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I ntrodução

Este livro não pretende ser uma auto-biografia, nem nada que se pareça.
Este livro pretende ser um local de reflexão para pessoas trans e cisgénero
(não trans) sobre a esmagadora maioria daquilo que me passou pela cabeça
durante uma longa parte do processo clínico de transexualidade.

Complexa como qualquer outra pessoa, eu sou a Lara, nascida e criada em


Lisboa, que se iniciou no activismo pelos direitos trans/direitos humanos
em 200 3 . Estes textos foram retirados na sua totalidade do meu blog
pessoal, “Lara's dreaming” e são a parte que considero mais importante do
que escrevi desde 2006, logo, uma selecção do que considero mais
relevante .

São reflexões, são expressões de emoções e sentimentos, de memórias e


realidades. São pequenos fragmentos do tempo, que unidos dão (ou
pretendem dar) a ideia da montanha-russa por que passa uma mulher como
eu submetida a pressões internas e externas ao longo de toda a sua vida.

Não se pode ver um texto como uma peça tresmalhada. Todos os textos
faziam sentido para mim na altura em que os escrevi, e todos juntos
compõem uma imagem de mim, e de várias das minhas facetas. Sou muito
imperfeita, mas muito consciente. Sou directa e honesta e nunca deixei de o
ser.
Logo, não esperem ler nestas páginas uma ode à suposta perfeição humana,
de que tudo corre bem, de que basta a nossa força de vontade para
conseguir tudo.

Nada disso. Nestas páginas estão espelhadas as minhas experiências, na sua


esmagadora maioria negativas, os meus sentimentos em relação a isso, as
minhas reflexões na altura. E penso que é extremamente importante que
uma pessoa que ler estes textos tenha em consciência que eu considero este
um mundo negro, em que sofremos mais do que o oposto, mas em que a luz
ao fundo do túnel está sempre lá.

Convém não se esquecerem também que este livro é composto por


conjuntos de textos que abrangem cerca de sete anos na minha vida, a vida
de uma mulher, neste caso transexual. Espero poder, com este livro, dar o
meu testemunho sobre o que é nascer-se com uma identidade de género
diferente do sexo biológico, e quebrar preconceitos e discriminações a que a
esmagadora maioria das mulheres trans estão sujeitas no seu dia-a-dia.

Espero que quando terminarem de ler este livro entendam e percebam que
aquilo que eu sou se resume a uma palavra: Mulher.

Lara Crespo
domingo, Agosto 05, 2007
Hurt...
A inspiração costuma vir-me com a noite. Mas não me parece que seja o
caso de hoje. Estou doente, cansada, e a morrer de calor. Felizmente parece
que o tempo vai arrefecer. O que se conjuga mais com a minha alma, com o
meu coração.

Estou magoada. Estou triste. Estou deprimida. Estou com medo. Estou com
raiva. Estou com ódio. Estou hiper-sensível. Estou fria. Estou dura. Estou
crua.

Estou farta. Farta de ser magoada. Farta da vida que levo, mas não tenho
forças para mudar. Talvez, porque no fundo, tudo está a mudar na minha
vida. Preciso de uma bússola. Preciso que me guiem. Preciso que me tirem
do fundo. Preciso do ar da superfície.

Não quero ver nenhum dos meus pais morrer. Jurei a mim própria que
morreria antes deles. E assim vai ser. Não vou aguentar. Não vou suportar a
dor. Porque de dor, toda esta já me chega.

A dor...
terça-feira, Agosto 07, 2007
Lara, Muta ou Tacita...
Não sabia se existia alguma ninfa ou deusa com o meu nome, mas a
curiosidade levou-me a procurar hoje no Dicionário de Mitologia Grega e
Romana de Joël Schmidt, editado pelas Edições 70, 1997, o significado de
Lara (ou seja, o nome que escolhi para mim e com o qual única e
exclusivamente me identifico).

O meu espanto foi grande, pois realmente existe! E como em qualquer


mitologia, nada é totalmente bom ou mau, aqui vos deixo o excerto que se
refere a Lara.

" Lara . Deusa romana do Silêncio, Lara, que tem por vezes os sobrenomes
de Muta ou Tacita, é a heroína de uma lenda contada por Ovídio nos
Fastos.

Ninfa do Almo, ribeira que desagua no Tibre, ela recusou ceder às ordens
de Júpiter. Ele ordenara às divindades das ribeiras que o ajudassem a
raptar Juturna, por quem estava apaixonado. Pior que isso, Lara foi contar
todos os projectos do galante Júpiter a Juno e a Juturna.

Irritado, o deus arrancou-lhe a língua e ordenou a Mercúrio que


conduzisse aquela tagarela aos Infernos. Durante o caminho, o deus
seduziu-a e fez dela a mãe dos Lares.

Lara é considerada, pelos Romanos, ao mesmo tempo deusa da


Maledicência e uma das divindades do silêncio eterno, a Morte."
Por curiosidade fui procurar na Wikipédia em Inglês a lenda de Lara, e,
apesar de semelhanças na sua história, muitas mais são as diferenças. Aqui
fica a tradução:

" Larunda (ou Larunde, Laranda, Lara) era uma Náiade ou ninfa, filha do
rio Almo na Mitologia Romana. Ela era famosa tanto pela sua beleza como
pela sua loquacidade - uma característica que os seus pais tentaram
refrear. Ela era incapaz de guardar segredos, e assim revelou à esposa de
Júpiter, Juno, o seu caso com Juturna (ninfa companheira de Larunda, e
esposa de Janus). Por atraiçoar a sua confiança, Júpiter cortou a língua de
Lara e ordenou a Mercúrio, o mensageiro, que a conduzisse a Averno, a
entrada do Mundo Infernal e reino de Plutão. Mercúrio, no entanto,
apaixonou-se por Larunda e fez amor com ela no caminho. Lara então
tornou-se a mãe de duas crianças, conhecidas como Lares, deuses
invisíveis guardiões dos lares. Mas ela teve que permanecer escondida
numa casa nos bosques para que Júpiter não a encontrasse."
domingo, Agosto 19, 2007
De que falamos quando falamos de amor...
Hoje dei por mim a pensar no significado das relações amorosas. Porque
lhes chamamos "amorosas", se na grande maioria nem amor há, e porque
nenhuma deu resultado na minha vida.

A mais longa iniciou-se em Setembro de 2002 e terminou em Novembro de


2003. Conheci o Jorge, de Odivelas, na net, e foi algo muito natural, apesar
de "sui generis". Conversámos uma noite na net, encontrámo-nos no dia
seguinte, e quando dei por mim estava apaixonada e a "namorar" com ele.

Pus o namorar entre aspas, pois não posso chamar namoro a uma relação
que se baseou essencialmente a uma intimidade entre quatro paredes, e a
uma intimidade mais sexual do que emocional.

Foi o único homem que amei na minha vida. Apesar dos pesares, estivémos
juntos mais de um ano. Depois de tudo ter terminado da parte dele, pois, e
passo a citar "tenho vergonha de namorar contigo", e, "não estou
apaixonado por ti, não te amo nem nunca te amei, mas na cama havia
amor". Só porque sou uma mulher Transexual, isso não significa que me
possam magoar da forma e da maneira que lhes apetece. O que significa
não me amar, mas haver "amor" sexualmente??? Mas o que é isto??? E ter
"vergonha" de namorar comigo??? Pois, mas para fazer sexo comigo já não
havia vergonha.

E é isto que eu vejo cada vez mais. Os homens têm vergonha de namorar
comigo. Não por eu ser A ou B. Sim, porque sou Transexual. Pelos vistos
isso faz de mim menos mulher que as outras. Porquê? Porque não tenho
mamas? Porque os meus genitais são iguais aos deles?

Como sou Transexual sou vista apenas para estar de perna aberta entre
quatro paredes. Não interessa se sou inteligente, mais ou menos culta,
sensível, enfim, um ser humano. E foi precisamente o ser humano que sou
que o Jorge de Odivelas não respeitou. Eu amei, ele fodeu. Eu entreguei-
me, ele não. Eu estava pronta (que tonta que eu era!) a ir viver com ele, um
homem que não me amava e que ainda por cima tinha vergonha de mim!

Amor? Não conheço. E duvido que a maioria das mulheres o conheça vindo
do seu companheiro.

Só amei uma vez. E descobri que não vale a pena acreditar em algo que não
existe. Amor é uma quimera. Uma ilusão. E essa dor do sonho desfeito
ficará comigo até à campa.

Lara
sábado, Setembro 01, 2007
"As Tardes da Júlia", e o futuro...
Mais uma semana que passou, e que começou bastante bem, melhor do que
eu esperava. Fui convidada, mais três meninas, a ir ao programa da TVI,
"As Tardes da Júlia", falar sobre a minha experiência pessoal enquanto
Transexual Feminina ou Mulher Transexual.

Confesso que estava muito nervosa, apesar de não ser o meu primeiro
directo, mas fui tão bem tratada por toda a equipa, desde a produção, aos
jornalistas, à maquilhadora e à cabeleireira, e pela própria Júlia Pinheiro,
que tudo se tornou fácil (entre aspas, pois nunca é fácil falar de nós e do
facto de sermos umas proscritas sociais).

Como ainda não tive hipótese de ver como saiu, pois apenas um amigo
gravou, falo apenas da experiência de estar lá, com uma audiência
exclusivamente feminina no plateau. E eu senti-me bem ali, relaxada
quando entrei em directo, plena de consciência e das minhas razões. Apesar
da mágoa que sentia no peito e que todos os dias me faz lembrar de quem
sou. E da minha dor.

Espero que o feedback tenha sido bom e que a minha experiência, bem
como das outras três convidadas, Eduarda, Verónica e Débora, possam
contribuir para ajudar tanta miúda que anda aí perdida em si e no mundo,
sem saber o que fazer. Eu tenho tentado ajudar no que posso. Sei que o meu
caminho nesta vida passa por aí. Ajudar os outros. Só não consigo ajudar-
me a mim própria. O que acho que é natural.

E enquanto o fim da minha caminhada aqui não chega (sei que está
próximo), vou lutando como posso, ajudando como posso. Só espero que a
grande maioria das Mulheres Transexuais que irão ler isto não o vejam
como o assumir de uma derrota. Muito antes pelo contrário. Vocês têm que
lutar o mais que possam pelo vosso direito a uma vida digna, a um amor, a
uma grande felicidade. O que eu escrevo de mim são os desabafos de
alguém que não teve a mesma sorte que vocês irão ter.

Mas lembrem-se sempre: lutem pela vossa felicidade, passe ela por onde
passar, pois se vocês não o fizerem, ninguém o fará por vocês.

Obrigada pelos feedbacks que tive e por me continuarem a ler.


quarta-feira, Setembro 12, 2007
Quatro Bês
A vida não deixa de me surpreender. A nível familiar as coisas pioraram
bastante, pelo menos durante uma semana, em que até a minha mãe me
falava ao telemóvel com sete pedras nas mãos. O meu irmão não me atende
o telemóvel, nem que seja só para lhe falar sobre a minha sobrinha. E as
pessoas que vou conhecendo melhor, ou porque tomo um café com elas
(regra geral homens, ou não fosse eu hetero! risos), ou porque mantemos
uma conversa fluída na net, passam, de um momento para o outro, a tratar-
me de forma "diferente".

Isto é o que se chama passar de "bestial a besta". E como vêem, tenho tido
provas de que isto se passa, mais ultimamente, talvez por causa das
trovoadas, das pancas, do facto de eu ser uma Mulher Transexual pré-
operada, talvez porque não correspondo às expectativas de quem se tenta
aproximar em demasia (you know what I mean...).

Ainda por cima estou debilitada, pois estou com uma tendinite no braço
esquerdo que me tolda os movimentos, e estou prestes a ser operada ao
peito (espero eu!). Na próxima semana já sei quando vai ser, e lá vou eu
para mais alguns exames, análises, etc.

Entretanto, deparo-me com um verdadeiro "baby boom". Pois é verdade.


Grande parte dos homens que conheço (pessoalmente) ou foram pais há
pouco tempo, ou estão prestes a sê-lo. Curiosamente e felizmente, a maioria
dos bebés são meninas (yes!) e só vejo baba de pais (e mães) à minha volta.
A todos eles os meus parabéns, apesar de eu achar pessoalmente que
colocar uma criança no mundo nesta altura do campeonato é, no mínimo,
arriscado.

Sei que falo também com uma pequena pontinha de inveja, pois adorava ser
mãe, e esta seria a altura ideal, pois já estou a ficar velha, e quando a
criança fizesse 20 anos, já eu teria 56. Tipo avó-neto/a. Mas também nunca
faria parte dos meus planos ser mãe sem ter um pai para essa criança, que
teria que ser adoptada por motivos óbvios.
E como não existe "pai", vou sendo "mãe" um bocadinho, dos filhos dos
amigos e, principalmente, da minha sobrinha, que já vai com oito
Primaveras. Linda, inteligente e toda arrebitada! Tem a quem sair...

Ai ai... Quem me dera ser mãe...


quarta-feira, Setembro 19, 2007
Dor de dentro

Hoje reparei numa lua pálida quando vinha para casa de carro. A Eduarda
estava alheia nos seus pensamentos, enquanto conduzia, e eu olhava pela
janela do carro, observando as luzinhas lá em baixo, as da ponte, as dos
faróis dos carros, sempre com aquela luz ténue presente.

Presente como a minha dor, que teima em não passar. Uma dor feita de
muita tristeza, de um lar desfeito, de um amor perdido para sempre, mas
que teima em ficar, e de tanta, tanta coisa mais. Hoje chorei. Chorei muito.
As lágrimas caíam como se os meus olhos fossem fontes. Disse à Eduarda
que nunca consegui esquecer o amor que sinto pelo Jorge de quem já falei
aqui.

E disse-lhe que me comecei a deixar morrer a partir do momento em que a


nossa relação terminou. A minha vida reduziu-se a pouco. Tinha trabalho
mas fiquei sem ele passado algum tempo. Fiquei com mais espaço para
pensar. Para pensar nas coisas certas e muito para pensar nas erradas. Não
tive mais nenhuma relação. Afasto os homens de mim. Nada é o mesmo
sem ele.

A minha fragilidade e a minha dor vêm de dentro. De dentro da minha


alma, do meu coração. Os dias correm como se se passassem segundos. Não
dou por eles. Não penso. Tento tirar apenas as ideias mais recorrentes da
minha mente. De resto, sobrevivo apenas. Não sinto prazer em nada, não
quero fazer nada.

É como se me mantivesse hibernada durante todo o ano. O tempo já não faz


sentido para mim. Já nada faz sentido para mim. Só queria adormecer e não
voltar a acordar. Aí já não sentia mais a dor...
quarta-feira, Setembro 26, 2007
Intuition's always been a woman's guide
Confesso que, nos últimos tempos, tenho feito um esforço para postar um
pouco mais, mas a inspiração nem sempre surge quando queremos,
infelizmente.
Hoje, com o início da Lua Cheia, parece que me sinto mais preparada para
falar um pouco do que dá título a este post: a intuição ser o grande guia das
mulheres.
É como se tivéssemos um sexto sentido, algo que nos distancia em muito
dos homens, pois não podemos divorciar a intuição da sensibilidade. E, se
elas, socialmente, sempre foram mais conotadas com a mulher,
curiosamente na realidade nós desenvolvêmo-las e eles não.

A intuição feminina é algo de místico, um chamado sexto-sentido, uma


sensibilidade para as auras de cada um/uma, uma sensação de déja-vu numa
situação ou casa, um sonho de algo que irá acontecer. Ou, como Melinda,
personagem interpretada magistralmente por Jennifer Love-Hewitt na série
" Ghost Whisperer " (da qual sou fã incondicional), a capacidade mediúnica
de ver, falar e ajudar aqueles que já morreram.

E a nossa vida é feita de intuições. Eu sempre intui em mim que era uma
Mulher, apesar dos meus genitais dizerem o contrário, e do choque das
transformações na puberdade. Foi uma das piores fases da minha vida.
Desejar que as minhas ancas alargassem, que o meu peito crescesse, que a
minha cintura se afunilasse, e na realidade, tudo correr ao contrário. Chorei
baba e ranho, mas não havia nada que eu pudesse fazer na altura. Nem
sequer sabia o que era a Transexualidade, nem sabia que existia. Era tão ou
mais ignorante que a maioria das outras pessoas, pois sempre houve muito
pouca informação deste(s) assunto(s), talvez por ser um dos grandes tabus
da sociedade judaico-cristã em que vivemos.

Daí surgiu a grande confusão na minha cabeça, e o não saber quem era, na
realidade, nem o que fazia aqui. Só mais tarde e depois de algum
conhecimento pessoal e muita introspecção consegui perceber o que de tão
"errado" se passava comigo. E tratei de mudar essa situação, o que faz de
mim hoje, e apesar de sofrida e escaldada, uma Mulher igual a qualquer
outra, independentemente do que digam. "Vozes de burro não chegam ao
céu".

E a minha intuição e sensibilidade têm sido as minhas "armas" ao longo de


todos estes anos de consciência plena de quem sou, e de quem são os
outros. Obviamente que a minha experiência de vida de 36 anos também
ajuda muito, mas as mudanças são grandes e definitivas. Sinto e sei que sou
outra mulher. Já não sou a mulher naive que acha que quem se aproxima
vem por bem, sem segundas intenções por trás (e não me refiro apenas a
homens e atracção). Sou directa, desconfiada e honesta. Quando gosto digo,
quando não gosto, ainda o digo mais depressa.

Era bom, na minha modesta opinião, que as Mulheres Trans se


aproveitassem mais da sua intuição e sensibilidade. Acho que todas
ganhávamos muito mais com isso.
Afinal, "Intuition's always been a woman's guide"!
sexta-feira, Outubro 12, 2007
Real Girl

Mais uma vez voltei a estar uns tempos ausente deste meu espacinho de
histórias e "estórias" da minha vida. A inspiração nem sempre vem, e,
apesar de estar desempregada, acabo por ocupar os meus dias com várias
coisas.

Esta semana foi particularmente ocupada, com consultas médicas, com o


meu psiquiatra sexólogo, e com o meu cirurgião. Vou ser operada em breve,
e finalmente vou ter os seios que sempre desejei. O que me coloca a
questão, de que falei em posts anteriores, do que faz de nós "verdadeiras
mulheres".

Confesso que apesar de sempre ter desejado ter peito, houve um período em
que reneguei esse desejo, pois não via saídas viáveis. Obviamente que o
facto de eu passar dentro de pouco tempo a ter mamas, não vai fazer de
mim mais mulher. Vai, isso sim, fazer-me sentir melhor e mais feliz comigo
própria, com a minha imagem de mim.

E serei sempre, como sempre fui, uma "verdadeira mulher", igual a


qualquer outra. Colocar próteses mamárias, fazer a cirurgia de redesignação
de sexo mais não são do que adequações que eu e outras mulheres
Transexuais fazemos para nos sentirmos melhor de acordo com a nossa
Identidade de Género. Mas não são cirurgias plásticas que fazem de nós
pessoas diferentes, ou "mais mulheres".

A mim o que me interessa é a minha essência e o ser coerente com ela. E é


assim que vivo, e sempre vivi. Não me vou operar porque socialmente uma
mulher "tem que ter mamas" ou "ter uma vagina". Não me vou operar
porque os outros querem. Vou-me operar por mim. Para, finalmente ter paz
entre o que sou e o que aparento. Conectar por fim a minha mente com o
meu corpo.

Porque, como sempre digo, "não é uma vagina que faz uma mulher".
sábado, Outubro 27, 2007
Kylie e o flagelo do cancro da mama
Começo este post por agradecer todos os (muitos) emails que recebi e o
comment da Mente Assumida a desejarem-me muitas coisas boas e que
retornasse a estas páginas. Muito obrigada a tod@s sem excepção.

E, nada melhor do que dar as boas vindas ao regresso de uma Mulher que
muito admiro pela sua coragem, postura, profissionalismo e carisma (além
de ser geminiana como eu!), Kylie Minogue .

Quando tudo parecia contra ela - os diagnósticos médicos não eram os


melhores, ela estava demasiado fraca para combater a doença, etc. - eis que
Kylie dá uma reviravolta e luta com todas as suas forças contra o terrível e
temível cancro da mama de que padecia.

Recuperada, agora, ela volta com um novo visual, muy Marilyn Monroe, e
uma estética puramente deliciosa dos anos 50, misturada com os novos
materiais do século XXI.

Como podem observar pela foto que se encontra aqui, entre outras no seu
site, (junto com este post estava uma foto promocional da cantora, que por
motivo de direitos de autor não pode ser colocada aqui) Kylie é agora uma
nova mulher, como acredito piamente que qualquer mulher das tantas,
infelizmente, que lutam contra este mal pelo mundo fora, rejuvenesçam a
sua alma quando vencem.

Mas nem todas vencem, e conheço vários casos, como tod@s vocês devem
conhecer, de mulheres DE TODAS AS IDADES a quem foi diagnosticado
cancro da mama. E eu, apesar de não ter nascido biologicamente mulher, já
passei a minha quota parte de terror quando, há uns tempos atrás, fiz a
palpação do meu (pouco) peito e me deparei com dois nódulos: um grande e
um pequeno. Em pânico fui ter com o meu endocrinologista na altura, que
me mandou fazer todos os exames possíveis: análise ao sangue para
detecção de tumores (atenção que tumores podem ser benignos ou malignos
e só neste último caso serão cancro), mamografia e ecografia mamária.
Andei em pânico os dias que duraram até ter os resultados. Mas a médica
que me fez a ecografia mamária avisou-me logo que, não só não lhe parecia
mais nada além das fibroses criadas pelo desenvolvimento das glândulas
mamárias, como no caso das mulheres Transexuais se costuma e deveria
optar por próteses mamárias o mais cedo possível, de forma a decrescer a
quantidade de estrogéneo ingerido, e consequentemente a possibilidade de
desenvolver cancro. Eu tive MUITA sorte. Não era mesmo nada, além de
glândulas inchadas e duras.

Como já o fiz anteriormente, dedico este post a TODAS as Pessoas (sim,


porque os HOMENS TAMBÉM DESENVOLVEM CANCRO DA
MAMA), que sofrem ou sofreram deste mal.
segunda-feira, Outubro 29, 2007
O Poder do Sexo
É impressionante o poder que o sexo tem hoje em dia, em todos os
pormenores da nossa vida. De repente, é como se voltássemos aos anos 70 e
à libertação sexual, e toda a gente quer fazer sexo com toda a gente. E
quanto mais tentamos fugir de algo importante, mas não essencial na nossa
vida (pelo menos é o que eu o considero), ele deparasse-nos a todo o
momento.

Atenção que não sou nem uma falsa virgem, nem uma falsa puritana, nem
me considero uma ressabiada (como muitas e muitos anormais por aí
dizem), apenas acho que há lugar para tudo, e respeito tudo, desde que não
interfira com a minha vida pessoal. E o grande problema é que começa a
interferir, pois não há uma conversa na net (então aí é demasiado óbvio, não
é?), uma conversa de café, uma conversa num bar, em que o olhar de "vou-
te comer" e as palavras "provocadoras" não estejam estampados.

Vivemos nos "fabulosos" tempos em que a divina trindade passou de D eus,


C risto e o E spírito S anto, para sexo, dinheiro e poder. E é fácil atingir
qualquer uma das pontas do triângulo, se usarmos um, ou dois dos outros.
Através do sexo consegue-se dinheiro e poder. Através do dinheiro
consegue-se sexo e poder. Através do poder consegue-se dinheiro e sexo. As
simple as that !

E o que é feito do romantismo? De uma relação que começa por um


conhecimento interior, um namoro, e depois vem a parte física? Porque é
que eu, só porque sou uma mulher Transexual, tenho que usar o meu
"poder" sexual sobre os homens? Porque é que o discurso de um homem
muda, quando está a falar comigo, a partir do momento em que digo que
sou Transexual?

Tem que acabar esta ideia pré-concebida de que todas as mulheres


Transexuais são prostitutas, ou taradas sexuais. Será que ninguém percebe
que, se uma grande parte se prostitui é porque ninguém lhe dá trabalho? É
porque não tem alternativas? Não é porque querem, porque adoram, porque
são umas ninfomaníacas. É porque têm que sobreviver.

E eu luto, e continuarei a lutar para que nos respeitem a nós, MULHERES


TRANSEXUAIS, como seres humanos, que nos dêem hipóteses de trabalho
em qualquer área, como às mulheres biológicas, que tenhamos acesso aos
cuidados de saúde, tal como as outras pessoas, e, acima de tudo, e volto a
repetir QUE NOS RESPEITEM!
domingo, Novembro 04, 2007
Uma coisa de pele...

Têm sido uns dias difíceis. A minha primeira cirurgia após o término do
processo vai finalmente ser realizada, e todos os meus medos vieram ao de
cima.

Isso, mais a falta de dinheiro, pois nem pude ainda procurar trabalho por
causa do pós-operatório, que me faz estar constantemente preocupada com
contas para pagar, medicamentos para comprar, dívidas para saldar e por aí
fora.

Para agravar tudo isto, os fantasmas do passado teimam em não me deixar


em paz. Ainda ontem o Jorge de Odivelas me mandou uma sms, à qual não
pude responder, pois não tenho sequer saldo no telemóvel.

Queria tanto saber como ele está, se a vida lhe corre bem, por mais que me
custe, se ele está a namorar, se vai ser pai, sei lá, coisas que me passam pela
cabeça. Mas, por mais que o tempo passe, não o consigo esquecer. É algo
de pele, mais forte que eu. Passaram tantos anos e ele continua tão
presente... Já não sei o que fazer.

Tenho que me concentrar no presente. Na cirurgia. Que vai correr tudo bem,
que vou ter um pós-operatório porreiro, sem muitas dores, enfim, que vou
conseguir depois pôr os pés à estrada e ir em busca de um emprego.

Ai, saudades de ti... Saudades de mim...


domingo, Dezembro 02, 2007
Este Post É Dedicado a Homens... Que Gostam de Trans
Apesar do adiantado da hora e de já ser dia 2, não podia, como nota muito
importante, deixar escapar a minha homenagem a todas as pessoas, por esse
mundo fora que vivem e sobrevivem, infectadas ou doentes, como o vírus
do HIV. Comemorou-se ontem o Dia Mundial de Luta Contra a SIDA, data
tão importante para tod@s nós, pois esta não é uma doença só dos outros:
também, e com apenas um descuido, nos pode bater à porta. Aqui fica um
parágrafo em que alerto para esta verdadeira pandemia e para uma
protecção cada vez mais necessária.
Agora, vamos ao título deste post. Os homens que gostam de Trans. É
curioso que eles sejam cada vez mais - basta passar pelas tradicionais zonas
de prostituição Trans para ver que elas pululam imensas à espera de
clientes, e que aquilo parece uma verdadeira hora de ponta, mas à noite.

Casados, comprometidos, solteiros, viúvos, todos procuram momentos de


prazer (pois, amiguinhos, parece que é só para isso que servimos, não é?)
com uma Trans. Atenção que o termo que emprego aqui - Trans - não inclui
só mulheres Transexuais (apesar de serem o fulcro da questão), inclui
também Travestis e a comunidade Transgénero em geral.

Infelizmente, na sua esmagadora maioria, os homens que gostam de Trans


apenas nos vêem como criaturas da noite, prostitutas, objectos de prazer. O
que é mais transgressor do que um homem a ser penetrado por uma mulher
com pénis? É o complexo do falo que os faz curiosos, e é a forma como nos
vêem que os faz procurar-nos. Afinal, o fruto proibido é o mais apetecido.

Mas, e como uma grande parte das mulheres Transexuais não se prostitui, e
muitas procuram relacionamentos estáveis com um homem (obviamente
refiro-me só às heterossexuais), estas andam em papos de aranha para
encontrar alguém que veja mais além do que um corpo. Sim, porque são
muito poucos os homens que têm coragem para assumir uma relação com
uma mulher Transexual.
Ou seja, para os homens que gostam de Trans, nós somos reduzidas a uma
cara e a um corpo com certas características, claro. Se somos interessantes,
inteligentes, cultas ou não, isso não interessa. Tanto que o que mais se
encontra em chats da net é o eterno e rídiculo "és Trans? Ah, eu adoro
Trans!". Mas o que é isto? Isto significa que eles "adoram" quem não
conhecem, não sabem se física e psicologicamente lhes agrada, apenas
porque é Trans??? No comments ...

E termino com o eterno lugar comum: meus queridos homens que gostam
de Trans, nós somos iguais a qualquer outra mulher, e somos bem mais que
um objecto de prazer. Somos dignas de respeito e temos o direito a ser
felizes como qualquer pessoa. Ok?
segunda-feira, Fevereiro 25, 2008
De volta...
Depois de um fim-de-semana calmo e a recuperar forças, eis que me
encontro aqui para escrever umas linhas, acima de tudo para desejar uma
boa semana a toda a gente que aqui vem ler (e ver) aquilo que por aqui se
passa.

Sei que tenho andado longe do blog desde Dezembro, mas isso deveu-se a
uma intervenção cirúrgica a que fui sujeita, e que poderão constatar na foto
em baixo. Agora que já estou bem, eis-me de volta aqui e à minha vida do
dia-a-dia.
segunda-feira, Abril 21, 2008
Afinal, o que querem de mim?
Hoje de madrugada fui tomar um café à bomba de gasolina aqui ao pé de
casa. A Lua Cheia estava linda e brilhante entre farrapos de nuvens.
Comecei novamente a pensar no que querem de mim.

Quando refiro "o que querem de mim?" refiro-me a toda a gente, desde os
meus pais e restante família próxima, que se encontra em Portugal, aos
meus amigos, etc. Parece que toda a gente me cobra algo por ser quem sou.
Parece que eu tenho que ser o que os outros gostariam que eu fosse.
Mas não é essa a realidade. A realidade é que sou uma mulher transexual, já
com próteses mamárias, e isso não é algo que se esconda, como eles
gostariam que fosse. Agora têm mesmo que se confrontar com a dura
realidade.

E isso provoca, desde o Natal do ano passado um mal-estar, uma paz podre
entre nós. O jantar de família foi absolutamente pavoroso. Parecia que havia
algum mal em eu me sentir bem, pois todos os outros se sentiam mal,
incomodados com a minha presença.

De tal maneira, que não fui ao jantar de aniversário da minha mãe, em


Janeiro. Tenho pena, mas não posso pactuar com uma situação familiar que
me desgasta, que me destrói. A minha mãe tenta nem sequer olhar para
mim, quando fala comigo pessoalmente, o meu pai olha-me dos pés à
cabeça com um olhar de desprezo e ódio. E isso para mim não dá.

Acho que só agora, passados quase oito anos desde o início do meu
processo clínico, é que eles se aperceberam que eu nunca andei aqui a
inventar e a brincar. E é triste que assim seja. Muito triste.

Quanto à cirurgia final, a de redesignação de sexo, a minha mãe já me pediu


para não a fazer. Que me ia arrepender. Que não ia aguentar. Tentei
explicar-lhe que logo se via, ainda faltava muito tempo nessa altura. Mas
ela não entendeu, ou não quis entender. E eu, mais uma vez, senti-me uma
estranha perante ela. Perante o meu pai. Dói. Dói muito saber e,
principalmente, sentir, que as pessoas que mais importantes são para mim,
me renegam o tempo inteiro. Por isso era impossível continuar a viver mais
naquela casa. Por isso saí há mais de dois anos, para nunca mais voltar. Eles
sabem que podem contar comigo, mas eu sei que não posso contar com
eles. (Quando fui operada ao peito, nem uma visita deles tive no hospital,
nem nunca me perguntaram se estava bem, se tinha corrido bem, etc).

Amigos. Amigos reduzem-se a tantos quanto a minha mão direita tem. Mas
contacto pessoal só tenho com dois ou três. Os outros ficam-se pelos emails
de forwards , e se não for eu a telefonar, nem nos meus anos se lembram de
que eu existo. Isto porquê? Óbvio, não? Desde quando? Desde que me
assumi como sou. Chegou ao ponto de eu encontrar um amigo de muitos
anos num centro comercial, e ele, sabendo de tudo e deparando-se comigo
como a mulher que sou, me cumprimentou com um aperto de mão.
Caricato, né? Mas é a realidade.

Como a realidade é, segundo um amigo meu, "se te operares em baixo,


encontrarás um homem para um relacionamento sério. Se não, só
encontrarás quecas e sexo sem compromisso". Concluindo: very straight to
the point .
domingo, Maio 25, 2008
Nip/Tuck - A transfobia continua!
Apesar de não acompanhar regularmente a famosa série Nip/Tuck, de vez
em quando vejo alguns episódios, principalmente quando a Fox Life decide
transmitir os "3 em 1". Confesso que, apesar de "estranha" a nível de
argumentos, já para não falar do sensacionalismo das imagens de cirurgias
estéticas e de sexo desenfreado entre toda a gente com toda a gente
(esmagadoramente hetero, bem entendido), o que mais me chocou foi a
forma leviana, preconceituosa e totalmente transfóbica como a personagem
"Ava" (interpretada pela actriz Famke Janssen) apareceu.

Linha mulher fatal, Ava faz sexo com todos, incluindo o próprio "filho",
tem ares de superior e de psicopata, e toda a gente "descobre" que afinal ela
(Ava, transexual operada) é um ele. Além destes predicados, é apresentada
como uma mulher sem escrúpulos nem sentimentos, e cuja "causa" da sua
transexualidade é explicada do seguinte modo: Ava era um homem gay que
se apaixonou perdidamente por um médico cirurgião plástico. O problema é
que o pobre médico era hetero. Então, num acesso de luminosidade interior,
decide fazer a cirurgia de redesignação para poder ficar com o seu amor.
(Deve ter sido desta série que os iranianos foram buscar as suas teorias).

