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Édipo:

entre a razão
“o oráculo
em Delfos
não fala
e o daímon
nem cala
assigna”

(Heráclito, trad.
Haroldo de Campos)

a ristóteles considerava oÉdi-


po Rei a maior tragédia do
teatro grego, opinião atual-
mente aceita de um modo
geral, apesar de a peça não ter passado de
um segundo lugar no concurso em que foi
originalmente apresentada em Atenas, der-
ignorância que Édipo revela sobre o assun-
to, depois de mais de uma década no co-
mando de Tebas! Felizmente, o que preva-
leceu na recepção da peça não foi a avali-
ação baseada em regras de verossimilhan-
ça, que levaram Voltaire a criticar dura-
mente suas improbabilidades, antes de es-
rotada por um drama do hoje obscuro Fi- crever seu próprio Édipo, no qual procurou
locles. O filósofo elogia aspectos estrutu- corrigir incongruências do original, colo-
rais da obra, como a coincidência entre a cando a morte de Laio, por exemplo, a ape-
reviravolta da ação (“peripécia”) e o reco- nas quatro anos de distância no passado…
nhecimento da verdade (anagnôrisis), a par- Sófocles altera bastante as versões an-
tir do momento em que o mensageiro teriores do mito de Édipo. A mudança prin-
coríntio noticia a morte de Políbio (vv. 924). cipal diz respeito ao deslocamento tempo-
É curioso observar que o autor da Poética, ral dos dois episódios causadores da ruína
defensor da noção de verossimilhança, crí- do herói: a tragédia inicia depois da ocor-
tico dos elementos irracionais na poesia rência do parricídio e do incesto. A inves-
(áloga), de certo modo pratique, ao tratar tigação do assassinato de Laio e, num se-
do Édipo, a coleridgiana “suspensão da des- gundo momento, a indagação sobre a pró-
crença” (suspension of disbelief). Assim, pria identidade, por parte de Édipo, ocu-
justifica o fato de Édipo desconhecer as pam lugar central na peça. A questão de
circunstâncias da morte de Laio (vv. 112- não ser quem se pensa que é e o poder de
3) com o argumento de que se trata de um forças enigmáticas na constituição do des-
episódio “fora do enredo”. Ora, se fôsse- tino substituem o tema da maldição famili-
mos adotar com rigor os parâmetros da ar, presente em obras anteriores. Num ver-
lógica aristotélica, concluiríamos que a “ir- so da Ilíada (23, 679-80), Homero diz que
racionalidade” não se encontra propriamen- Édipo morreu em batalha, o que exclui a
te na situação da morte de Laio, mas na hipótese do cegamento; na Odisséia (11,

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TRAJANO VIEIRA
é professor de Língua e
Literatura Grega na
Unicamp.

TRAJANO VIEIRA

271-80), refere-se ao suicídio de Jocasta e visita de Édipo ao santuário délfico, quando


