da Lusore, nos termos e pelos fundamentos aí
descritos, arrogando-se a final nada deverem à referida data à aqui
embargada, antes, efectuadas a compensação e redução comunicada, serem
ainda credores da mesma pelo valor de 276.267,81 € (duzentos e setenta e
seis mil, duzentos e sessenta e sete euros e oitenta e um cêntimos).
Não se considerou provado:
a) Que, em meados do ano de 2011, as partes acordaram numa restruturação
do plano de pagamento prestacional, alterando o valor a amortizar
mensalmente, o qual passava a ser de 2.083,33 € (dois mil e oitenta e três
euros e trinta e três cêntimos) e, consequentemente, o número de prestações
e duração do plano prestacional, o qual se prolongaria pelos meses
necessários à liquidação integral do capital contando que mensalmente fosse
feita a entrega do referido valor acordado;
b) Que no demais, mantiveram os termos do clausulado anteriormente,
nomeadamente no que respeita ao não vencimento de juros;
c) Que, em conformidade, a partir de 20/10/2011, os executados procederam
mensalmente até 15/04/2014 ao pagamento da quantia de 2.083,33 €, num
valor global de 60.416,57 € (sessenta mil quatrocentos e dezasseis euros e
cinquenta e sete cêntimos);
d) Que a suspensão dos pagamentos acordados resulta de se ter detectado os
vícios supra referidos e da disponibilidade das partes para um entendimento
consensual;
e) Que os elementos determinantes do preço do negócio tivessem sido os
equipamentos existentes e, sobretudo, a perspectiva de recebimento, ao
abrigo do contrato n.º 2008/…, firmado com o Instituto de Apoio às
Pequenas e Médias Empresas e à Inovação, ao abrigo do Programa de
Incentivo à Invocação do QREN, de um incentivo reembolsável até ao valor
de 177.496,19 €, que poderia ser convertido em incentivo reembolsável até
73,13% do seu valor (129.802,96 €), acrescido de um prémio de realização
no valor máximo de 122.496,29 €;
f) Que a exequente sabia – embora omitindo dolosamente aos executados
essa informação – que as despesas que para o efeito apresentou junto do
IAPMEI não seriam consideradas despesas elegíveis ao abrigo do Contrato
de Incentivo à Inovação, o que acarretaria afinal o não recebimento de
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qualquer incentivo, prémio ou qualquer outra quantia ao abrigo do


Programa de Incentivo à Inovação do QREN.
O DIREITO
Questão prévia
Como flui do relatório supra, a Relação …. julgou improcedente a apelação
e confirmou a sentença da 1ª instância.
Fê-lo, contudo, com sustentação jurídica essencialmente diversa da que foi
utilizada na referida sentença, pois enquanto nesta se considerou que o
contracrédito invocado pelos embargantes não reúne condições de
exigibilidade, por não ter ‘suporte executivo’, o acórdão recorrido baseou-se
na existência de culpa do lesado na ocorrência dos danos que dão corpo a
esse contracrédito para fazer improceder as excepções da redução do preço
e da compensação.
Estes diferentes tipos de fundamentação atingem a centralidade da discussão
jurídica relativamente a essas matérias e daí que não possa falar-se em dupla
conformidade decisória da sentença da 1ª instância e do acórdão recorrido.
Portanto, a revista é admissível ao abrigo do artigo 671º, n.º 3, do CPC,
improcedendo deste modo a questão prévia suscitada pela recorrida.
A nulidade do acórdão
Nas conclusões 38ª a 40ª, os recorrentes imputam ao acórdão recorrido a
nulidade consistente na omissão de pronúncia, afirmando que o tribunal não
se pronunciou sobre a sua alegação de que inexistia incumprimento
contratual que levasse ao accionamento da cláusula penal, dizendo ainda
que a Relação … apenas emitiu pronúncia sobre o requerimento de redução
da cláusula penal, deduzido subsidiariamente.
O colectivo que proferiu o acórdão decidiu, em conferência, que nenhuma
nulidade havia, na medida em que todas as questões suscitadas na apelação
haviam sido tratadas – cfr. fls. 953 a 956.
Vejamos:
Nas conclusões 94ª e 95ª da apelação pode ler-se:
94. Inexiste incumprimento contratual legítimo a acionar a cláusula
penal constante do título executivo, tendo o tribunal a quo feito uma errada
interpretação do direito aplicável e subsunção jurídica dos factos violando
os arts. 405º, n.º 1, 428º, 810º, n.º 1, 412, todos do Código Civil.
95. Pois como resulta da prova produzida a sua convenção foi imposta
pela embargada, sendo que os embargantes suspenderam os pagamentos
num momento em que se encontrava em dívida o valor de € 64.583,55 (€
200.000,00 – ([18 x € 4.166,66 ] + [29 x € 2.083,33]), e fizeram-no porque à
altura atravessavam sérias dificuldades financeiras (afrouxamento do
mercado, pagamento às Finanças, não recebimento do IAPMEI, nos termos
profetizados pela embargada), além de que a embargada se encontrava
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também ela em incumprimento com os embargantes pois que apesar de