Como se não bastasse, o filho de um dos cirurgiões, que tinha passado pela
cama de Ava, vai a um bar transgénero no qual conhece uma jovem trans.
As coisas evoluem, e eles acabam na cama... Oh, tragédia!!! Ele (ingénuo,
tadinho) descobre que, afinal, a mulher transexual que estava na cama com
ele NÃO era operada!!! Vai daí, prega-lhe uma carga de porrada, além de a
tratar com "mimos" verbais tipo "não passas de um homem de mamas",
"mentiste-me", "não sou gay" (ridículo no mínimo...), etc, etc, etc.

Claro que a desgraçada, que ficou toda negra, decidiu convidar umas
amigas para verem o espécime que lhe tinha feito aquilo. O resto já se sabe,
batem no menino de tal forma que os pais (Nip e Tuck. Não não se trata de
homoparentalidade, um é pai biológico e outro é pai adoptivo) são
obrigados a operá-lo para lhe reconstruírem a face. No meio disto tudo, a
transexual é sempre um gajo. Sempre. Tal como Ava, que desde que teve o
azar de ir para a cama com um dos cirurgiões, foi sempre tratada no
masculino. Claro que cirurgiões deste tipo nem precisam de penetrar para
descobrirem a "marosca". Quando a ia penetrar, viu logo que era uma
neovagina e tudo.

E com todo este "manancial" de totais disparates, estereótipos, preconceitos


e transfobia interiorizada, esta série de fama mundial poderia fazer o que
não faz: educar, explicar, lutar contra o preconceito. Não é caindo em
argumentos fáceis e estupidamente sensacionalistas que se luta, ou se
ensina, ou se explica. Os argumentistas e produtores desta série tinham
obrigação de se informar convenientemente e não ridicularizar situações
complicadas já de natureza, e, acima de tudo, muito sérias.

É sempre chique ter uns/umas "freaks" numa série televisiva, mais ainda
quando a transexualidade está na moda, agora reforçar preconceitos e
"gozar" com pessoas, seres humanos, não!

Sendo assim, Nip/Tuck é tudo menos um exemplo seja para quem for. Nem
sequer lhe posso chamar entretenimento, pois não me "entretém". É vulgar,
banal, vazia de conteúdo, e, pior ainda, reforça a ideia e o esterótipo de que
o que importa realmente é como parecemos, não como somos. Out para
mim.
domingo, Junho 01, 2008
As histórias de Amor têm um final triste...
Já há muito tempo que ando para escrever sobre o Amor. Sobre histórias de
Amor. Sobre uma dessas histórias em particular. A de uma linda mulher
Transexual de seu nome Calpernia Addams e de um jovem soldado
chamado Barry Winchell. Esta história deu um filme, de seu nome
"Soldier's Girl", e tornou-se numa referência para todos aqueles que o
viram.

E assim foi para mim também. Sempre acreditei (ou quis acreditar) que as
histórias de Amor existem, que existe a nossa alma-gémea, que um dia
encontramos o nosso príncipe encantado e que somos felizes para sempre.
Infelizmente não é assim a realidade, e Calpernia é uma prova viva do
sofrimento que o Amor nos pode causar. Ela amava Barry. Barry amava-a.
E foi brutalmente assassinado por causa disso. Por amar uma pessoa que
não devia. Uma mulher Transexual.

Não vou adiantar muito mais sobre esta história triste de Amor, pois assim
tiraria quase todo o conteúdo dramático a quem estiver interessado em vê-
lo. Apenas vos adianto que passei emocionalmente de um extremo a outro
enquanto visionava "Soldier's Girl". E sentia o que Calpernia sentia, e no
final, tentava controlar em mim as lágrimas que ela chorava, imaginando se
tal coisa me acontecesse a mim. A mim, Lara, também mulher Transexual.

Feliz ou infelizmente, nunca vivi uma história de Amor. Tive os meus


amores platónicos, meia dúzia de namorados, e nada mais. Agora que estou
já numa nova fase da minha vida, vejo que, se calhar, foi bom tal nunca me
ter acontecido. E não me ir acontecer. Talvez porque já não acredito em
príncipes, talvez porque já não acredito em almas-gémeas, talvez porque já
não acredite no Amor para mim.

Sou um Estigma. Isso é uma realidade. Calpernia sofreu, e muito, mas


conseguiu dar a volta por cima. É uma conhecida actriz e activista Trans
entre outras coisas nos EUA, e soube lidar com o Estigma. Talvez eu não
saiba. Talvez não tenha a coragem necessária para enfrentar tanta coisa que
acontece na minha vida ao mesmo tempo.

Barry amava Calpernia tal e qual como ela era. Uma mulher Transexual. Eu
nunca encontrei um homem que me amasse como eu sou. Uma mulher
Transexual. Talvez seja azar meu, mas também é a minha realidade. E é
com ela que morrerei um dia. Dentro de umas semanas passarei a ter 37
anos. Nunca pensei cá chegar. Talvez isso queira dizer algo.

Mas, em relação ao Amor, nada quererá dizer. Porque, tal como o título
deste post, acredito agora que as histórias de Amor têm um final triste...
sexta-feira, Junho 06, 2008
Why it's so hard?...
Tive consulta de acompanhamento com o meu médico psiquiatra, depois
das primeiras cirurgias. Falámos sobre várias coisas, sendo que tudo
"empacou" na questão do ter ou não ter um namorado sério/companheiro.
Que é muito importante, para o meu bem-estar emocional e físico, e que,
depois da CRS (Cirurgia de Redesignação de Sexo) será imprescindível ter
uma vida sexual activa, até para a total recuperação.

Isto eu já sabia. Aliás, o meu cirurgião, quando me explicou os


procedimentos de toda a CRS me afirmou e avisou disso. Quanto à parte do
bem-estar psicológico, emocional e físico, também eu já sabia, como
praticamente toda a gente sabe.

A grande questão final foi porque estava eu sozinha. Não lhe dei novidade
nenhuma. Os homens que conheço publicamente ou via internet em nada
são diferentes. Têm um discurso de mais ou menos bom-gosto, mas quando
eu revelo que sou uma mulher Transexual o discurso altera-se totalmente.
Passo de uma mulher como qualquer outra (que é o que sou!) para um
objecto sexual desprovido de emoções. Querem é sexo, e sem qualquer tipo
de compromisso. Revelam o seu pior e mais animalesco lado, de total falta
de respeito e de dignidade para comigo.

Sendo assim, e como não estou minimamente interessada em sexo per si ,


chegamos à conclusão que realmente é muito difícil encontrar um
namorado sério/companheiro. Já escrevi vários posts sobre esta temática,
mas hoje foi realmente um "click" falar nisto com um homem (o meu
psiquiatra/sexólogo) sobre os homens no geral. Curiosamente, o feedback
dele não se afastou muito do meu, e reconheceu que, hoje em dia, parece
que as coisas andam um "pouco invertidas": ou seja, em vez de se iniciar
uma relação naturalmente, sendo que o sexo vem depois e por arrasto, se
faz precisamente o contrário - vai-se para a cama e depois logo se vê se dá
ou não.

Mas fiquei a matutar nas palavras e frases que trocámos. Como não foi
difícil para mim ter uma relação (mais ou menos) séria durante um ano e
tal, e como hoje em dia isso me parece quase impossível. Não há homens
românticos? Não há homens de mente aberta? Não há homens que nos
saibam respeitar e aceitar como somos? Estas são apenas algumas questões
que me fazem pensar a mim, e de certeza, a muitas outras mulheres -
biológicas e Transexuais - que lêem este post.

Apesar de, e ressalvo, seja bem mais difícil para uma mulher Transexual
encontrar um companheiro do que para uma mulher biológica. E, muitas
vezes, quando encontramos "aquele" candidato de "sonho", ele ser ou
casado, ou comprometido com outra, ou (menos grave - risos!) gay.

"I'm old fashioned". Sim, para mim tem que haver um conhecimento mútuo
primeiro, uma amizade que se forma, um "click" quando nos olhamos.
Sexo? O sexo vem depois. Obviamente que o sexo é importante numa
relação amorosa entre duas pessoas. Agora, viver para o sexo? Só pensar
em sexo? Só querer sexo? Isso não faz qualquer sentido para mim.

Sim, porque uma intimidade sexual é relativamente fácil de se criar. Mas e


uma intimidade emocional, inerente e o mais importante em qualquer
relacionamento amoroso? Aí é que reside o problema, e ninguém parece
muito interessado, hoje em dia, em criar laços emocionais com alguém
especial.

Para mim, intimidade emocional é imprescindível. Talvez para a maioria


das pessoas não seja, ou nem sequer pensem nisso. Para mim, o mais
importante são os sentimentos, o sentir. Por isso me pergunto: Why it's so
hard?...
domingo, Junho 08, 2008
As histórias de Amor têm um final triste... Parte 2
Já escrevi sobre o horrível caso que se passou com Calpernia Addams.
Como referi nesse post , o filme sobre essa história infelizmente real,
“Soldier’s Girl”, marcou-me muito, demais.

Fez-me pensar, como também referi, o que eu faria se tal me acontecesse a


mim. Talvez entrasse em depressão profunda e em auto-destruição, quem
sabe? Já sou dada a estados depressivos, logo uma situação limite
emocional poderia provocá-lo facilmente.

Apesar de apenas ter tido alguns namoros, sem nada de sério, houve um que
me marcou muito, demais. Aquele que começou numa tarde de Setembro de
2002, com um homem um ano mais velho, chamado Jorge.

Foi uma coisa super-natural. Conversámos, conhecemo-nos e começámos a


namorar “oficialmente”. As coisas foram evoluindo e eu sentia-me nas
nuvens. Mas, como referi no post anterior, não havia intimidade emocional,
apenas sexual. E eu fui-me ressentindo disso com o tempo, apesar de ele ter
sido sempre honesto comigo (pelo menos nesse sentido) e me ter dito que
não me amava. O problema é que a minha paixão se transformou em amor,
e nos sentimentos ninguém manda.

Os nossos corpos encaixavam na perfeição, aprendi a ter prazer e a sentir-


me sexualmente como a mulher que sou, apesar de Transexual. Pelo menos
algo de bom houve e ficou. Mas o desânimo com a “suposta” relação – falo
assim porque ele tinha vergonha de mim, de sair à rua comigo, de me
apresentar aos amigos, etc. – instalou-se.

E eu entrei em desespero no final do ano seguinte, quase um ano e meio


depois do início do “namoro”. Um belo dia, acordei decidida a acabar com
tudo, apesar de me sentir calma e serena. Fui trabalhar, e liguei à minha
melhor amiga, Eduarda, a despedir-me. Pedi-lhe que não me ligasse, ou que
dissesse fosse a quem fosse o que se passava. Obviamente que não foi o que
ela fez.
Quando saí do trabalho dirigi-me a casa – vivia sozinha na altura. Tomei
alguns calmantes e fiz tudo o mais naturalmente possível, enquanto os
telemóveis não paravam de tocar – desliguei-os. Tinha fome, comi alguma
coisa que gostasse muito. Tomei mais calmantes. Adormeci no sofá, depois
de ter começado a ver duas televisões, duas mesinhas, etc.

Logo a seguir toca a campaínha. Atordoada, levanto-me e arrasto-me até à


porta. Para meu espanto, era ele, o Jorge. Estava com as lágrimas nos olhos
e parecia desesperado, perguntando-me o que eu tinha feito. Com os nervos,
fiquei mais acordada. Tentei explicar o que não tem palavras para ser
descrito. Convenci-o de que não precisava de me levar ao hospital e, com
muito esforço e a ajuda dele, consegui fazer um café MUITO forte. Depois
de duas chávenas grandes e de ter levado com água fria na cabeça e rosto,
comecei a despertar.

Ele ficou comigo até meio da noite. De madrugada, a Eduarda foi ter a
minha casa, para eu não ficar sozinha. Fui trabalhar, como se nada se
tivesse passado. Dois dias depois, ele terminou tudo comigo, magoando-me
o mais que podia com as palavras. Isto foi em 2003.
Passaram quase cinco anos e nunca mais fui a mesma. Entrei em depressão
profunda, que só se revelou no seu esplendor alguns meses mais tarde. Tive
que meter baixa durante dois meses para me recuperar. E aí começou a
minha auto-destruição. Perdi (quase) tudo o que amava, e perdi tudo o que
tinha: casa, trabalho, namorado.

Hoje em dia não sou mais do que um reflexo do que se passou nessa altura.
A auto-destruição é contínua, a auto-estima e o amor-próprio são baixos, e a
tendência depressiva, grande. Vivo porque acho que a vida é uma dádiva.
Vivo porque me foi permitido nascer e viver. Vivo porque hoje sou mais eu
e estou cada vez mais próxima de ser EU fisicamente. Vivo porque o
passado passou, apesar de doer. Vivo apesar de nunca o ter esquecido e não
me esquecer dele. Vivo porque sim. E acho que esta é uma excelente razão!
terça-feira, Julho 08, 2008
Transição? Opção? O quê?

Há uns dias, em conversa telefónica com a minha mãe, ela voltou a tocar
num dos pontos-base da questão da Transexualidade - para ela é uma
"opção" que eu tomei. Assim como será uma "opção" para qualquer outra
mulher ou homem Transexuais. Sim, como se nós escolhêssemos ser assim,
e não nascêssemos com uma identidade de género não correspondente com
o nosso corpo físico.

Voltei, pela milionésima vez, a dizer-lhe que não é opção nenhuma, que ela
sabe muito bem que nasci assim, etc, etc, etc. A resposta foi pragmática:
"Então tinhas-nos dito mais cedo para tomares hormonas masculinas e
ficares "normal", ou então esperavas até nós morrermos. Não era agora que
te havia de ter dado para isso!" Furiosa, respondi-lhe que me bastaram os
DEZ anos em que me castrei e apaguei a mim própria para eles não
sofrerem por eu ser quem sou! Só que um dia já não dá mais! Temos que
dar o grito do "ipiranga" e assumirmo-nos como somos.

Mas é muito triste para mim ouvir este tipo de coisas. Sei que a (muita)
idade deles e a educação que tiveram não ajuda em nada, mas eu não tenho
que pagar por isso. Não deveria pagar. Mas pago. Todos os dias. Não é o
suposto desprezo dos outros que me incomoda. É o dos meus pais,
principalmente o do meu pai, que me magoa. Porque a minha mãe diz estas
coisas, mas apoia-me, ou tenta, à forma dela. Não me despreza. Até me
tenta acarinhar e faz questão que falemos todos os dias ao telemóvel.

Transição. Tentei falar uma vez com a minha mãe sobre a transição. Não
percebeu nada (o que era de esperar), e eu própria dei por mim a gaguejar
em relação ao que é a transição. Uns dizem que a transição começa no
tratamento hormonal e termina depois da Cirurgia de Redesignação de Sexo
(CRS). Outros dizem que a transição começa quando vivemos as 24 horas
no nosso papel de género e pode nunca terminar, caso não façamos a CRS.
Então em que ficamos? Quem não faz a CRS passa o resto da vida em
transição? Mas isto faz algum sentido?

Na minha muito modesta opinião, a minha transição já foi. Começou


quando tive a verdadeira noção da mulher que era e sempre fui e terminou
quando o assumi publicamente, vivendo no meu papel de género todas as
horas do dia. O tratamento hormonal e as cirurgias fazem parte do meu
processo de melhoria de acordo com o que desejo visualmente para mim,
com o que me faz sentir bem, mais eu. Mas já não é uma transição. É um
complemento, apesar de importantíssimo (pelo menos para mim) claro.
Resumindo, cada vez se arranjam mais rótulos e se reformulam os
existentes para, parece, criar mais confusão. Por isso, acho que qualquer dia
deixo, pura e simplesmente, de me "definir" segundo os canônes. Sou uma
mulher e basta. Sou uma mulher, ponto. Transgénero, Transexual, whatever
. Temos que deixar de nos rotular e, acima de tudo, não deixar de forma
alguma que nos rotulem, que nos ponham uma etiqueta na testa.

Sou uma mulher. E chega.


terça-feira, Julho 29, 2008
What the hell is going on?
Supostamente eu não era para estar a postar agora. Tinha uma cirurgia para
fazer, mas um súbito ataque de sinusite mudou-me o esquema todo. Sendo
assim, a cirurgia foi adiada (felizmente não para daqui a muito tempo) e até
lá irei postando sempre que a inspiração e a vontade de escrever me surjam.

E hoje vou "bater nos ceguinhos" outra vez. E também dizer que é "mea
culpa" grande parte desta situação.

Tenho 37 anos, estou quase como sempre desejei ser fisicamente, tenho
saúde e tenho amigos e amigas que me amam, além dos meus pais, que
esses apesar de tudo amam-me incondicionalmente, eu sei.

Então porque não surge na paisagem da pradaria um belo cowboy,


inteligente, sensível, com sentido de humor e honesto e sincero?

Talvez porque ou eu já não estou actualizada e isso não existe (é uma


espécie de homo sapiens sapiens que já deu o que tinha a dar), ou porque os
conceitos deles são outros, e aí eu não estou interessada. Sim, porque se os
conceitos deles de serem românticos é darem-te uma lingerie erótica para a
primeira noite de sexo, então eu sou uma mulher do século XVIII.

Parece que está tudo invertido. Em vez de se começar uma relação por
conversar, tomar café, ir ao cinema, passear, etc, e então, se ambas as partes
se entendem vir o sexo, não, começa-se logo pelo sexo e depois conversa-
se!

É a teoria do "dispara primeiro e pergunta depois".

Claro que é "mea culpa" muitos deles nem sequer se aproximarem muito.
Talvez porque já estou muito escaldada, talvez porque criei defesas
demasiado grandes, talvez porque já antevejo os panoramas, talvez por tudo
isto, ou nada disto. É muito relativo e subjectivo analisarmos sensações de
quando conhecemos alguém e percebermos se está ou não a dar em alguma
coisa. O melhor é não pensar sequer e deixarmo-nos levar. Pelo menos essa
era a minha teoria.

Hoje em dia já não consigo. Então desde que coloquei as próteses mamárias
é que é. Percebe-se perfeitamente o efeito altamente sedutor e sexual dos
seios nos homens. Não é que antigamente (antes de eu ter mamas) não
mostrassem interesse. A grande diferença é que agora o interesse da parte
deles aumentou muito mais, exponencialmente.

Ou seja, eu passei a reduzir-me a uma gaja com mamas. Se antigamente o


meu cérebro já não interessava, agora então... Que tristeza, meus amigos.
Eu tenho seios agora, porque sempre o desejei, apesar de ter tido uma fase
de negação dessa realidade, e desejei-o para me sentir bem, melhor com o
meu corpo. Não para ser mais uma boneca insuflável para vosso bel-prazer.

E, se as mulheres são, em geral, mais discretas nas demonstrações sexuais


que fazem, os homens não o são nada. São as visitas aos perfis a aumentar,
os comentários e mensagens com o eterno "gostava de te conhecer" que
quer, na realidade, dizer "quero fazer sexo contigo", são os assobios na rua,
as "bocas" e por aí fora.

Para a maioria das mulheres biológicas que lerem isto soará estranho, pois
desde sempre estiveram habituadas a este tipo de aproximações. Mas eu
não. Sou uma mulher com seios mais "recente", digamos assim.

Mas, no fundo, nada se alterou. Os homens (pronto, a sua esmagadora


maioria, não quero aqui os poucos ditos "diferentes" a mandar vir) são uma
merda. Já disse que não são todos, mas lamento que por uns levem ou
outros por tabela. E não é só com as mulheres Transexuais que este tipo de
situações e outras piores se passam. É com TODAS as mulheres. TODAS
as que conheço se queixam, Transexuais ou não.

Como já referi, pelos vistos não me adapto mesmo a este "weird" século
XXI num país machista de ideais religiosos judaico-cristãos. Acho que
nesse aspecto sou demasiado romântica, feminista e feminina. Coisa que
muitas mulheres se esquecem de ser. Também e principalmente por
educação e vivência neste buraco de país.
E tudo isto me deprime, ponto. E não, não vou aqui dizer que não vou
escrever mais a "malhar" nos espécimes do sexo masculino. "Malharei"
sempre que se justifique, o que foi agora o caso.

"E, o príncipe encantado? Não, até hoje só sapos..."


terça-feira, Agosto 05, 2008
Eu e o meu Universo
Hoje não me sentia especialmente inspirada por nenhum assunto para
escrever. Por isso mesmo decidi escrever sobre isso mesmo. O que me leva
a escrever, o que me passa pela cabeça, a minha vida neste momento.

O nosso universo somos nós. É como nós perspectivamos o que vemos,


sentimos, os outros, as coisas, etc. E o meu universo sou eu, é feito à minha
medida. Nele entra o meu passado, o meu presente e as minhas ânsias para
o meu futuro.

Essas ânsias é que me fazem mexer, manter-me viva. O desejo de ser mãe
foi uma delas. Digo foi, porque não só nunca pude ser mãe, nem posso,
como não me vejo agora, aos 37 anos, a adoptar uma criança. Diga-se de
passagem que nem devo poder, visto a Transexualidade continuar a ser o
bicho-de-sete-cabeças que é. E também, para agravar, não há pai para a
criança, mesmo que a adopção me fosse permitida. Esse era outro, ou fazia
parte do mesmo sonho. Ter um companheiro que me amasse, respeitasse e
com quem tivesse uma vida estável e depois adoptar um bebé. Mas tal
nunca se proporcionou.

Essa talvez seja a minha frustração número um. Não poder ser mãe
biológica de uma criança. Talvez por isso me tenha dedicado tanto à minha
sobrinha quando ela era pequena. No fundo, eu sentia-me um pouco mãe
dela também, e a não aceitação dela agora, em relação a mim, fere-me
profundamente.

É uma procura eterna. Procuro eternamente o amor da minha vida, como


procuro eternamente o meu bebé, como procuro eternamente sentir-me
feliz, ser aceite por quem amo, renascer mulher de novo.

Faz parte de mim, do meu signo ( G émeos), da minha carta astral. Sou
alguém muito carente, que se sentirá sempre carente e não aceite e que
procurará eternamente o amor e a aceitação. E a realidade é essa, por detrás
das "máscaras" e das defesas.

Não me vejo ao espelho como os outros me vêem. Vejo-me feia, demasiado


magra, demasiado alta, e por aí fora. Sinto-me mais satisfeita agora, ao ver-
me nua e os meus seios surgirem de mim como sempre sonhei. E sei que no
final me sentirei melhor. Mas nunca estarei satisfeita. Porque sou mesmo
assim, demasiado perfeccionista, e porque deveria ter nascido num corpo
biologicamente feminino, não masculino.

Sonho muito. Mas os meus sonhos não estão lá em cima nas nuvens. Estão,
ou poderão vir a estar, aqui em baixo, na terra. Sonho em voltar a ter o meu
espacinho, a minha casinha. Sonho em ter o meu trabalho, só peço que seja
minimamente criativo. E sonho em encontrar a agulha especial no meio do
palheiro, o "meu" homem. São só sonhos, eu sei. Mas, tirando o último, os
outros não são assim tão impossíveis.

Insegura, com falta de amor-próprio e auto-confiança, tímida mas


extrovertida, divertida, carente, inteligente, ingénua... Sou tudo isto e muito
mais. Afinal, eu sou o meu mundo, e este blog faz parte dele. E vocês, que
lêem isto também. Quer gostem, quer não. Quer comentem, quer não. Mas
eu não escrevo só para mim. Escrevo para o "meu" universo. Que é feito de
muitas coisas, de muitas pessoas, de muitas agruras e alegrias.

Escrevo para vocês com muito gosto. Posso ter muitos defeitos, mas
também tenho muitas qualidades. E vocês terão que me aceitar tal e qual
como sou: EU. EU e o meu Universo.
segunda-feira, Agosto 11, 2008
As mamas...

É curioso ver como as pessoas nos "vêem". Até há quase um ano atrás, o
meu tratamento hormonal não tinha surtido efeito no meu peito, e então
coloquei próteses. Depois foi o período de recuperação, e logo a seguir veio
a Primavera e agora o Verão.
Obviamente, agora aproveito para usar (não abusar) do que não podia usar
antes, decotes, tops, etc. Mas sempre discreta, como eu sou e gosto de ser.
De qualquer das formas, começo a reparar que se, antigamente e apesar de
não ter mamas, já era assediada, agora é por demais (pelo menos para mim).

Vou na rua e reparo nos olhares "dirigidos" aquele local, oiço algumas
coisas que nem percebo na maioria das vezes, e bastou-me colocar uma foto
recente nos meus perfis para as visitas e pedidos de amizade dispararem.

Curiosamente, eu própria ainda me estou a adaptar totalmente ao meu novo


peito, visto que não foi crescendo, surgiu quase de repente. Mas não há
dúvidas de que, socialmente, são essencialmente as mamas que fazem de
nós "verdadeiras mulheres".

É o seio materno, é a atracção pelos dois "montinhos" que surgem por


detrás de um decote. Ou seja, passei de alguém, que apesar de ser mulher,
era uma espécie de "misfit", para uma "considerada mulher a sério", e isto
tudo apenas porque tenhos mamas!

Não há dúvida alguma que, podendo não ser assim tão importante para nós
em alguma fase da vida, como mulheres Transexuais, os nossos seios
acabam por nos dar um "estatuto social" de "mulheres". Sim, porque as
mulheres têm peito, sim, porque as mulheres não têm pêlos no rosto, sim,
porque as mulheres têm vagina.

Pois, mas eu continuo a ser muito pragmática nesse aspecto. Não são as
características exteriores que nos fazem ser "a" ou "b", homens ou
mulheres. É aquilo que somos, que sempre sentimos que éramos, que conta.
Eu sempre fui mulher. E coloquei as próteses para me sentir melhor comigo
própria, para me sentir mais eu. Não as coloquei para ser ou "mais mulher"
ou "mais desejável".

Não é, em definitivo uma vagina que faz uma mulher, nem um pénis que
faz um homem. Pensem nisso.
quinta-feira, Agosto 21, 2008
Predadores sexuais
Na nossa vida conhecemos todo o tipo de gente. Seja na net, seja na
realidade, há pessoas para tudo, que procuram tudo, ou nada, umas seres
humanos, outras apenas pessoas. E nesta categoria, nas "apenas pessoas"
estão incluídos os chamados predadores sexuais.

Confesso que nunca tive muita consciência do que eram, de que realmente
existiam, até começar a "viver" a sério. E, hoje em dia, sei que já conheci
vários. O comportamento deles é básico e muito semelhante. São, em geral,
homens relativamente bonitos, com muita conversa, e muita mentira.

Na sua maioria ou são casados ou namoram, e têm uma chamada "vida


paralela". Procuram sexo como eu procuro um cigarro quando não tenho
tabaco em casa. É uma ânsia para eles. E vivem em função disso. Não há
espaço para sentimentos, para envolvimentos. A única coisa que lhes
interessa é sexo.

Ou seja, os predadores sexuais são algo muito idêntico aos viciados em


sexo, apenas com alguns pontos de diferença. E eu tive o "azar" de
"conhecer" dois predadores sexuais nos últimos tempos. Um, não cheguei
sequer a vê-lo ao vivo, bastou uma conversa telefónica de quase uma hora,
para que ele se apercebesse que eu não estou nem aí para sexo por sexo,
flirts , quecas, whatever . E desapareceu sem deixar rasto.

O segundo cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Não diria bem "conhecer",


pois não consigo deslindar o que de verdade e de mentira me contou. Mas
também bastou um encontro em que conversámos no carro dele para
desaparecer sem deixar rasto basicamente. Tal como o primeiro, também o
conheci na net, e este era bem mais "dado" aparentemente que o outro.
Mandou-me 20 e tal sms em dois dias, conversámos no messenger , até que
finalmente nos encontrámos.

Eu estava nervosa e nem me ocorreu que ele seria apenas um predador


sexual. Era muito bonito fisicamente e parecia uma pessoa muito
interessante. Em pouco mais de uma hora, falou bem mais do que eu, o que
diga-se de passagem, é muito difícil! Logo que me disse que tinha que ir
buscar o irmão para o levar a casa, achei estranho.

Mas isso não o impediu de me tentar beijar, ao que eu acedi. Foi um beijo
longo e saboroso. Trocámos alguns carinhos, festas. E fui eu que terminei o
"clima" ao lhe lembrar que tinha que ir buscar o irmão. Dei-lhe um pequeno
beijo e saí do carro. Foi a última vez que o vi.

Ou seja, foi a primeira e última. No fundo, a única coisa que lhe interessava
era uma noite de sexo, ou várias, não sei. Mas não é isso que eu quero e
deixei-o bem claro.
Those are my rules, baby
E, mais uma vez, fiquei deprimida, triste e desiludida. Com ele e comigo.
Comigo essencialmente, porque ainda caio nestas "esparrelas" de pensar
que eles até podem querer algo sério se me conhecerem pessoalmente.

Confesso também, que estava muito renitente em partilhar isto convosco,


pois cada uma de nós sente de maneira diferente e há muitas que dão mais
importância ao sexo que eu. Mas acabei por fazê-lo para alertar quem quiser
ser alertado, que eles andam aí e que podem ser mais predadores do que só
sexuais. O que quero dizer é que podem ser bem perigosos. O que não
faltam são notícias de mulheres Trans (no nosso caso) assassinadas
barbaramente por homens que conheceram na net, por homens que as
procuram no local de trabalho (trabalhadoras sexuais), e inclusivé pelos
próprios companheiros. Sim, minhas queridas, o perigo anda aí, logo
convém termos todas muito cuidado. Quanto a mim, não será tão cedo que
me encontrarei novamente com um homem que tenha conhecido na net.

Somos todas mulheres, tenhamos nascido biologicamente assim ou não, não


se esqueçam disso. E temos a obrigação moral de nos protegermos e
ajudarmos umas às outras. Logo, cuidado, muito cuidado, queridas.
segunda-feira, Outubro 06, 2008
Tlovers e afins
Ultimamente tem havido uma grande discussão sobre a temática dos
Tlovers num grupo do qual eu faço parte no Orkut .

Há quem os considere simples predadores sexuais com um "gostinho


especial" por mulheres trans, há quem os considere uns pervertidos, há
quem os considere gays enrustidos, que disfarçam a sua latente
homossexualidade numa mulher "com algo a mais".
É óbvio que um Tlover não se interessa por uma mulher transexual operada.
Precisamente porque já não tem o "je ne sais quoi" necessário para
despertar a sua líbido. Sendo assim, as "vítimas" desses homens somos
precisamente nós, as que não somos operadas.

Pessoalmente, nunca me dediquei muito ao assunto, pois homens são


homens, e só conseguem pensar com a "cabecinha de baixo", isto quando
pensam. Em geral não é preciso pensar, pois um buraco é sempre um
buraco, como diz uma amiga minha (biológica, por acaso).

Mas ponderando sobre o assunto, chego à conclusão que essa "raça" de


homens que são Tlovers não passam de mais um sub-grupo dos predadores
sexuais. Eu, muito infelizmente, tive o azar de conhecer alguns (poucos)
ultimamente, e eles não querem saber quem nós somos, o que fazemos, o
que pensamos, etc. Só querem sexo e é só nisso que sabem falar. Não há
pachorra, amigas!!!

E eu, muito sinceramente, não estou minimamente interessada em dar-me


seja de que forma for com esse tipo de gente. Com predadores sexuais,
sejam Tlovers ou o raio-que-os-parta. Já estou demasiado cansada de remar
contra a maré e de ter lutado toda a minha vida para ter o direito a ser quem
sou, para hoje em dia me entregar a esse tipo de gentalha.

Sou mulher e é como mulher que eu gostaria de ter um relacionamento


sério, duradouro, feliz. Como acho que todas nós (ou quase) queremos. Não
é possível porque, hoje em dia, eles não estão para isso preferindo sexo por
sexo, temos pena. Não tenho medo da solidão, nunca tive e prefiro estar
sozinha que mal acompanhada.

Tlovers? Homens no geral? Bah. Tudo farinha do mesmo saco. Bah.


quarta-feira, Novembro 05, 2008
Tlovers e afins - Parte 2
Relativamente ao post que escrevi sobre os tlovers e os homens em geral, a
minha querida Femme Fatale enviou-me este comentário, sobre o qual vou
fazer algumas considerações:

" Lara, este teu texto me fez pensar no seguinte: se somos pré-operadas
dificilmente teremos um relacionamento com um homem que não seja T-
Lover, porque hétero não gosta 'daquilo' a mais. Se somos operadas,
caimos na armadilha de não dizer que somos (ou fomos) uma mulher
'diferente', porque podemos com isso trazer estigmas. Enfim, é uma faca de
dois (le)gumes, rarará. Bjs "

Realmente, se não somos operadas (sejamos pré-op ou não-op) não teremos


muitas hipóteses com algum homem que não seja um tlover. Afinal, e como
diz a Femme Fatale e muito bem, temos "aquilo a mais", que é do que os
tlovers gostam mesmo.

Os homens hetero ou fogem ou acham que não deixamos de ser homens


vestidos de mulheres, mesmo que não seja essa a realidade. Eu,
pessoalmente, gosto de homens hetero porque sou hetero, e os tlovers não
fazem parte da lista do que me atrai.