ao sofrimento imposto pelas Erínias – di- ainda morador de Corinto. Nessa ocasião,
vindades vingadoras do mundo dos mortos fica sabendo que cometerá parricídio e in-
– à família do herói. Não menciona a mu- cesto, informações que o levam a abandonar
tilação do rei tebano, nem a consulta oracu- a cidade onde habitam os pais presumidos.
lar. Da trilogia de Ésquilo (467 a. C.), com- Em lugar de um único oráculo, o autor apre-
posta de Laio, Édipo e Sete contra Tebas, senta três, em momentos diferentes: num
seguida do drama satírico Esfinge, só res- passado remoto, o de Laio, citado por Jocasta;
tou na íntegra a terceira tragédia. Fragmen- num passado mais recente, o que prevê o
tos das duas peças anteriores apresentam, parricídio e o incesto, na consulta de Édipo
contudo, dados interessantes: Pélops, cujo a Delfos; no presente da ação dramática, o
filho Crisipo é seduzido por Laio, leva a proferido a Creon, através do qual se escla-
maldição à família de Édipo. O ato de Laio rece o motivo da peste tebana.
repercutirá não apenas nos crimes pratica- Não se deve concluir, todavia, a partir
dos por Édipo, como no mútuo assassinato das referências repetidas à manifestação
de seus dois filhos, Polinices e Etéocles, oracular, que Édipo é tratado como um jo-
conforme lemos em Sete Contra Tebas. Se guete de forças divinas. Um dos aspectos
o cegamento de Édipo já está presente em mais formidáveis da tragédia é justamente
Ésquilo, o mesmo não ocorre com a peste, o caráter paradoxal do personagem. Será
tema introduzido por Sófocles, sob influ- difícil encontrar na literatura outro exem-
ência talvez da peste que assolou Atenas plo que concentre, em igual medida,
entre os anos 430-426 a. C., causa da morte voluntarismo e fragilidade, talento intelec-
de Péricles (429 a. C.) e do agravamento da tual e ignorância. Nossa admiração só au-
situação na cidade, já em conflito com menta quando nos damos conta de que a
Esparta, um ano depois do começo da guerra destruição do herói não é causada por traço
do Peloponeso (431-404 a. C.). negativo de caráter ou pelo cometimento
Outra particularidade notável da versão de ato impiedoso, mas pela limitação co-
sofocliana do mito de Édipo concerne ao mum ao homem, decorrente de sua incapa-
oráculo. Em Sete contra Tebas, o vaticínio cidade de conhecer e dominar as variáveis
é proferido em tom de advertência – se Laio que configuram o destino. “O futuro é dado
não tiver o filho, a cidade estará salva (740 ou está ele na verdade em permanente cons-
s.); em Sófocles, como uma previsão ines- trução? A crença em nossa liberdade é uma
capável – Laio encontraria a morte nas mãos ilusão? É uma verdade que nos separa do
de Édipo. No primeiro caso, Laio morre por mundo? É a maneira pela qual nós partici-
desconsiderar o alerta apolíneo; no segun- pamos da verdade do mundo?” Essas ques-
do, em lugar da punição, a questão central tões, que poderiam ter sido formuladas por
passa a ser a da previsibilidade divina. Édipo no desfecho da peça, são de autoria
Registre-se, quanto ao último ponto, que do prêmio Nobel de química Ilya Prigogine,
só na peça de Sófocles menciona-se outro em seu livro La Fin des Certitudes (1). Cito-
oráculo, mais importante para o desenvolvi- as por me parecer que Sófocles construiu, 1 Ilya Prigogine, La Fin des
Certitudes, Paris, 1996, pp. 9
mento da ação do que o de Laio: trata-se da de uma perspectiva mitológica, um univer- e seg.

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so cujas indagações continuam a interessar servar. Desse modo, mais que o elogio do
o pensamento científico de hoje. Aliás, é o espírito filosófico-científico da Atenas
próprio Prigogine que de certo modo cha- “iluminista”, a tragédia expressaria a crise
ma a atenção para esse fato, ao escrever: de uma sociedade submetida a mudanças
profundas e traumáticas.
“A questão do tempo e do determinismo O caso de Anaxágoras seria exemplar
não está limitada às ciências; encontra-se nesse sentido. Sabe-se que o filósofo, ami-
no coração do pensamento ocidental desde go de Sófocles e de Péricles, foi perseguido
a origem do que denominamos a racionali- e processado em Atenas por atribuir ao Nous
dade e que situamos na época pré-socrática. (“Inteligência”), e não aos deuses, o “co-
Como conceber a criatividade humana ou nhecimento de todas as coisas”. Para al-
como pensar a ética em um mundo guns estudiosos, como Walter Burkert,
determinista? Essa questão traduz uma ten- Sófocles teria sido influenciado por
são profunda no seio de nossa tradição que Anaxágoras, ao enfatizar o caráter eterno e
reivindica para si de maneira absoluta a estável do conhecimento divino, por inter-
promoção de um saber objetivo e a afirma- médio do oráculo, livre das contingências
ção do ideal humanista de responsabilida- e mudanças oriundas do Acaso (Týkhe), que
de e liberdade”. governam as ações humanas. Ao valorizar
o pré-conhecimento divino, Sófocles esta-
Apesar de esse trecho sugerir discus- ria antecipando postulados platônicos:
sões diferentes, dele podemos extrair a se- “Alguns anos depois da representação do
guinte idéia central: a relação entre liber- Édipo Rei nasce Platão, que iria propor sua
dade, definida pelo ato criativo, e as limi- teoria das idéias, um reino do significado
tações decorrentes de estruturas pré-fixa- absoluto, não gerado e indestrutível, que
das. De certo modo, essas são questões governa o mundo em que vivemos, pressu-
fundamentais do Édipo Rei. pondo na verdade o significante absoluto”
Embora as abordagens da vastíssima (2). Essa análise privilegia o aspecto religio-
bibliografia sobre o drama caracterizem-se so da tragédia, sem considerar, com mes-
pela variedade de pontos de vista e de fun- ma ênfase, a imagem heróica de Édipo.
damentos teóricos, é possível destacar duas Comentemos primeiramente o segundo
linhas principais nessa rede de comentá- ponto, antes de abordarmos o primeiro.
rios: há os que privilegiam a liberdade de
ação de Édipo e os que valorizam a função
dos deuses na ação dramática. Como se vê,
estamos aparentemente diante de um para-
1. RAZÃO
doxo, similar ao apresentado por Prigogine
em termos de “liberdade versus determi- Até onde chega o meu conhecimento da
nismo”. Os críticos que tratam da liberda- bibliografia crítica, nenhum autor exami-
de de Édipo notam que não há, na peça, nou de maneira tão exaustiva e original o
uma epifania divina, como no Ájax, em que traço heróico de Édipo quanto Bernard
Atena alucina o herói e direciona seus atos. Knox, em seu livro Oedipus at Thebes –
Os que adotam a outra perspectiva comen- Sophocles’ Tragic Hero and His Time,
tam que a tragédia eclode quando Édipo publicado originalmente em 1957. Trata-
percebe não ser o responsável por suas pró- se de uma obra que, independentemente da
prias ações, reconhecendo a intervenção de tese que defende, destaca-se ainda hoje pela
uma potência divina em seu destino. De análise da linguagem da peça. Para Knox,
um lado, existe a tendência de valorizar a questão central do Édipo Rei não é o
aspectos culturais da Atenas do 5o século a. parricídio nem o incesto – cometidos antes
2 Walter Burkert, “Edipo, ovvero
il senso degli oracoli. Da C. de algum modo presentes no drama; de do início do drama –, mas a investigação
Sofocle a Umberto Eco” in outro, os valores tradicionais que um ho- levada a cabo pelo personagem com o in-
Origini Selvagge (trad. it.),
Roma-Bari, 1992, p. 105. mem religioso como Sófocles buscaria pre- tuito de descobrir, num primeiro momen-

