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EMANCIPAÇÃO HUMANA E A AMBIGUIDADE PRESENTE NO

HOMEM GREGO NA FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO: UMA


PROPOSTA DE SÓFOCLES EM ÉDIPO REI.

CZADOTZ, Regina Celia Rampazzo (UEM)

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da polis urbana, entre século IV e V a.C., permite ao cidadão


grego exercer a sua autonomia, no entanto, no bojo das mudanças na forma de produzir a
vida, o grego depara-se com a sua condição humana frágil e ambígua, que se apresenta no
limite entre a razão e a paixão, trazendo sentimentos de insegurança e, a necessidade de
buscar nos deuses o conforto da justa medida.
Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo estudar Édipo Rei, de Sófocles,
na busca de compreender a relação estabelecida entre os deuses e o homem, após a
emergência da polis urbana, unidade independente e autônoma que possibilitou o
desenvolvimento de uma individualidade e o sentimento de justiça terreno, presente no
cidadão grego, no período de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica, características
necessárias na formação do homem cívico.

SURGIMENTO DA PÓLIS URBANA NO PERÍODO DE TRANSIÇÃO ENTRE A


GRÉCIA ARCAICA E A CLÁSSICA

Embora a questão geográfica seja um dos aspectos a serem observados no surgimento


da polis grega indicam que a falta de comunicação, devido ao relevo montanhoso, fez parte da
dinâmica que possibilitou o surgimento da cidade estado. Compreende-se, no entanto, que
alguns fatores psicológicos trazem algumas explicações sobre a forma de organização política
constituída neste tempo histórico. Conforme assinala Pereira (1997):

...é que a insegurança posterior à invasão dórica e a falta de um poder central


forte que defendesse os homens os levou a unir-se em pequenos territórios.
Qual terá sido, todavia, a causa psicológica da formação desse regime?

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Como observa EHRENBERG, era costume antigamente dizer que o
particularismo grego impedia a formação de uma nação unificada; mais
recentemente entendeu-se que cada polis era uma pequena nação, e a Hélade
uma unidade supranacional, como a Europa moderna em relação aos vários
países independentes que a compõem, mas nenhuma destas explicações é
perfeitamente exacta, pois o Pan- Helenismo desperta como força política, é
um sinal de fadiga e de desejo de paz.( PEREIRA,1997, p.171e172).

Esta busca de desejo, de paz, destacado pela autora, como característica surgida pela
forma do homem produzir a vida, neste caso, a guerra, desencadeou bases para o
aparecimento do período helenístico, tempo caracterizado pela morte do herói e o nascimento
do cidadão grego, que buscava, na polis, as bases para a sua organização política, social e
religiosa.

A polis é um sistema de vida, e, por conseqüência, forma os cidadãos que


nela habitam.... Uma certa extensão territorial, nunca muito grande, continha
uma cidade, onde havia o lar como fogo sagrado, os templos e as repartições
dos magistrados principais, a ágora, onde se efectuavam as transacções; e,
habitualmente, a cidadela, na acrópole. A cidade vivia do seu território e a
sua economia era essencialmente agrária. Cada uma tinha a sua constituição
própria, de acordo com a qual exercia três espécies de actividade: legislativa,
judiciária e administrativa. Não menores eram os deveres para com os
deuses, pois a polis assentava em bases religiosas, e as cerimônias do culto
eram ao mesmo tempo obrigações civis, desempenhadas pelos magistrados.
(PEREIRA, 1997, p.173).

A emergência da polis urbana possibilitou ao cidadão grego a formação da sua nova


organização social, isto é, anteriormente o que se tinha era uma sociedade estruturada no
patriarcalismo, ou seja, sociedade constituída por homens de uma aristocracia que
vivenciavam o costume da vida arraigada na terra. Época do líder familiar, que buscava
segurança nos muros dos palácios reais, bem como no mito e nos deuses, a tranquilidade e os
direcionamentos da vida, na busca da continuidade da organização da ordem social
estabelecida a qual defendiam com um heroísmo o que caracterizou a mentalidade do período
que se convencionou chamar de Grécia Arcaica.