Depois da cirurgia de redesignação de sexo (CRS) temos na realidade essa


"armadilha". Se dizemos que somos mulheres Transexuais, corremos o risco
de pôr tudo a perder, mas se escondemos esse facto, corremos o outro risco,
que é de eles descobrirem mais cedo ou mais tarde. Pessoalmente, eu nunca
esconderia esse facto. Não tenho orgulho em ser Transexual, mas é o que
sou, é como nasci, e quem quiser estar comigo terá que conviver com isso,
sendo eu operada ou não.

Resumindo, nascemos com um estigma e morremos com ele. Por mais que
façamos, que modifiquemos, que tentemos esquecer, há sempre quem
estigmatize, há sempre o estigma. E termino como escreveu a Femme
Fatale: a nossa vida "é uma faca de dois (le)gumes".
quinta-feira, Dezembro 11, 2008
Transmutação
É curioso pensar na minha vida nos últimos oito anos. Foi uma época de
(re)descoberta de mim, de quem sou, do que almejo para mim, do que
desejo no meu íntimo.

Em todas as fases do processo clínico de Transexualidade, a que me está a


custar mais é, sem dúvida, esta fase das cirurgias. Não só porque o meu
corpo mudou, adaptou-se ao que eu sempre quis, mas essencialmente
porque vêm os medos.

O medo da cirurgia, da anestesia, do acordar, das dores. O medo de que


aqueles que amo se afastem, porque as mudanças já são demasiado
evidentes (refiro-me ao peito, obviamente), ou o medo que elas reajam mal
como eu sempre esperei que reagissem.

É uma altura de concretizar aquilo que sempre ansiei. De ser a mulher plena
fisicamente como devia ter nascido. Mas é a altura de me deparar com os
outros medos, que acabam, infelizmente, por se tornarem reais.

E é o medo de lidar com as atitudes de assédio com que nunca me tinha


deparado antes, com as pessoas (especialmente os homens) a repararem no
meu corpo, a fazerem-me sentir desejada de outra forma, que não uma
andrógina.

Parece que só agora sou uma mulher, se afinal sempre o fui. Para mim não
faz sentido, mas para quem não sente como eu, é o mais natural. No início
tinha a noção que eu estava a adorar as mudanças cirurgícas no meu corpo,
agora tenho a noção que não sou só eu que gosto. E confesso que nunca
estive habituada a lidar com assédio sexual.

É tudo mais fácil quando vivemos num limbo andrógino. Torna-se muito
mais difícil lidar com a realidade feminina socialmente aceitável no dia-a-
dia.
Bem, Lara, benvinda ao mundo das mulheres!
quinta-feira, Março 05, 2009
Tristeza Profunda
Estou numa tristeza mais profunda que aquilo que existe de profundo. Ela
galga em mim como uma febre que teima em não passar. É tão grande que
nem um sorriso consigo fazer. Nem um sorriso, nem um esgar
minimamente amistoso.

É uma tristeza do desalento, da falta de esperança. Até agora sempre tentei


ter esperança em algo, ou em mim, mas tudo isso me falha agora. Sou uma
falhada na minha tristeza. Sou uma mulher entre a morte e a vida, entre o
yin e o yang, entre o falhanço e o sucesso. Sou uma mulher triste. Muito.
Infinitamente.

Também sou de uma ingenuidade intensa. Caio em cada buraco que me


abrem debaixo dos pés, sem reparar que estou a cair. Só quando já lá estou é
que me apercebo. E a tristeza vem. E a esperança vai-se. E eu fico só.
Sozinha.

Sou uma mulher infinitamente sozinha, triste e amargurada. Tento lutar


contra tudo isto, mas não consigo. Sou demasiado complacente com os
outros e com o que sinto. Por isso caio. Vezes sem conta. E sem poder lutar
contra isso. Estou sozinha.

Agora resta-me apenas a solidão, a tristeza e a amargura. Nada mais.


Porque eu sou humana, porque eu sou sensível, porque eu sou ingénua.
Queria-me levantar e viver de novo. Mas sei que isso não vai ser possível.
Estou e sou sozinha. Para sempre.

Lara-Infinitamente-Triste

NOTA: Escrevi este pequeno texto em Dezembro de 2005, e decidi voltar a


postá-lo aqui precisamente porque faz todo o sentido de acordo com o meu
presente estado de espírito. A vida, afinal, são ciclos, né?
terça-feira, Abril 14, 2009
Perder...
Começo por pedir desculpa a todas as pessoas que seguem ou visitam o
meu blog, pois ultimamente não tenho postado novidades.

Por um lado porque não há novidades boas, por outro, porque me sentia (e
ainda sinto) um pouco bloqueada para escrever sobre o que tenho sentido e
passado.

Muito se fala sempre no meio trans sobre o que significamos nós para a
nossa família e vice-versa. Há aquelas que foram pura e simplesmente
postas fora de casa pelos próprios pais, e há aquelas que, por sorte ou
whatever , lá arranjam maneira de dar a volta (o meu caso) ou têm uns pais
(ou uma mãe, em geral) muito compreensivos.
Nos últimos tempos, tive medo de perder a minha melhor amiga, Edu,
devido a uma grave tromboflebite na perna direita, que a obrigou a ficar
internada e em tratamento vários dias. Culpa do tratamento hormonal que
nos pode pregar estas partidas, mas essencialmente culpa agravada do
endocrinologista dela, que como pessoa supostamente experiente em
tratamentos hormonais de subsituição, devia saber que são muito agressivos
e perigosos, principalmente quanto mais avançada é a idade. Ela agora já
está em casa, tratada e a recuperar. Mas o susto foi muito grande e chorei
muito com medo de algo mais grave.

12 de Abril, Domingo de Páscoa, e o dia em que a minha sobrinha cumpriu


10 anitos.
Falei com a minha mãe para saber como se ia festejar a data, o que ela ainda
não sabia, visto mal ter falado com o meu irmão (isto porque a minha
cunhada foi nesse dia para o Brasil, em trabalho). Combinei com ela que me
ligaria no próprio dia para me dizer como se iam passar as coisas.
Acordo tarde no Domingo. A minha mãe não tinha ligado. Reparo que
tenho uma sms no telemóvel. Era do meu irmão. Dizia apenas que a minha
mãe lhe tinha dito que eu queria lá ir (a casa) e que não era boa ideia. Caiu-
me tudo, mas finalmente ele tomou uma atitude que eu há muito esperava
dele: mostrou como é preconceituoso, como me odeia pelo que sou, que
tem vergonha de mim, e que acha que tem o direito de me rebaixar em
frente aos outros, como se não fôssemos irmãos e não tivéssemos sequer
sido criados juntos.
Como se não bastasse, de certeza que a minha sobrinha ficou a pensar que
eu é que não quis aparecer nos anos dela, para lhe dar um grande beijo, a
abraçar, e lhe dar um presente digno dos seus 10 anos.

E ontem tive a certeza que a perdi. Fui a casa dos meus pais e ela jantou lá.
Ignorou a minha presença completamente, como se eu não existisse sequer.
Conseguiram o que queriam. Tanto a envenenaram que ela agora reage a
mim sem reacção. Uma espécie de ódio silencioso. Mas não, não me
descarto aqui da minha própria culpa pelo meu afastamento dela também.
Mas esse afastamento deveu-se a me terem pedido para dar tempo, pois ela
estava a reagir mal ao facto de eu ser uma mulher Transexual. E eu dei esse
tempo. Fiz mal. Tenho tantas lágrimas que chorar ainda, que acho que
nunca mais vão acabar.

É incrível como nós, mulheres Transexuais, passamos tão depressa de


bestiais a bestas. E sofremos na pele a discriminação da própria família.
Resta-nos seguir em frente, pois contra factos não há argumentos. Feliz, ou
infelizmente, a vida continua.
terça-feira, Julho 21, 2009
Procurar a felicidade...

Durante praticamente toda a nossa vida mantemo-nos numa busca


incessante pela felicidade, algo que consideramos um "estado" perfeito para
nós.

Só que a felicidade não é, para mim, um "estado", mas sim momentos.


Momentos passados ao lado da pessoa que amas e que te ama (algo que não
sei o que é), ter uma vida estável com um emprego, um lar, uma vida
preenchida. Quem é que não deseja essa tão almejada felicidade?

O problema é que nem toda a gente parece ter direito a ela. Sou uma
Mulher Transexual pré-op (ainda não fiz a cirurgia de redesignação de sexo,
para quem não sabe) e, mesmo aquelas que já a fizeram e já têm os
documentos legais com o nome e género femininos, existe sempre o
estigma.
Ou é o horroroso "shemale" na melhor das hipóteses para as iguais a mim,
ou "a mulher-que-já-foi-um-homem" para as que já se operaram. Nunca
podemos fugir do passado, e esse estigma corta-nos praticamente todas as
hipóteses de sermos (ou termos momentos) felizes.

Os homens vêem-nos sempre da mesma forma, e são praticamente todos


iguais ( no more comments ). E as mulheres biológicas não nos vêem no
mesmo plano que elas. Curiosamente, para aquelas que nascem num corpo
feminino, nós ou somos lindas e concorrência, ou não passamos de
"homens travestidos".

Sendo assim, a própria vida em sociedade nos corta as pernas. E afasta-nos


da tão esperada felicidade.

Se sou feliz? Não, não sou. Porquê? Não me deixam.


segunda-feira, Outubro 12, 2009
Essência

Sei que já há muito tempo que não escrevia. Mas a minha vida não tem
andando fácil (também nunca o foi) e eu estou com uma depressão, o que
também não ajuda.

Tenho sonhado com o que me poderia fazer feliz. Se passar por mais
cirurgias alterará alguma coisa em mim, no sentido de mais bem-estar.
Porque, como eu sempre afirmei, não é um pénis que faz um homem, nem
uma vagina uma mulher. É a nossa Essência que faz de nós o que somos.

E eu nasci com uma essência feminina. Sinto-me e sempre me senti mulher.


E não é uma cirurgia que me vai fazer sentir mais mulher.

Sou uma mulher Transexual. Mas, acima de tudo, sou uma Mulher. E é isso
que me interessa agora e sempre.

Se os outros não me vêem como tal, isso é problema deles. Se um homem


não me aceita porque em vez de ter uma vulva e uma vagina tenho um pénis
e testículos, o problema é dele.
Mas tenho esperança de encontrar um homem que me aceite e respeite
como sou. E que não seja só uma coisa sexual, mas que seja algo mais
profundo que isso. Sim, porque para sexo não é em definitivo difícil
encontrar um. Afinal, eles estão sempre prontos para isso.

Decidi focar-me noutros aspectos da minha vida também, e não só na


complexidade do processo de Transexualidade. Preciso de arranjar trabalho,
tenho que cuidar dos meus pais, e continuar a alimentar as minhas preciosas
amizades.

Sou uma nova mulher. Menos complicada, mais decidida, com objectivos,
mesmo que a curto prazo e que podem parecer pouco importantes para
muitos.

Acho que, finalmente, estou a deixar a minha essência falar por mim. Sem
medos. Sem receios. Com coragem.

Resta-me ir em frente sem olhar para trás


quinta-feira, Fevereiro 04, 2010
À procura...

Há já muito tempo que não vinha aqui postar nada de pessoal. (Tinha
apenas publica do umas notícias que ach ara relevantes e algumas das
últimas fotos. )

2010 não começou da melhor forma, pois 2009 também não foi um bom
ano. Gostava de ser optimista, mas não o sou. Sempre fui pessimista e
negativa. Acho que faz parte de mim. É inerente à minha pele. Mas vou
sobrevivendo como posso, apesar de desejar ou já não estar cá, ou de nunca
ter nascido.

Continuo no meu processo de cirurgias. Parece algo inacabável, também


por culpa minha que tenho adiado cirurgias, pois não me sinto preparada
para passar por mais anestesias, mais pós-operatórios, mais dores. Mas,
apesar disto, sei que tenho que ir em frente. Não me resta outra hipótese.
A minha situação financeira está pior do que nunca, e tenho posto todas as
hipóteses, inclusive de sair de Portugal. A ver vamos o que se vai passar,
mas não posso esperar muito mais. Estou cansada de tanto procurar trabalho
e só levar com as contrárias. Se continuar assim, nada mais me resta do que
me ir embora.

Vim apenas dar um "alô" a quem costuma passar pelo meu cantinho e gosta
de ler o que aqui ponho. Ponho sempre algo de muito meu e lamento que
desta vez não seja positivo.

Até breve.
quarta-feira, Novembro 17, 2010
O estigma e a minha auto-estigmatização
Depois de algumas "décadas" sem postar aqui nada, eis-me de volta com a
brisa do Outono. Aviso já que, como sou uma mocinha nada politicamente
correcta, vou continuar a chamar os bois pelos nomes, e também vou
continuar a escrever português como sempre escrevi, não adaptada ao
chamado "acordo ortográfico".

Agora vamos a um assunto polémico que muito me tem feito pensar


ultimamente, e sobre o qual já postei aqui algumas coisas, apesar de
revestidas de outros factores, ou com outros nomes: afinal, porque somos
nós estigmatizadas, porque o somos mesmo, quem nos estigmatiza, e
porque, muitas vezes, nos auto-estigmatizamos.

O estigma é algo que nos marca desde a nossa nascença. Pelo menos foi
assim no meu caso. Tal como nasci com um sinal particular num dedinho do
pé, o tal do estigma veio junto. Desde criança pequenina que tenho
memórias de ser discriminada (sim, porque o estigma leva à discriminação)
tanto pela minha família próxima, como pela outra família, como pelos
miúdos que brincavam na minha rua, como pelas pessoas que me viam na
rua com a minha mãe.

Havia algo de inatamente feminino em mim que transparecia de tal maneira


que eu nem sequer me apercebia. Mas os outros sim. Quem não sabia,
partia do princípio que eu era uma menina (e era, pois é meus amigos),
quem sabia que eu tinha nascido com genitália masculina gozava-me,
humilhava-me, batia-me, etc, num ciclo sem fim. E nestas pessoas incluem-
se as da família. Obviamente, quem sempre me protegeu mais foi a minha
mãe, mas foi também ela que nunca me deixou libertar do estigma. Não me
deixou esquecer. Mas, se assim fosse, talvez eu não estivesse agora aqui a
escrever sobre isso.

Lembro-me de um episódio curioso, passado no liceu que frequentei até ao


11º ano, o D. Pedro V, em Lisboa. Eu teria uns 14, 15 anos e era vítima
constante e continuada do que hoje em dia se chama de "bullying", mas que
sempre existiu, como todos sabemos, quer sobre vítimas mais "diferentes",
quer sobre os mais fracos e por aí fora. Eu estava num furo entre aulas e
descansava ao sol de uma amena Primavera, sentada num banco
sossegadamente. O principal grupo de rufias que me perseguia
constantemente aproximou-se sem que eu desse por isso. Eu era uma, eles
eram cinco. Nem sei bem como, arrastaram-me para uma zona escondida
por arvoredo (dentro da escola), e o "líder", um puto adolescente loiro e
gordo, quase da minha altura (sim, eu já era bem alta e espigadota nessa
altura) decidiu que me iam despir para ver que sexo é que eu tinha entre as
pernas.

Em pânico e sem poder pedir ajuda, fui tentando afastar as mãos deles do
meu cinto, das minhas calças, do meu corpo. Quatro deles, incluindo o
gordo obviamente, discutiam o que me faziam depois de me despirem. Um,
já com barba e mais tímido, ia pedindo que se afastassem e fugissem, pois
podia aparecer alguém. Conseguiram tirar-me o cinto. Entrei em pânico
enquanto as calças me escorregavam ao longo das ancas. O gordo não
parava de me tocar, enquanto os outros me agarravam. Eu já via o final que
aquilo ia ter. Era óbvio. Mas não. Por algum acaso dos deuses, o barbudo
conseguiu convencê-los, assim que se ouviu o toque para o intervalo.
Poderia, realmente, aparecer alguém. E eu fui, dessa vez, salva pelo gongo.

Porque escrevo sobre isto agora? Porque acho importante que se


compreenda que situações como esta servem para que nos fechemos ainda
mais em nós, que nos auto-estigmatizemos, que nos sintamos mal, ao
contrário do que, supostamente, deveria acontecer. Sim, porque quem
deveria ter sido punido por isto seriam eles, não eu. Mas em última análise,
fui eu que me puni sempre com as desventuras que me foram acontecendo
ao longo da vida. Fui eu que me auto-estigmatizei. E sim, não me considero
uma mulher igual às outras. Sou uma mulher diferente. Sou uma mulher
marcada pelo estigma de ter nascido transexual e de ter que viver e
sobreviver com isso, num mundo que não está preparado para a diferença
em aspecto nenhum.

Vejo os olhares na rua, agora que já vou a caminho dos 40 anos. Vejo as
teorias ridículas e estapafúrdias às quais atribuem a transexualidade. Vejo a
atitude dos tlovers em relação a mim. E tudo isto me estigmatiza ainda
mais.

Circulo muito na net. Como toda a gente que lê este blog sabe, conheci
muitos homens pela net. Com uns tomei café, com um namorei, com outros
tive flirts passageiros. Mas é impressionante a quantidade de preconceito e
pré-conceito que existe na cabeça destes homens e dos outros (aqueles que
só vêem "os bonecos" e não se dão ao trabalho de ler o meu perfil). Para os
tlovers, tudo bem, "fixe que és trans". Na realidade, quando eles se referem
a mim como sendo trans, não é no sentido de mulher transexual, mas sim no
sentido de travesti (homem que se veste de mulher), mas nem eles, em
geral, têm consciência disto. Para os que não lêem, ou não me conhecem de
todo, é incrível como o tom de conversação muda quando eu lhes revelo
que sou transexual. Uma conversa agradável de três horas pode tornar-se
numa pornochanchada de três minutos. E a preocupação é sempre uma:
"mas és operada?", ou então "vais operar-te, não vais?"

O mais ridículo disto tudo é que eles nem sequer sabem se sou operada, ou
o que isso significa: ( meaning : fazer a Cirurgia de Redesignação de Sexo -
CRS ou em inglês - SRS). Não, não sou operada. Sou uma mulher
transexual não-op como os americanos adoram rotular. Ou uma mulher com
mamas e genitália masculina, como escrevem e dizem outros. E depois?
Para esses que não leram o meu perfil, a partir do momento em que eu
refiro a minha transexualidade, passo a ser uma "coisa esquisita",
independentemente de ser operada ou não. Se eu dissesse que sim, mudaria
alguma coisa? Decerto que não, e já tive provas disso, comigo e com outras
mulheres transexuais que se operaram e que, mesmo assim, continuam e
continuarão a ser estigmatizadas.

Porque o fulcro da questão nestas mentes transfóbicas não é a vagina em


vez do pénis. Não! É o facto, de como eles dizem "já teres sido homem".
Mas, muito sinceramente, o que é isto? Já fui homem??? Quando???
Ou o clássico "então és homem". Sou "homem" porquê? Porque o meu
corpo possui características genitais masculinas? Então quer dizer que sou
sempre presa por ter cão e presa por não ter. O estigma está lá. Esta estória
ridícula do foste homem, ou és homem, ou coisa que o valha não faz
qualquer sentido veja-se porque prisma se vir. Só faz sentido em mentes
transfóbicas, que, infelizmente, são a maioria esmagadora, e que estão entre
a nossa própria família.

O meu estigma está cá e estará sempre. Mas eu também me auto-


estigmatizo. Agora, isto não implica que aquilo que eu sou se reduza ao que
tenho entre as pernas. Aliás, não admito que ninguém me reduza a isso. Sou
uma mulher, sei-o e sempre o soube. Sinto-o e sempre o senti. A minha
alma é feminina, não masculina. Sou sensível, inteligente, teimosa e com
mau-feitio e muitas coisas mais. Mas nunca, nunca, me reduzam a um
ridículo esterótipo do que uma mulher deve ou não ser. Como eu afirmei
numa entrevista que dei ao Jornal i, "o sexo está na nossa cabeça, não no
meio das pernas". Afirmei-o e hei-de afirmá-lo sempre. Faço apenas um
reparo, com um acrescento: o nosso sexo e o nosso género. Nestes moldes
sou mulher. E quero ver provarem-me o contrário.
quarta-feira, Janeiro 12, 2011
Ano novo, blog renovado
Costuma dizer-se ano novo, vida nova. No meu caso, como provavelmente
no caso de muito mais pessoas, nada neste ano novo me parece começar
bem. Não sei se este será o último post que escrevo aqui, pois o Lara's
dreaming já não faz sentido para mim, pelo menos nestes moldes.

Depois de um 2010 em que me parecia que muita coisa estava a evoluir


positivamente, eis que me apercebo que nesta vida nada é linear, nem
simples, mas cheio de curvas tortuosas. E tanta, tanta coisa nesta vida não
depende, nem mesmo quando queremos, de nós.

Primeiro, devo aqui destacar algo do qual ainda não tinha escrito, a lei de
identidade de género, que após dura luta foi mais ou menos para a frente.
Mais ou menos, porque depois de muita confusão e entraves no projecto-lei,
o Presidente da República decidiu vetá-la sem uma justificação
minimamente coerente. Obviamente que aqueles que desde o início eram
apologistas de uma lei em que as pessoas transexuais só poderiam alterar
nome e género após a cirurgia de redesignação de sexo, e que inclui
especificamente os médicos que nos tratam e operam, bem como os
partidos de direita, devem ter jubilado com esta decisão do líder da nação,
na esperança de que ainda se consiga dar a volta e colocar lá essa
obrigatoriedade. Triste, muito triste, e que só me envergonha ainda mais de
ser uma cidadã deste país pequenino de tamanho e de mentes.

Curiosamente, e depois de uma dura campanha do lobby gay aquando do


casamento entre pessoas do mesmo sexo, em que até casamentos a fingir e
manifestações houve em frente da A ssembleia da R epública, agora o
silêncio foi quase total. Tirando uma declaração aqui e outra ali, pouco ou
nada foi feito para levar esta lei a bom termo. Uma lei pela qual eu também
lutei e durante muito tempo, mas da estrutura da qual fui afastada, ainda
hoje gostaria de saber porquê. Pelos vistos fui rotulada de ex-activista por
pessoas que têm uma influência que nunca deviam ter e um poder que
nunca lhes deveria ter sido dado. Também, pelos vistos, ter batalhado estes
anos todos por uma sociedade mais digna, onde as pessoas transexuais
tivessem direitos como todos os outros, caiu em saco roto. Vejo agora que
eu ter dado a cara, a voz e a escrita pelas pessoas que sentem como eu não
serviu absolutamente de nada. Serviu para eu ser posta de lado, sem uma
justificação, sem critérios, sem piedade. Muito bem, meus caros, dou-me
por vencida: nunca mais darei a cara, a voz ou a escrita por interesses que
supostamente também seriam os meus, mas que pelos vistos não o são.
Posso ser muita coisa, mas hipócrita não sou, e o vosso cinismo só me
entristeceu porque ainda acreditava que esta era uma luta não de uma
pessoa, mas de todas. Sendo assim, termino aqui e agora, oficialmente, o
meu papel de activista pela causa transexual. Espero que regozijem após
lerem estas linhas.

O Lara's dreaming terminará, ou não, por aqui, isso só o futuro o dirá, mas
deixará de ser um blog de uma activista transexual, para passar a ser um
blog de uma simples mulher que teve o infortúnio de nascer transexual. Já
aqui escrevi sobre o estigma, e ele mantém-se mais vivo do que nunca. Este
passará a ser um local mais pessoal e intimista ainda, com lugar a reflexões
e pensamentos sobre a importância exacerbada que se dá a um corpo,
quando é dentro dele, no nosso coração e alma/mente, que tudo o que
realmente importa se passa.

Obrigada a todos e todas que leram, lêem ou vão lendo o que aqui escrevo.
Podem sempre comentar, enviar textos vossos se assim o desejarem, que eu
vou mesmo fazer os possíveis para que não me tirem o meu último direito:
o de me exprimir e expressar livremente.

Até breve,

Lara Crespo
quarta-feira, Fevereiro 02, 2011
A vida flui como um rio nos meus olhos
Acho piada a como a vida nos vai pregando partidas. Há pessoas que
entram e saem, sempre, ao longo dela, e nós, muitas vezes, ficamos a olhar
quase que sem uma reacção do tipo "espera", "não vás", "que aconteceu?".

Curioso é ver como tudo tem uma fluidez alcalina, passamos pela vida dos
outros sempre com marcas de ambas as partes, mas muitas vezes, só temos
consciência disso anos e anos depois. Encolhemos os ombros e pensamos
"bem, cada um tem a sua vida" e/ou "as circunstâncias da vida separaram-
nos". Pode parecer lógico mas não é, e de racional não tem nada.

Ora, se eu sou amiga de alguém que também é meu amigo, porque é que
por qualquer circunstância da vida, como referi o lugar-comum, essa pessoa
desaparece de vez, sem deixar rasto? O mesmo se aplica aos namorados,
aos irmãos e até aos pais. Parece que seguimos em frente (ou para outro
lado qualquer) quase sem noção da importância de emoções, sentimentos e
tantas trocas que houve com tanta gente.

Não me considero saudosista, mas tenho pena de ter ficado parada a olhar
quando algumas pessoas sairam da minha vida. Como não acredito em
coincidências sei que essas pessoas passaram pela minha vida porque
tinham que passar, mas não sei é o porquê de terem saído. Será que sou
mais uma que anda à procura do "meaning of life" seja lá o que isso for?
Claro que sou. Sou-o como todos nós somos. Toda a gente procura o
sentido da vida de uma forma ou de outra, num olhar ou num odor, numa
luz ou numa sombra.

O meu sentido da vida não sei qual é. Ninguém sabe. Por isso nos
agarramos a tanta coisa e perdemos outra tanta, como referi atrás. Sei
apenas que nasci menina, sempre me senti assim, desde que me lembro, e
que é estranho que os outros nem sempre me tenham visto assim. De
menina passei a adolescente, de adolescente a mulher, sempre a sentir-me
estranha. Mas houve sempre alguém que esteve lá para me indicar algum
caminho. Fui-o trilhando e agora tenho quase 40 anos. Mas estou tão
perdida como quando era uma menina de 5, 6 anos.

Sei que isto não se passa por acaso. Nada é fruto do acaso. Até aquilo que
mais se banaliza hoje em dia, como o sexo, não é fruto do acaso. Porquê
com este e não com aquele? Porquê amanhã e não hoje? Porquê incluído
numa relação e não espontâneo? Mas o sexo nunca é só sexo. Há sempre
mais qualquer coisa, como em tudo na vida. Há troca, há partilha, há
intimidade da mais pura, mesmo quando nos sentimos horríveis e sujas no
dia a seguir. Olha, se calhar foi com este porque tinha que ser! Com isto
quero afirmar que apesar de não acreditar em coincidências e que tudo
acontece por uma razão, acredito igualmente no nosso livre-arbítrio. Nós
podemos sempre, mas sempre escolher ir por aí ou não. Se tivéssemos ido
pelo outro lado, provavelmente o resultado seria diferente, mas será que
isso realmente importa?

Será que o que realmente importa na vida não são precisamente as


experiências que retiramos das nossas escolhas? As impressões indeléveis
de quem passou e passa por nós? Importa é não nos esquecermos, sem ser
saudosistas ou masoquistas, ou lamechas, que tudo isso foi importante, para
o bom e para o mau. As coisas mudam, as pessoas revelam-se. Esta lição
fui-a tirando ao longo da minha vida, principalmente desde que me assumi
como mulher transexual.
Quando temos consciência de nós e temos a noção do que se está a passar,
os outros ressentem-se. E revelam-se. Exigem algo que nós não queremos
dar, como continuarmos com a fantochada de sermos algo que nunca fomos.
E isso cansa. E eu cansei-me. E cansei-me dessas pessoas. E segui o meu
rumo. E só me arrependo de não ter sido mais cedo, bem mais cedo.
Guardei e guardo tudo o que senti de bom e de mau, cheiros intensos,
sabores amargos. E guardo tudo isso porque, em última instância, tudo isso
faz parte de mim. E como diria a outra "I am what I am".
sábado, Abril 09, 2011
Mais uma vez a ignorância

De vez em quando recebo uns emails interessantes, de pessoas


provavelmente interessantes, mas que estragam tudo quando leio mais do
que duas linhas.

O grave nesta estória é que estes homens (são poucas as mulheres que me
escrevem), são tão ignorantes e estupidificados como esta sociedade em que
vivemos.

Exemplos: "respeito a tua opção", "sabes, eu sou heterossexual", "pois, deve


ser interessante ser travesty" ou "és MTF (Male to Female) durante o dia
todo, ou só às vezes?". Bem, é que é com cada "pérola" que cada uma que
guardo na memória é melhor do que as anteriores.
Vamos então um pouco ao bê-á-bá da minha situação, que é de mulher
Transexual. Ser-se Transexual não é nem nunca foi uma "opção": nós
nascemos assim, e mais tarde ou mais cedo assumimos quem somos, não
acordamos um dia e decidimos "Vou ser Transexual!". É uma questão da
nossa identidade de género, que é oposta ao corpo com que nascemos.

Depois vem a eterna confusão e complicação em torno das preferências


sexuais e da Transexualidade. Ser-se heterossexual, bissexual ou
homossexual são preferências sexuais. Ser-se Transexual é ter-se uma
essência oposta ao corpo biológico com que nascemos - Eu nasci com um
corpo biologicamente masculino, mas a minha identidade de género é
feminina - daí o MTF (Male to Female). Logo, sou uma mulher Transexual
heterossexual porque me sinto sexualmente atraída pelo género oposto: leia-
se homens. Entendido? (Não acredito muito, mas a malta vai-se
esforçando).

Agora vem a estória do "travesty". Meus caros, "travesty" não existe. O que
existe é "travesti" sem Y no final, que nada tem a ver com Transexualidade,
mas que estão constantemente a confundir (mais uma vez). Que uma
esmagadora maioria das brasileiras transgénero que vivem em Portugal e
mesmo no Brasil se identifiquem como tal é lá com elas, mas isso nem aqui
nem na China faz sentido. E isto liga-se à teoria do ser-se "Male to Female
o dia todo ou só às vezes". É que a confusão é tão, mas tão grande, que já
quase ninguém se entende.

Vamos por partes. Brasil é Brasil. Portugal é Portugal. Lá elas definem-se


de maneiras que nem lembram ao diabo, provavelmente por causa da falta
de informação (que não se justifica em pleno século XXI) ou por ignorância
simples. Já falei com pessoas que se identificavam como "crossdresser
virando travesti", seja lá o que isso for. Ou seja, na ânsia de tanto rotular as
coisas, rotula-se ou tudo por igual, ou especifi c a-se até ao pormenor, o que
nem uma coisa nem outra fazem algum sentido.

Por causa disto, as pessoas que vivem do travestismo como profissão


(encarnam mulheres num palco, não implicando isto que se sintam
mulheres, o que raramente se sentem) acabaram por se denominar
transformistas, para que não existam confusões. Entendo perfeitamente.
Mas, na realidade aquilo a que assistimos são shows de travesti, uma arte
fantástica, e que nada tem a ver com aquelas pessoas que se denominam
"travestis".

No Brasil, travestis são as mulheres transgénero no geral. No particular,


apenas as que se submetem a uma cirurgia de redesignação de sexo (CRS)
são Transexuais, mesmo que muitas das chamadas "travestis" também o
sejam. Por cá a moda vai pegando de tal forma que qualquer mulher
transgénero e/ou Transexual já é tratada como "travesti".

E ter-se ou não submetido a uma CRS não faz de uma mulher Transexual.
Não é a cirurgia que torna a pessoa em algo. Essa pessoa é e sempre foi
Transexual. E não é por se operar ou não que vai continuar ou deixar de o
ser. A CRS é um meio para atingir um fim, não um fim em si. Ninguém se
torna mais ou menos mulher apenas porque se operou. E não é por não ser
operada, como é o meu caso, que me sinto ou considero menos mulher.
Muito menos admito que me tratem como "travesti" ou de uma forma
inferior às outras mulheres.

Há anos que batalho numa maior informação da população em geral e das


pessoas transgénero e Transexuais em particular. Mas parece que quanto
mais se avança no tempo, mais as mentalidades recuam. Por isso me vi
forçada, mais uma vez, a "bater no ceguinho" e a ex planar algumas das
diferenças entre as coisas.

Acho que se as pessoas se preocupassem mais com a essência e beleza


interior própria e dos outros, todos nos sentiríamos e relacionaríamos muito
melhor. Pensem nisto e até breve.
t erça-feira, Maio 03, 2011
Lavar a alma, parte um

Estou prestes a fazer 40 anos. Há quem diga que um ciclo termina, outro
começa, que é a idade da acalmia, da ternura, da sabedoria, etc, etc, etc.

No meu caso, acho que é realmente o culminar de uma fase, de mais um


ciclo, e começar outro, recomeçando algumas coisas, mantendo outras,
cimentando cada vez mais aquilo que sou, sem deixar de me manter aberta.

Sempre sonhei com o pr í nc i pe encantado, como acredito que todas as


mulheres sonharam um dia (as hetero, obviamente). Mas eu nunca deixei de
acreditar que um dia, hoje, amanhã ou depois ele iria aparecer. Nunca.
Mesmo agora, em que esse cenário se mostra cada vez mais distante, não
consigo deixar de procurar num olhar, numa palavra de alguém, num
indício de deus, vindo sei lá de onde, mesmo que eu não acredite num deus
da forma mais óbvia.