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to, o assassino de Laio, e, num segundo, “descobre” (heureîn, 68, 108, 120, 440,
sua própria identidade. O autor nega a atu- 1.050), por outro, é “o descoberto” (1.026,
ação de potências divinas nos bastidores 1.108, 1.213, 1.397, 1.421). Um termo
do drama, constituído tão-somente das importante na historiografia (Heródoto I,
ações de Édipo: “A relação entre a profecia 57; II, 33; Tucídides I, 1) e nos tratados de
e a ação do herói não é de causa e efeito. É medicina (Hipócrates Prog. 24, Acut. 68) é
a relação entre duas entidades independen- tekhmaíresthai, que significa “formar um
tes que se igualam”. A meu ver, a tese de julgamento a partir de evidências”, “infe-
Knox é mais interessante pelo que afirma rir”. No verso 109, Édipo fala da “dificul-
do que pelo que nega. Como pretendo indi- dade de inferir”, das marcas deixadas, o
car a seguir, a atuação divina parece-me autor da morte de Laio. No verso 916, se-
bem mais efetiva do que entende o helenista, gundo Jocasta, é o próprio Édipo quem não
embora esse ponto de vista não enfraqueça “infere” do passado os acontecimentos pre-
a imagem que nos oferece do rei tebano. sentes.
De certo modo, Édipo seria a expressão Se, no Prometeu, Ésquilo considera a
da própria Atenas do 5o século a. C.: inqui- matemática a ciência mais importante (v.
eto, brilhante, corajoso, arrogante, perspi- 459: “Inventei o prodígio das ciências/ –
caz, imperial, curioso, vaidoso, conseqüen- o cálculo”), Sófocles incorpora de manei-
te, calculador, investigativo são alguns dos ra extensiva, no Édipo, termos nela recor-
adjetivos que caberiam também à cidade rentes. Cito apenas alguns trechos em que
no seu apogeu, como sugerem várias pas- isso ocorre, a título de exemplo. No verso
sagens de Tucídides. Para configurar seu 31, o sacerdote usa uma forma participial
personagem, Sófocles introduz na tragé- de isóo (“igualar”), numa passagem que
dia, conforme examina Knox, conceitos, traduzi assim: “Édipo, igual a um deus?
noções e termos técnicos da ciência, da Nem eu nem os/meninos incorremos nes-
historiografia e da filosofia da época. O se equívoco”.
verbo dzeteîn e seus cognatos, por exem- No verso 1.507, o mesmo verbo (com o
plo, são de uso corrente em Platão (“to nyn prefixo eks), no episódio em que Édipo roga
dzetoúmenon”, “o objeto atual de investi- pelo futuro das filhas: “Não as iguale aos
gação”, é uma expressão do Eleata no So- infortúnios meus”.
fista 223c; “to dzetoúmenon”, “a investi- Um adjetivo com valor adverbial da raiz
gação”, diz Sócrates no Teeteto 201a), nos de isóo (íson: “igual”, “igualmente”) apa-
tratados de medicina (“para esta descober- rece no verso 579: “Creon: Há isonomia
ta e investigação”, dzetémati, Hp. V. M. 3), entre os dois no reino (íson némon)?”. Outra
na historiografia (“a investigação – dzétesis equação verbal, construída com isos
– da verdade”, Tucídides I, 20). Sófocles (“igual”, 1.019): “Édipo: E quem me fez
emprega oito vezes dzeteîn no Édipo Rei, seria igual a um zero?”. Chama a atenção a
três no Ájax, duas no Édipo em Colona e presença de metréo (“medir”) na tragédia.
uma nas Traquínias. No verso 266, por Édipo comenta a demora de Creon (73-5):
exemplo, escreve: “dzetôn tòn autókheira “Medir o dia de hoje com o metro/do tempo
tu fónu labeîn” (“procurando prender o dói: a ausência de Creon/supera o combi-
autor do assassinato”). nado e o razoável”. A seguir, quando o ir-
Knox observa que a reviravolta do des- mão de Jocasta se aproxima (84): “Vere-
tino do personagem “reflete-se na peripetia mos. De onde está, sua voz mensuro”. No
[reviravolta] de algumas de suas palavras verso 963, o mensageiro coríntio esclarece
características”. Édipo é ora sujeito ora a causa da morte de Políbio: “Édipo: Mo-
objeto de verbos característicos da lingua- léstia então levou o pobre velho./Mensa-
gem científica. Do mesmo modo que “exa- geiro: Além da macro medição de Cronos”
mina” (skopeîn, 68, 291, 407, 964), “inda- (“makrô ge symmetrúmenos khróno”).
ga” (historeîn, 1150), é objeto da investi- Com relação ao assassinato de Laio, há
gação (1.180-1); se, por um lado, é quem como que uma dança de números no Édipo.