O período micênico ( séculos XVI a XII a. C.) apresenta o surgimento de


uma sociedade ligada às grandes civilizações do Mediterrâneo oriental,
integrada por com seguinte, ao mundo oriental. Nessa época, ocorreu o
apogeu do mundo palaciano e aristocrático. A sociedade apoiava-se no mito
e concentrava na figura do rei divino os poderes administrativos,
econômicos, militares e religiosos. Surge o soberano absoluto, habitante de

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uma fortaleza cercada de muros cuja peça central era a sala do trono.
(COSTA, 1988, p.6).

As mudanças que ocorreram na estrutura da Grécia Arcaica que, ocasionou o


surgimento da Grécia Clássica, decorreram, principalmente, dos fatores econômicos, sociais e
políticos que não aceitavam as formas de organização social presentes. Nestes grupos
destacam-se homens que conseguiram acumular bens materiais, a exemplo daqueles que
enriqueceram com o advento do comércio marítimo.

Essa época (século XII a.C.) caracterizou-se, principalmente, pela dissolução


do poder absoluto simultaneamente à institucionalização de uma estrutura de
poder que compreendia quatro domínios: religioso, o guerreiro, o agrícola e
o mágico. Momento em que a monarquia cedeu lugar à aristocracia, é um
período de transição onde o mágico ligava-se as forças do fogo e onde as
forças do artesão serviu para expressar a idade do ferro.(COSTA, 1988, p.8).

Este movimento, que ocasionou a formação da cidade estado, deve-se, não apenas ao
surgimento do comércio, mas, também, constituiu-se em função das necessidades presentes
na própria condição de vida do grego, neste caso, a busca de lugares mais seguros para
sobreviver, ocasionando uma série de migrações, na medida em que ocorria o fenômeno da
superpopulação.
A fundação era precedida de todo um ritual, devidamente planeado. Depois
de consultar o oráculo ( geralmente o de Apolo em Delfos), um grupo de
cidadão abandonava sua terra, sob a direção de um colonizador ( oίκιστης),
levando consigo fogo sagrado do lar da cidade, para fundar longe dali uma
colónia( άποικία = “ lar distante”).Este chefe da expedição distribuía as
terras e recebia mais tarde culto, na qualidade de fundador, A colónia
herdava da cidade - mãe (μητρόπολις), além do fogo sagrado, a religião,
instituições, calendário, dialecto, alfabeto. Mas não lhe incubiam obrigações
tributárias (salvo raríssimas excepções), nem tinha quaisquer outros deveres
políticos para com a fundadora. Os laços existentes eram de ordem moral.
(PEREIRA, 1997, p.175 e 176).

As novas colônias surgidas reforçavam o desenvolvimento do comércio e, o avanço


nesta área, levou ao surgimento de algumas necessidades, até então não vivenciadas. A
utilização da moeda, o reaparecimento da escrita que, neste momento, tinha como objetivo o
registro das leis públicas necessárias à organização da vida da polis, possibilitaram ao cidadão
grego manifestar seus interesses e a reivindicar seus direitos cívicos e políticos. Nesse
cenário aparecem grupos que se destacaram socialmente pelas suas posses, abalando as

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antigas relações gentílicas, que passaram a dar lugar às novas formas de vida estabelecidas
pela legislação da polis.
O herói conhecedor do manejo das armas, das estratégias de guerra, não correspondia
aos ideais que estavam surgindo na polis democrática. A morte do guerreiro, cortesão e,
temente aos deuses, suscitava o aparecimento de um novo modelo de homem. Cidadão com
capacidade de participar da assembleia e, assim, decidir sobre os rumos da sua existência.
A polis, a formação da cidade estado, consolidou-se em um dos instrumentos
fundamentais para o desenvolvimento de todo o pensamento da Grécia Clássica, surgida e
organizada mediante as condições de sobrevivência na forma do homem produzir a vida.
Revelava a vida dos cidadãos gregos, suas necessidades e anseios.