Por isso, para mim, cada relacionamento que tive, cada homem que
conheci, cada um que eu deixei que tocasse no meu corpo, foi nessa
esperança vã de que, num deles, esse pr í nc i pe tivesse incarnado.

Nope. A vida não funciona assim. As pessoas não funcionam assim, e


definitivamente, os homens não funcionam assim. Acho que pelo menos
isso aprendi. Aquilo que para nós mulheres, não é nunca apenas sexo, para
eles é, ou pode ser. É-lhes inato espalharem a sementinha, relacionarem-se
sexualmente com a quantidade maior de fêmeas, mesmo que estas não
sejam o estereótipo tradicional da "fêmea", como é o meu caso.

Para mim, sempre senti o meu corpo como o meu santuário. Algo que só eu
e apenas eu guardava, respeitava e defendia. Confesso que entreguei o meu
corpo a pessoas que nunca mereceriam tal coisa. Arrependi-me de casos
que tive. Chorei por causa disso. Tive raiva de mim. Senti-me suja. Agora
vejo as coisas de outra forma. Vejo que tinha que passar por essa
aprendizagem, por essa violação do meu santuário, para me sentir mais
humana, para sentir que o que eu via, essa imagem do pr í nc i pe em cada
um deles, não existia, que eu fui apenas mais uma, apenas mais um caso,
uma queca, algo sem importância.

Para mim, o sexo nunca foi algo natural no sentido em que a maioria das
pessoas o refere. O sexo para mim sempre foi algo místico, algo quase
sobrenatural, uma experiência única e próxima do divino. Era como eu o
via. A realidade é bem menos romântica. O sexo é hoje em dia banal e está
na moda, parece, andar a dar quecas com os amigos e tal. Não concebo tal
coisa.

Amizade é amizade, e na amizade, por mais profunda e íntima que seja, não
há lugar para sexo. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Eu não
gosto, e tentei nunca misturar as coisas. No dia em que isso aconteceu, há
uns tempos atrás, foi mau. Como seria de esperar a amizade acabou. Talvez
porque nunca tenha havido realmente amizade, apesar de eu achar que sim.
Pelos vistos estava enganada. Tanto nisso, como em muitas outras coisas, às
quais eu chego à conclusão agora.

O pr í nc i pe não existe. Sexo nunca é só sexo - para mim. Amizade é uma


coisa, paixão outra e amor outra ainda. Porra, custou. Custou mas aprendi
alguma coisa. Demorei quase 40 anos a chegar aqui, mas se me for em
breve, irei com muita coisa na alma. Não toda boa, não toda má, mas uma
alma lavada. Se ficar, irei continuar a ser sincera, franca, honesta e directa
como sempre fui. Para o bem e para o mal. Para quem gosta e para quem
não gosta. Eu sou assim, e não tenho vergonha nenhuma disso. Muito antes
pelo contrário.

Muita coisa parece contraditória, e tudo é discutível, não é? Pois é. Eu sou


apenas humana e tenho os meus sentimentos, pensamentos e reflexões. E os
comentários aqui por baixo servem precisamente para isso ( isto refere-se à
caixa de comentar existente no blog ) . Até breve (ou não).

–->Fotografia de Clara Azevedo (Todos os direitos reservados)


sexta-feira, Junho 03, 2011
Lavar a alma: Gisberta e o "bullying"
Ultimamente, não se tem visto outra coisa nos telejornais e em todo o tipo
de média que não casos do recentemente chamado "bullying". Ele é a
rapariga violentamente agredida por duas mais velhas, é o fuzileiro
espancado pelos colegas, é mais uma miúda agredida e colocada dentro de
um contentor de lixo por colegas da escola, enfim, parece que de repente se
acordou para algo há muito adormecido, e que, quer queiram quer não,
sempre existiu.

E o bullying constante e eterno que uma mulher transexual como eu sofre?


Atenção que não estou a menosprezar a importância e gravidade de todos
estes casos e de muitos outros de que não se sabe, mas convém deitar aqui
umas achas para a fogueira, relembrando o infeliz caso de Gisberta Salce
Júnior, mulher transexual tal como eu. E eu penso muitas vezes que no
lugar dela poderia estar eu. E que o bullying que ela sofreu durante três
longos dias e que culminou com a sua trágica morte poderia ter sido
evitado. E que me pode acontecer o mesmo.

Para quem não se lembra, Gisberta foi violentamente agredida por um


grupo de adolescentes, que além da porrada, a violaram, enfiaram-lhe paus
pelo anús, tentaram estrangulá-la, tentaram atear fogo ao seu corpo pois
pensaram que, após três dias de tortura, ela já estava morta, mas como não o
estava, decidiram atirá-la para um poço cheio de água no prédio em
construção onde ela "morava". Gisberta morreu afogada.

Gisberta poderia ter morrido de qualquer uma das doenças que minavam o
seu enfraquecido corpo. Com o HIV veio a tuberculose, a hepatite B, a
fraqueza geral, a incapacidade de reagir. E essa matilha de animais (peço
desculpa por ofender todos os bichos, mas não me ocorre outra palavra)
matou-a sem piedade que ela tantas vezes pediu ao longo dos três longos
dias, e todos escaparam sem uma condenação, pois segundo o auto, "foi a
água que matou Gisberta".

E é neste mundo que vivemos. Gisberta era uma mulher transexual. Talvez
se não o fosse as coisas tivessem sido diferentes. E eu penso no bul l ying
que sofro desde criança. E o futuro assusta-me. Tenho medo de sair sozinha
à rua. Antigamente enfrentava com mais desfaçatez esse medo. Hoje em dia
a minha consciência da verdadeira natureza humana face ao desconhecido
faz-me temer pela minha integridade física.

Não tenho vergonha nenhuma nem pudor em afirmar que é um risco


enorme ter-se o azar de nascer transexual numa sociedade como esta.
Lembro-me de ter uns quatro, cinco anos, e de ir brincar para a rua com
outras crianças da minha idade. Provavelmente por já ter um tipo de
comportamento diferente dos outros meninos, fui selvaticamente espancada
por todos eles, que eram uns cinco, e lembro-me nitidamente que um, em
particular, me deitou as mãos ao pescoço, me fez cair de costas no chão,
arrancou-me carne dos ombros e cara e mordeu-me com toda a força. Não
sei como, consegui fugir, e em lágrimas abracei-me à minha mãe e irmã,
que estavam em casa e me trataram dos ferimentos, enquanto gritavam pela
janela com eles, que zombavam e mim e me chamavam nomes.

E cenas deste género foram-se repetindo ao longo da minha infância e


adolescência. Fui constante e permanentemente vítima de bullying. Isso fez
de mim uma pessoa marcada. Fiquei mais desconfiada, mais fria, mais
insegura, mais medrosa. E isso transformou-me. Não o posso negar. Nunca
me vou sentir como pertencendo a algum sítio ou local. Nunca vou sair para
a rua com total segurança. Nunca me vou sentir eu com toda a força da
palavra "eu".

"Elas não matam, mas moem", já lá diz o antigo ditado. E o que julgava ter
ultrapassado ao longo dos anos deixou marcas. Muitas cicatrizes naquilo
que sou. Mas não me vão pisar mais como o fizeram ao longo de quase toda
a minha vida. Se cheguei aqui, vou-me esforçar por continuar. Mas não
serei a mesma que fui. Não serei. Nunca mais.
quarta-feira, Junho 22, 2011
Lavar a alma: transfobia misógina
Fiz 40 anos há uns dias atrás. Nesta altura tudo me vem à cabeça, desde
memórias distantes de criança, a coisas muito recentes. Fala-se muito
ultimamente sobre outro assunto, a "linda" estória do polícia canadiano que
afirmou que as mulheres "puxam" pela violação ao se vestirem como umas
"sluts" (vadias, putas, ordinárias). Quando li isto, nem podia acreditar que
em pleno século XXI ainda existissem este tipo de mentalidades (pelos
vistos mais comuns do que eu pensava). O que me leva à questão de: quem
é que tem alguma coisa a ver com a forma como me visto, com a forma
como me identifico, quem dá o direito seja a quem for de me julgar?

A obrigação dos outros era respeitar-me acima de tudo, independentemente


de como me visto, do que pareço ou não, como eu os respeito a eles.
Infelizmente, não é num mundo assim que vivemos, e cada dia que passa,
vejo que não pertenço, em definitivo a este mundo, a este planeta.

Se, no caso das mulheres biológicas se põe a questão da constante


misoginia e falta de respeito, comigo, que sou transexual põe-se isso e mais
algumas coisas. E aqui entra o factor que as americanas e brasileiras adoram
esmiuçar, o ser-se ou não "passável". Ou seja, passar-se ou não por uma
mulher biológica.

Obviamente que quem tem dinheiro e está disposta a isso pode sempre fazer
uma Face Feminilization Surgery (Cirurgia de Feminilização Facial), dar
uns retoques com colagénio e botox, raspar a maçã de adão, fazer depilação
definitiva no rosto (laser ou electrólise) e por aí fora. Quem está
desempregada como eu, que não tem fonte de rendimento e que vive de
ajudas, resta-lhe raspar a cara com uma lâmina, porque já não tem sequer
dinheiro para fazer depilação facial com cera. Claro que também não fiz
nenhuma das cirurgias e/ou tratamentos mencionados atrás, o que faz de
mim uma, obviamente "não (ou nunca) passável".

E quase todos os dias em que saio à rua vejo isso. Olham para mim -
curiosamente são mais elas que olham - e gozam, riem-se, mandam umas
bocas. Sim, afinal eu não sou "passável", não nasci biologicamente mulher,
e elas devem sentir-se melhor e mais mulheres por me rebaixarem. E com
eles poucas são as diferenças. Apenas uma: como tenho mamas, sempre
olham mais para aí e desviam a atenção do rosto e pescoço. A transfobia
misógina está instalada, tanto entre eles, como entre elas.

Só que estou farta de ser humilhada, pisada e espezinhada. Fui-o ao longo


da minha vida toda, quase por toda a gente, mas agora chega. E existiram
várias gotas-de-água, sendo que a última foi no dia da marcha do orgulho
LGBT, em Lisboa, quando fui deixar uma amiga ao autocarro, visto que eu
estava doente e não podia ir. De um café junto à paragem, na zona onde eu
nasci, cresci e sempre vivi até há uns anos atrás, uma palhaça de uma
empregadeca de mesa olha para mim, começa a rir-se a bandeiras
despregadas ao mesmo tempo que apontava na minha direcção, o que
chamou de imediato as atenções para mim. Não contente, foi chamando
gente - mulheres e homens que por ali estavam - e numa rua cheia de gente
em pleno sábado à tarde, fui humilhada como há muito não era. Era tudo a
rir, a apontarem para mim, a mandarem bitaites que eu fiz questão de
esquecer.

Calmamente, deixei a minha amiga no autocarro, virei as costas e fui para


casa dos meus pais. Triste e magoada com isto e com outro tipo de
situações que me têm acontecido, desabafei com a minha mãe. Tentando ser
comp r eensiva, porque ela não entende o que eu sou, aconselhou-me a usar
uma "basezita" para disfarçar a marca da barba, e não usar decotes para que
não se note muito o peito. Tadinha, eu compreendo que ela apenas me
queria (e quer) reconfortar e proteger, mas não será nunca assim, nem ela
tem o poder para o fazer, como quando eu era criança. Mas valeu a tua
intenção, mãe.

"Sluts"? Mulheres transexuais "passáveis"? Mas o que é isto? Quer dizer,


não tenho o direito a ser respeitada, a dizer não, a dizer basta? Era só o que
mais faltava! Identifico-me com uma "slut", sei que não sou"passável" nem
bonita, mas não é por isso que não vou continuar a ser eu. Sim, porque é
mais fácil mudarem vocês do que eu! Já chega desta transfobia misógina!
quinta-feira, Agosto 25, 2011
Predadores sexuais - as garras do mal

Há bastante tempo atrás escrevi neste blog sobre os predadores sexuais.


Tema que cada vez mais vem à baila, seja porque eles têm mais formas de
se "espalhar" através das redes sociais, seja por causa do mediatismo de
alguns casos, como o do dito "senhor" que trabalhava (ou trabalha?) numa
estação de televisão nacional, e que, além de pôr idades diversas em cada
perfil que tinha em diferentes redes sociais, foi denunciado por ter tido
relações sexuais com uma miúda de 13 anos.

Quando, na altura, escrevi sobre os predadores sexuais, fui muito atacada


por alguns senhores que fizeram o favor ou de comentar o meu post, ou de
me enviarem emails "elucidativos". Tudo aqueles lugares-comuns do "não
se esqueça de que também existem mulheres predadoras", do "nós (homens)
não somos todos uns tarados", ou do "só vai para a cama connosco quem
quer".
Ora bem, em primeiro lugar, obviamente que também há mulheres
predadoras. Só que elas funcionam de forma diferente, e são bem mais
subtis e inteligentes que os homens predadores. Já me cruzei com algumas
em redes sociais, e elas encaram estas atitudes predatórias como uma
sublimação do "girl power", mais do que uma pura satisfação sensorial.

Em relação aos homens não serem todos uns tarados, concordo. Só são
tarados uns 90 por cento. E ainda por cima são básicos. Na sua maioria.
Não se sabe bem se será da testosterona, mas que são básicos são, o que não
faz, atenção, com que não sejam inteligentes e manipuladores. Já
ultrapassámos aquela ideia antiga do "espalhar a sementinha", e passámos
para a predação pura e dura. Como as situações por que fazem passar a
maioria das mulheres que seduzem com mentiras.

E aqui chegamos ao "só vai para a cama comigo quem quer". Claro. Eu
falei em predadores, não em violadores. Só que as consequências do que
estes homens fazem acabam, muitas vezes, por ser piores do que violações.
Um predador sexual é um mentiroso compulsivo, mas consciente do que
faz. Regra geral é bonito, apresenta-se bem, é extremamente inteligente,
mas denuncia-se ao se mostrar básico.

Quando refiro esta faceta do ser "básico", refiro-me ao mesmo tipo de


conversas, seguidas dos mesmos assuntos, tudo embrulhado num interesse
profundo que tem pela mulher com quem fala. O problema é que estas
mulheres se deixam envolver de verdade e nunca lhes ocorre que tudo, sem
excepção, do que eles lhes contaram acerca deles é absolutamente mentira.

E sim, elas vão para a cama ter sexo com eles porque querem. Porque estão
apaixonadas por algo que não passa de uma ilusão. Porque ele disse que era
solteiro ou divorciado, ou em processo de separação e afinal é casado.
Porque ele é CEO de uma multinacional e não passa de um empregado de
escritório - o que está aqui em causa é a mentira, não uma profissão ser
melhor que a outra. Que quer começar um relacionamento com ela, sendo
que ela não passa de mais uma numa lista infindável de conquistas num
livrinho preto.
E o sonho acaba tão rápido como começou. Elas envolvem-se e querem
mais. Só que o "mais" não existe. Eles não querem mais nada. Nem nunca
quiseram. Elas serviram um pérfido propósito de os satisfazer durante um
bocado. E nada fica. Para elas. São usadas e abusadas e violadas psicológica
e emocionalmente. Principalmente quando descobrem que tudo era mentira.
Que se entregaram a uma personagem e não a uma pessoa.

E eu sei do que falo, pois sou mulher, e apesar de não ter um conhecimento
exaustivo de predadores sexuais, muitos são os que se aproximam de
mulheres transexuais como eu. E também eu já caí nestas armadilhas. Por
isso sou desconfiada, fria e muitas vezes mesmo insensível. Porque quem
cai uma vez, não vai querer de certeza cair duas. Disso vos dou a certeza.

Para as mulheres (não interessa se são biológicas ou transexuais) que me


lêem, muita atenção quando o filme é demasiado bonito. Quando eles vos
dão demasiada atenção. Quando trocam ideias íntimas e pessoais. Quando
sabem muito sobre vocês. Tudo isto são sinais de alerta. Não se deixem ir. É
um poço sem fundo. Sigam a vossa intuição e tentem não ser demasiado
emocionais.

Por isto tudo e muito mais fazem todo o sentido as Slutwalks . Porque nós
somos mulheres e o corpo é nosso. E porque até podíamos querer, mas
agora já não queremos. Não tenham medo, assumam a vossa posição.
Somos seres humanos, pessoas, não objectos.
sexta-feira, Setembro 09, 2011
Poeira dos tempos
Ultimamente tenho pensado muito no meu percurso emocional até à minha
idade actual, os 40 anos.
Fui uma criança alegre, mas não feliz. Fui uma adolescente confundida com
um mundo em que sentia não se encaixar. Fui uma mulher que se travestiu
de homem durante tempo demais. Sou uma mulher madura, o que me traz
alguns benefícios e também grandes inconvenientes, como ver com mais
lucidez todo este percurso de vida até agora.

Sempre fui demasiado dada segundo os padrões sociais a que, pelos vistos,
a esmagadora maioria das pessoas está habituada. Sempre fui carinhosa
com as pessoas, cultivei muito a cultura do toque, coisa que as pessoas
detestam. E eu aprendi isso e muito mais da pior maneira. Com rejeição,
com agressão, com incompreensão.

Acho que todos nós nascemos muito vulneráveis emocionalmente (e não


só). E com a aprendizagem do que, supostamente, está correcto socialmente
lá começamos a enfrentar o mundo. Mas acho que, até aí, fui rebelde. Quis
fazer tudo à minha maneira. Só porque me batiam na rua, na escola, porque
haveria eu de bater de volta? Não percebia na altura. Só porque eu era
carinhosa com alguém de quem gostava, porque é que essa pessoa reagia
mal e me afastava? Seria eu uma melga? Muito provavelmente seria. Mas
uma criança carente não aprende com rejeição como fazer as coisas,
partindo do princípio que são as mais "correctas" politicamente ou não.

As lambadas começaram muito cedo. Quem tem acompanhado este blog já


sabe disso, e para quem acabou de cair aqui de pára-quedas, eu sempre
estive no local errado à hora errada. Aquilo que hoje em dia é chamado de
"bullying" sempre aconteceu, como todos sabemos, e eu não fui uma
excepção, muito antes pelo contrário. Mas pior do que ser maltratada por
quem mal conheces é sentires-te maltratada por quem gostas.

Devido ao meu feitio e à minha personalidade, sempre tive tendência para


agradar aos outros, ser simpática, risonha, meiga, enfim aquelas coisas que
quem me conhece da net nem imaginava que eu poderia ser, e quem me
conhece pessoalmente pode ter, ou não, uma noção de que a Lara é uma
"boa pessoa" ( whatever that means ).

Dei demasiada confiança a toda a gente e paguei bem caro por isso. E este é
o fulcro da questão. Não se pode ser sensível aos olhos dos outros. Não se
pode dar sem pedir nada em troca. Não se pode ser e deixar ser. Não se
pode confiar, porque te vão lixar à primeira hipótese. Porque este mundo
não é feito de pessoas que nasceram "naturalmente boas". Acredito e quero
acreditar que as há, mas a maioria nasceram "naturalmente más". E isso faz
com que eu não possa confiar.

Se hoje em dia criei as defesas que criei, foi graças a um sem número de
factores, desde ao facto de ser altamente discriminada por ser uma mulher
transexual até ter dado demasiada confiança e ter acreditado nas pessoas.
Sim, porque poucas são as pessoas em quem se pode acreditar. Poucas são
aquelas que recebem um simples beijo teu na bochecha com um sorriso.
Poucas são aquelas que te deixam chorar no seu colo quando estás triste.

Desiludida? Sim, estou muito desiludida com as pessoas. Nada de novo.


Desiludi-me cedo, ou melhor dizendo, deixei de me iludir. E os anos
passarem ajudou muito neste processo, porque sejam as outras pessoas A ou
B, mais cedo ou mais tarde revelam-se. E eu estou cá para ver. E já vi muita
coisa. Fui muito magoada, sem razão alguma. Acreditei em quem não
deveria ter acreditado. Fui emocionalmente "sugada" por muitas pessoas
que fazem do mal-estar dos outros o seu desporto favorito.

Sobrevivi. Tenho mazelas, obviamente. Tornei-me numa pessoa


aparentemente diferente. Aprendi a proteger-me às minhas custas, sem
ajuda de ninguém. E, hoje em dia, sei exactamente com quem posso contar
ao meu lado. Já não vou em balelas, e odeio que me passem atestados de
estupidez. Sim, porque eu posso ser muita coisa, mas estúpida não sou de
certeza.

Fui e sou posta de lado só por ser quem sou? "Epá, a gaja tem mau feitio e
tal, e ainda por cima é trans?" Meus amigos, por mim é na boa. Só desejo
ao meu lado quem, na realidade, deseja esse posto. Quanto aos outros,
sinceramente quero lá bem saber. Sejam quem forem.

Se há coisa que a vida me ensinou foi a separar o trigo do joio. E, apesar de


tudo, tenho amigos. E isso é o mais importante, é o que me vai dando forças
para continuar. Há pessoas que nunca deveriam ter nascido, e esse é o meu
caso. Eu não nasci para viver neste mundo. Mas foi assim que aconteceu. E
quando chegar a altura aí vou eu. Com a consciência totalmente tranquila.

E não, não dou o direito a ninguém, absolutamente ninguém, de me julgar


ou opinar sobre mim sem me conhecer. E quando digo conhecer é mesmo
isso "conhecer". Vai mais longe do que ver, do que observar, do que ouvir,
do que ler. É olhar nos meus olhos e saber quem eu sou. Só a esses eu dou
crédito. Quanto aos outros, os cães ladram e a caravana passa.

Com a lucidez da idade vem também esta certeza. Sou, fui e sempre serei a
mesma com a minha verdade, para aqueles que também sempre o foram
para mim. E só esses ficam. O resto é poeira dos tempos na minha memória.
segunda-feira, Outubro 10, 2011
Abraçar os sonhos
Noites turbulentas em que os sonhos transmitem algo de real com a
surrealidade dos mesmos. Penso às vezes em como era bom que, apesar de
tudo, a minha vida fosse mais parecida com os meus sonhos do que com a
realidade.

Pelo menos aquilo a que chamamos realidade. Em que tudo dói, tudo custa,
pouco ou nada se consegue sem sofrimento. A vida em que achamos que
alguém nos ajuda, mas que chegamos à conclusão que afinal estamos
sozinhos. Que a solidão é inerente ao ser humano.

Que ninguém te ajuda sem querer nada em troca. Que, quando podem, te
lixam a vida sem pensar duas vezes. Que te discriminam apenas pelo corpo
que tu tens. Que te tratam com preconceito apenas por seres como és.

Uma realidade em que vês as pessoas de quem gostas adoecerem e


morrerem. Em que vês a tua cara envelhecer no espelho. Em que algo a que
chamam amor não passar de uma palavra sem sentido. Amor não existe.
Não no sentido do enamoramento entre duas pessoas. Existe entre uma mãe
e um filho. Às vezes entre irmãos. Não nos amantes.

O amor é bonito nos livros, nas palavras dos poetas, nas prosas dos
escritores. Esse suposto sentimento só traz sofrimento na vida real. Algo
bem diferente dos poemas de amor. A vida real não é compatível com o
amor. Apenas os sonhos são.

Gostava de adormecer e não acordar mais. Sonhar eternamente. Ser quem


nasci nesta vida eternamente. Sem ter quem me julgasse, maltratasse,
humilhasse, discriminasse. Deixar-me navegar pelas ondas dos sonhos,
abraçar as paisagens oníricas e não ter noção do tempo.

40 anos a lutar e a tentar lutar é muito. Estou muito cansada. Cansada


porque, no final, não sou eu que controlo a minha vida real, são os outros.
Supostamente são eles que decidem quem eu sou ou quem eu deveria ser.
Nos meus sonhos sou eu que decido tudo. Sou eu que pinto as cores do meu
destino, que escolho por que caminho vou. Tudo é suave, irreal, eu sei, mas
bonito. Calmo, respeitador, azul.

A vida real é insuportável. Pelo menos para mim. Não consigo respirar, não
consigo fazê-la fluir. Não consigo que ela me dê o que eu tanto lhe dou.

Quero dormir e sonhar para sempre. Descansar junto das nuvens. Beber os
oceanos. Ser, finalmente, quem eu sou.
domingo, Outubro 14, 2012
Despatologização e reflexões
No próximo Sábado, dia 20 de Outubro, muita gente por este mundo fora
vai lutar pela despatologização da Transexualidade e das Identidades Trans.
Este é o mote que me leva a fazer aqui uma breve reflexão de 41 anos de
vida.

Nasci como nasci e como me sinto: mulher. A única coisa que não
correspondia era o meu corpo. Os "especialistas" na matéria dão muitas
explicações, mas nenhuma certeza, pois ninguém sabe (e duvido que venha
a saber), porque algumas pessoas nascem como eu. O que é que eu acho?
Que é um erro. Nasci errada. Nasci mulher com características físicas que
não devia ter. Se cirurgias e hormonas te ajudam numa vida tão cheia de
preconceito, discriminação e luta? Sim, ajudam, pelo menos aquelas que
são "visíveis", como a mamoplastia no meu caso. Se a cirurgia de
redesignação de sexo muda alguma coisa na tua vida? Para muitas pessoas
muda, para mim duvido que mudasse. Não é pela minha genitália de
nascença que eu me defino, nem nunca senti um desejo de a mudar, ou tive
um sofrimento horrível com essa genitália, como muitas pessoas
transexuais têm. A transexualidade, para mim, é uma questão de essência
acima de tudo, que não joga com o resto. Mas isso não faz de mim, nem de
ninguém, doente.

Tive uma vida triste, apesar de aparentar quase sempre ser uma pessoa
alegre. Acho que era a maneira de dar a volta à questão de me sentir uma
alien neste mundo de sociedades supostamente tão perfeitinhas e tão
certinhas. Aquele é homem, aquela é mulher. Ok, e no meio disso tudo onde
encaixo eu? Encaixo em mim, porque sou única e não sou igual ou parecida
com nenhuma outra mulher, seja em que parte do mundo for. Lá por nunca
me ter aceite plenamente e nunca ter aceite ter nascido como nasci, sempre
senti que tinha que partilhar com outras pessoas o que se passava comigo.
Podia ajudá-las, pensava eu. Vejo, hoje em dia, que foi partilha feita em
vão. E a maior prova disso foi um curso livre dado nas instalações da
UMAR em Lisboa, em que fui convidada a partilhar parte da minha vida.
Fui acusada de me estar a "fazer de vítima", sendo que apenas relatei factos
da minha vida. Não fiz juízos, não dei a minha opinião, apenas contei partes
da minha vida real. É muito grave e de uma burrice e arrogância enorme,
alguém que não me conhece me acusar numa Associação que apoia
mulheres essas sim, vítimas, de me estar a fazer de vítima. E, pelos vistos, a
opinião dessa senhora deve-se ter espalhado, pois certas reacções de
pessoas que eu julgava que me respeitavam, mostraram o maior desrespeito
por mim, pela minha história de vida e por quem sou.

Continua também a eterna dicotomia trans - orientação sexual. Meus caros


leitores, como sabem, ou deviam saber, identidade de género nada tem a ver
com orientação sexual. Identidade de género define-te como ser, como
pessoa, orientação sexual define quem te atrai sexualmente. E aqui entram
as etiquetas. Muito se tem falado em conversas mais privadas, da mania que
as pessoas têm de querer definir e etiquetar tudo. Aquela é trans, mas gosta
de mulheres, o outro é homem mas gosta de homens, aquele é um homem
com mamas e por aí fora. Cada um é como é, por mais cliché que isto seja,
e cada um gosta do que gosta. Não temos que estar a etiquetar tudo duma
forma compulsiva, pois isso só destrói a essência da própria pessoa: deixa
de ser um ser humano, para ser um monte de conjecturas, substantivos e
adjectivos.

Quando fui em 2007 ao programa que Júlia Pinheiro fazia na altura na TVI,
foi-nos questionado (às quatro convidadas trans) quais as nossas orientações
sexuais. Cometi um erro. Defini-me como uma mulher transexual
heterossexual. O erro não está na definição nem na verdade do que disse.
Está que ninguém percebeu nada, nem a própria Júlia Pinheiro, que é uma
querida. Por um lado, porque as pessoas partem do princípio que as trans
são gays - não são, não são homens, são mulheres, por outro lado, porque a
maioria das pessoas deveria e deve pensar ou supôr que sou lésbica ou
bissexual, o que não corresponde de todo à verdade.

Resumindo, a minha pessoa é mulher, e gosto, sinto-me atraída,


exclusivamente por homens. Pelos vistos há quem se sinto ofendido ou
ofendida pessoalmente com isto, vá-se lá saber porquê, mas é assim, e
assim terão que me aceitar. Como costumo dizer, quem não gosta, põe à
borda do prato. Ou seja, retirando as etiquetas, é isso que eu sou. Chego aos
41 anos triste, infeliz, incompleta. Pensei que isto seria a crise dos 40 até
que me apercebi que sempre me senti assim. E nada vai mudar isso. Agora
a tal senhora e amigas já podem afirmar que eu me faço de vítima. Gostava
era que elas tivessem nascido como eu nasci e tivessem passado por tudo o
que passei até hoje, para ver a "endurance" delas. Pelo menos eu assumo as
minhas tristezas e fraquezas, não me escondo acusando os outros.

Sei que não viverei muito mais e que o meu "trabalho" neste mundo que
conheço está praticamente feito. Luto e lutarei até ao fim para que não nos
considerem doentes seja mentais, seja de que tipo for, e que nos deixem ser,
apenas isso. No fundo não queremos mais nada a não ser sermos nós sem
preconceitos, discriminações e merdas do género. Não nos continuem a pôr
mais uma etiqueta. Deixem-nos ser pessoas como as outras, que é isso que
nós somos.

E no próximo dia 20 de Outubro, lutemos para que nos "despatologizem".


terça-feira, Dezembro 04, 2012
O que os outros esperam de ti
O que se passa quando supostamente tu não correspondes ao que os outros
esperam de ti.
Nasci. Não devia ter nascido, mas lá aconteceu. Depois fui crescendo como
uma criança inadaptada, pois aquilo que os meus pais esperavam de mim
não era aquilo que eu lhes dava.
Queriam um filho, um rapazinho, e eu não era filho, era filha e comportava-
me em tudo menos como um rapazinho. A reacção deles era má, péssima.
Ter uma criança que é socialmente diferente das outras não deve ser fácil de
entender, compreendo. Mas não tinha culpa. Eu era como era e não sabia
nem podia agir de outra forma.

Na adolescência foi o pesadelo. O corpo que era andrógino começou a


mudar. Os pêlos a nascer, o peito que não crescia, e aquela genitália, a que
estava habituada, continuava lá. No fundo, acho que tinha a esperança que
aquilo caísse ou algo do género quando o meu corpo mudasse. Só que não
mudou para o que eu queria.
E, no meio destas confusões internas, o preconceito e a discriminação
daqueles que me rodeavam e que já viam em mim aquilo que eu ainda não
tinha consciencializado. Sofri horrores na porcaria de liceu onde fui parar,
os poucos que estavam próximos de mim foram-se afastando para eles
próprios não serem discriminados. Esperavam de mim um rapazinho (para
variar) menos andrógino na forma de ser e estar e calhou-lhes uma pessoa
indefinida no aparente ser e de modos efeminados. Que vergonha!

Já na idade adulta tive a perfeita noção de quem era e do que esperavam de


mim. E era exactamente o mesmo que na minha infância e adolescência. Só
que aí eu já podia dizer uma palavra. E disse. Não só uma, mas várias.
Áqueles que esperavam de mim um gay, mostrei-lhes por A mais B que isso
não era possível, pois eu não era, nem nunca tinha sido, um homem.
Áqueles que esperavam de mim uma pessoa feliz e contente, mostrei-lhes
que eu não era assim e nunca seria, pois não vejo onde pode estar a
felicidade ou alegria de ter nascido de uma forma errada. Áqueles que
achavam que cirurgias, hormonas e a cirurgia de redesignação sexual me
mudaria, mostrei-lhes que não, nunca, pois era eu que estaria dentro deste
corpo, sempre. E que a minha essência como mulher é aquilo que interessa
(ou deveria interessar) aos outros, e não se tenho ou não mamas e se em vez
de um pénis tenho uma neovagina.

É que no fundo, tudo se resume áquilo que tens no meio das pernas (e não
me refiro aos joelhos). Em vez de seres vista como uma pessoa, és vista
como algo indefinido e que só se define se souberem que genitália tens.
Que disparate tão grande! Com este tipo de experiências de conversa e
relações falhadas, além do péssimo ambiente familiar, cheguei à conclusão
que a fonte está toda naquilo que és, não no que aparentas ser, apesar da
suposta concordância da maioria de que assim é. Mas na realidade não é. As
pessoas julgam-te pelo que vêem, não pelo que conhecem de ti. Aliás, na
maioria das vezes nem sequer lhes interessa conhecer, quando se apercebem
que tu és trans.

A transfobia, o medo que as pessoas sentem deste suposto desconhecido é


tal, que preferem ofender-te ou maltratar-te a tentar conhecer-te. E não é
trocando um pénis por uma neovagina que isto muda. Basta ver os casos de
tantas mulheres transexuais operadas que são figuras públicas por esse
mundo fora, que nunca, mas nunca se livram do eterno estigma. Não
interessa se elas anatomicamente são iguais a qualquer mulher cissexual
(não trans) . O que interessa, como costuma dizer este bando de
energúmenos é que "ela era homem". Pois, só que ela nunca foi homem.
Mas entender isto e fazer passar a mensagem não funciona. A ignorância
parece que se pega, e acho que muita gente faz gala em ser ignorante. É
mais fácil assim.