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Segundo informação do único sobreviven- feito físico que o herói traz dos primeiros
te da escolta do rei, o crime teria sido pra- dias de vida, provocado pela trave com que
ticado por vários homens, e não por um Laio perfura-lhe os tornozelos, antes de
apenas. As construções da passagem, ob- entregar o filho a um pastor, a fim de que o
serva Knox, lembram um “problema de abandonasse em monte ermo. Entretanto,
aritmética” (3): o poeta associa freqüentemente o nome do
herói a oida (“saber”), sugerindo a condi-
“Creon: ção ambígua do rei tebano que, se mostra
Um sobrevive, em fuga na fobia. sabedoria ao solucionar o enigma da esfin-
Memorizou apenas uma cena. ge, revela ignorância quanto à própria iden-
tidade. Assim, é possível entrever, no sar-
Édipo: casmo com que Édipo trata Tirésias, a iro-
Qual cena? O um será matriz do múltiplo nia do próprio Sófocles, no episódio em
se algo tiver de Élpis, a esperança. que o rei tebano recorda que ninguém fora
capaz de derrotar a esfinge, somente ele,
Creon: “Édipo, o que nada sabe”, conforme a tra-
De assalto agindo o bando marginal, dução literal da expressão grega ho mêden
não uma só, mas muitas mãos o matam. eidôs Oidipous (397), em que eidôs (parti-
cípio de oida: “o que sabe”) repercute em
Édipo: Oidi-pous. Ironia e ambigüidade estão tam-
O pulha chegaria a tal arroubo, bém presentes na decifração do enigma da
se alguém daqui não tilintasse a prata?” esfinge. A “cadela cantora” pergunta qual
ser possui dois, três e quatro pés – dípous,
O uso idiomático explicaria a mudança trípous, tetrápous. Oidipous responde acer-
do plural para o singular (“muitas mãos” / tadamente “homem”, isto é, oi-dipous (“os
“o pulha”)? Ao empregar o singular, Édipo de dois pés”). “Mas”, comenta Vernant,
teria em mente o líder do grupo, responsá- “esta resposta só é um saber na aparência;
vel pela tentativa de golpe de Estado, con- ela mascara o verdadeiro problema: o que
forme o rei imagina? São explicações pos- é então o homem? O que é Édipo? A pseudo-
síveis que não impedem, contudo, de le- resposta de Édipo abre-lhe todas as gran-
varmos em conta a hipótese de um lapso des portas de Tebas. Mas, instalando-o na
lingüístico, concebido por Sófocles (Édipo chefia do Estado, ela realiza, dissimulan-
volta a usar o singular nos versos 139, 225, do-a, sua verdadeira identidade de parricida
230, 236; nos versos 246-7, fala da ação de e incestuoso” (6).
um grupo; no 277, o coro utiliza o singular; Outra passagem notável do ponto de
no 715 s. Jocasta refere-se aos assassinos vista da linguagem refere-se à chegada do
3 Op. cit., p. 151.
no plural). mensageiro coríntio. Enviado para comu-
4 Charles Segal, Tragedy and
Civilization. An interpretation of Ocorre também, no Édipo Rei, o em- nicar a Édipo a morte de Políbio, será o
Sophocles, Cambridge Mass.,
1981, p. 241. prego de um termo filosófico, o verbo oida, responsável pelo esclarecimento da identi-
de interesse particular, pois está no centro dade do rei de Tebas. Podemos considerar
5 Jean-Pierre Vernant e Pierre
Vidal-Naquet, Mito e Tragédia de numerosos trocadilhos. “Nenhuma tra- esse personagem um emissário de Apolo.
na Grécia Antiga (trad. brasi-
leira), Duas Cidades, 1977, p. gédia é mais acerca da linguagem do que o Observe-se que ele entra em cena logo
91. depois de Jocasta recolher-se no santuário
Oedipus Tyrannus” (4). “Toda a tragédia
6 Idem, ibidem. de Édipo está, portanto, como que contida apolíneo, onde roga pela lucidez do mari-
7 “Intrigante, falastrão, oportunis- no jogo ao qual o enigma de seu nome se do, atitude de certo modo contrária a mani-
ta, grosseiramente mentiroso
desde que possa tirar algum presta” (5). Também a esse respeito, o livro festações anteriores da rainha, até então
proveito… É antes um persona-
gem da comédia que da tragé- de Knox revelou-se precursor, abrindo ca- cética quanto à ciência oracular. Pois bem,
dia, um trickster…”, de acordo minho para um grande número de estudos esse mensageiro, cujo aspecto cômico, até
com Franco Maiullari, em
L’Interpretazione Anamorfica que examinam os jogos de linguagem cri- onde chega meu conhecimento, só recente-
dell’Edipo Re, Pisa-Roma (Istituti mente foi apontado (7), assim se expressa,
ados por Sófocles. Oidipous deriva de oideo
Editoriali e Poligrafici
Internazionali), 1999, p. 24. (“inchar”) e pous (pés), referência ao de- recém-chegado a Tebas (924-6): “Ar’ an