asseverar aos embargantes que caso surgisse alguma irregularidade,
problema ou dívida respeitante ao exercício anterior à venda que assumiria a
responsabilidade pelo seu pagamento ou acertaria tal valor com o valor que
tivesse a haver dos embargantes por conta do preço da sociedade, certo é
que não honrou a sua palavra.
E das conclusões 96ª a 99ª consta o seguinte:
96. Subsidiariamente porquanto a referida cláusula revelar-se
excessivamente onerosa atentas as concretas circunstâncias do caso
(dificuldades económicas, a existência de irregularidades fiscais respeitantes
a um período de gestão/exercício da própria embargada mas cujos valores
tiveram de ser suportados pelos embargantes enquanto novos gerentes da
Lusore e cujo pagamento se iniciou por altura da suspensão dos pagamentos
à embargada; frustração no recebimento do incentivo e prémio do IAPMEI
que ficou muito aquém do garantido pela embargada; incumprimento
contratual da embargada; o montante pago até então corresponder a 75% do
valor global fixado) dever-se-á proceder à redução da cláusula penal fixada
nos termos do artigo 812º.
97. Com efeito, apesar do reconhecimento às partes de poderes
autonómicos na fixação da cláusula penal (arts. 405º, n.º 1 e 810º, n.º 1, do
CC) o nosso ordenamento jurídico não deixou de ser sensível e de ponderar
a possibilidade de serem cometidos abusos nessa fixação.
98. Assim, para o caso de se entender ser devido o acionamento da
cláusula penal, o que apenas se equaciona por dever de patrocínio, nunca a
mesma poderá ser pelo valor de € 124.999,88 – pois que à data da
suspensão/incumprimento o valor em dívida ascendia a € 64.583,55 (…)
sendo que nos termos do título dado à execução o valor da cláusula penal é
o do valor das prestações em atraso.
99. Nem mesmo pelo valor de € 64.583,55 ou por € 35.003,40
(operando-se a redução supra referida) pois que em ambos os casos tais
valores se revelam excessivamente onerosos feita a apreciação global de
todo o circunstancialismo objetivo e subjetivo do caso concreto, devendo
reduzir-se ao valor de 1.000,00 (mil euros).
Decorre destas conclusões que os recorrentes defendem, em primeira linha,
a inexigibilidade da cláusula penal, por inexistir incumprimento contratual
que justifique o seu accionamento (v. conclusões 94ª e 95ª) e,
subsidiariamente (ou seja, para o caso de se justificar esse accionamento),
pedem a sua redução ao abrigo do disposto no artigo 812º do CC (v.
conclusões 96ª a 99ª).
Lido o acórdão recorrido não se encontra nenhuma referência à matéria
invocada nas conclusões 94ª e 95ª (inexistência de fundamento para
accionamento da cláusula penal), tendo apenas sido preliminarmente
abordada, na fixação do objecto do recurso, a impossibilidade de redução
dessa cláusula.