É como é mais fácil dares-te com uma pessoa que, além de mulher, é
transexual e vive bem com isso, anda sempre alegre e contente, como se o
mundo fosse cor-de-rosa e a maioria esmagadora das pessoas fosse
maravilhosa. Sim, é bem mais complicado falar e conhecer uma pessoa que,
por acaso é mulher e transexual, e que não vive feliz e contente, e que tem
perfeita noção da porcaria que por aí anda e que reage, pensa e, ainda por
cima, é uma pessoa depressiva. E que não gosta que lhe passem atestados
de estupidez, responde à altura a provocações e batalha por aquilo que quer.
Ou seja, e para resumir, nunca correspondi ao que esperavam de mim, nem
correspondo. Mas não é por aí que vou. Vou pelo caminho de poder ser eu
própria, triste, alegre, lúcida, incongruente, depressiva, bem-disposta e por
aí fora.
Sinceramente, estou-me a borrifar para aquilo que os outros esperam de
mim. Julgam-me sem me conhecer e sem me ouvir, não me aceitam como
sou, discriminam-me diariamente. Reagem a mim como estão habituados a
reagir com os animais do zoo ou do circo. Só que eu não sou nem um
bichinho, nem sou igual a ninguém. E, sinceramente, prefiro estar só, a estar
acompanhada apenas para não estar (fisicamente) sozinha.

Só há uma pessoa a quem tens que agradar neste mundo. E essa pessoa és
tu. Não te iludas com os outros, vive a tua vida e age de acordo contigo, não
com o que os outros esperam de ti. Porque, se seguires o caminho que os
outros te indicam, nunca serás tu.
Por isso mesmo, e porque segui o caminho que quis para mim, só me
arrependo das poucas alturas em que não o fiz. E se sou agressiva, fria,
triste, depressiva e tantas coisas agradáveis que me estão conotadas por
pessoas que nem me conhecem, isso só se deve a mim e assumo-o com todo
o gosto.

Nasci como nasci. Ninguém teve culpa. Agora sobrevivo a isso como
posso. Mas não me venham é culpar a mim!
segunda-feira, Dezembro 10, 2012
Amizade é...
Sentimentos e emoções são coisas distintas, mas que apesar de tudo se
tocam.
Cada um de nós terá as suas próprias definições e convicções em relação ao
que é um sentimento ou uma emoção. E a amizade o que é, hoje em dia?

Eu sempre vi a amizade como uma união empática entre duas pessoas.


Sempre separei as relações entre conhecidos, mais que conhecidos e
amigos. E neste restrito grupo acumulam-se as vivências, sentimentos e
emoções de duas pessoas - eu e o outro.

Sempre vi e vejo a amizade como uma relação que pode ir de uma empatia
emocional e racional que se prolonga durante anos, a uma empatia
intelectual que dá aquelas conversas que duram uma noite toda sentados no
sofá com uma chávena de café bem quente.

Nunca misturei amizade com outras coisas. Amizade pode ser uma forma
de amor, como em geral se refere, mas como não acredito que o verdadeiro
amor exista, acho que a amizade vale por si como um sentimento em que
nós escolhemos alguém e alguém nos escolhe. Uma espécie de "segunda"
família, visto que a biológica nós não escolhemos. Mas nunca, nunca
misturei amizade com "amor" ou sexo.

E aquilo que mais é banal hoje em dia, as supostas amizades coloridas, seja
lá isso o que for, não encaixam no meu perfil de ser humano e de mulher.
Uma amizade em que entra sexo deixa de ser uma amizade para mim. Passa
para outro patamar. Um patamar em que a pureza da amizade verdadeira
passa a ser conspurcada por factores que nada têm a ver com isso, como o
ciúme, a confusão entre "somos só amigos, ou não?" e por aí fora.

Também tenho perfeita noção que hoje em dia tudo é descartável e qualquer
macaco diz que quer ser meu "amigo" como se bebesse um copo de água, e
como se a amizade nascesse de geração espontânea. Como se uma
verdadeira amizade não fosse uma escolha de ambos, algo construído com
bases sólidas, em que empatia e respeito são valores básicos.

O busílis da questão é que (quase) toda a gente quer "amigos" porque


supostamente vai ganhar alguma coisa com isso. Há interesse, não no
sentido da pessoa, mas no sentido de sugar o outro da forma que puder.
Interesse no seu pior lado, revestido de cinismo e segundas intenções. Por
isso, hoje em dia, a amizade é uma palavra banalizada até ao lixo. Qualquer
um se diz amigo do outro, e no fundo nem sequer se conhecem. Reina o
interesse de ser "amigo" do outro.
Lamento, mas não concebo para mim, na minha vida, "amigos" (leia-se
homens e mulheres) que nem sequer conheço. Pessoas que passam pela
minha vida sem deixar marca e desaparecem. Não, para mim não. Para
mim, amigos são aqueles que estão comigo. São aqueles que escolhi e me
escolheram, que eu conheço e me conhecem, de quem eu me lembro
quando estou triste e a quem telefono a contar quando estou feliz. São
aquelas pessoas com quem compartilho a minha vida porque quero, com
quem troco o mais importante de mim: os meus sentimentos e as minhas
emoções. Que conhecem o meu lado mais doce e o meu lado mais negro.
Que não têm vergonha de estarem comigo numa esplanada quando tudo
olha e comenta, e até têm orgulho nisso.

Conhecidos tenho muitos. Mais que conhecidos, alguns. Amigos tenho


menos que os dedos de uma das minhas mãos. São a minha família
adoptada, os especiais para mim. E são eles que me ajudam a suportar o
dia-a-dia, a sobreviver, a respirar. E a amizade, para mim, é isso. Não é
travestir sexo com outro nome, ou fazer o mesmo com interesses obscuros.
A amizade é única e pura. E cada amigo que já perdi neste mundo, fez-me
desmoronar, morreu com cada um deles um bocadinho de mim. Mas a
memória dos momentos que vivemos juntos dá-me força e ajuda-me a
continuar.

Ah, já agora agradeço, visto que sou "antiga", que alguém se digne a
explicar-me tintin-por-tintin o que é "amizade colorida" e coisas afins.
Obrigada.
sábado, Dezembro 22, 2012
Ninguém suporta a verdade
Num momento em que um ano termina e já está aí a chegar outro, confesso
que vários assuntos me passam pela cabeça e sobre os quais quero e hei-de
escrever.
Mas há um que me tem "martelado" a cabeça desde há bastante tempo e que
tem a ver com sinceridade e honestidade, mais concretamente com o facto
de dizeres ou não a verdade, independentemente das consequências.

Exemplo: conheces alguém e vais-te apercebendo das qualidades e defeitos


dessa pessoa, e de que essa pessoa poderia e provavelmente deveria limar
muitas das arestas que possui. Será que deves dizer-lhe o que achas? Será
que deves omitir o que pensas e sentes, apesar de isso te perturbar?

Eu confesso que tenho um grande defeito: sou sincera e digo aquilo que
acho que devo dizer, e que considero ser uma verdade para mim. Resultado:
as pessoas ficam chocadas, ofendidas, melindradas, porque, no fundo,
ninguém gosta da verdade, ninguém a quer enfrentar, ninguém quer lidar
com ela.

Podia facilmente encontrar aqui "n" exemplos de situações e explicar


porque não se deve dizer a verdade, ser sincera, com as pessoas.
Mas vou dar apenas mais um. Tu és uma pessoa com qualidades e defeitos
como qualquer outra, mas tens noção dos teus handicaps e quando
conheces alguém que não seja apenas um conhecimento de passagem,
decides abrir-te e seres tu a contar a verdade. Errado. Totalmente errado.

Não podes, nem deves nunca, mas nunca ser sincera. Mesmo neste último
exemplo em que és tu que dizes a verdade sobre ti, em que és sincera sobre
ti. Em que és honesta. Pois é, amiga, acabaste de estragar tudo. A pessoa vai
entender isso como fraqueza, falta de amor-próprio, falta de auto-confiança
tua, e vai-se afastar.

Ninguém suporta a verdade, mesmo que seja a verdade dos outros.


Ou seja, num mundo em que tudo é encenado, não deixamos nunca de ser
actrizes e actores de farsas que nos obrigam a representar. Afinal, foi assim
que fomos educados. A representar numa sociedade em que tudo é falso.
Talvez por ter nascido como nasci, transexual, e ter passado pelas
experiências que passei me tenha ajudado a destruir grande parte desse
super-ego, dessa censura, e me tenha tornado "desbocada" para a maioria
esmagadora das pessoas. Eu encaro isso como ser verdadeira e honesta.

Mas não há dúvida que para sobreviveres e conseguires o que queres na


vida tens que mentir, omitir, falsear e representar algo que não és.
Lamento, mas eu não sou capaz, eu não sou assim. Se calhar por isso me
isolei, porque não suporto duplas-faces e se quisesse continuar a representar
tinha ido para actriz a sério.

Esta é apenas uma pequena reflexão. Vou tentar deixar mais algumas por
aqui nos próximos tempos. Sempre me ajuda e pode ser que ajude alguém a
ver-se reflectido neste espelho que eu (também) sou.
domingo, Maio 05, 2013
Amar e cuidar
Quando te olhas ao espelho vês o quê? Aquilo que realmente tu és, ou
aquilo que tu gostavas de ser? Ou ainda uma imagem do que pensas que os
outros vêem?
Eu, quando me olho ao espelho não vejo, em absoluto aquilo que os outros
vêem. Vejo-me como algo de amorfo, diferente e igual todos os dias,
moldado pelos humores, pelos amores, pelas vicissitudes, pela tristeza.

E cada vez mais se utiliza a palavra amor em vão. Amor serve para tudo,
um bocado como a amizade de que já escrevi aqui. Tudo é amor e faz-se
tudo pelo amor. Agora até se "faz o amor", como dizia o outro. Mas amor,
amor, quem já sentiu? Ou será que todos nós já o sentimos? É um
complemento indispensável à sensação de felicidade ou não? E tudo
começa no amor por nós próprios.

Eu nunca tive grande amor-próprio. Nunca me amei o suficiente. Dediquei


o amor que sentia pelos outros a cuidar deles, a ser para eles. Nunca a
cuidar de mim ou a ser eu própria. Mesmo agora, passados tantos anos
desde que me assumi como mulher transexual, continuo a viver desse amor
que dou aos outros, não e nunca a mim. Não, não é uma questão de
altruísmo. É uma questão de pura e simplesmente não me saber amar. E não
me saber amar o suficiente.
Amei e amo de formas diferentes. Como todos nós em relação a cada um
dos outros. Amo a minha mãe de uma forma, o meu pai de outra, e cada um
dos poucos amigos de uma forma única e particular. Porque únicos e
particulares somos todos nós. E quer eu queira quer não, eu também sou
única e particular. E é essa a imagem que eu vejo no espelho. Desgastada,
triste, infeliz, mas que ainda ama.

Infelizmente, nós não podemos nunca escolher como vamos nascer. Se


assim ou assado, se com uma personalidade a ou b, se bonitos ou feios, se
bons ou maus. Eu, se pudesse ter tido uma pequena hipótese de escolher
como queria nascer, teria escolhido o oposto do que sou. Talvez assim a
minha vida tivesse sido diferente, talvez eu me tivesse amado a mim própria
desde sempre, talvez, talvez, talvez.

Mas não. Calhou-me nascer assim, numa forma com a qual não me
identifico e com a qual as pessoas que amo lidam mal. Ou não lidam, ponto.
No fundo, andamos (eu e os outros perto de mim), todos a fazer o papel que
está tudo bem, mas não, não está tudo bem. Nunca esteve e parece que irá
ficar sempre ainda pior.

Mas não deixo de os amar e cuidar deles. "Devias cuidar de ti", já me


disseram várias vezes. Provavelmente devia. Mas a única forma de cuidar
de mim, que eu sei, é cuidar de quem amo.

---> Fotografia de Inês Torres da Silva


domingo, Junho 02, 2013
Escrever os sentimentos
O que fazer quando se chega a um ponto da vida em que nos apercebemos
com uma nitidez cristalina que falhámos em quase tudo?
O que fazer quando vemos que estamos, agora, mais sós do que há anos
atrás?
Que o isolamento se tornou o nosso companheiro do dia-a-dia e que não há
esperança para o amanhã?
Que aqueles de quem gostámos a sério nunca retribuiram o nosso
sentimento?

Sentir que se chegou ao fim da linha, ao ponto de não-retorno é estranho.


Porque as nossas escolhas e opções nos levaram a um caminho que não se
bifurca.
Quando falo em escolhas e opções não falo em ser quem sou. Eu sou quem
sou porque nasci assim, não porque o escolhi ou optei por o ser.
Ninguém escolhe ou opta por ser. Apenas o é.

E ninguém, digo eu, se sente feliz por ter nascido transexual. Por ter
nascido num corpo que não deveria ser esse que tem. E isto não implica
cirurgias. Implica aprendermos a con(viver) o melhor possível com o
material físico e biológico que temos.
Mas a tristeza é grande e permanece. Desde criança que sinto que há algo
que não está bem. Nunca percebi é se é comigo ou com o mundo.

Se calhar é com os dois. E por mais que eu tente explicar ou fazer passar a
mensagem do que sinto, cai inevitavelmente em saco roto. Ninguém
entende, nem tenta entender. Acham, aqueles que se dizem mais "abertos",
"normal". O problema é que a normalidade não existe e toda a gente tinha a
obrigação de o saber e de o apreender.

Não sou "normal" nem quero ser. Sou como sou. E, para mim, isso deveria
bastar. Mas não basta. E pé ante pé cheguei ao ponto de não-retorno.
Olho-me ao espelho e vejo alguém que conheço mas que nunca imaginei
assim com esta idade. Vejo, agora, a tristeza no olhar, e a sensação de
impotência perante essas "verdades" que me esmagam.
Estou sozinha. Aliás, sempre estive. Desde que nasci. Fiz uma vida paralela
a este mundo, na ilusão de que conseguisse, um dia, ser feliz.

Não tive essa sorte. Talvez porque a vida não é feita só por nós, é feita pelos
que nos rodeiam e por todas as situações que são criadas à nossa volta.
Sinto raiva. Raiva de mim por ter falhado, por ter tomado tantas decisões
erradas e as aceitar placidamente. Decisões que se transformaram num dia-
a-dia de tristeza. Isolamento.

Não quero ir lá para fora. O único sítio onde me sinto minimamente bem é
na minha zona de conforto. No meu ninho emocional, junto das minhas
coisas, num pequeno espaço psicológico. Não faz sentido, para mim, o que
se passa lá fora. Não faz sentido a crueldade das pessoas, principalmente
das que estão perto de mim. Não faz sentido expor-me a situações que me
são desagradáveis, como tomar um café num local em que tudo se calou
quando entrei e ficou estarrecido a olhar para mim.

Este mundo pode ser teu, vosso. Meu não é. É insuportável e insustentável
ver passar as coisas à minha frente e não poder fazer nada. Ter conversas
vagas, vazias e repetitivas na internet e sair mais triste com a natureza
humana do que já estava. As pessoas não nascem boazinhas. As pessoas
não são boazinhas. As pessoas são do mais frio e cruel que existe. E só
sabem destruir tudo o que têm à volta, principalmente aquilo que dizem que
amam. Mas alguém sabe o que é realmente o amor?

Duvido. Nunca senti que alguém me amasse. Não sei se já amei.


Mas não me posso esquecer que eu não sou "normal", portanto não tenho o
direito a ser amada. Era só o que faltava. Se respeito é pouco, amor é zero.

Deixo aqui estes pequenos pensamentos e reflexões, que provavelmente


serão a última coisa que escrevo. Quando fizer a viagem para fora deste
mundo, há uma coisa que não vou sentir: saudade.
Fotografia de Inês Torres da Silva
quarta-feira, Julho 10, 2013
Os homens são de Marte, as mulheres são de Vénus
Numa vida em que eu tive que refazer e aprender tanta coisa, é triste chegar
aos 42 anos e chegar à conclusão que, na realidade, os homens são de Marte
e as mulheres de Vénus.

Fartei-me de ter conversas daquelas em que os homens diziam (e dizem)


que não entendem as mulheres, que não percebem o que elas querem, que
não lhes apetece falar dos assuntos que elas falam e todo aquele bla, bla, bla
que conhecemos.

Sim, porque antes de me assumir como mulher publicamente, tive que


andar refundida durante metade da minha vida numas vestes e num papel de
género que não me correspondia e tinha que levar com as verborreias
mentais de muito suposto macho que anda por aí.
E, como repararam comecei com um cliché do mais cliché que há. Mas, na
realidade, ao vivermos apercebemo-nos que as pessoas reproduzem os
clichés, aprendem e apreendem os clichés e reproduzem-nos, como se fosse
algo que lhes estivesse no ADN.

As mulheres são assim, os homens são assado, as mulheres fazem isto, os


homens não. E mesmo sendo activista, feminista, transexual e mulher,
acabo por me aperceber que eu própria reproduzo muitos destes clichés do
papel de género feminino que me foram incutidos. E sinto-me estúpida e
ridícula quando me apercebo.

"Bem, tenho que ser feminina, porque sou mulher". O que é que isto quer
dizer? O que é ser feminina? O que eu considero ser feminino
provavelmente não é o mesmo que outra ou outro considere. Eu tenho
padrões (subjectivos, confesso) do que é ser feminino e masculino, mas
apercebo-me que a maioria das pessoas tem conceitos estáticos, são
pragmáticos em relação à feminilidade e masculinidade.

E então se eu for uma mulher trans? Aí é que a porca torce o rabo. Ao longo
dos anos fui vendo que as mulheres trans exacerbam, ou têm tendência para
isso, os traços femininos (ou supostamente femininos) em todas as suas
vertentes. É plástica para cá é silicone para lá, é roupas exageradamente
reduzidas, como se para sermos vistas como mulheres temos que usar
roupas que as próprias mulheres biológicas raramente usam e por aí fora. Se
as estou a julgar? Estou e não estou. Não as critico pejorativamente.
Estamos em sociedades (não me refiro só à portuguesa) em que nos são
exigidos papéis de género como definições daquilo que somos.

E devido a mais este cliché, aquelas mulheres trans que não encaixam neste
perfil são postas de parte. E eu não encaixo no cliché básico da mulher
trans. E sou discriminada por isso. Sou presa por ter cão e presa por não ter.
Tanto sou tratada como homem com mamas, como sou tratada como "meio-
andrógina", seja lá o que essas coisas são. Não faço parte do cliché, nem
quero fazer. Sou como sou, tento conviver o melhor possível com o meu
corpo, mas recuso-me a transformar-me em algo que eu olhe ao espelho e
não me identifique.
Mas as mulheres (trans e bio) não entendem isso. Muito menos os homens,
sempre tão ligados aos lugares-comuns dos papéis sociais e de género.
Então para eles, ser-se trans é quase uma mistura entre uma Barbie humana
e uma Angelina Jolie. As mulheres trans têm que ser lindas, deslumbrantes,
siliconadas, que usem todas tops e mini-saias e saltos-altos agulha. Ridículo
no mínimo.

Se não te encaixas aí, minha amiga, estás mal. Ou não te preocupas com
isso e tens esperança de encontrar algum "iluminado" que se interesse por ti
por quem és e não pelo que aparentas ser, ou investes milhares de euros na
tua imagem para depois conseguires umas quecas secas com todos os
homens que encontrares e te apetecer.

Eu sei, eu sei, homens e mulheres supostamente são diferentes


hormonalmente e por aí fora. Mas se não se pusessem as pessoas em
caixinhas herméticas, talvez vivêssemos todos muito melhor e
conseguíssemos ser realmente felizes, em vez de andarmos todos aqui a
fingir que o somos.

--- > Fotografia de Ricardo Castelo Branco


sexta-feira, Julho 26, 2013
A minha autodestruição ou como o mundo não é lindo e as
pessoas não são boazinhas
Há muito tempo que andava para escrever sobre isto. Com o agravar da
depressão, começou a custar-me mais escrever, sentia-me e sinto-me
exaurida quando termino de escrever.
Tem a ver com a catarse de lembranças, recordações íntimas e longínquas
que me surgem quando escrevo.

Podia escrever sobre muita coisa. Lá isso podia, mas escrever sobre mim,
sobre o que penso que sou e que sinto, acho que é a única coisa que sei
escrever minimamente bem.

A minha autodestruição consciente começou já tarde. Começou aos 20 e tal


anos, quando tive consciência plena do que eu era, de quem eu era. Senti-
me despida, vulnerável como nunca nesse momento e sinceramente, muito
perdida. Não sabia para que lado me virar, o que fazer, com quem falar, o
que dizer.

Era uma coisa só minha. Sentia-a desde criança, desde que me lembro, mas
tinha conseguido disfarça-la inconscientemente durante anos, para que
socialmente fosse vivendo mais ou menos. Digo mais ou menos, porque
nunca fui bem aceite em lado nenhum, nem por ninguém, incluindo
obviamente a família próxima.

Fui discriminada na escola primária porque não me comportava como era


suposto. Fui discriminada no liceu porque era supostamente homossexual
(sem nunca ter tido esse tipo de conversas fosse com quem fosse) e chegou
ao ponto de um suposto amigo desse período (14, 15 anos) ter deixado de
me falar e de sequer olhar para mim, senão comia porrada dos machões da
turma dele porque se dava com o paneleiro.

Isso passou, eu fui comendo e calando e chegou a altura do boom .


Compreendi e verbalizei para mim o que eu sentia, o que eu era. E aí foi ver
o mundo ruir aos meus pés. Tentei encontrar uma suposta solução para o
meu problema (chamar problema a ser-se transexual é, no mínimo, ridículo,
parece o discurso cada vez mais espalhado da doença). Falei com as pessoas
mais próximas de mim, na altura, e qual é o meu espanto quando vejo que,
em vez de apoio recebi rejeição e todos se afastaram, sendo que a maioria
deles deixou inclusive de me falar.

Em vez de compreensão encontrei rejeição e gozo. Em vez de carinho e


apoio encontrei nojo e distância. Algo que nunca se faz a ninguém, nem a
quem tem uma doença contagiosa. Caminhei sozinha durante algum tempo.
Tentei informar-me, tentei saber quem me poderia ajudar a saber o que
fazer. Mas aqui entrava o principal: o que eu na realidade queria. E isso eu
sabia, bem lá no fundo.

Mas com o tempo a passar, apercebi-me que não ia nunca conseguir atingir
os meus objectivos. Uma mulher trans como eu não tem, em parte
nenhuma, os mesmos direitos que uma mulher biológica.
Eu queria muito ter sido mãe e não podia biologicamente sê-lo. Eu queria
ter tido um relacionamento emocional estável, mas nunca encontrei um
homem disponível para isso. Eu queria ter casado e não podia. Acima de
tudo, eu queria ser respeitada como qualquer outra mulher e, salvo raras
excepções, nunca o fui nem o sou.

Tu podes ser linda, ter feito as cirurgias todas incluindo a de redesignação


de sexo, teres os papeis legais todos como mulher. Mas nunca vais ser vista
como tal. A conclusão desta parte é que o famoso estigma de que tanto
tenho escrito neste blog nunca desaparece, seja aqui, seja na China. Vais ser
sempre aquela que foi homem, o homem com mamas, "o" transexual. Não
vais ser a Maria, a Joana, a Lara, mulheres, ponto. Isto independentemente
das cirurgias que faças e de onde vivas.

E, quando me apercebi de tudo isto (e não demorou muito tempo, como


podem imaginar), comecei a fechar-me em mim, a destruir-me. Não era isto
que vivo que queria para mim. Não era este corpo que tenho que queria para
mim. Não era ser (des)tratada como sou que queria para mim. Não era ser
constantemente motivo de assédio transfóbico que eu ambicionava para
mim.
Viver agora vale de quê, vale para quê? Para o bem-estar dos outros que
estão à minha volta? E o meu suposto bem-estar? Esse, pelos vistos não
interessa nada. Porque, no fundo, praticamente nada mudou desde que me
comecei a auto-destruir há 20 anos atrás. Não sou respeitada, nem como
mulher, nem como nada. Se dou um testemunho (atenção, testemunho quer
dizer experiências reais de vida), vêm logo umas bandalhas (sim, nesse
aspecto elas são piores que eles) dizer que eu me estou a fazer de vítima e
que tenho muita sorte. Nunca me disseram é no que eu tenho muita sorte.
Em quê? Não ter sido assassinada ainda por algum transfóbico ou algum
grupo de neonazis? Só se a minha grande sorte for essa. Quem sabe não
chegue o dia, não é? Pelos vistos, e pelos números que vejo todos os dias,
está muito na moda matar cruelmente mulheres trans.

Deixei de ligar à minha aparência. Deixei de comprar roupa que gostava de


ter. Deixei de fingir que estou bem quando não estou nada bem. Sorrir não
quer dizer que eu esteja bem, alegre ou feliz. O meu sorriso surge nos raros
momentos em que sinto um sopro de bem-estar momentâneo. Agora cuido
o mínimo indispensável de mim. Apenas o necessário. Foi uma vida
desperdiçada. Agora faço apenas o que sinto que tenho que fazer, como
ajudar os meus pais, e os poucos amigos que tenho da melhor forma que
posso.

Poderia aparecer mais nos locais onde estão as pessoas que conheço, onde
poderia conviver, conversar, sorrir. Mas não quero. Só saio quando é
imprescindível e mesmo assim, contra a minha vontade.

O meu cabelo enfraqueceu muito. As unhas também. Emagreci. E só não


ponho fotos em lado nenhum de boca aberta com um "big smile", porque ter
todos os dentes de cima partidos não fazem um belo riso, diria eu. Também
afasta as pessoas. Mas isso não me chateia. Se cheguei onde cheguei foi por
desilusão comigo própria, e a culpa de tudo isto é só minha, de mais
ninguém.

E dou por encerrado um post que me custou a escrever e me fez recordar


muita merda que não me apetecia nada.
Agora já podem escrever uns comentários ofensivos, ou então daquele tipo
"a gaja está cheia de sorte e ainda se faz de vítima!". Sinceramente, por
mim é tinto. Escrevo porque sinto necessidade de desabafar, porque acho
que algures no mundo alguém também se pode sentir assim e entender-me.
Mas não procuro aprovação daqueles e daquelas que acham que isto é um
mundo muito lindo, que és senhor do teu destino, e que nascemos todos
muito bonzinhos.

O mundo é terrível, uma selva no pior sentido da palavra, e as pessoas, na


sua esmagadora maioria, não valem um peido, desculpem a expressão. Não
quis nada disto, mas nasci e tive que prosseguir. Fui obrigada a isso. As
minhas tentativas de suicídio foram sempre falhadas. Agora resta-me estar
aqui e esperar a morte. Sinceramente, espero que não demore muito.
sábado, Agosto 03, 2013
"Para cada panela há um testo". Será mesmo?

Sempre ouvi dizer que "para cada panela há um testo". Pelos vistos, ou há
testos a menos ou panelas a mais. Ou, por outro lado, há pessoas que não
têm direito a um testo. Aponto mais para esta última hipótese.

Há vários anos atrás, um amigo, numa conversa sobre relacionamentos,


amores e coisas que tais, afirmou-me que, se eu não fizesse a cirurgia de
correcção de sexo muito dificilmente conseguiria encontrar alguém que se
quisesse relacionar comigo.

Aquilo ficou a ribombar-me na cabeça ao longo de todos estes anos, e


apesar de ele próprio reconhecer, hoje em dia, que disse um disparate, que
isso não tem nada a ver, continuo a ter as minhas dúvidas.
Uma mulher transexual não-operada pode ambicionar, no máximo, uns
relacionamentos esporádicos, pois aquilo que os homens procuram nela é
precisamente sexo, sem compromissos, nada mais. Uma mulher transexual
operada já pode ambicionar mais. Já pode ambicionar um relacionamento
sério, pois não só a sua mente está plenamente de acordo com o seu corpo,
como qualquer homem que goste minimamente dela a vai aceitar muito
mais facilmente.

Num tempo não muito longínquo, uma pessoa também me disse algo, neste
caso especificamente sobre mim, que era que eu afastava quem se tentava
aproximar de mim. Que eu tinha um bloqueio emocional. Que tinha medo
de me sentir feliz, de me sentir bem. Como se me sentir incompleta fosse
algo que fazia parte da minha zona de conforto.
Parece contraditório, e não digo que não o seja. Afinal, sou tão estranha,
incongruente e frágil como qualquer outra pessoa. Mas sim, talvez eu não
saiba lidar com a aceitação de alguém-um-pouco-mais-que-estranho e que
mostre interesse em mim. Estou habituada ao estigma. "Já foste homem",
ou "és homem mas com mamas", ou o famoso "já és operada?".

Ou seja, passei toda a minha vida após ter-me assumido sempre a ser
questionada sobre o que tenho no meio das pernas, a ser assediada para
sexo, a não ser respeitada nem como mulher, nem como ser humano. E a
minha zona de conforto não me permite deixar que alguém entre.

Resumindo, sou uma panela sem testo. Ainda para mais agora, que
fisicamente a minha aparência não é das melhores, principalmente quando
abro a boca.

Não tenho medo de morrer. Tenho medo é que a reencarnação exista


mesmo, e que eu reencarne ou na mesma vida e tenha que passar por tudo
isto outra vez, ou que seja um inferno ainda pior.

As pessoas de quem gostei destruíram-me sempre. Fosse amor (não sei se


era), fosse paixão, fosse carinho, conseguiram sempre minimizar-me a lixo.
Não escrevo isto como forma de desculpar a minha autodefesa contra quem
se tenta aproximar, mas sim como uma realidade emocional. Aquilo que eu
senti. E senti-me lixo. Apenas não quero sentir-me lixo outra vez.
A minha esperança profunda é que a reencarnação não exista e aí já me
sinto mais calma, pois vem o clássico: "As meninas boas vão para o Céu, as
más vão para todo o lado".

Ah, e aí vou-me sentir tão bem, tão livre! Vou estar em todo o lado!

---> Make Up Artist e fotografia: Pedro Miguel Silva/2012


quarta-feira, Agosto 14, 2013
As palavras magoam. E muito.
Reflexões sobre conceitos e sentimentos que eu aprendi e apreendi ao longo
da minha vida, e que, pelos vistos, estão completamente ultrapassados.

Tenho escrito sobre vida, morte, tristeza, alegria, depressão, amor, ódio e
por aí fora. Tudo isto faz parte da minha vida, como faz parte da vida de
qualquer outra pessoa. Mas será que estes conceitos, a forma como eu
aprendi a vê-los e vivê-los é, agora, a mesma? Nope, não me parece
definitivamente que seja.

Amizade, por exemplo, é um dos melhores conceitos que representam um


sentimento que se alterou drasticamente. Eu aprendi que a amizade era algo
especial que se sentia por alguém quando havia empatia, interesses em
comum, atracção intelectual. Ainda me lembro de noites em branco, com
uma chávena de chá ou café, a falar sobre isto e aquilo, eu e o outro, em que
ambos os lados partilhavam alguma coisa, muita coisa, o seu mundo.
Hoje em dia, amizade é banal. Amigo é o gajo com quem vais para a cama,
amiga é aquela que tens ao lado na secretária do trabalho, ou seja, toda a
gente tem imensos amigos, porque basicamente tudo o que é cão e gato é
considerado amigo. Mas o que é isto???

Amor era, para deixar de o ser. Numa altura em que tanta canção, tanto
livro, tanto filme, continuam a falar de amor, as pessoas seguem no
caminho oposto e evitam tocar sequer no assunto. É tudo fast-feeling . Tudo
sem compromisso. Tudo leve, demasiado leve e "sem stresses", como
também é muito habitual ouvir agora.

E isto são apenas dois exemplos, e provavelmente os que considero mais


graves, do fast-feeling . Não nos ligamos a ninguém, e assim ninguém se
magoa, tu estás na tua e eu estou na minha. Não há verdadeiras ligações
entre as pessoas. Apenas e demasiado virtuais, no pior sentido da palavra.

E aqui entra, no meu caso e acredito que em muitos outros, o passado. Não
sou uma velha carcareja saudosista. Pelo menos não me vejo como tal.
Apenas considero que aquilo que sentimos uns pelos outros é o mais
importante da vida, e que parece já não importar para nada. Passado é
passado. Se há coisa que também aprendi é que quando algo se desvanece, e
passados anos, parece ressurgir, não é verdadeiro. É sempre forçado e não
vai resultar. "Ah, éramos tão amigas". Exacto. Éramos, passado. Já não
somos. Tu seguiste o teu caminho e eu segui o meu. E o mais provável é já
nada termos uma a ver com a outra. O meu universo expandiu-se para um
lado, o teu para outro. Não vale a pena tentar recuperar o que se perdeu no
tempo. As relações entre eu e o outro vêm e vão como as marés. Até que
um dia vão para não mais voltar. Portanto, vamos deixar o passado
sossegado, que é onde ele está melhor.

Há tempos acusaram-me de ser preconceituosa e xenófoba (ãh???).


Confesso que não percebi o contexto. Também não percebi, muito
sinceramente, se essa pessoa está com algum problema mental, é bipolar
(está muito na moda), ou se me está a confundir com alguém. Preconceitos
toda a gente tem, mesmo que diga que não tem. Assumo, obviamente, que
terei os meus preconceitos, mas nunca me prejudicaram a vida, as relações
humanas, ou fosse o que fosse. Agora, xenófoba, eu??? Não deixa de ser
curioso a tal pessoa utilizar este termo. Deve ser porque está (também e
infelizmente) na moda, porque essa pessoa consegue ser tão estúpida que
nem sabe o que significa, ou eu ainda estou mais estranha, loira e burra do
que pensava.