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par’ hymôn ô ksenoi mathoim’ hopou/ta ormente, ao chegar a Tebas, o mensageiro
tou tyrannou dômat’ estin Oidipou/malista reafirma nas entrelinhas (ou entreletras) os
d’ auton eipat’ ei katoisth’ hopou”. descaminhos que desgovernam a vida de
O rei é nomeado no caso genitivo: Édipo: “ouk oid’hodous” (“não sei os ca-
Oidipou (“de Édipo”). Pou e seu correlato minhos”) (9).
hopou significam “onde”, sentido para o Para Knox, não há intervenção direta
qual convergem as questões formuladas dos deuses na peça, estando sua presença
pelo mensageiro: o verbo katoisth’ é uma restrita ao âmbito da previsão oracular.
forma de kata-oida (“saber”) que, como Desse modo, ao cumprir o que fora pre-
observamos, associa-se a Oidi-pous. “Sa- visto em Delfos, a frase de Protágoras, com
ber onde” (oida-pou, katoisth’ hopou) é uma a qual o helenista caracteriza o perfil de
interrogação formulada ironicamente a res- Édipo – “o homem é a medida de todas as
peito de um personagem que ocupa posi- coisas” –, ganha sentido platônico no des-
ção incerta no espaço (8). Foi pensando fecho da peça: “a medida de todas as coi-
nesses elementos formais que imaginei as sas é deus” (10). Essa opinião poderia ser
seguintes possibilidades de tradução para adotada sem restrição, não fossem recor-
esse trecho: rentes no drama palavras como daímon, cuja
conotação religiosa dificilmente pode ser
“Estrangeiros, sabeis dizer-me acaso apagada. O termo indica o controle limita-
por onde eu passo até chegar ao paço do de Édipo sobre o seu próprio destino,
do monarca? Onde eu o acho? graças ao caráter enigmático da ação divi-
na, humanamente imprevisível. Um levan-
Ando no encalço de Édipo. Sabeis tamento do uso de daímon na obra de
acaso como eu chego ao seu palácio? Sófocles mostra sua importância no Édipo.
Ou melhor, estrangeiros: onde eu o acho? O autor emprega-a cinco vezes no Ájax,
três na Antígone, cinco na Electra, catorze
Com vossa ajuda encerrarei meu périplo: em Édipo em Colona, doze no Édipo Rei,
onde se localiza o paço de Édipo? sete no Filoctetes, três nas Traquínias.
Eu vos indago se ele está por perto.