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Recuperemos, então, o que consta do acórdão, no capítulo dedicado à


‘Delimitação do Objecto do Recurso”:
“Como questão prévia, cumpre atender a que os Recorrentes vêm agora,
em sede de recurso, invocar – entre o mais e a título supletivo – que, para o
caso de se entender ser devido o accionamento da clausula penal, o que
apenas se equaciona por dever de patrocínio, nunca a mesma poderá ser
pelo valor de € 124.999,88, de € 64.583,55 ou de € 35.003,40, por todos
estes valores se revelarem excessivamente onerosos feita a apreciação
global de todo o circunstancialismo objectivo e subjectivo do caso concreto,
devendo reduzir-se ao valor de € 1.000,00 (mil euros).
(…)
Analisados os autos, verifica-se que esta questão da eventual redução
equitativa da cláusula penal é uma questão totalmente nova, que não foi
suscitada pelos Embargantes/Recorrentes até agora, designadamente no
seu articulado de Embargos de Executado.
Além disso, é pacificamente entendido que não se trata de questão de
conhecimento oficioso do Tribunal.
Assim sendo, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que esta
questão, por configurar uma questão nova, não pode ser conhecida por este
Tribunal da Relação”.
É indubitável que esta apreciação teve como único foco a possibilidade da
redução da cláusula penal e não a sua (in)exigibilidade face ao alegado
inadimplemento dos executados. Só esse pedido de redução constitui
questão nova nos autos, insusceptível de conhecimento pela 2ª instância (no
entendimento do acórdão recorrido), por nunca ter sido antes esgrimida.
Ficou, portanto, por resolver a questão prioritariamente colocada pelos
recorrentes, qual seja a de saber se, perante as circunstâncias do caso, a
cláusula penal tinha (ou não, como defendem) condições para ser accionada.
A nulidade de omissão de pronúncia, prevista na 1ª parte da alínea d) do n.º
1 do artigo 615º do CPC, ocorre, como é sabido, quando o tribunal não se
pronuncie sobre questão que devia apreciar, ante o estatuído na 1ª parte do
n.º 2 do artigo 608º do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as
questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas
aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Não cremos que a excepção de que fala a parte final desta norma tenha
cabimento no caso concreto, não só porque no acórdão recorrido nenhuma
referência foi feita sobre essa relação de prejudicialidade, como também
porque não nos é lícito intuir, da solução dada às outras questões, essa
mesma relação. De facto, a discussão sobre a redução do preço e a
compensação do contracrédito dos embargantes situa-se num plano jurídico
distinto daquele em que deverá averiguar-se a (in)operância da cláusula
penal, não sendo, porém, de estranhar que se encontre alguma
comunicabilidade entre as circunstâncias que ditaram a improcedência

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daquelas questões e as que podem influir no accionamento da predita


cláusula.
De todo o modo, o Supremo não pode substituir-se nessa missão ao tribunal
recorrido, pois que, nos termos do artigo 684º, n.º 2, se a nulidade da
omissão de pronúncia for cometida em acórdão da Relação, o processo
deverá baixar à 2ª instância para que tal vício seja aí suprido.
*
III. DECISÃO
Em conformidade com o exposto, no provimento da revista, anula-se o
acórdão recorrido na parte relacionada com a matéria acima identificada,
devendo os autos baixar à Relação a fim de que essa matéria seja agora
apreciada, se possível, pelos mesmos juízes.
*
Custas da revista pela parte vencida a final.
*
LISBOA, 23 de Fevereiro de 2021
O relator atesta, nos termos do artigo 15.º-A do Dec. Lei. n.º 10-A/2020,
que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Senhores
Conselheiros Adjuntos, Maria Olinda Garcia e Ricardo Costa.

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).


_______________________________________________________

[1] Relator: Henrique Araújo


Adjuntos: Maria Olinda Garcia

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