Abro aqui um parêntesis apenas para deixar a definição de xenofobia


retirada do Dicionário Online Priberam:
xenofobia
( xeno- + -fobia )
s. f.
Aversão aos estrangeiros ou ao que vem do estrangeiro, ao que é estranho
ou menos comum. = XENOFOBISMO

E este tipo de acusações veio de um ex-amigo. Sim, quem me ofende desta


forma não pode ser considerado meu amigo. Alguém que eu pensava que
conhecia e que me conhecia. E amigo (ex quero eu dizer) de muitos anos.
Uma pessoa que sabe o meu percurso de vida e se dá ao luxo de me chamar
este tipo de coisas ou é muito insensível, muito estúpida, ou ambos.
Estas reflexões que aqui deixo e vou deixando mostram-me como sou. Não
sou plástica, sou carne. Não sou egoísta, sou sensível. Não sou homem,
como muit@s para aí dizem. Sou mulher. Tenho qualidades e defeitos.
Quem não tem? Mas respeito, esse, meus e minhas querid@s, é acima de
tudo. Ninguém é perfeito, e eu estou muito longe disso. Mas não admito
que me desrespeitem. Que violem aquilo que eu sou. Que passem por cima
dos meus sentimentos.

Em relação às bocas da reacção: há mulheres com pilinha, amig@s. Se não


o aceitam, o problema é vosso. Respeitem para serem respeitados e não
usem palavras em vão.

As palavras magoam. E muito.

---> Make Up Artist e fotografia: Pedro Miguel Silva


sexta-feira, Agosto 30, 2013
Transmisoginia
Neste post vou-me dedicar a reflectir sobre algo de que se começou a falar
muito do outro lado do oceano, e que já vai dando os seus sinais também
aqui pelo velho continente: transmisoginia.
Tal como aconteceu com a homofobia e a transfobia, surge agora um termo
perfeito para definir a atitude, em especial dos homens, em relação às
mulheres trans.

Mas antes de começar a minha dissertação, deixo aqui a definição da


palavra-mãe retirada do Dicionário Online Priberam:

misoginia
(grego misogunía, -as )
s. f.
1. Aversão às mulheres.
2. Repulsão patológica pelas relações sexuais com mulheres.

É interessante perceber que ambos os significados se aplicam na perfeição a


imensas situações que uma mulher trans, como eu, passa na sua vida, no seu
dia-a-dia, mas com nuances que não deixam de ser relevantes.

A aversão a mulheres trans é praticamente universal, essencialmente entre


os homens. Sejamos lindas, menos lindas, magras, gordas, praticamente
todos eles se manifestam negativamente quando se fala sobre mulheres
trans. Comentários do tipo "não passa de um homem com mamas", "já foi
homem", "quer-se fazer passar por uma coisa que não é", são mais do que
habituais, seja em conversas entre eles, seja com mulheres biológicas.

Meus caros, essa aversão ao facto de muitas mulheres trans possuírem um


falo como vocês não vos fica nada bem, principalmente falando de homens
adultos. Mas, além dos homens serem crianças a vida inteira, o famoso
complexo do falo, e o complexo da castração perseguem-nos toda a vida.
Porquê, meus caros? É que vocês já partem das premissas erradas: nós
nunca fomos homens, nós não nos queremos fazer passar por algo que não
somos, nós nascemos assim. Se vocês não conseguem lidar com esse facto,
é problema vosso, não nosso.

E a transmisoginia começa assim, com pequenas coisas, com olhares de


desdém, com bocas inicialmente veladas, e no seu limite transforma-se em
transfobia, levando a casos que nem consigo qualificar, como o de Gisberta
aqui em Portugal. E não nos esqueçamos de que foram adolescentes que a
mataram. Adolescentes cheios de ódio, de aversão, a uma pessoa que não
fez nada de mal na vida a não ser ser ela própria.

E todas nós, mulheres trans, somos afectadas por esta transmisoginia, por
transfobia, e infelizmente, é provável que muitas de nós tenham o mesmo
fim que Gisberta ou Luna (mulher trans assassinada em Lisboa, em 2008).

Ou seja, para se entender um pouco melhor o que é a transmisoginia, basta


pensar que falamos num conceito não concretizado: há aversão, mas ainda
não ultrapassou os limites da mente. Na transfobia já falamos em actos de
violência física e psicológica, que na esmagadora maioria das vezes acaba
na morte da mulher trans visada.

No ponto 2 do significado de misoginia, revela-se uma repulsão patológica


por relações sexuais com mulheres. Todas nós sabemos que isto existe. Não
implica que o homem seja homossexual, mas implica que tem nojo de sexo
com mulheres. E na sua maioria, os homens têm nojo de fazer sexo com
mulheres trans.

É o estarem eternamente entre o vírus e a bactéria. Ora desejam, ora lhes


mete nojo. Afinal nós, pelas palavras deles, "não somos mulheres
completas" (WTF???), e novamente, "somos homens com mamas", ou
"falsas mulheres". E muitos acabam por desejar mas depois arrependem-se.
Do tipo, "atrais-me muito, respeito-te muito (ahahah), mas não me podes
dar o mesmo que as outras". Ora bem, eu entendo perfeitamente que há
quem goste de vaginas, quem goste de pénis, e quem goste de ambos. Mas
um discurso destes vindo de alguém que te provoca, te seduz, se diz sem
preconceitos e aberto a tudo, e no fim trata-te desta forma??? Ah, um
pormenor: ele nem sequer sabe se tens uma vagina ou um pénis, sabe
apenas que és uma mulher trans.
Mas este discurso e tipo de atitude acontece com uma frequência
impressionante. Já vivi e já ouvi estórias de transmisoginia 2 (chamemos-
lhe assim) do arco da velha. E para evitar, ou tentar evitar este tipo de
atitudes, digo sempre de início que não sou operada. Assim podem ser logo
misóginos e preconceituosos como lhes apetecer.

Para terminar esta pequena dissertação, muitas de vocês devem estar a


perguntar-se se transfobia e transmisoginia são coisas tão diferentes assim.
Não. No fundo não são. São dois tipos de aversão, ódio a mulheres trans.
Mas não tenho dúvidas de que ainda vamos ouvir falar muito deste "novo"
tipo de misoginia.
terça-feira, Setembro 03, 2013
Transições, avaliações e outras considerações
Para mim, a questão da transição de uma pessoa transexual sempre foi algo
de muito discutível. Houve aquelas pessoas que sempre defenderam que
fazes o teu processo, fazes as cirurgias e acabou. E há quem defenda, agora,
que a transição é um processo que nunca acaba, ou seja, acompanha-te ao
longo da vida.

Se me perguntarem se a minha transição acabou, não sei, sinceramente, que


resposta dar. Sou mulher, sempre me senti mulher, olho para mim e vejo
uma mulher (ok, não tão perfeita ou bonita como gostaria, mas vejo uma
mulher) e, pelos cânones da medicina nos casos de transexualidade, apenas
me faltaria a cirurgia de correcção de sexo para terminar todo o processo,
logo, a transição.

Mas será que essa transição é assim tão linear? Obviamente que não. Todas
as pessoas são diferentes, têm desejos diferentes e vêem-se a si antes de
uma forma e depois de outra, que muitas vezes não tem sequer que passar
por cirurgia nenhuma. Por isso, e em pleno século XXI ainda andamos
tod@s à porrada a discutir se a transexualidade e, inerentemente, as
identidades trans são uma doença, ou várias.

Para mim, e felizmente que para muita gente, a transexualidade não é de


todo doença alguma. É um estado. Uma condição médica, no máximo, visto
que o corpo não corresponde à identidade de género. Mas será que para eu
ou qualquer outra pessoa trans, a transição tem que ser tão demorada e
dolorosa? De todo. O grande problema é que ninguém sabe ao certo o que
é, como funciona, o que provoca.

E para complicar tudo isto ainda mais, umas pessoas trans reagem de uma
forma à transição e outras de outras formas totalmente diferentes. E isto
abrange tudo, desde a hormonoterapia a cirurgias, à própria forma de vestir,
de se estar. Sim, porque identidade de género é uma coisa e papeis de
género outra, não confundamos.

A identidade de género é aquilo que te define como ser, como pessoa. O


papel de género é aquele que assumes perante a sociedade e os outros, que
pode ser masculino, feminino, andrógino, ou qualquer outra coisa dentro de
um espectro que nunca mais acaba. Por isso somos todos diferentes.

Eu sou mulher, transexual, heterossexual. Supostamente isto define uma


pequena, mas importante parte do que sou. O meu papel de género é algo
dentro do feminino. Mas não sou um estereótipo. Não ando de saias porque
as outras andam, não ando de saltos agulha, não uso maquilhagem no dia-a-
dia apesar de fazer a barba porque nunca tive dinheiro para fazer laser ou
para retirar os pelos faciais de qualquer outra forma. E depois? Sou menos
mulher porque não caio nessa parvoíce do que é suposto ser "feminino"?
Sou mulher e sinto-me feminina e isso basta-me. Quem não gosta, põe à
borda do prato.

Entre o início do meu processo clínico com equipa multidisciplinar de


transexualidade e o fim decorreram sete anos. Supostamente deveria ser
feito em dois. Conheço mais casos em que pessoas trans calcorrearam o
caminho do hospital para consultas cinco anos, algumas quase o mesmo
tempo que eu. Porquê tanto tempo? Porque tive o azar de calhar com um
profissional, supostamente especialista na área, que a primeira coisa que
referiu na minha primeira consulta, em Dezembro de 2000, era que eu me
vestia "à homem". A partir daí valeu quase tudo para me fazer desistir do
processo e poupar dinheiro ao Estado, desde ter consultas de três ou de
quatro em quatro meses, em que batia sempre na mesma tecla: se eu dizia
que me sentia mulher, então TINHA que querer fazer a cirurgia de
correcção de sexo, para ficar com uma neovagina.

Como o senhor tinha muitas dúvidas a meu respeito, fez-me esperar,


esperar, esperar. Negou-me tratamento hormonal, pois não tinha a certeza se
eu me queria operar em baixo. Achincalhou-me o máximo que pôde sempre
com o "você vem vestido como um homem" e SEMPRE me tratou no
masculino e pelo meu nome de baptismo, nunca pelo que sou, mulher, e
pelo nome que escolhi para mim.

E como o meu caso há, com certeza, muitos mais, principalmente nas mãos
desse senhor. Por estas e por outras é que sou acérrima defensora de que se
crie, em Portugal, e o mais rápido possível, uma lei integral de identidade
de género como aquela que existe na Argentina. Porque a tua transição és tu
que a fazes. Porque o corpo é teu e tens direito a fazer com ele o que
quiseres. Porque se te deram o nome de Manuel mas tu te sentes Maria, não
tens nada que ser obrigada a passar anos a ser "analisada" por quem, a um
nível geral, nem sabe nada de nada. Chegas ao cartório e mudas de Manuel
para Maria, ponto final.

Chega de fazerem as pessoas trans sofrerem! Nós não queremos nada de


mais: apenas queremos SER! Deixem-nos SER!
sábado, Novembro 23, 2013
Contra-corrente, trans e companhia limitada
Quando alguém muito próximo de nós morre, além do luto por essa pessoa,
fazemos o luto de todas as nossas dores, questionamos quem somos e as
nossas prioridades, bem como repensamos quem somos. É uma espécie de
esquema anti-corrente.

Comecei um trabalho relativamente participativo como activista trans há


cerca de 10 anos atrás. Uns anos antes tinha-me descoberto e tinha iniciado
o meu processo clínico num hospital público de Lisboa. Numa altura em
que praticamente ninguém dava a cara como mulher trans, eu decidi dar a
minha. Mostrar que nós, mulheres trans, somos mulheres como as outras,
temos vidas como elas, sentimos todas as mesmas coisas.

Foi algo que eu fiz na esperança de que o meu exemplo de vida, em que
optei por me anular durante mais de metade da minha vida, e todas as dores
que isso traz, poderiam ajudar de alguma forma quem lesse ou visse as
entrevistas que eu dava. Fui sempre eu, nunca quis (nem quero) representar
uma suposta "comunidade" trans que não existe em Portugal. E por ser eu e
por ser anti e contra-corrente paguei muito caro.
Não foi só o estigma social de passar a ser ainda mais vista como alguém
que não é "normal" (seja lá o que a normalidade é), foi a discriminação
familiar ainda mais forte, foi a crítica implícita de quem era eu para agora
andar a dar entrevistas. Dei entrevistas não porque sou alguém em especial,
mas como uma pessoa que tem algo a dizer e que sofreu na pele (e sofre) os
constantes preconceitos e discriminação de que somos alvo diariamente.

Não quero, nem sou um exemplo para ninguém. Sou apenas alguém que
decidiu dar a cara e sempre que seja necessário voltarei a dá-la. Isso não
implica que sou "perfeita", que não tenho uma profunda rejeição
interiorizada por quem sou, que não gosto de quem sou. Tenho muitos
defeitos e muitas qualidades, e estas lutas são feitas por mim todos os dias.

Eu olho-me ao espelho e vejo algo que nunca deveria ver desta forma. Eu
deveria ter nascido mulher também fisicamente. Devia ter passado pela
sensação e dor do peito a crescer, da identificação imediata de mim como
mulher na rua, o que não acontece. Sinceramente, não me interessa
minimamente que quem leia estas linhas esteja chocada ou incomodada.
Sim, porque as pessoas que escrevem sobre temas trans e são trans, mantém
o grau de sofrimento e discriminação baixo e revelam e enfatizam o que é
bom em ser-se trans.

Mas há alguma coisa boa em ser-se trans??? Confesso que já tenho uma
certa idade e uma certa experiência na matéria, e até hoje não descobri
nenhuma coisa boa no facto de ter nascido trans. Não, não é a estória batida
que muitas gostam de chorar da "coitadinha". Não sou, não me considero de
forma alguma uma coitadinha. Apenas não vejo o que há de bom em nascer
com uma identidade de género não correspondente ao corpo. Quem vir
alguma vantagem que avise, pois eu nunca descobri nenhuma.

E bons exemplos disso são a rejeição por parte da família, dos supostos
amigos, da dificuldade em arranjar um trabalho, em estudar, em andar
anónima na rua, o não ser apontada como uma merda de uma "freak" que
não devia sequer ter direito a respirar.

Um dia destes falava com uma pessoa conhecida ao telefone e essa pessoa
achou muito estranho e chocou-se com o facto de eu nunca ter tido um
relacionamento sério, nem nunca ter ouvido da parte de ninguém um "amo-
te". Não que nós, mulheres trans, não tenhamos o direito a amar e ser
amadas, mas convenhamos que é bem mais difícil que para uma mulher
biológica (que era o que eu devia ser). Mas conheço vários casos de
mulheres trans que têm relacionamentos estáveis há anos, portuguesas e
estrangeiras. Isto prova que é possível. Mas não para todas.

Principalmente quando há homens (no caso das mulheres trans


heterossexuais) como me aconteceu a mim, que agem duma forma e falam
doutra. Isso aconteceu-me, a última vez, com um actor relativamente
conhecido na nossa praça, que conheci online e com quem fui falando ao
longo de mais de um ano. Havia e sempre houve atracção entre nós, e ele
deixou sempre bem claro que ela existia pela forma como falava. E eu
deixei-me levar, porque sou realmente estúpida e naive, apesar da idade que
tenho. Depois de falarmos das nossas vidas e bla, bla, bla, chegou um dia
em que a conversa aqueceu, e o homem (se é que lhe posso chamar isso, em
vez de transfóbico de merda encapotado) vira-se para mim, e com a maior
das latas escreve (e aqui está a transcrição da linda frase): "Eu preciso de
uma mulher para me excitar :( não quero ofender." - Pois, mas já ofendeste
"amori". Queres uma mulher para te excitar??? Então eu sou o quê??? Da
última vez que me vi ao espelho tinha um ar humano, mas agora devo ter
umas antenas verdes e ser toda cor de rosa. Ou seja, o "menino" andou mais
de um ano a gozar comigo e eu só me apercebi disso com esta "belíssima"
frase que o menino revelou.
Mas a esmagadora maioria dos gajos são mesmo assim. No fundo, é isso
que eles pensam bem lá no fundo. Que não somos mulheres. No máximo
somos "trans". Regra-geral travestis. Gajos com mamas. Obviamente que
isso não deixa de os excitar, apesar de o negarem (oh, o que os amigos iriam
dizer!), como este fez. O preconceito é tão forte que eles até têm receio em
se encontrar contigo para tomar um café. E relacionamentos, então?
Nã, isso está totalmente fora de questão, pela família, pelos amigos, pela
discriminação que eles provavelmente também iriam sofrer por aparecerem
publicamente com uma mulher trans. Bem, ou isso, ou realmente eu tenho
muito azar.

Só mais umas notas, que acho demasiado importantes e que se devem


deixar sempre bem claras:
1. Mulheres trans são tratadas sempre no feminino, e homens trans no
masculino;
2. Nunca se pergunta a uma pessoa trans se é operada. O que eu tenho no
meio das pernas só a mim me diz respeito, o meu corpo não é público, é
meu.
3. Nunca se pergunta qual o nosso nome de baptismo. É algo com o qual
ninguém que seja trans se identifique e é extremamente ofensivo estarem a
querer saber algo que nós só queremos esquecer.
4. Por último, e batendo no ceguinho mais uma vez, as pessoas trans não
são doentes. Nascemos assim, somos assim, ou aceitam ou não aceitam.
Mas têm a obrigação de respeitar. Respeito acima de tudo.

Sintam-se à vontade para acrescentar itens a esta lista, e a terem cuidado


com este tipo de gente como esse tal actor que escreveu essa pérola que vai
ficar nos meus anais.

---> Make Up Artist e Fotografia: Pedro Miguel Silva


segunda-feira, Dezembro 09, 2013
Os sentimentos das palavras
Quando escrevemos para nós, para alguém, para os outros, podemos
escrever cheios de emoções e sentimentos, mas raramente alguém tem o
dom de transmitir aos outros o que sente. E este post é sobre isso mesmo:
sentimentos. Sentimentos das palavras. Sentimentos nas palavras.

Saudade. Palavra única no mundo, que só existe em português. Exprime um


sentimento singular e especial de falta, de uma ausência sentida. Sentida e
transmitida por tantos poetas, escritores e imortalizada no fado. No fado que
é só nosso. E de nosso passou para o mundo. Porque onde quer que o fado
seja cantado, a emoção, o sentimento da saudade está lá. Presente.

A saudade foi a primeira palavra que me lembrei e um (se não o melhor)


exemplo do que é transmitir um sentimento numa palavra. Tenho recebido
muitas críticas sobre aquilo que publico aqui, no meu cantinho não diário,
mas minimamente regular. Há quem diga que consigo transmitir os
sentimentos e emoções inerentes às experiências ou pensamentos que
partilho, há quem me acuse de ser fria, de me fazer de vítima e coitadinha,
de explorar através do que escrevo uma complacência dos outros que não
quero, não preciso e que recuso liminarmente.

A ideia inicial deste blog era falar, através do que escrevia, das minhas
experiências de vida, daquilo que acho de A ou B, de exprimir os meus
sentimentos e emoções sobre os outros, sobre o mundo, sobre o que me dá
na telha, mas que acho importante partilhar.
Mas a partilha só faz sentido quando é isso mesmo: partilha. Quando
escrevo não sei quem está do outro lado, quem me lê. Independentemente
do que pensa, do que sente, se concorda, discorda ou se se está a cagar para
aquilo. Mas o essencial é que haja partilha. Que eu tenha feedback , retorno,
por parte de quem lê. Que eu partilhe com os outros coisas que foram (ou
são) importantes para mim e que podem de alguma forma ajudar alguém,
fazer alguém pensar, questionar-se, identificar-se (ou não).
Escrevo como falo. Com o coração ao pé da boca. O que sinto é o que
escrevo. Escrever, para mim, não é um processo racional, é algo de
espontâneo, emocional, sentimental. Escrevo como amo. Escrevo como
vivo. Devia ser mais racional, isso sei eu, mas não sou. Acho que aprendi a
sê-lo um pouco mais com a idade e as experiências porque fui passando,
mas continuo eu, emocional.

Cometo erros de uma miúda de 15 anos. Mas sou pragmática com a vida
como uma velha de 65. Isso, felizmente, não me retirou a capacidade de
sentir, de ser eu, de ser emocional, de chorar, de rir, de viver como posso e
como me deixam.

Sermos nós é o mais importante. Não sou perfeita como ninguém é. Estou
profundamente insatisfeita comigo. As lutas internas acontecem
constantemente, intercaladas com períodos de "quero lá bem saber". Mas
tento não deixar de sentir. Sentir-me. Não me deixar ficar anestesiada.
Sentir os outros. Transformar estas linhas numa conversa convosco. Tentar
reflectir sentimentos, sejam eles quais forem, através das minhas palavras.

É a única coisa que me resta. Sentir. Há quem diga que não se conseguem
transmitir sentimentos através da palavra escrita. Não podia estar menos de
acordo. Não sei se os consigo transmitir através das minhas palavras neste
blog, mas espero que sim. Resta-me agradecer a todas as pessoas que me
vão lendo. E agradecer também a todas aquelas pessoas que me dão um
retorno. Obrigada a tod@s.
terça-feira, Dezembro 17, 2013
Ser mulher trans é... Uma dissertação
É sempre complicado escrever. Seja sobre mim, sobre os outros, sobre um
assunto que me toca. Principalmente porque é um exercício de
concentração, de me despir em relação a quem lê, de me mostrar como sou
e não como os outros gostariam ou esperariam que eu fosse. Ser uma
mulher trans é apenas uma parte de mim. Uma parte de um todo. Não é ser
trans que me define. Ser trans ajuda a definir-me, como o facto de ser
inteligente, alegre, triste, racional, emotiva e por aí fora.

Já muito escrevi aqui sobre o estigma que todas as pessoas têm,


principalmente aquelas que dão a cara. No caso das mulheres trans, como
eu, é o estigma do "já foi homem", sendo que eu nunca fui homem. Eu nasci
num corpo masculino, e a minha mente, o meu pensamento, o meu sentir,
sempre foi oposto a isso. Sempre foi de mulher. Se existe uma alma
feminina, eu possuo essa alma. Que nada tem a ver com um homem.

Não sou um estereótipo, e recuso liminarmente que me colem à figura tão


rebuscada da mulher trans. Sou uma mulher como outra qualquer e isso
aplica-se a tudo. Tem a ver com a minha forma de estar, com a minha forma
de vestir, com aquilo que sou, e somos todas diferentes. O não me colar a
essa figura estereotipada leva a que não seja vista como mulher. Devo ser
vista como outra coisa qualquer, mas não como mulher. Por isso, no café
me tratam ora como homem, ora como mulher, o que se repete em quase
todo o lado, menos quando mostro a minha identificação e aí são obrigados
a tratar-me como deviam: no feminino.
Fala-se muito de brandos costumes em Portugal. Mas, pelos vistos, esses
brandos costumes só são aplicados a certas coisas. Porque, quando uma
mulher como eu circula pela rua, os supostos brandos costumes não se
revelam, muito antes pelo contrário. É uma sociedade cada vez mais
hipócrita, falsa e egoísta. As pessoas tratam-te como lixo e não perdem uma
oportunidade para te humilhar, mesmo aquelas que supostamente te
deveriam tratar bem e com respeito. Ora aí está: respeito. É uma palavra
que cada vez menos se põe em prática. Vai-se pelos preconceitos, não se
respeita, e discrimina-se. É quase uma equação matemática.

Como aquela pessoa que tem "curiosidade científica" em me conhecer,


como se eu fosse uma aberração, um bicho raro, algo tão estranho que
quase não faz parte deste mundo. E é óbvio que deve ser isso que essa
pessoa pensa. Não o assume, claro, porque isso não se diz, mas para ela não
passo de uma freak que se deve ter arrependido de conhecer pessoalmente.
Mas não é caso único. Quando não é pela "curiosidade científica" partem
logo do princípio que tu és trabalhadora sexual e querem saber como é fazer
sexo com uma mulher trans. Têm "curiosidade".

E, como se vê, não é apenas um estigma. São vários. Vários que nos
perseguem ao longo de toda a vida e que, ou nos deixamos levar, ou
lutamos contra isso. Confesso que a conversa parva das pessoas que acham
que sabem o que eu sinto ou pelo que eu passei e passo já me mete nojo.
Ninguém que não nasça como eu sabe avaliar minimamente o sofrimento
porque passei e que se prolonga ao longo da vida, muito graças aos outros.
Travar duas guerras em simultâneo é, no mínimo, cansativo. Temos que
lutar contra os outros e há essa luta enorme sempre dentro de nós.

Mas elas, que são todas pessoas iluminadas, sabem perfeitamente aquilo
que nós passamos. Já não há humanidade nas pessoas. Só egoísmo.
Ninguém te ajuda se não ganhar nada com isso. Portanto, essas batalhas são
solitárias, eternas, desgastantes. Estou cansada. E chego ao fim de 2013
com a sensação estranha que vivo em pleno século XIX, no mínimo. A
mentalidade das pessoas está cada vez mais fechada, e isso sente-se e vê-se
em tudo.

2013 foi um ano para esquecer e sinto que o que vem será igual ou pior.
Resta-me esperar para ver. E esperar que a poeira assente.

Sou mulher e é assim que quero não só ser tratada, como vista. Habituem-se
e, acima de tudo, respeitem-me.

---> Fotografia de Clara Azevedo (todos os direitos reservados). Retirada


de sessão feita para a revista "Máxima" de Agosto de 2003.
sexta-feira, Dezembro 20, 2013
Ser ou não ser: nunca deveria ser uma questão
Quando as pessoas pensam em transexualidade/transgenderismo acabam
sempre por pré-conceber uma imagem que, infelizmente, corresponde a
uma grande parte das pessoas trans, mas que não pode nem deve ser
generalizada. Convém também referir aqui que as pessoas só concebem
mulheres trans (masculino-feminino) e só raramente sequer têm a noção
que existem homens trans (feminino-masculino).

Para o comum do cidadão, nós, mulheres trans, somos todas


prostitutas/trabalhadoras sexuais, ninfomaníacas, usamos todas mini-saias,
saltos agulha, decotes até ao umbigo e somos todas plásticas: silicone aqui,
silicone ali, numa exacerbação dos traços supostamente femininos.

Quer queiramos, quer não, o pré-conceito das pessoas cai aqui. Não somos
homens nem mulheres, somos algo no meio, independentemente de sermos
“operadas” ou não. Se escrevo muito sobre esta temática, tem não só a ver
com a desmistificação do que é uma mulher trans (que é o meu caso), como
para clarificar que nada é fácil na vida de ninguém, sendo que para as
pessoas trans essas dificuldades elevam-se ao dobro, pelo menos.
Muitas vezes tenho escrito sobre o estigma que temos. Somos uma minoria
dentro das minorias, o que leva as pessoas a olharem para nós com
estranheza no mínimo, e com ódio na maioria das vezes, o que leva a tantas
mortes de mulheres trans em todo o mundo todos os dias.

De objectos sexuais, linha bonecas insufláveis, a aberrações, somos vistas


sempre como uma coisa esquisita. E, se por qualquer motivo, damos mais
nas vistas, então a nossa vida torna-se infernal. Falo por mim, que sou
muito alta, comparativamente com a esmagadora maioria das mulheres
portuguesas. Com quase 1,90 m, dou sempre nas vistas, quer queira, quer
não. E depois começam os olhares mais observadores, que notam a minha
maçã-de-adão saída, a marca da barba numa pele demasiado branca, uma
forma de vestir que não é aquilo que socialmente é correcto uma senhora
vestir.

Mas esta discriminação e, inclusive, ameaças à minha integridade física,


não vêm de hoje, de agora. O pior foi a fase da adolescência, em que eu não
correspondia em nada ao que era esperado de mim. Não me encaixava nos
padrões masculinos e femininos, que socialmente se considera serem os
esperados. Era muito alta, muito magra, vestia-me de forma completamente
andróg i na e aquilo que provavelmente transparecia era a imagem de um
gay efeminado.

Pois, e este facto levou-me a ser altamente discriminada e vítima de


“bullying” (palavra que está muito na moda agora e que falam como se este
fenómeno tivesse surgido nos nossos dias, mas que sempre existiu) por
parte de colegas, professores e até supostos amigos. E fui agredida,
perseguida e maltratada de tal forma que mudei de escola para conseguir
terminar o 12º ano.

Quando atingi a idade adulta descansei um pouco. As pessoas pareciam ser


um pouco mais tolerantes e eu restringi ao máximo o número de pessoas
com quem me dava. Mas foi só fogo-de-vista. Continuei a ser altamente
discriminada, inclusive pelos supostos amigos gays que eu pensava ter.
Como “era” um “gay efeminado” gozavam comigo, humilhavam-me e era
constantemente posta de parte. Mas eu não era nem homem, nem gay, nem
um gay efeminado. Era uma mulher. E foi essa clarificação na minha
cabeça e a subsequente abertura que dei a mim própria para me assumir
como tal, que baralhou de novo as cartas e o meu mundo ruiu outra vez,
ainda mais violentamente.

As pessoas afastaram-se de mim. Quem eu pensava que era amigo, não era.
Passei a ser tratada de outra forma por toda a gente, mesmo em casa. Foi
muito complicado. E foi aí que não só comecei a lutar contra a maré, como,
sem ter ainda grande consciência disso, comecei a auto-destruir-me.

Essa dicotomia do ser mulher e ter que lutar para que o mundo me visse e
aceitasse como tal, e a minha luta interior para me aceitar como era,
acabaram por, ao longo dos anos, me corroer por dentro, o que se reflectiu
por fora. Isto é algo que partilho com naturalidade, pois é um risco que
qualquer mulher que nasça como eu corre. As pessoas gostam muito de
dizer “ah, eu não me arrependo de nada”, pois fica sempre bem e dá uma
imagem de autoconfiança que na maioria das vezes é falsa. Mas eu digo o
contrário: arrependo-me de muita coisa.
Arrependo-me de não me ter assumido como mulher antes. Arrependo-me
de não ter tido nem força nem coragem para enfrentar tudo e todos para ser
quem sou… Isto soa completamente esquizofrénico, não é? Eu ter que lutar
para ser quem sou. Ridículo. Ninguém deveria ter que lutar para ser quem
é! Eu sou assim e é assim que as pessoas me deviam aceitar, sem sequer
questionar isso. Mas não, como todos sabemos. A realidade é bem mais
dura e o oposto disto.

Compartilho convosco estas dissertações, estas experiências pessoais, pois é


muito importante não cair no que eu caí. É muito importante manter sempre
a cabeça erguida e a auto-estima e autoconfiança lá em cima. Quando me
apercebi que me estava a destruir tanto por dentro, como por fora, já era
tarde demais. Não se deixem levar pelas bocas, pelos olhares, pelas
ameaças, pelos medos. Vão em frente, sempre.

O nosso caminho é tortuoso, sofre-se muito, mas no final pode haver (e


deve haver) uma recompensa: olharmos para o espelho e termos orgulho em
sermos nós. Não nos deixarmos cair nos estereótipos em que nos querem
encaixar, não nos deixarmos levar por ameaças, por medos. Porque, no fim
de contas, o que interessa é quem nós somos. E o ser é o mais importante.
Portanto, não façam como eu. Enfrentem a vida e sejam.
segunda-feira, Janeiro 20, 2014
Luto.
2014 poderia ter começado da melhor forma, mas, para variar neste país
pequenino de mentes e mentalidades pequeninas, não foi isso que
aconteceu. Estou de luto por mim, por ti, por tod@s nós que pertencemos à
comunidade LGBTI.

Que o estigma que nós, mulheres trans temos, já muito tenho escrito aqui,
mas nunca é demais vincar bem essa realidade. Que o estigma que persegue
os casais homossexuais, apesar do casamento civil já ser legal e real,
também sabemos que existe. E agora, ao vermos esta tristeza, esta vergonha
de tentar retirar direitos básicos, direitos humanos a todo um espectro de
gente, vemos bem que Portugal nunca saiu da cepa torta, e que os
preconceitos e a discriminação é real e sempre será.
Esta minha reflexão não pretende ser mais nada do que isso. É um grito de
revolta. É um estado de luto. É uma tristeza imensa por ver que o país onde
nasci, cresci e vivo não merece uma grande maioria das pessoas que ainda
aqui vivem. Sinto uma vergonha e um nojo imenso por esta "juventude" que
se acha no direito de destruir a liberdade que os seus avós e os seus pais
tanto lutaram para ter.

Eu, como mulher trans, não tenho o mesmo direito de conseguir um


trabalho condigno com as minhas habilitações e experiência, apenas porque
sou uma mulher trans. E as mulheres trans são todas putas, como já estou
farta de ouvir. Se somos todas putas é porque não nos dão outra hipótese de
conseguir sobreviver, pois não temos direito a um trabalho dito "normal". E
vemos este preconceito estereotipado em todo o lado e por (quase) toda a
gente. Já não chega o assédio e desrespeito diário, ainda somos todas
rotuladas, discriminadas e postas de lado, como merda, como lixo. Por mim
falo. As outras poderão falar por si, mas pelo que vejo e sei, a realidade é
toda a mesma de norte a sul deste país, do litoral ao interior.