Aperto o passo atrás do rei. Sabeis


como é que eu faço até chegar ao paço? 2. DAÍMON
Acaso alguém dirá onde eu o acho?
Não é fácil definir o sentido exato de
A passos largos venho atrás do rei. daímon nessas tragédias. Se, por um lado,
Acaso alguém me diz como é que eu faço a palavra significa “divino”, por outro,
para chegar ao paço? Onde eu o acho?” parece sugerir algo como “marca individu-
al”, particularmente depois de Heráclito –
Esse mesmo mensageiro, questionado, com cujo pensamento Sófocles tem tantas
a seguir (1.034-8), por Édipo, fornece da- relações – ter escrito em seu conhecido
dos importantes sobre a identidade do rei. aforismo: “ethos anthropo daímon”, “ca-
Pressionado, informa que o pastor que lhe ráter é para o homem daímon”. Kirkwood
deu o recém-nascido sabe detalhes de sua associa daímon à moira (“fado”) e à týkhe
origem: “ouk oid’; ho dous” (“não sei; quem (“acaso”), registrando a ocorrência de “uma
deu”), profere o núncio, numa expressão qualidade pessoal no sentido de daímon;
8 Ver Knox, op. cit., p. 184.
em que o nome de Édipo volta a ecoar ela é concebida como um força ativa,
9 Cf. Simon Goldhill, Reading
(“oid’ho dous / Oidipous”). Registre-se que condutora” (11): Greek Tragedy, Cambridge,
1986, p. 218.
essa fórmula poderia ainda ser entendida
diferentemente: “ho dous” (“o que deu”), 10 Op. cit., p. 184.
“O ‘demoníaco’ não fornece explanação
pronunciado numa única sílaba, significa moral ou teológica do sofrimento ou da cru- 11 G. M. Kirkwood, A Study of
Sophoclean Drama, Ithaca e
“caminhos” (hodous). Como fizera anteri- eldade das circunstâncias. Ele significa, Londres, 1996, p. 284.