O DESENVOLVIMENTO DO INDIVIDUALISMO E O SENTIMENTO DE JUSTIÇA


RELACIONADO AO TRABALHO DO HOMEM

Neste período histórico (séculos VIII e VII a.C.) o poder de argumentação se


manifesta e o homem passa a buscar, em si mesmo, condições para consolidar sua autonomia
na forma de viver e representar o mundo. Assim, a racionalidade sobrepõe ao mito e aos
deuses e, a vida pública se torna a razão de existência do cidadão.

Só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida


espiritual. No período primitivo da cultura grega todos os ramos da atividade
espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida em comunidade.
Poderíamos comparar isso a múltiplos regatos e rios que desembocassem
num único mar – a vida comunitária – de que recebessem orientação, e
refluíssem e à sua fonte por canais subterrâneos e invisíveis (JAEGER, 1994,
p.107).

A possibilidade ocasionada, com o advento do comércio na polis, impulsionada pelas


trocas comerciais entre as cidades estado resultou no fato de uma parcela da população
acumular bens, ocorrendo desequilíbrios na balança econômica. Isso, de certa forma, trouxe
consequências para alguns cidadãos, que passaram a ser destituídos das suas terras em
decorrência das dívidas acumuladas.

A estes diversos factores, aos quais devemos acrescentar a pobreza do solo


grego e o mais importante e esquecido de todos – a natural desigualdade
humana, exemplificada no caso típico de Hesíodo, o irmão diligente, e

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Perses, o irmão preguiçoso – vem juntar-se como conseqüência o aumento
da escravatura, e, portanto a redução na procura de mão de obra livre.
Efectivamente, ao agricultor reduzido à miséria só restava a solução de se
entregar como escravo, para saldar as suas dívidas. E, sendo assim, os
homens livres já tinham dificuldade em encontrar quem os assalariasse.
(PEREIRA, 1997, p.177 e 178).

As dificuldades surgidas nesta época, pelo modo de produção da vida dos gregos,
desencadeou um sistema de poder, a tirania, no qual o governante, apoiado pelos
comerciantes, adquire a força e o poder. Esta forma de governo, relacionada às leis da Grécia
arcaica, também está ligada a uma das grandes conquista da cultura ocidental, desenvolvida
pelos gregos, o surgimento da democracia.

Em Atenas, cuja tirania foi, por mais surpreendente que pareça, das últimas a
acabar, a ação dos Pisístratos é notável. Fazem grandes obras, quer na
Acrópole, quer na Ágora ( como altar dos doze deuses) e principiam o
templo colossal de Zeus Olímpico – que, aliás, só seria concluído no séc. II
d, C., no tempo de Adriano; abastecem de água a cidade; tomam medidas
econômicas importantes, como o empréstimo aos lavradores em
dificuldades; efectuam reformas religiosas, de grande projecção cultural
também, como a reorganização das Panateneias, com a recitação dos Poemas
Homéricos, e a instituição das Grandes Dionísias, junto das quais nascera o
teatro ( PEREIRA, 1997, p.179).

O desenvolvimento de um sistema legislativo trouxe, para a época, uma maior


estabilidade na vida social, substituindo a força pelo direito, em oposição à sociedade anterior,
pautada na concepção guerreira. Este fato possibilitou o processo de formação cívica do
grego, o desenvolvimento da polis democrática e o surgimento do cidadão.

(...) De certo modo, como veremos, a história das cidades gregas é marcada
pelo crescimento mais ou menos rápido desta minoria, que acabará por
englobar todos os membros da comunidade, como acontecerá na Atenas
democrática, a partir do século V a.C. Esta época será o termo de uma
evolução que se prolongou por dois séculos, o cidadão tornar-se-á uma
realidade... (MOSSÉ, 1999, p.10).