E, como se isto já não bastasse, continuamos a ser "os" em vez de "as".


Estas mentalidades e esta gente nem sequer sabe utilizar os pronomes
correctos quando se dirige a uma mulher trans. Se é mulher é "uma" é "a".
Se é um homem trans é "um" é "o". E há muitas pessoas dentro do próprio
conjunto das pessoas trans que joga na mesma pandilha, e que espalha o
preconceito que acaba por ir contra elas próprias. Pelos vistos, ignorância e
estupidez existe realmente em todo o lado, mesmo dentro desta minoria
dentro das minorias.

Estou de luto igualmente por tantas famílias do mesmo sexo que por esse
país fora foram e continuam a ser afectadas e prejudicadas porque não
temos uma lei de adopção e co-adopção, que é um direito fundamental num
dito "estado de direito". Tenho assistido a esta palhaçada, a esta nojeira que
um "governo" e uma "maioria" muito supostamente democráticos têm
vindo a representar na assembleia da república e nos diversos "discursos"
de pessoas (não seres humanos) que se acham no direito de decidir o futuro
e os direitos das pessoas que deveriam estar desde sempre consagrados em
lei, não só na constituição.

Estou de luto por mim, por ti, por nós. Tenho vergonha de ser portuguesa e,
na falta de palavras, resta-me mandar isto tudo à merda, e agradecer por me
terem morto em vida.

Obrigada a tod@s aquel@s que me têm lido. Se voltar a escrever, não será
tão breve e, se o fizer, já não será aqui.

Obrigada e até sempre.


domingo, Janeiro 26, 2014
Despida
Começo este post por agradecer a três pessoas que, com a sua força,
carinho, amizade e apoio, além do exemplo que sempre me deram, me
fizeram voltar a escrever. Cristina, Anabela e Fabíola. A todas elas
agradeço tantas lições do que é sobreviver, viver e sorrir, mesmo quando as
lágrimas nos escorrem pelo rosto. Muito obrigada a todas.

Não vou escrever sobre ser mulher. Não se é mulher, aprende-se, como
escreveu e afirmou Simone de Beauvoir. Eu aprendi a ser mulher, como
todas nós. Sou mulher, feminista, activista e muito mais. Sou tudo isto, mas
o que me define é o que sou para ti. Tu é que me defines enquanto aquilo
que és para mim, com o que me ensinas, com o que me dizes, com o que me
escreves. Eu sou um espelho de ti e tu reflectes-te em mim.

A minha família são aquelas pessoas que me amam, me aceitam e respeitam


como sou, não aquelas que dizem que o são. Muito menos aquelas que
trocam comigo o sangue que lhes corre nas veias. Essas são a suposta
família legal e oficial. Mas não são a minha família. Apesar do cliché, a
família de sangue não a escolhemos, a nossa verdadeira família, sim, somos
nós que a escolhemos e vice-versa. Família, para mim, não são aqueles que
se dizem ser e que nem sequer me conhecem, não estão sequer interessados,
não me aceitam, nunca aceitaram, não me respeitam, nem nunca
respeitaram. Esses não são a minha família. Na realidade, não me são nada.

Aqueles que me tocam de alguma forma, que me fazem sentir que vale a
pena estar viva, esses sim, são a minha família. São afectos, são cores, são
odores, são toques. É a festa da tua mão na minha, o riso quando eu digo
um disparate, ou apenas porque sim. É o olhar e saber o que pensas. É o
silêncio que se faz palavras. É estar e saber que estás ali. São tantas coisas e
tudo tão simples. Tudo tão válido para eu ser quem sou. Este universo que
partilho com algumas pessoas faz delas alguém para mim, e eu alguém para
elas. Este é o meu universo onde a tua alma entra.
Aprendi a ser mulher com tanta coisa que passei, com o meu corpo em
convulsões e a minha mente noutro mundo. Colhi aqui e ali pequenas coisas
que juntei num complexo puzzle que sou eu. Muita gente passou pela minha
vida. Muita já foi, outra tanta ficou. Mas se não fossem todas estas pessoas,
eu nunca seria quem sou. Sem vergonha do que sou, a saber quem sou, a
saber que sou um bocadinho de todas estas pessoas, da experiência delas,
do universo delas, que me fez aprender a ser eu.

Ser-se assim é ser-se livre. Podem tentar fazer o que quiserem, que eu serei
sempre eu. Humilhar-me, conspurcar-me, rebaixar-me. Mas na minha
mente, na minha alma não entram. Porque essa é minha. Essa sou eu. E aí
não entram.
Quando eu morrer, não morro. É este corpo que morre. Se a minha alma
fica algures, se o meu espírito voa para outro lado não sei, não quero saber.
Basta o meu amor ficar na memória de alguém, que eu não vou morrer. É
apenas esta casca que se desvanece. O brilho do meu olhar ficará eterno no
meio das estrelas. Eu sei que é assim. Por isso não tenho medo de morrer.
Aprendi a ser assim. Nasci sozinha e vou morrer sozinha. Mas o meu amor
ficará cá. E é isso que me importa, que me dá alento, que me faz seguir em
frente, mesmo quando me cortam a carne e me esmagam o coração. Com as
lições que todas estas pessoas me deram sei andar. Já não gatinho. O que é o
mais difícil neste mundo. Obrigada a toda a minha verdadeira família. Sem
vocês nunca teria conseguido.

Sem vocês não tinha aprendido a ser a mulher que sou. Aquela que é fraca e
forte. Sensível e bruta. Bonita e feia. Aquela dos opostos e compostos que
vocês conhecem. Com este universo tão inconfundível e complexo que é,
afinal, tão simples: é ser a Lara.

---> Fotografia: Inês Torres da Silva


domingo, Fevereiro 02, 2014
O mundo, os direitos e eu: uma pequena reflexão
Neste momento, aquilo que me surge diante dos olhos, e que só não vê
quem não quer, é um aumento exponencial de tentativas de calar vozes e de
branquear todo um percurso de anos, muitos anos, de activismo da parte da
comunidade LGBTI. Exemplos: a loucura no Brasil à volta do primeiro
beijo gay numa novela de horário nobre, o rebaixamento das mulheres trans
em que se sente cada vez mais uma transmisoginia, e um aumento de
violência contra quem pertence a esta extensa comunidade.

Nesta minha reflexão sobre o que se passa no mundo, não estão de fora o
crescimento dos preconceitos contra as pessoas LGB e Trans, e a
inequívoca discriminação que daí advém. Exemplos: no país do mundo em
que mais mulheres trans são assassinadas, o Brasil, viu-se esta semana o
primeiro beijo entre dois homens numa novela de horário nobre e foi a puta
da loucura. É como se tivesse vindo tudo ao de cima. O preconceito e o
recalcamento de tanta gente, tanto lá como cá, leva as pessoas a
supostamente conspurcarem um momento bonito com palavras sem
argumentos, com a religião (como não podia deixar de ser) em que nós
todos, pessoas trans, lésbicas, gays, bissexuais vamos todos arder no inferno
e tal.

O que é natural no ser humano, afinal não o é? Qual é a diferença entre um


beijo entre um homem e uma mulher, um homem e outro homem, uma
mulher e outra mulher??? Epá, desculpem lá, mas já não há pachorra para
tanta estupidez, ignorância e burrice. Por estas e por outras é que não
andamos para a frente e, pelos vistos nunca iremos andar. Se as pessoas
vivessem as suas vidas e não as dos outros, de certeza que estávamos todos
muito melhor. E neste assunto, por aqui me fico, porque não me apetece dar
demasiada importância a ignorância e preconceitos.

Transmisoginia. Ódio dirigido exclusivamente a mulheres trans. Já tinha


escrito sobre este tema há uns tempos atrás, mas volta a estar na ordem do
dia. Nos EUA assiste-se a vários casos de transmisoginia, que vão desde as
mulheres trans continuarem a ser tratadas como lixo, em que em talkshows
nós somos "trannies" (calão americano para qualquer coisa como
"traveca"), o que é altamente ofensivo para qualquer uma de nós, a
continuarmos a ter homens a desempenhar papeis de mulheres trans, seja no
cinema, seja na televisão.
Ou seja, há imensas actrizes trans nos EUA. Podia fazer aqui uma lista. Mas
quando há papeis de mulheres trans, são interpretados por homens. Para
mim, há aqui qualquer coisa que não joga bem. Ou seja (novamente), se o
papel for o estereótipo da mulher trans: prostituta, ninfomaníaca, cheia de
maquilhagem, silicone e saltos altos, lá chamam uma actriz trans (desde que
o papel seja pequeno também). Se for um papel diferente desse estereótipo
põem um actor. Apenas uma grande questão: por mais que esse actor seja
bom, por mais bem preparado que esteja, ele sente o que uma mulher trans
sente? Ele sabe o que é ser-se trans? Ele vai mudar, por instantes, de
identidade de género para saber o que nós sentimos, para saber como
somos?

Por outro lado, há algumas mulheres trans que estão a dar cartas e que são
um orgulho para todas nós, como Laverne Cox, que interpreta uma mulher
trans na série "Orange is the new black" e Carmen Carrera, que além de
actriz é modelo e tem excelentes hipóteses de ser o próximo "anjo" da
conhecida marca de lingerie Victoria's Secret. Aliás, são estas duas
mulheres trans que têm dado que falar nos EUA, desde que foram
entrevistadas num programa de televisão onde a entrevistadora estava mais
interessada em saber que genitais elas tinham entre as pernas do que com a
importantíssima relevância e destaque que estas duas mulheres estão a ter
em todo o mundo.

Por cá, nada de novo. Neste país à beira-mar plantado nós, mulheres trans,
continuamos todas a ser vistas como aberrações, freaks e algo de que se tem
que fugir, pois (parece-me) que isto se pega. As pessoas falam, falam muito
e falam demais. Ninguém sabe a dificuldade que é para uma mulher trans
arranjar um emprego ou um trabalho. Ninguém sabe como nós somos
tratadas numa urgência de um hospital, ou após uma cirurgia. Ninguém
sabe o que nós sentimos quando vamos tomar um café e, de repente, tudo
fica em silêncio e se acende um holofote em cima da nossa cabeça. Só nós
sabemos isso. Mas não custa nada tentar entender, tentar compreender.
Tentar ser humano connosco, como nós tentamos ser com os outros.

Mas não. Cada vez há mais intolerância. Nós nem direito a amar temos. Por
mim falo. Não tenho o direito a amar. Teria se "fosse mulher", como já me
disseram várias vezes. Como sou "trans" sou merda, sou uma boneca
insuflável, não tenho nem nunca terei os mesmos direitos que "as
mulheres". Ou seja (pela última vez), eu não sou uma mulher. Sou algo que
está num limbo. Tipo pareces mas não és, ou és mas não pareces, ou não és
carne nem peixe, ou, ou, ou... Resumindo, e fazendo desta triste estória uma
estória curta, eu, como mulher trans, não o sou, não tenho sequer o direito
de ser, dizem eles.

Pois, mas era só o que faltava. Não passei por tudo o que passei na vida, e
passo, para chegar agora e desistir. Isso nunca. Porque o que eu sou, sou.
Não é ninguém que me vai julgar, rebaixar e muito menos dizer-me o que
sou. Sou eu que me defino. Sou eu que sou. Não és tu, nem tu, nem o outro.
Já fui muito tolerante. Agora não sou. Já respeitei quem nunca me
respeitou. Agora não. Já tentei agradar, apenas na ilusão de que iria ser
aceite. Agora não. Podem retirar-me todos os direitos que acham que eu
tenho e não devia ter. Mas só por cima do meu cadáver. Porque nunca
ninguém vai saber o que eu sou. Só eu.

---> Fotografia de Cristina Piçarra/2013


sexta-feira, Fevereiro 07, 2014
Rússia Nazi, Transmisoginia e os preconceitos revelados
No dia em que começam os Jogos Olímpicos de Inverno na Rússia, decidi
fazer uma reflexão sobre a crescente "onda nazi e de extrema-direita" que
pulula um pouco por todo o mundo. Desde os EUA, em que o debate sobre
questões trans está ao rubro, até aos países de leste, onde incluo a Rússia,
onde pessoas com uma orientação sexual que não a "normal" a pessoas com
uma identidade de género diferente são perseguidas, humilhadas, torturadas
e assassinadas, convém termos bem noção das consequências que tudo isto
irá ter, e mais importante, que já está a ter.

Só não vê quem não quer. São diárias as imagens, os vídeos, as peças


jornalísticas sobre violações consecutivas e reincidentes dos direitos
humanos um pouco por todo o mundo. Curiosamente, ou não, o grupo de
pessoas que são geralmente as vítimas são pessoas do extenso grupo
LGBTI. No Brasil, as mulheres trans são perseguidas por todo o lado, e raro
é o dia em que não há, pelo menos, notícia de uma mulher trans assassinada
algures neste país, infelizmente nas estatísticas internacionais como aquele
onde mais mulheres trans são assassinadas em todo o mundo.

A Rússia está na ordem do dia com as suas recentes leis contra a suposta
"propaganda gay", e isto tem tomado tais proporções, que o presidente da
câmara da cidade organizadora dos JOI, Sochi, afirmou à comunicação
social que "não há, nem haverá, gays e lésbicas nos Jogos Olímpicos e na
cidade". Bem, isto soa-me tão disparatado como perigoso. Eles vão
controlar a orientação sexual e a identidade de género dos milhares de
visitantes e de todos os atletas? Mesmo daqueles que já assumiram
publicamente serem gays ou lésbicas? E o que fazem a estes atletas?
Expulsam-nos? Prendem-nos? Matam-nos? Sinceramente não entendo
como é que a entidade internacional que seleciona onde se vão realizar os
JO e os JOI, depois de toda esta polémica manteve a Rússia como país
anfitrião. Devia, isso sim, retirar a candidatura da Rússia e entregá-la a um
país que respeite as pessoas e, acima de tudo, a dignidade, a liberdade, e a
imensa diversidade do ser humano.
E da Rússia, onde deveria ter havido um boicote geral aos JOI, passo para
os EUA. Depois da "barracada" da entrevista televisiva realizada à actriz
Laverne Cox e à modelo e actriz Carmen Carrera, em que o enfoque da
senhora que as entrevistou foi o que é que, afinal, as duas tinham entre as
pernas, eis que mais uma vez, uma mulher trans é vítima de transmisoginia
na televisão americana. Janet Mock, mulher trans, activista e escritora,
acabou de ver sair para as livrarias o seu livro "Redefining Realness", onde,
segundo sei, entremeia a sua história de vida com várias questões
pertinentes para as pessoas trans, como a visibilidade, o coming out , a
transição e o mais importante: a identidade de género.

Com uma mente aberta e sempre atenta à realidade das mulheres trans, em
particular, Janet tem escrito crónicas deveras interessantes para jornais
americanos e para diversos sites e blogs. Com este livro, ela pretende dar a
volta à transmisoginia que cada vez mais existe por todo o lado, e dar um
enfoque humano, positivo e lutador às questões ligadas à transexualidade.
Pois bem, Janet deu uma entrevista a um programa da cadeia CNN, na qual
o seu entrevistador é um senhor que vem de pasquins de histórias que têm
tanto de cor-de-rosa como de escandaloso, logo não seria de esperar que a
entrevista fosse correr muito bem.

E não correu. As perguntas caíram nos habituais preconceitos e pré-


conceitos do que é ser-se uma mulher trans, Janet rebateu como podia, mas
o senhor desde referir que ela "nasceu homem" - ao que ela retorquiu que
"não nasceu homem, nasceu um bebé", como qualquer pessoa aliás, tentou
saber vezes sem conta afinal que genitália a senhora tem entre as pernas.
Vai daí, e como se vê, isto não correu nada bem e, apesar de Janet Mock se
ter defendido bastante bem, caímos na humilhação constante por que nos
fazem passar e de que ela foi vítima.

Após a entrevista, tudo o que é activista trans nos EUA se levantou contra a
forma como Janet foi tratada e a própria Laverne Cox, que já tinha passado
por algo semelhante, veio dar um basta neste disparate global da fixação
nos genitais, do preconceito estigmatizado do "era homem e agora é
mulher", cingindo-nos sempre a questões preconceituosas e secundárias e
relevando constantemente para segundo plano o nosso valor como
mulheres, sejamos actrizes, escritoras, modelos, trabalhadoras sexuais,
mulheres a dias, etc., etc. Realmente, meus amigos, já chega de bater nas
ceguinhas, porque acho que já estamos todas fartas da mesma conversa.

E toda esta carga de preconceito e discriminação, seja em relação à


orientação sexual, seja em relação à identidade de género, passa-se um
pouco por todo o mundo, e Portugal não é excepção. A onda imensa, até lhe
chamaria o "tsunami de extrema-direita" que está a inundar o mundo
também já cá chegou. É cada vez mais vulgar e comum uma mulher trans
ser discriminada na rua, num café, numa repartição pública, num hospital,
etc. Há cada vez mais ameaças à nossa integridade física, e as mulheres
trans têm cada vez mais medo de sair de casa.

Há uma transmisoginia latente nesta sociedade em que tudo se está a pôr em


causa agora. Convém, então, tomarmos como exemplo o que se passa lá
fora, para estarmos atentas aos sinais, cada vez mais visíveis, do que se
passa cá dentro e podermos actuar. Recuso-me a ter medo de sair à rua e
tomar o meu café. Recuso-me a ser tratada como lixo. Recuso-me a que me
reduzam à minha genitália. Recuso-me a viver em medo. Aliás, não o
tenho. Sempre dei a cara e continuarei a dar. Menos, convém ressalvar, para
programas de televisão ou entrevistas que tenham em vista explorar o que
aparento ser, não o que sou.

Resta-me agradecer a pessoas como Janet Mock, Laverne Cox, Carmen


Carrera, Monica Roberts e Isis King, entre muitas outras, que continuam a
lutar pelos direitos universais das mulheres trans. Por cá, a gente faz o que
pode. E continuará a fazer.
sábado, Fevereiro 15, 2014
O amor é terno e eterno
O amor surge inexoravelmente ligado à alma humana. Desde sempre que
este sentimento é referido quando se trata do ser humano, seja nas canções,
seja nos poemas, seja nas palavras que os enamorados sussurram ao ouvido
um do outro. O amor faz parte da vida, dizem. A morte também. Afinal o
que é o amor?

Eu não sei o que é o amor, no sentido amoroso do termo. Sei o que é amor
por um amigo, amor por um pai ou uma mãe, mas não sei o que é sentir
amor por outro que também o sente por mim. Aliás, acho que toda a estória
do enamoramento e de tudo o que cerca o amor entre duas pessoas é
altamente perturbador e causa ânsia, ciúme, desconfiança, torpor dos outros
sentimentos, e afastamento das outras pessoas, coisas nada positivas, na
minha modesta opinião.

Nas (muito) poucas alturas em que estive enamorada (não falo em amor,
mas sim em enamoramento), sentia aquela faísca, havia aquela atracção,
existia aquele torpor mental. Obviamente que esta é a minha experiência, e
não quer dizer que seja a dos outros. Afinal, este blog serve única e
exclusivamente para eu escrever sobre mim e sobre as minhas visões,
reflexões e experiências neste mundo. É-me indiferente que pensem ou
afirmem que este é um acto egoísta, de vitimização, ou de algo do género. É
para isso que serve a caixa dos comentários.

Eu acho que muita gente confunde o enamoramento com amor.


Enamoramento é um estado de pulsões, é uma paixão inflamada pelo início
dos sentimentos. Amor é, supostamente, um sentimento mais definido,
calmo, sereno, em que já não há a explosão e combustão que o
enamoramento nos dá. O facto de ontem se ter comemorado o dia dos
namorados ou de S. Valentim, levou-me a pensar e repensar um pouco o
que tem significado o meu amor na vida dos outros, e o amor dos outros na
minha.
Sei que já amei (no sentido amoroso do termo, agora). Não sei se alguma
vez me amaram. Se alguém realmente me amou, nunca o disse ou
expressou. Enamoramentos tive alguns. Aquela força arrebatadora que me
levou a cair nos braços dele e ele a abraçar-me e beijar-me, sim, claro que já
me aconteceu. Mas rapidamente acabou. Ou porque queimou depressa
demais, ou porque é mesmo assim, ou porque o enamoramento é isto
mesmo. E nunca ficou amor.

Não escrevo isto com amargura. Nunca estive realmente aberta aquilo que
se chama amor, acho. Tenho medo de me entregar, tenho medo de ser
magoada, sou humana, chiça! No final disto, fujo a sete pés de algo que
pode (ou poderia) transformar-se em algo mais. Por isso fiquei-me (apenas)
pelos enamoramentos, como se se tratasse de algo mais inócuo. Algo que
não deixa marcas. Algo que começa e acaba assim, sem mais nem menos.
Obviamente que estava enganada.

Ficaram marcas de algumas pessoas. Ficou mágoa, ficou tristeza, ficou


humilhação. E se o enamoramento é isto, então que dizer do amor? Não sei,
nem me cabe a mim dizer ou escrever nada. Não passei por essa
experiência. Passei e passo pela experiência de amar uma mão-cheia de
pessoas, a família que escolhi para mim. Mas esse é outro tipo de amor. É
incondicional, como todos os amores, mas não tem a atracção sexual que
implica o enamoramento e a paixão. Prefiro assim. Absolutamente inócuo.
Convém não esquecer que a minha "condição" de mulher transexual põe e
sempre pôs travões numa vida amorosa saudável. Admiro as mulheres trans
que conheço e que conseguiram (e conseguem) manter e ter uma vida
amorosa estável, saudável e bonita. Talvez também tenham tido alguma
sorte nas pessoas que escolheram para amar. Eu nisso, como em tantas
outras coisas, confesso não ter jeito nenhum. Também sei que é difícil para
qualquer mulher, que as mulheres cisgénero também se queixam do mesmo.
Pois queixam. Pois claro que é difícil para qualquer mulher. Mas no nosso
caso ainda é mais difícil.

Porquê? Porque, como mulheres trans, temos que lutar contra esse estigma
do que é ser-se trans, temos que combater preconceitos e pré-conceitos e a
discriminação diária. Logo, se alguém se aproxima, ou tenta, é natural que
nós estejamos bem mais de pé atrás do que uma mulher cisgénero que não
tem que passar por nada disto. Há aquelas que aproveitam o próprio estigma
e estereótipo para irem tendo uma vida amorosa, apesar de me parecer que
não se sentirão muito felizes ao fim do dia. E há aquelas que, como eu, se
afastam de tudo o que possa ter a ver com a palavra "amor" e se tornam
inócuas, assexuadas, e sim, muito provavelmente, bacocas.

O amor é algo que exige de nós muita coisa que não estamos dispostos a
dar. Provavelmente a recompensa será um bem-maior, mas aquilo que
ganhamos pode não superar o que perdemos. Não estou aqui a julgar
ninguém, muito antes pelo contrário. Estou apenas a verbalizar o que me
passa pelas células cinzentas. Há quem ame sempre a mesma pessoa ao
longo da sua vida, e há quem ame cem. Também sabemos que o príncipe
encantado e a princesa encantada não existem a não ser nos contos infantis.
Então porque é que umas pessoas "têm sorte no amor" e outras não?

Provavelmente por tudo aquilo que já aqui escrevi, talvez porque há quem
nasça para isso e outras não, talvez porque, como se diz, cada um de nós
tem a sua alma-gêmea e ela estará algures no mundo. Confesso que esta
ideia me agrada. De ter uma alma-gêmea. Posso, ou não, encontrá-la e ela a
mim.

Mas acho que o que realmente importa é termos os nossos momentos de


felicidade. E aí, para mim, o amor é secundário. Aliás, o amor amoroso não
entra sequer. Talvez um dia vos escreva precisamente o contrário (o que
duvido), mas por agora a minha vida é mesmo assim: não tenho esse tipo de
amor, não me diz nada, e não o vejo a fazer parte da minha vida.

Para quem "oh, l'amour c'est l'amour" só tenho que me sentir feliz porque,
em tantas partes do mundo e entre tanta gente ele existe. E existe porque o
amor é eterno.

---> Fotografia de Clara Azevedo - Todos os direitos reservados.


domingo, Fevereiro 23, 2014
As regras da atracção ou a falta delas
As regras da atracção. Sempre achei uma certa piada a esta frase, como se o
que sentimos por alguém pudesse ter regras, pudesse ser quantificado de
alguma forma, ou regido pelas estrelas. No que ao que sentimos diz respeito
não há regras, não há imposições, não há predefinições. Sentir é sentir.
Podemos é reagir numa certa linha ao que sentimos. Existe aí um instinto
que nos leve a aceitar ou rejeitar quase mecanicamente o que sentimos.
Escrevo sempre (ou quase) sobre o que sinto ou como sinto o mundo, as
pessoas, as situações que me rodeiam. Escrevo sobre a minha experiência
como uma mulher que teve o azar de nascer trans. Sim, considero-o um
azar, não uma sorte. Sorte, para mim, era ter nascido cisgénero. Isto não
implica que eu não me sinta minimamente bem na minha pele e que tenha
vergonha de ser quem e como sou. Nada disso. Apenas não faço, nem nunca
fiz, a apologia do "é tão bom ter-se nascido numa minoria dentro das
minorias e ser discriminada por toda a gente".

Temos pena, mas eu não sou assim. Eu não penso assim, nem vejo o mundo
assim. Sinto-me abençoada por ter nascido num mundo tão belo, mas onde
a esmagadora maioria das pessoas não presta. Mas a quantidade das que
prestam fazem-me sentir uma pérola perdida num oceano de mentes
mentecaptas e retrógadas. E isto tudo é emoção, é sentir. E é sobre o sentir
que este post fala.

Todas as mulheres sabem o que é sentir-se atraídas ou sentir que são o alvo
da atracção de alguém. Sejamos mulheres trans ou cisgénero, a estória é a
mesma. Todas nós reagimos é de forma diferente. Não posso falar ou
escrever sobre as outras, sobre a experiência delas. Apenas me posso cingir
à minha experiência sobre as famosas regras da atracção. Esta atracção que
é um sentir tão especial, tão leve, tão sub-reptício.

É algo que nos entra pela alma quase sem darmos por ele. Um olhar, um
gesto, uma palavra, um toque de raspão da mão dele na minha. Qualquer
coisa destas e muitas mais podem estar na base de algo muito forte, que nos
pode levar, ou não a algum lado. Todas temos esquemas mentais
emocionais pré-definidos para lidar com isto, quer tenhamos consciência ou
não. Eu, pelo menos tenho. E não tomei conhecimento disso há muito
tempo atrás.

Não gosto de jogos de sedução, confesso. E, quando acontecem, espalho-


me ao comprido. Existem jogos de sedução quando ambas as pessoas se
sentem atraídas, obviamente. Senão, eu nem percebo sequer que ele quer
alguma coisa, ou vice-versa. Sou muito pragmática, eu sei. Sim, sou-o até
na minha atitude perante a sedução, fase dois da atracção. Lembro-me de
ainda ser bastante jovem e sair à noite e notar que um rapaz me olhava de
uma forma "esquisita", achava eu. Quando percebia que aquela forma
"esquisita" de olhar não era mais do que atracção, corava até às pontas dos
cabelos, desviava o olhar automaticamente, só queria fugir dali.

Mas fugir porquê, perguntei-me anos mais tarde. Porque eu não me sentia
uma mulher como as outras. Porque eu me sentia diminuída em relação às
outras mulheres, fossem trans ou cisgénero. Sempre achei, no fundo, que eu
não estava à altura de um grande amor, que teria que começar, logicamente,
por uma atracção. Como não me sentia digna de tal, fugia. Mas sem ter a
real noção do que se passava comigo.
Obviamente que estas baralhações mentais e emocionais se devem muito ao
facto de uma mulher ou homem trans serem obrigados a viver praticamente
duas vidas numa só. Eu fui obrigada a comportar-me como "homem", algo
que nunca fui, e que rejeito liminarmente e sempre rejeitei. E com esta
"obrigação" social veio a revolta. Da minha aparente calma saía uma revolta
monstruosa contra tudo o que me estavam a tentar impingir. Valores sociais
que nunca me disseram nada, comportamentos que não correspondiam ao
que eu era, formas de estar e até de sentir que não eram meus. Nunca foram.

Quando dei o grito de revolta e parti a loiça toda, tudo isto se esboroou
como um castelo de areia. Virei uma terrível página da minha vida, uma
página de lavagem cerebral, e comecei do zero, a aprender a ser eu. E isto
reflectiu-se na minha relação com os outros. Deixei de aparentar para ser.
Mas era (e ainda sou) extraordinariamente naive em muita coisa ao que os
sentimentos e emoções dizem respeito. Aprendi que não há regras. Eu sou
única, como tu também. E eu reajo como eu, tu reages como tu. O problema
são as cicatrizes que ficaram.

E além destas cicatrizes emocionais ficou muita culpa. Muita mea-culpa por
ser quem sou. A santa ignorância e estupidez natural que paira socialmente
por aí diz que nós somos assim por "opção", ou então que é uma "escolha".
Se as pessoas tivessem um mínimo de tino na cabeça veriam
automaticamente que nada disto faz algum sentido. Mas em frente, pois não
vale a pena bater mais nos ceguinhos, já deu para ver que muito ou nada
muda ou mudará. E que mais tarde ou mais cedo, ainda acredito que as
pessoas vão entender quem somos. Caramba, está-me a dar um ataque de
optimismo!

Atracção. Ponto fulcral no início de uma relação amorosa, ou de um


enamoramento, ou o início de nada, que é mais a minha onda. Ao contrário
do que possam pensar, a minha líbido é igual à das outras mulheres. Sim,
não é por ser uma mulher trans que sou ninfomaníaca. Podia ser. Mas não
sou. Também não sou aquela mulher que seja muito física. Pois, realmente
não sou. Ainda por cima, não sou mulher de ter o mínimo de envolvimento
sem conhecer a pessoa, e ter uma atracção por essa pessoa. No fundo, o que
eu sou mesmo é uma gaja à antiga, tirando a parte do ir virgem para o
casamento.

Fora de brincadeiras, e como vêem, não correspondo em nada ao


estereótipo que existe da mulher trans. Sinto como as outras, sou como as
outras. Nada, no meu ser, é assim tão diferente de uma mulher cisgénero.
Nem a atracção e as suas regras ou falta delas. Uma das minhas, pelos
vistos, é "fugir" ou "afastar-me" quando me apercebo do que se passa. Quer
isto dizer que quando um homem se interessa por mim, eu tendencialmente
fujo a sete pés. Não, não deixo o sapatinho de cristal. Em geral deixo é uma
amargura no ar e tristeza no meu olhar.

Porque fujo? Não sei. Se calhar tenho medo de ser feliz, como já me
disseram. E os medos fazem parte de cada momento da nossa vida. Cheguei
onde cheguei porque os fui vencendo, um a um. Mas há medos que não só
nunca se perdem, como crescem com as más experiências. E eu confesso
que não consegui ainda ultrapassar muitos. Talvez por isso esteja viva. O
que não implica que esteja mais feliz, contente ou alegre.

No fundo, eu continuo a ser aquela miúda que foge de um olhar. Que se


esconde atrás de si mesma porque tem medo de sofrer. E objectivando isto,
tenho mais consciência de quem sou. E que a droga que a atracção solta no
meu sangue está viva, mas só eu a vejo. Não sejam como eu e mostrem-se.
Vivam a atracção sem regras. Ou façam as vossas próprias regras. O que
interessa é que sejam dignas e próprias de vocês. Regras da atracção?
Bullshit !

Fotografia: Clara Azevedo/2003 - Todos os direitos reservados


sexta-feira, Fevereiro 28, 2014
Os homens conseguem amar? Uma reflexão.
É uma reflexão interessante e que me surgiu depois de ler alguns textos e
crónicas sobre a capacidade ou falta dela de os homens amarem. Isto dá
pano para mangas, como qualquer assunto que tenha a ver com sentimentos
e emoções. Principalmente porque as mulheres são educadas e induzidas a
mostrar o que sentem, e os homens não.

E aqui entramos nas diferenças entre géneros e na própria expressão de


género. O antigo e eteno "os rapazes não choram" continua a fazer,
infelizmente, parte da educação de uma criança. Poucos são os progenitores
que educam uma criança a ser ela mesma. Quero com isto dizer, deixá-la
expressar-se livremente em todos os aspectos. Desde o intelectual racional
ao emocional.

Naquilo que eu conheço, o machismo pós-latino continua a ser um "must"


na educação e criação das crianças, seja qual for o género delas. Os lugares-
comuns são tantos, que estava aqui horas a fazer uma lista. "Os meninos de
azul e as meninas de rosa". Mas o que é isto? Isto é a mais pura
representação desta sociedade machista em que até as cores têm género.
Ridículo, no mínimo.

A capacidade amar dos homens é reflectida por este tipo de educação. Há


factores como a testosterona exageradamente alta que afecta o
comportamento dos homens (e também das mulheres), e não tenho dúvidas
de que os nossos cérebros são diferentes, mas a expressão de género que
cada rapaz assume reflecte tudo aquilo que aprendeu e apreendeu e que vai
repetir, mesmo que com outras nuances.

Um homem com uma expressão de género extremamente masculina pode


demonstrar uma sensibilidade extraordinária. Como um homem com uma
expressão de género e feminada pode ser extremamente bruto, agressivo e
de forma aparente, nada sensível nem emotivo. Dentro do espectro dos
vários tipos de homens, encontramos tudo, como também no caso de nós,
mulheres.
Mas o homem ama de uma forma diferente. O homem é naturalmente mais
físico que a mulher. É mais sexual. Não quero com isto transmitir a ideia de
que nós, mulheres, somos frigidas e que também não somos sexuais. Mas
uma mulher antiga, como eu, necessita de um tempo que só o conhecimento
e a empatia com o outro traduzem, que muitas mulheres, e os homens não
necessitam.