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como Reinhardt diz, a inclusão em si mes- tes comentários, inclusive da parte de
mo de algo estranho a si mesmo, um fado Martin Heidegger, que o analisa na Intro-
interno que é personalizado e em certo dução à Metafísica:
grau externalizado. É o daímon que diri-
ge um homem em seu curso ignorante, “Estirpe humana,
pois só os deuses têm conhecimento da o cômputo do teu viver é nulo.
aletheia. O ‘demoníaco’ é o modo de O júbilo de quem já foi além
Sófocles deixar na penumbra um elemen- de uma visão (dokeîn) que, à vista
to da experiência humana; catástrofe des- [(dóksant’),
cende inesperada e inevitavelmente de al- declina (apoklinai)?
gum lugar. Mas aparentemente não há És paradigma,
razão moral para sua descida, nem a na- o teu demônio (daímona) é paradigma,
tureza divina nem a humana é o agente Édipo:
deliberado. Seria pedante insistir na bus- sobre-humano o esplendor”.
ca de precisão num reino que Sófocles
deixa vago; ‘demoníaco’ não representa Jean Bollack assinala a importância do
nenhum conceito filosófico ordenado no verbo apoklinai (“declinar”), que, relacio-
pensamento sofocliano” (12). nado freqüentemente ao movimento dos
astros, indicaria aqui o caráter cíclico da
Esse comentário preserva o caráter enig- felicidade humana ou sua instabilidade.
mático da intervenção do daímon. Trata-se Acrescenta ainda não haver conotação de
de um agente responsável pelo surgimento ilusão subjetiva em dokeîn (“parecer”). A
do inesperado no destino. Talvez se possa questão fundamental seria a do tempo, cuja
apenas acentuar sua natureza divina. Mes- fugacidade revelar-se-ia na incontornável
mo que não se aceite de maneira absoluta o dinâmica do “aparecer/declinar” da expe-
tom categórico da afirmação segundo a qual riência de plenitude. A estabilidade desta,
“Daímon é a interpretação religiosa de segundo Píndaro, só os deuses conheceri-
Týkhe” (13), deve-se ter em mente as nu- am. “O parecer, colocado em balança com
merosas vezes em que as duas palavras o desaparecer, não faz tanto ver o
são relacionadas (14). inautêntico sobre um fundo de ser quanto
No verso 816, Sófocles usa o composto apresenta seu êxito e prestígio sobre um
ekhthrodaímon, um hapax legomenon: fundo de nada” (17). Ao empregar o termo
Édipo considera a hipótese de ter sido ele o ‘inautêntico’, Bollack alude criticamente à
assassino de Laio; nesse caso, “que homem análise que Reinhardt e, a partir dele,
seria mais odiado pelos deuses” Heidegger fizeram da mesma passagem.
(ekhthrodaímon)? Pouco depois, repete a Entretanto, não creio que o helenista fran-
mesma idéia, atribuindo seu destino a um cês dê o devido peso à função de daímon no
ómou daímonos tis, “um daímon cruel” episódio, traduzindo-o por um impreciso
12 Idem, ibidem, p. 285.
(828), sobre cuja identidade os comentá- “destino”, que de certo modo enfraquece
13 Pietro Pucci, Oedipus and the
Fabrication of the Father , rios costumam convergir: “O homem é re- sua função ativa.
Baltimore e Londres, 1992, p. duzido a um receptáculo da loucura divi- Na leitura de Reinhardt, daímon ocupa
146.
na” (15); “Édipo, então, atribui a um poder lugar central (18). O filólogo alemão ob-
14 Ver E. R. Dodds, The Greeks
and the Irrational , Berkeley, sobre-humano cruel e hostil o destino, que serva que, no âmbito da experiência hu-
1951, p. 58 (80).
será muito pior do que aquilo que ele já mana, “ser” e “aparência” (alétheia e doxa)
15 Jean Bollack, L’Oedipe Roi de sabe” (16).
Sophocle, Lille, 1990, vol. 2,
são mesclados, “numa união que não é
p. 511. Cabe ainda citar, no que concerne à exterior nem formal, porém solicitada pelo
16 Winnington-Ingram, Sophocles palavra daímon, uma bela passagem, em daímon”. Édipo não seria uma tragédia do
- An interpretation, Cambridge,
1980, p. 174. que o coro apresenta Édipo, o seu daímon, destino, mas da “aparência”, a qual não se
17 Op. cit., vol. 3, p. 782.
como paradigma (parádeigma) humano confunde com o falso, mas se apresenta
(1.189-95). Esse episódio – como quase como um modo de ser em cujo horizonte
18 Karl Reinhardt, Sofocle (trad. it.),
Genova, 1989, pp. 111 e seg. tudo na peça – tem sido objeto de diferen- o homem vive a precariedade do júbilo.