O autor discorre a respeito da constituição e organização da sociedade grega, partindo


do período homérico até o helenístico, destacando uma maior participação política de todos
aqueles que eram considerados cidadãos gerenciadas pelas leis implantadas na polis.

Não podemos esquecer, no entanto, que ela é resultante de um processo


histórico, cuja raízes se encontram no começo do séc.VI e, mais
concretamente, na ação de Sólon, que aliás, não foi o primeiro legislador
ateniense. Antes dele existiu Drácon, autor de leis que ficaram famosas pela
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sua extrema severidade... Ora precisamente uma das medidas mais
importantes de Sólon foi a abolição da escravatura por dívidas (..........).
Outras foram de proteção à agricultura e indústria (obrigação de cada pai
ensinar ao filho a sua arte, e chamada a Atenas de artífices de fora, aos quais
concedia a cidadania) e ao comércio, a criação de uma moeda própria, com a
concomitante alteração de pesos e medidas, e, sobretudo, instituição do
tribunal da Helieia, para o qual todos tinham o direito de apelar contra as
sentenças dos magistrados, cujo poder ficava assim cerceado. (PEREIRA,
1997, p.189)

Estas questões foram discutidas e representadas pelas expressões artísticas, que


culminaram nas Grandes Dionísias.

(...) enquadrada numa série de cerimônias de caráter cívico e religioso


simultaneamente, a ela assiste toda polis, pois até os pobres podem levantar
os seus bilhetes numa espécie de fundo comum, o theoricon, Não é
divertimento e distração para o espírito cansado pelas tarefas quotidianas. O
cuidado em que tais actos se efectuem anualmente com toda regularidade era
uma das grandes preocupações dos Atenienses, que até encerravam os
tribunais durante esse período. (PEREIRA, 1997, p.392).

A democracia vivida na antiguidade é consequência do sentimento de pertencimento


da coletividade, manifestada na polis. Assim, todos os que eram considerados cidadãos
participavam, em praça pública, dos direcionamentos da cidade estado e refletiam, por meio
das representações artísticas, a vida e a forma de manifestar a mesma. Neste sentido, a figura
do cidadão é valorizada, permitindo ao grego participar das decisões a respeito da sua vida e,
da vida da polis.

SENTIMENTO DE AMBIGUIDADE E FRAGILIDADE DO HOMEM EM


DECORRÊNCIA DA EMANCIPAÇÃO HUMANA

Na esteira desse processo de mudanças e contradições, o cidadão grego encontrou, no


teatro, uma das maneiras de entender suas dúvidas e anseios. A representação artística, por
meio das narrativas trágicas, orientava o homem na formação da sua consciência, na medida
em que o conduzia a refletir a respeito das coisas do mundo, perante a nova ordem social que
surgia.
A obra artística, por meio do enredo trágico, mobilizava a todos os que assistiam, em
praça pública, pensar a respeito dos conflitos presentes da própria vida dos gregos, bem como
refletir os meios na condução da sua existência. O herói trágico, ao transgredir uma lei, aceita
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pela comunidade e, sancionada pelos deuses, recebe a punição em decorrência da sua
desobediência. Instala-se a desgraça humana, reflexo da desordem e do caos.

A articulação entre o humano e divino, na tragédia, comprova o conflito


entre o pensamento racional e o mítico, o que demonstra que o domínio da
tragédia se localiza onde os atos humanos se articulam com os deuses [...].
Outra característica é revelar a ambigüidade resultante do choque entre ethos
e dáimon, já que, na tragédia, o herói trágico quer guiar-se por seu próprio
caráter (ethos), mas está subordinado à força, ao gênio mau ( daimon).
Também caracteriza a tragédia um acontecimento aterrorizante, representado
pelas interdições do mundo cultural grego: o parricídio, o incesto, o
regicídio. ( COSTA,1988,p.9).