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Embora Reinhardt considere o movimen-
to temporal, uma vez que o “declinar” da
aparência se confunde com o momento da
revelação trágica, o fundamental em sua
análise é apresentar o daímon como ele-
mento desencadeador da tragédia, o agen-
te que faz da felicidade humana um acon-
tecimento aparente. Não será difícil notar
– registro de passagem – o motivo pelo
qual essa análise iria influenciar Heidegger
que, na Introdução à Metafísica, observa
que o movimento entre “aparecer” e “de-
clinar” confunde-se com a dinâmica do
próprio Ser que se oculta ao se tornar vi-
sível no ente e se revela no declinar da
aparência (19).
Ao colocar Édipo entre a razão e o
daímon, Sófocles reafirma o caráter para-
doxal do herói trágico, fascinante e frágil,
arrogante e desarmado, engenhoso e vul-
nerável. Não se deve perder de vista que,
em relação às versões anteriores do mito,
Sófocles faz uma alteração significativa:
quando a peça tem início, o parricídio e o
incesto já foram consumados e, antes de
consumados, previstos pelo oráculo. Como
disse antes, três referências temporais
apresentam-se, portanto: o tempo da reve-
lação oracular, o do parricídio e do inces-
to, o das investigações de Édipo sobre o
assassino de Laio e sobre si próprio. O
herói é agente e paciente da ação, subme-
tido às forças do daímon e do acaso (týkhe).
Sobre esse enredo, paira o pré-conheci-
mento divino. Num ambiente cultural em
que os sofistas ensinavam, por exemplo,
“a tornar forte um argumento fraco”, em
que o relativismo avançava inclusive so-
bre o campo da ética, o coro sofocliano
evoca a “pureza da linguagem” (863),
regida pelas “leis de pés elevados” do
Olimpo (866) em contraste com a “des-
graça de terríveis pés” (418), na qual se
coloca e é colocado o rei de pés-inchados
(Oidi-pous). Mais importante do que pro-
curar determinar a posição exata de
Sófocles nesse mundo, como se uma tese
o motivasse, talvez seja manter presente a
atitude interrogativa que a ambigüidade 19 Ver Martim Heidegger, Intro-
dos diversos planos da tragédia desperta a dução à Metafísica (trad.
bras.), Rio de Janeiro, 1978,
cada leitura. pp. 133 e seg.

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3. ORÁCULO falsas representarem e substituírem as ver-
dadeiras. “As aparências enganam”, reza o
ditado que poderia ter sido inventado por
Retorno à epígrafe de Heráclito, cujo algum grego. Heráclito critica Homero por
verbo final, traduzido com precisão por não ter se deslocado do mundo aparente
Haroldo de Campos (semainein, “emitir (tôn fanerôn), quando jovens que matavam
signos”: “assigna”), nos remete a uma ques- piolhos o enganaram, dizendo: “o que vi-
tão que desde cedo interessou os gregos: a mos e pegamos é o que largamos, o que não
natureza ambígua da linguagem. No que vimos nem pegamos é o que trazemos
concerne ao oráculo délfico, a literatura foi conosco”. Em outra versão, referida por
além do registro histórico, dando razão a Plutarco (Vit. Hom. 46-9 e 62-71), mas
um conhecido comentário de Aristóteles provavelmente anterior à de Heráclito, a
na Poética. O que nos vem à mente quando anedota é formulada por pescadores e, ape-
pensamos no santuário de Apolo é o sar do alerta do oráculo de Delfos para que
aforismo de Heráclito e não o fato de ne- Homero evitasse o enigma, o poeta não é
nhum dos setenta e dois oráculos délficos capaz de responder a charada, morrendo a
de caráter histórico, registrados por seguir.
Fontenrose, apresentar ambigüidade (20). “A sabedoria grega é uma exegese da
O grande interesse dos gregos por constru- ação hostil de Apolo”, escreveu Giorgio
ções paradoxais, por argumentos polariza- Colli (21), tendo em mente um dos símbo-
dos, pela formulação de enigmas indica que los apolíneos, o arco, cujo nome é “vida”
se colocavam, em relação à linguagem, na (bíos), mas cuja ação é “morte” (conforme
posição de decifradores. Pensemos, por biós, “arco”), segundo Heráclito. Ao colo-
exemplo, para situar a questão numa época car no centro do Édipo Rei o oráculo
remota, nos versos 26-8 da Teogonia (séc. apolíneo, Sófocles destaca a questão da
8 a.C.), segundo os quais as musas afir- significação verdadeira e da decifração
mam saber, por um lado, “dizer muitas verbal. No Ájax, Atena recomendava pru-
mentiras similares às verdadeiras” e, por dência frente à instabilidade do destino. No
outro, “cantar coisas verdadeiras”. Esse é Édipo Rei, o coro apenas constata a fragi-
um dos primeiros registros na literatura lidade incontornável da vida:
20 Ver J. Fontenrose, The Delphic grega de uma questão que posteriormente
Oracle, 1978. será abordada em termos de mimese. Tra- “O ser mortal, buscando ver seu último
21 O Nascimento da Filosofia ta-se de uma reflexão poética sobre um tema dia, não será feliz até transpor
(trad. bras.), Campinas, 1988,
p. 33. recorrente: a possibilidade de formulações sem dor o termo de sua própria vida”.

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