O herói trágico, ao representar as fragilidades e inseguranças vividas pelo cidadão da


polis, sem demonstrar preocupação, revela uma proposta formativa, pois permite ao
espectador, em praça pública, vivenciar meios para pensar a respeito da própria existência,
formar a sua consciência, frente as novas exigências surgidas na polis. Este processo de
transformação, vivido pelo cidadão grego, reflete a necessidade da sociedade de buscar um
modelo formativo, tendo em vista o homem que deveria responder a nova ordem social.
Significativo, neste sentido, foram os conteúdos formativos presente no enredo
trágico, a exemplo das tragédias de Sófocles (496-406 a.C.), que compreendem a denominada
Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Os personagens da peça da
Trilogia Tebana, principalmente Édipo, Creonte e Teseu, revelam, no decorrer da narrativa, o
surgimento de novos conceitos a respeito do mundo. Concepção exigida por uma nova ordem
social, presentes na obra de Sófocles. De forma geral, a Trilogia Tebana narra o mito de
Édipo, um rei que tem a preocupação em esclarecer os mistérios de um assassinato que foi
realizado por ele próprio. Em Édipo rei, o ideal de homem Homérico é colocado à prova, na
medida em que este herói cede lugar a um homem com vontade própria, que desrespeita os
desígnios dos deuses, e passa a buscar, no próprio homem, as respostas para os seus
questionamentos. No entanto, esta posição, frente ao mundo, traz para o cidadão a
responsabilidade de assumir as consequências pelos seus atos.

Édipo
Foi Apolo! Foi sim, meu amigo!
Foi Apolo o autor dos meus males,
De meus males terríveis; foi ele!
Mas fui eu quem vazou os meus olhos.
Mais ninguém. Fui eu mesmo o infeliz!

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Para que serviram os meus olhos
Quando nada me resta de bom
Para ver? Para que serviriam?
(ÉDIPO REI, vv 1176-1182, p.67).

O tragediógrafo deixa claro que, caso o homem exceda na condução da sua própria
vida, terá o castigo dos deuses. Veicula, também, novas formas de pensar e agir no mundo,
que exigiam do grego encontrar, em si mesmo, respostas para os seus questionamentos ainda
influenciados pelo modo de pensar da Grécia arcaica.

Édipo
...pois cheguei, sem nada conhecer, eu Édipo
e impus silêncio à esfinge; veio a solução
de minha mente e não das aves agourentas...
(Édipo REI, vv.476-479, p.39)

Sófocles convoca o homem a assumir a sua responsabilidade, tira das mãos dos deuses
a sua história e passa a dar novos direcionamentos para a sociedade. No entanto, ele levanta a
preocupação com a justa medida, pois o homem que não a apresenta, terá o castigo dos
deuses.

Coro
...o homem que nos atos e palavras
se deixa dominar por vão orgulho
sem recear a obra da justiça
e não cultua propriamente os deuses
está fadado a dolororoso fim,
vítima da arrogância criminosa
que induziu a desmedidos ganhos,
a sacrilégios, a loucura máxima
de profanar até as coisas santas
(Édipo Rei, vv. 1051-1059, p.63)

Assim, ao tirar das mãos dos deuses a sua história, mesmo que esta situação lhe tenha
como retorno o castigo, Sófocles mostra o drama de toda a sociedade e, nesta perspectiva,
busca a construção de uma nova história.

Édipo
Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-me!
Ah! Luz do sol. Queriam os deuses que esta seja
a derradeira vez que te contemplo! Hoje
tornou-se claro a todos que eu não poderia

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nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo
e, mais ainda, assassinei quem não devia!
(Édipo Rei, VV. 1387-1392, p.82).

Com Sófocles encerra-se a compreensão, por meio do mito, seu enredo trágico,
embora não seja uma racionalidade explícita, contém certa racionalidade, na forma de se
expressar, na medida em que tenta justificar e refletir sobre os acontecimentos, constituindo-
se em um exercício premeditado.

A FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO PROPOSTO POR SÓFOCLES EM ÉDIPO REI

A possibilidade de refletir, por meio do enredo trágico, sobre as dificuldades


vivenciadas pela sociedade, permitia ao cidadão grego expressar suas preocupações referentes
ao processo de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica. Pois, ao expressarem um cenário
de contradição, que revelam homens perdidos frente a negação dos desígnios dos deuses, as
tragédias evidenciam o surgimento de novos padrões requeridos pela sociedade em
transformação.

CRIADO
Ele esbraveja e manda que abram o palácio
E mostrem aos tebanos logo o parricida,
O filho cuja mãe...não posso repetir
Suas sacrílegas palavras; ele fala
Em exilar-se e afirma que não ficará
Neste palácio, vítima das maldições
Por ele mesmo proferidas. Deveremos
Levar-lhe apoio, dar-lhe um guia, pois seu mal
É muito grande para que ele sofra só
(Édipo Rei,VV. 1525-1533,p.86)

A figura de Édipo chama a atenção para que a Cidade- Estado seja vista como o início
e, o fim das preocupações dos gregos, isto é, a valorização do público em detrimento aos
interesses pessoais. Neste sentido, a vida pública representava as bases da existência e da
felicidade do grego. Homem exemplar, que buscava na racionalidade as respostas para seus
anseios e dúvidas, contrapondo-se aos conselhos dos deuses. Constituía-se em preocupação
primeira de Sófocles na peça: Édipo Rei, motivo de ter exercido papel significativo no
processo formativo do homem grego do seu tempo.

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Um escultor de hombres como Sófocles pertenece a la história de la
educación humana. Y como ningún outro poeta griego. Y ello sentido
completamente nuevo. Em su arte se manifiesta por primera vez la
conciencia despierta de la educación humana. (JAEGER,1995,p.252).

O provável é que Sófocles entendeu que o herói, habilidoso no manejo das armas e das
estratégias de guerra, não correspondia aos ideais que estavam surgindo na polis democrática.
A morte do guerreiro, cortesão e, temente aos deuses, suscitava o aparecimento do cidadão
com capacidade de participar da assembleia e, assim, decidir sobre os rumos dela e da sua
existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O drama trágico narrado por Sófocles aborda temas caracterizados, vividos na época,
tais como: conflito entre as leis dos deuses e do homem, as limitações humanas e, a
necessidade do homem buscar, em si mesmo, as respostas para seus questionamentos. O que
leva a existência de uma sociedade que é capaz de dirigir os rumos da sua própria vida,
exigência da nova forma de organização social, surgida com a polis. No entanto, revela a
ambiguidade vivida pelo grego, na forma de constituir cidadão.
Sófocles, com seu drama trágico, contribuiu, de maneira significativa, para que o
homem grego vivenciasse seus medos e, dessa forma, pensasse e refletisse sobre sua própria
existência e sobre a vida da cidade estado. Daí o seu papel formativo, mesmo sem uma
intenção clara, deste homem que a polis estava requisitando. Ao pensar, refletir e vivenciar,
por meio da obra artística, as contradições da sua existência, o homem se potencializa frente
a polis.
Nesta perspectiva, considera-se que as possibilidades dadas ao cidadão grego, naquele
tempo histórico, o desenvolvimento do comércio, o aparecimento da moeda e da escrita, que
culminaram na formação da polis, representam as bases materiais na forma do homem
produzir a vida naquele período, permitiram aos mesmos organizaram-se de maneira a
desenvolver a capacidade de pensar e refletir as coisas do mundo e, consequentemente, os
rumos da própria existência. Observa-se que o cidadão grego, ao vivenciar suas contradições,
por meio da obra artística, se humaniza e permite o próprio desenvolvimento da história dos
homens.

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REFERÊNCIAS

COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia Estrutura e
História. São Paulo: Editora Ática, 1988. 132 p.

JAEGER, Werner. Paidéia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3 ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1994. 1413 p.

MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo (Séculos VIII-VI a.C). Trad.
Emanuel Lourenço Godinho. Lisboa: Edições 70,1984. 93 p.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica – Cultura


Grega. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenakian, 1997. v.1. 710 p.

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Zahar, 1996.

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