Nada contra uma relação começar na cama. Tantas e tantas começam assim.
Mas comigo é difícil que tal aconteça. Principalmente, e lá vou eu outra
vez, porque já estou escaldada com o estereótipo da mulher trans
ninfomaníaca, prostituta, oferecida, dada, tudo com conotações mais que
negativas, sendo que somos vistas e transformadas em bonecas insufláveis.
E, se eles nos vêem assim, temos pena, eu não compactuo nem nunca vou
compactuar com isso.

Claro que os homens amam. Cada um ama à sua maneira. Mais correcta ou
mais errada. Mas para alterar este tipo de mentalidades teríamos que
começar de novo e educar os miúdos a serem eles, livres, sem restrições
negativas, ensiná-los a lidar com os seus sentimentos e não agir por defeito.

Não nos podemos esquecer é que no nosso país continuam e continuarão a


morrer mulheres às mãos dos homens. Isto acontece por causa de muita
coisa que referi, e porque a mulher continua a ser considerada um suposto
pertence do homem. "Não és minha, não és de ninguém". E o resto da triste
estória já nós sabemos. Vemo-la quase todos os dias nos jornais, nos
noticiários, sabemos de casos que nos contam.

Ninguém pertence a ninguém. Duas pessoas amam-se e completam-se sem


necessitarem deste tipo de possessão, deste tipo de ciúme, de doença, que
uma sociedade, essa sim doente, nos transmite. Uma sociedade que diz que
nós, mulheres trans somos aberrações, freaks e coisas que tais. Uma
sociedade que não admite que uma criança tenha duas mães ou dois pais,
como se isso fosse anti-natura. Anti-natura é uma sociedade que cria
monstros preconceituosos e que discriminam tudo aquilo que,
supostamente, é diferente.
Nada é igual. Logo, tudo é diferente. Então nada disto faz sentido. Os
homens amam, sim. Mas amarão com muito mais amor e entrega se lhes for
retirada esta carga tão pesada do macho-latino. Quando deixar de se
misturar uma velha e arcaica moral judaico-cristã na vida e nos sentimentos
e emoções de uma criança. Ainda sonho com uma sociedade em que todas
as diferenças sejam elas quais forem sejam respeitadas por todos. Em que
nós, mulheres, possamos amar sem medo, e que os homens possam amar
sem ter que se armar. E tenho dito.
domingo, Março 02, 2014
Vulnerabilidade
A nossa própria vulnerabilidade surge-nos perante os olhos mais cedo ou
mais tarde na vida. E, quando se vive praticamente duas vidas no espaço de
uma, vemos isso com mais clareza. As coisas não acontecem só aos outros.
Quem nós julgávamos ser uma coisa, provavelmente não o é. A eterna
mutabilidade dos outros e de nós próprios é sempre motivo para uma
reflexão.

Sempre me questionei sobre os meus instintos. Será que eu estava a sentir


algo real ou apenas fruto da minha imaginação e desejo? Será que aquelas
pessoas que eu julgava serem uma coisa afinal eram outra? Nós mudamos
mesmo, ou vamo-nos revelando com o tempo? Todas estas questões e
muitas mais rodopiavam e rodopiam na minha mente, na tentativa de
encontrar respostas a questões que, mais do que existenciais, fazem parte do
nosso crescimento interior e se reflectem na forma como nos damos aos
outros.

As pessoas revelam-se com o tempo. Disso não tenho dúvidas. Há aquelas


que em pouco mais de cinco minutos te apercebes de quem e como são, e
há aquelas em que este trabalho de observação demora anos. Não quero
simplificar aqui algo tão intenso e complexo como a alma humana, o ser-se
humano, mas há pessoas mais simples de descodificar do que outras, isso
todos sabemos. É uma experiência que toda a gente tem.

E, no caso de uma mulher trans, como eu, as pessoas revelam-se, algumas


mudam mesmo, quando nós "supostamente transitamos" de um género para
o outro. Há quem te aceite e respeite e se mantenha a teu lado, mas a
esmagadora maioria desaparece e há até quem passe para o outro passeio
quando se vai cruzar contigo na rua. E a noção real de que a tua vida muda
começa aqui. Tens um processo interno a decorrer, mas na prática, a atitude
dos outros em relação a ti faz-te ver a realidade tal e qual como ela é.

A mim fez-me ver quem eram as pessoas realmente importantes para mim,
na minha vida real. Algumas acompanharam a minha transição, outras
surgiram durante, poucas vieram depois. É como se fôssemos leprosas nos
tempos do antigamente. Não me interessa que discordem, pois a realidade é
mesmo esta. E, pior, pessoas que deveriam saber perfeitamente pelo que
estamos a passar, outras pessoas trans, essas são capazes de nos discriminar,
humilhar e maltratar ainda mais do que os outros.

Fala-se muito de uma suposta "comunidade trans". Não existe em Portugal


e duvido que algum dia exista. Pois parece-me que, no caso das mulheres
trans, estão todas mais preocupadas em ser "mais femininas" e "mais
mulheres" do que as outras, indo buscar os estereótipos e o exacerbamento
do que é ser-se mulher e do que é aparentar-se com uma mulher.
Sinceramente nunca consegui entender isto, este tipo de atitude muito bem.
Se uma mulher trans é operada diz que é mulher ou mais mulher do que as
mulheres trans que não o são? Chego, então, à conclusão que ser-se mulher
é ter-se genitais femininos e ter um look feminino. Ser-se não passa
praticamente nada pelo que se sente e se sabe que se é. Passa por aparências
quase exclusivamente.
Visto por este ponto de vista, então eu não sou mulher como estas são. Eu
não as discrimino, como não discrimino ninguém, mas sou alvo da
discriminação delas. O respeito que deveria haver, o espírito de comunidade
que deveria existir não há, pura e simplesmente porque umas discriminam
as outras! Caramba, apesar de todas termos experiências de vida diferentes,
confesso que não entendo este tipo de atitudes, que muitas vezes, são de
uma falta de respeito, de educação, de formação, que a mim me choca.

Chego à conclusão que o ser humano não consegue viver sem competição.
Diariamente tem que se competir com os outros para sermos nós próprios.
E, realmente as pessoas mudam. Regra-geral para pior. Mas esta é apenas a
minha opinião baseada na minha experiência de vida. As pessoas, por
razões que muitas vezes desconhecemos, passam de nos tratar bem a tratar-
nos abaixo de cão. E inventam supostos factos sobre a nossa vida que
parecem estórias mirabolantes saídas de um filme. E fazem-nos mal,
prejudicam-nos, e nós não podemos fazer nada. Nada a não ser fecharmo-
nos.

As coisas acontecem todas na nossa vida. Essa mania que as pessoas têm
que tudo só acontece aos outros é uma forma de tentarem vencer o terrível
medo que isso lhes aconteça também a elas. Cheguei a uma fase na minha
vida em que já posso fazer um pequeno balanço. Aquilo que consideramos
e sabemos ser mau está aqui ao nosso lado, como está ao lado dos outros.
Aquela sensação de invencibilidade, de super-poderes que eu tinha até há
uns anos, já não a tenho. Sou vulnerável, sinto-me vulnerável. Porque nós
sentimos tudo na vida, mesmo que o tentemos negar. E o que sentimos mais
é o que dói. Precisamente porque é a dor que nos marca mais.

Seja a dor de perder alguém, seja a dor de estar doente, seja a dor da
solidão. Estou vulnerável, mas na realidade sempre o fui. Não tinha era
sequer a noção disso. Mas a vida, com os factos a decorrerem fez-me ver
que eu era como os outros em tudo, até na dor. Diferente, mas igual. Porque
toda a gente sente a dor. E, infelizmente, a vida é mais feita de dor do que
de alegria, ou momentos de felicidade.
E esta vulnerabilidade fez-me mudar. Revelo-me apenas a quem quero.
Mostro apenas aquilo que desejo. Mas a Lara que escreve estas linhas é já
muito diferente da Lara que escrevia há quatro, cinco anos atrás num outro
blog qualquer. Estou mais consciente do que me rodeia. Tento dar mais
importância ao que realmente a tem. Já não me deslumbro por nada.
Porque, tal como referi acima, as aparências não são nada. Não se consegue
viver de aparências se queremos ser verdadeiros connosco próprios.

Não descobri nenhuma verdade. Cresci e descobri mais questões. Deve ser
a isto que chamam de maturidade.

---> Make Up Artist, Cabelos e Fotografia: Pedro Miguel Silva


sábado, Março 15, 2014
As aparências desiludem
O que interessa são as aparências. Não aquilo que tu és, mas aquilo que
pareces ser. Nunca, como hoje, o mundo gira à volta desta aparente
dualidade. Se eu sou linda, mas burra que nem uma porta ondulada, acabo
por ser valorizada por essa suposta beleza e não pela pessoa, pelo ser
humano que sou. Se eu tenho a ousadia de me mostrar como sou, sou total e
completamente ostracizada.

Este paradigma da aparência versus essência aplica-se a tudo. O falso


moralismo, a cretinice, a hipocrisia, a ignobilidade estão cada vez mais
presentes e até ultrapassam o simples facto de eu ser uma e aplicam-se a
todos. E isto viu-se ontem na Assembleia da República.

Algo tão natural como ter pais - e pais aqui são, além de ter um pai e uma
mãe, ter duas mães ou ter dois pais - é negado a um enorme segmento da
população por criaturas que não têm nem consciência, nem vergonha na
cara e muito menos coluna vertebral.

Desde sempre que deveria ser normal (odeio esta palavra, mas não encontro
outra) e natural duas mães terem bebés, dois pais terem bebés, como é
"normal" um pai e uma mãe terem. Todo o "complicadíssimo" processo que
leva a isto é tão simples como respirar. Faz parte da natureza humana
querer-se ter filhos. Não é a nossa orientação sexual que define isso. E este
direito inalienável a qualquer pessoa, qualquer casal, deveria estar
consagrado naturalmente e na constituição de qualquer país.
É incrível e totalmente absurdo ainda estarmos a falar de direitos humanos
em pleno século XXI. Como o meu direito a ser quem sou, a exprimir-me
como quero, sem ser humilhada, achincalhada, e tratada como uma
aberração só porque sou uma mulher trans. Nasci assim, assumi e assumo
quem sou, sofri bullying a minha vida toda e continuo a sofrer. A diferença
agora é que o bullying que me aplicam se reveste de formas diferentes, mas
não menos cruéis e humilhantes que aquelas de que eu era vítima na altura
do liceu e por aí fora.

Sendo uma mulher madura nada muda. E se muda, muda para pior. Não há
nada pior que o ser humano, que a sua crueldade, egoísmo e pura maldade.
Seja por que motivo for, há sempre alguém pronto a tratar-me como "o
senhor", a rir-se de mim com a cumplicidade de outra quando entro no café,
a olhar-me de cima a baixo com desdém quando vou ao supermercado. É
que eu não sou, para esta sociedade de merda, tão pessoa, tão mulher, tão
digna como qualquer outra.

Fala-se muito de discriminação. Pois, mas devia-se falar mais. É que a


discriminação reverte-se de muitas formas e o bullying diário é uma delas.
E muito mais em pessoas que, de alguma forma, alteram o seu aspecto para
que este se coadune mais com aquilo que elas são. Não que "pensam que
são", como já me disseram. Ou outra igualmente boa, "você é gay ou
mulher, mulher?". Amigo, gay é um homem que gosta de homens. Se eu
sou mulher, sou mulher, não gay, né? É que mulher gay soa assim um pouco
estranho.

E este bullying reflecte-se ainda mais quando a nossa aparência "não é


passável", como se diz muito no Brasil. Eu não sou passável. Partindo do
princípio que "ser-se passável" é passar por mulher, eu não sou. Eu sou
mulher, não quero passar por mulher. Mas cada cabeça sua sentença, e
aquelas mulheres trans que têm a sorte de serem "passáveis" acabam por,
não só terem a vida muito mais facilitada, como acabam por não ser vítimas
de bullying diário.

Ninguém as olha nos olhos e lhes dá a entender que tem nojo delas.
Ninguém lhes estende a mão para lhes dar um aperto de mão, ou lhes
pergunta se têm mesmo mamas ou se aquilo é um soutien almofadado.
Obviamente que isto não acontece, porque elas "parecem mesmo
mulheres". Ok, entendi a mensagem há muito tempo.

Numa sociedade que regride, em vez de progredir, digo que, infelizmente,


este tipo de situações são "normais". Já me habituei a todo o tipo de
disparates, desde ditos a atitudes, a olhares. O que não quer dizer que aceite
isso, que me cale, ou que baixe a cabeça. Mas é assim, sendo que o bullying
vem sempre mais da parte dos homens do que das mulheres cisgénero, já
para não falar das próprias mulheres trans que discriminam as outras.

O estereótipo da mulher trans tarada, super-sexy, toda siliconada continua e


pelos vistos vai continuar a ser a forma que esta sociedade doente tem de
tolerar pessoas que nasceram com uma pequena diferença. O tipo de
homem que se interessa por uma mulher trans também é um estereótipo:
regra-geral casados ou comprometidos com mulheres cisgénero, nunca
assumindo um papel na estória, e que desejam inversão de papéis. Sim,
porque nós só servimos para sexo. As outras, as "mulheres de verdade" é
que têm direito a casar-se com eles, a viverem com eles, a serem amadas.
Nós somos "os animais sexuais".

Resta-me estar sossegada no meu canto e dar-vos a todos e todas um grande


"bem vindos ao maravilhoso século XXI".

---> Make Up Artist, cabelo e fotografia: Pedro Miguel Silva


domingo, Março 30, 2014
Filmes, papeis trans e genitalocentrismo
Ao longo dos últimos 20, 30 anos, muitos e muitas foram os actores e
actrizes que desempenharam papeis de pessoas trans. Ultimamente, e
devido ao facto de um actor ter ganho praticamente tudo o que havia para
ganhar ao desempenhar um papel de uma mulher trans, várias questões se
levantam: porque é que nunca uma actriz trans ou actor trans ganhou um
Óscar, porque é que os papeis de pessoas trans nunca são desempenhados
por pessoas trans, e porque é que, regra geral, os assuntos focados nestes
filmes são sempre e invariavelmente, underground?

Há um "genitalocentrismo" nestes argumentos que além de me irritar


profundamente, releva as pessoas trans novamente para "nasceu homem e
agora é mulher" ou vice-versa, "agora é uma mulher de verdade" (porque
realizou a cirurgia de correcção genital), além do eterno vislumbre das
mulheres trans como trabalhadoras sexuais/ninfomaníacas, cheias de
silicone e todos os estereótipos que se possa imaginar, aplicando-se o
mesmo aos papeis de homens trans: parecem mulheres butch , comportam-
se como cowboys dos idos 1800s e tal, e arranjam sempre maneira de
porem o espectador na dúvida do que está a ver.

Tudo começa na cabeça do ou dos argumentistas e dos seus preconceitos,


por mais interessante que a história seja de contar. Claro que depois passa
pela pré-produção, realização e, muito importante, casting dos actores ou
actrizes. E do que significa ser-se um actor ou actriz. Confesso que já li um
pouco de tudo sobre a importância de serem pessoas trans a desempenhar
papeis de pessoas trans, não me considero fundamentalista em nada, mas
tenho que concordar que estes papeis deveriam ser desempenhados por
pessoas trans.

A comparação que encontro e que muitas activistas usaram para defender as


actrizes e actores trans foi: já passámos, felizmente, o tempo em que actores
brancos pintavam a cara e o corpo para fazerem personagens de negros;
também já passámos o tempo em que, nos westerns, os índios eram
representados por actores brancos com a pele pintada, umas perucas
ridículas e umas penas na cabeça. Acho que também já chegámos a um
ponto em que temos actrizes e actores trans que podem representar homens
e mulheres trans, sem recorrer a pessoas cisgénero.

Porque, além de um bom argumento (e houve-os e há-os de certeza), só


uma actriz trans consegue um ponto de empatia com uma personagem trans,
que uma mulher ou homem cisgénero, por melhor actor que seja, não
consegue. Vi excelentes actuações de actores e actrizes cisgénero de
pessoas trans, mas faltava sempre qualquer coisa. Na maioria das vezes soa
a falso. Para mim, há três desempenhos que considero bastante bons, dos
muitos filmes com temática trans que vi: Felicity Huffman em
"TransAmerica", Hillary Swank em "Boys Don't Cry", e Jaye Davidson em
"The Crying Game". Todos foram, curiosamente, nomeados para um Óscar,
que destes três exemplos que dei, só Hillary Swank conseguiu com a
personagem do homem trans Brandon Teena.

Não quero tirar o mérito a ninguém, nem dizer que A é melhor que B ou
que C. Apenas que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. E
que, só nos EUA, há grandes talentos trans que nunca tiveram a
oportunidade de serem escolhidos para papeis relevantes, ou até para papel
algum. Candis Cayne, Calpernia Addams, Laverne Cox são apenas alguns
dos nomes de três grandes actrizes trans que raramente tiveram
oportunidade de ter um papel de relevo. Depois de Candis Cayne ter feito
um papel na (fraca) série televisiva "Dirty, Sexy, Money", eis que, pela
primeira vez, uma actriz, Laverne Cox, tem um papel de relevo e é elogiada
por toda a crítica e grandes audiências na série "Orange Is The New Black".
Em ambos os casos, temos duas actrizes trans a fazer o papel de mulheres
trans.

Uma actriz é uma actriz e deve fazer que tipo de papel for. O outro lado da
moeda. Sim, uma actriz que seja uma mulher trans também deve
poder fazer o papel de uma mulher cisgénero. Mas não é, para mim, a
mesma coisa. O tipo de experiência de vida de uma mulher trans confere-
lhe um know-how que uma mulher cisgénero não tem. Nós, como eu
própria já referi várias vezes aqui, nos meus posts, vivemos, pelo menos,
duas vidas numa só. Uma mulher cisgénero não.
Agora, os (tristes), regra-geral, papeis atribuídos a actrizes e actores
cisgénero sobre pessoas trans. Raramente não são genitalocentrados. Ou é a
mulher trans que ainda não é operada e vai ser, ou é a que esconde que não
é operada e quando se descobre cai o carmo e a trindade, ou é, no horrível e
triste caso real de "Boys Don't Cry", o caso do homem trans que é violado e
brutalmente assassinado quando se descobre que ele não é operado, ou seja,
não nasceu com pilinha.

Para mim, o grande problema nos argumentos, especialmente na elaboração


psicológica e física das personagens e o seu percurso de vida, é o
preconceito e o esterótipo que os próprios argumentistas têm. Tirando o
caso de "Boys Don't Cry", que é baseado numa história real, e mais um ou
outro, a esmagadora maioria dos argumentos que incluem personagens trans
são elaborados a partir de preconceitos e pré-conceitos do que é (ou devia
ser) uma mulher trans ou um homem trans.
E a eterna obsessão que as pessoas a nível geral têm pelo que temos no
meio das pernas é sempre revelado e exacerbado nestes filmes. Por mais
que remexa na minha memória, não encontro papeis de mulheres trans que
não fossem genitalocentrados. E já não há pachorra, sinceramente. O nosso,
meu corpo, não é propriedade pública. Ninguém tem o direito de violar, sim
violar, a minha privacidade e intimidade com perguntas sobre a minha
genitália. Já bati no ceguinho e vou continuar a bater, porque parece que as
pessoas não se tocam: o meu corpo é meu e só a mim me diz respeito o que
quer que tenha a ver com ele.

Nós somos mulheres e homens. O que pode interessar aos outros é quem
nós somos, o que temos para dar, o nosso talento, a nossa opinião, o nosso
choro, a nossa alegria. Já chega de se imiscuírem na nossa intimidade e
fazerem um esforço para nos conhecer como somos e acima de tudo de nos
respeitarem, independentemente do que temos no meio das pernas. Porque
não um filme com personagens trans que explore a riqueza do ser humano e
não caia no eterno e sinistro interesse genital?

E aqui embatemos na transfobia. A transfobia mata. Mas a transfobia não


nos mata só o corpo. Antes disso mata-nos a alma.
terça-feira, Abril 08, 2014
Transfobia: reflexões sobre uma pandemia
trans·fo·bi·a
(trans[exual] + -fobia)
substantivo feminino
Repulsa ou preconceito contra o transexualismo ou os transexuais.

"transfobia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha],


2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/transfobia [consultado em 08-04-
2014].

Começo este post por colocar uma palavra que, apesar de não estar nos
dicionários de Língua Portuguesa há muito tempo, faz parte da minha vida e
de tanta gente como eu. Aliás, sempre fez parte, a partir do momento em
que me assumi como mulher transexual.

Falar de transfobia daria para um livro daqueles bem calhamaços, pois são
tantos os casos, desde o bullying transfóbico, à agressão verbal, física e, em
grande parte dos casos em assassinato brutal.

Começou-se a falar de transfobia em Portugal há muito pouco tempo.


Praticamente, só a partir do tristemente mediático caso de Gisberta Salce
Júnior, mulher transexual selvaticamente torturada, espancada, violada e
assassinada por um grupo de rapazes na cidade do Porto, em 2006 é que
esta palavra foi entrando no nosso quotidiano.
Com o alastrar dos partidos de direita e, principalmente, de extrema-direita
na Europa e um pouco por todo o mundo, a transfobia tem vindo a aumentar
a olhos vistos. Numa sociedade que se desejaria em evolução, estamos
perante um horrível vislumbre do passado. O ódio. Ódio contra tudo o que é
supostamente diferente, e as mulheres trans são, sempre, um alvo a abater.

Basta ver o Brasil. País próspero, enorme, e em que não há um dia em que
uma mulher trans não seja assassinada. Neste momento o Brasil encontra-se
na frente da contabilidade de mortes por transfobia. Na frente pelas piores
razões. Infelizmente. E esta transfobia existe também aqui, apenas
suavizada pela aparente "aceitação" de um povo que sempre foi conhecido
pelos seus "brandos costumes". Mas, cada vez mais, deixa de ser assim. Os
costumes já não são brandos, e a transfobia e todo o tipo de preconceitos e
discriminações aumenta e torna-se cada vez mais visível.

A suposta evolução humana chegou a um ponto em que todos os valores


são postos em causa, sendo que aqueles que mais protegidos deveriam ser,
não o são. Os nossos direitos, os direitos humanos. E os grupos sociais mais
pequenos, como o caso da minoria trans, são os que mais discriminados são.
Por outro lado, existe cada vez mais uma visibilidade trans que não existia
há pouco tempo atrás. Se, por um lado a transfobia aumenta, por outro
várias pessoas trans tornam-se alvo de atenção mediática pelos melhores
motivos.

Seja no Brasil, realmente um país de contrastes e contradições, seja nos


EUA, por exemplo. No Brasil, várias mulheres trans têm dado nas vistas a
nível internacional como as modelos Lea T., Felipa Tavares e Carol Marra,
actrizes trans começam a conquistar o mercado das novelas, apesar dos
pequenos papeis, como Maria Clara Spinelli e Patrícia Araújo. Nos EUA,
cada vez mais as mulheres trans se tornam visíveis e assumidas em todo o
tipo de cargos, desde actrizes a modelos, passando por políticas, senadoras,
professoras, etc.

Ou seja, apesar da transfobia reinante, muitas de nós conseguem alcançar


lugares e patamares sociais como quaisquer outras mulheres. Obviamente
que nenhuma delas teve um caminho cor-de-rosa, pois não há grande
glamour na vida de uma mulher trans. Pelo menos na minha. Todas elas
tiveram que batalhar o dobro do que uma mulher que o nasceu
biologicamente para chegarem lá. E, curiosamente, muitas são tão sinceras
nas entrevistas, como eu o sou, tanto no dia-a-dia, como naquilo que
escrevo.

Confesso que admiro cada vez mais Laverne Cox, actriz norte-americana,
que numa entrevista em que se falava da série em que ela participa, "Orange
Is The New Black", assumiu que não se considera "passável" como mulher.
Fiquei espantada e orgulhosa pela sua sinceridade. Nunca tinha lido ou visto
uma entrevista com uma mulher trans em que alguma assumisse tal coisa. O
que me colocou a questão do ser "passável" como mulher.

Esta expressão implica que nós temos que ser identificadas como mulheres
biológicas quando olham para nós. Mas isto também implica que ser-se
"passável" pode ser qualquer tipo dentro do imenso espectro de mulheres
que nasceram mulheres que existe. E Laverne orgulha-se de ser uma mulher
trans e mostra-nos que não temos que ter vergonha, que tentar ser algo que
não somos, apenas para nos auto-identificarmos como mulheres. Somos
como somos e assim, podemos chegar onde quisermos. Basta querermos e
lutarmos por isso.

E, para ela e tantas mulheres trans negras numa América racista e xenófoba,
deve ter sido com toda a certeza bem mais difícil do que para outras
mulheres trans. O "passável" significa para nós, pessoas trans, algo muito
difícil, mas também muito importante. Pelo menos sempre o foi para mim.
Mas a vida, as experiências por que passamos, moldam-nos. Modificam-
nos. E, se olham para mim e não vêem uma mulher, não é um problema
meu, é um preconceito dessa pessoa. Sou como sou, "passável" ou não, e as
pessoas têm que me aceitar e respeitar como sou.

Mas a transfobia também nos molda. Obriga-nos a ver o mundo e as


pessoas com outros olhos. E a olhar por cima do ombro quando vamos na
rua. A transfobia está a marcar cada vez mais as pessoas trans, a
discriminação diária esgota qualquer um. E quando vivemos numa
sociedade não-inclusiva, e em que mesmo a comunidade LGB não nos
inclui como o deveria fazer, mais afastadas dessa sociedade e dessa
comunidade nós ficamos.
Ser-se uma mulher transexual não é vergonha nenhuma. Ser-se transfóbico,
isso sim, é.
quinta-feira, Abril 17, 2014
Fiel a mim própria
O que eu sou para ti tu não és para mim. A maior parte da nossa vida
funciona desta forma. Em mais um período de profunda reflexão, surgiram-
me acontecimentos de há dez anos atrás. Foi na altura em que,
supostamente, eu tinha tudo, mas afinal não tinha nada.

Fala-se muito e escreve-se demais. Supõe-se que as coisas na vida de uma


mulher trans se passam de certa forma, mas só quem o é sabe o que se
passa. A vida familiar é extremamente complicada na maioria dos casos, a
amorosa nem se fala e a nível laboral, muito poucas conseguem fugir ao
estigma da prostituição.
Como já escrevi aqui várias vezes, a minha família foram e são as muito
poucas pessoas com quem me cruzei na vida e que empatizaram comigo e
eu com elas. Algumas mantém-se lá, outras não. Mas, como sabemos, cada
um tem a sua vida, e as circunstâncias desta afastam-nos quase sempre.
Principalmente se nós (eu) formos mulheres transexuais. Família de sangue
é algo de que nunca falei e não é agora que o vou fazer, também porque não
há nada a dizer. A minha família real é a que está no meu coração.

A nível amoroso é algo equivalente há uns 50 anos atrás. Os preconceitos


são os mesmos, a discriminação a mesma, o estigma o mesmo. Os mais que
batidos clichés do homem que se interessa por uma mulher trans (como eu)
é gay, todas as transexuais são trabalhadoras sexuais, ninfomaníacas no
mínimo, sermos tratadas como "os" e não "as", tudo, tudo se mantém. Das
duas uma, ou tens muita sorte na vida (sim, porque também é preciso ter
sorte), ou passas mais de metade da tua vida a lutar contra estes
preconceitos e estupidamente à espera ou à procura que te apareça um
homem diferente, que pense de maneira diferente.
Há dez anos atrás acabou o único "relacionamento" que tive que durou mais
que um ano. Coloquei relacionamento entre aspas, porque ter alguém com
quem quase não se conversa, com quem nos encontramos duas ou três vezes
por semana e basicamente só para sexo não se coaduna com o que eu
considero ser um relacionamento amoroso sério. Ah, tirando o facto de ele
não sair à rua comigo, de ir para os copos com os amigos aos fins-de-
semana, ah, e nunca ir ter comigo quando havia jogo do Sporting. Pois é,
até nisso o amor pela bola era mais forte.

Isto até podia dar vontade de rir, se eu não me tivesse sentido tão "estranha"
no meio daquela relação sui generis . E que só durou o que durou porque o
sexo entre nós era muito bom, tenho que reconhecer. E não, ele não é gay, é
h e tero, e não, não me tratava como "o", aliás, nunca teve um acto falhado
e sempre me tratou como a mulher que sou. Pelo menos numa coisa aquela
abécula acertou. Eu gostava dele. Não vou dizer que o amava, porque não
podes amar quem não conheces. Eu não o conheci porque ele não o quis.
Tudo aquilo teve sempre uma morte anunciada. Eu é que não queria ver.
Era demasiado inexperiente. Ainda via tudo cor-de-rosa. Era parva e naive.

Se fosse hoje, nunca me sujeitaria, que foi o que na realidade aconteceu, a


uma coisa deste tipo. Sexo não é tudo, até pode ser muito pouco, ter alguém
para não estar sozinha não faz parte do meu feitio, e hoje em dia não admito
as faltas de respeito que ele teve comigo na altura. Sinceramente, ter
vergonha de mim??? Ter vergonha de sair comigo à rua??? Ter vergonha
que os amigos e família soubessem??? Pois é. É mesmo assim. E nada disso
mudou. Pelo que vejo e observo, hoje em dia as coisas continuam
literalmente iguais, quando não são piores.

Nós, mulheres trans "não passáveis", enfrentamos um tipo de discriminação


ainda mais forte e diferente daquelas que são "passáveis" e autênticas capas
de revista. Somos travestis, homens com mamas, quer dizer, quando não
perguntam se não é um soutien almofadado, somos "os". E nenhum homem
hétero quer ter um relacionamento com uma mulher assim. Sim, porque
essa dos gays se interessarem por nós, além de ridículo, já ninguém
aguenta. É assim: um homem gay sente-se sexualmente atraído por outros
homens, certo? Pois, e eu, nós, somos mulheres, ok? Logo, uma mulher
trans não terá relacionamentos com homens gay, certo? Pronto, a ver se
entendem.

Bem que eu e muitas outras mulheres trans tentamos desconstruir estes


preconceitos e pré-conceitos, mas é extraordinariamente difícil, pela forma
como estão enraizados e têm passado de geração em geração. E esse
homem, meu ex-qualquer-coisa não fugia à regra. As coisas acabaram e
cada um seguiu o seu caminho. Não me arrependo de me ter relacionado
com ele. Acho que, no fundo, ele até é uma boa pessoa. Mas era mais aquilo
que nos separava do que aquilo que nos unia. E ele era limitado demais,
limitava-se a ele próprio, como a esmagadora maioria das pessoas, não só
homens faz.

Pensar nisto tudo agora traz-me alguma tristeza. Porque conheci várias
pessoas ao longo da minha vida, conheço hoje em dia algumas pessoas, mas
a minha transexualidade é um impedimento para algo mais se desenvolver.
Mesmo que um diga que não, que gosta de mim como sou, que me aceita e
me respeita como sou. Isso não é, de todo, verdade. A verdade, no meio
disto tudo, é que socialmente, familiarmente, amorosamente e por aí fora,
vou sempre ser vista como alguém que nem devia existir. Que devia morrer
de vez e ser esquecida. Esta é a realidade.

Não há príncipes encantados, não há famílias cor-de-rosa, e a sociedade é


uma merda. Pois é. Agora temos duas opções: ou vivemos com isso, ou não.
Tento sempre dar alguma esperança e alento a quem me lê, mas agora torna-
se cada vez mais difícil. Porque não há perspectivas, porque o ódio contra
nós é cada vez maior, a transfobia cresce a olhos vistos.

No meio de tudo isto, resta-me a mim e a vocês mantermo-nos fiéis à única


coisa que realmente vale a pena: nós próprias.

---> Make Up Artist, Cabelos e Fotografia: Pedro Miguel Silva (2012)


segunda-feira, Abril 28, 2014
Chega!
O que mais me faz impressão é a frieza das pessoas. Não o facto de serem
fechadas, mas o facto de serem estanques. Ninguém, chego eu à conclusão,
tem uma aprendizagem do que é carinho, do que é partilha, do que é
preocupares-te com alguém.

Vivem todos numa bolha que se encheu através do seu umbigo e as aflições,
tentativas de desabafo, carícias, carinhos, beijos, toques, são-lhes
repugnantes, não conseguem conceber a ideia de que isso lhes aconteça a
eles.

Não há uma cultura de carinho, de toque. As pessoas não se tocam. Se se


tocam isso deve querer dizer alguma coisa. Porquê? Não posso tocar numa
pessoa porque, pura e simplesmente, gosto dela, dar-lhe um beijo, dizer-lhe
uma palavra agradável, um elogio?

Não. Isso não existe. Como a eterna treta do Homem, quero dizer
Humanidade, ser um animal social é o maior embuste de sempre. O Homem
é mau, frio, capaz das maiores atrocidades mesmo a quem, supostamente
deveria gostar, estimar. Famílias não existem. Existem pessoas que, por
acaso, se entendem bem na sua frieza. Mas não há, nunca há, empatia real,
amor, carinho.

Porque tu tens que estar aí, senão estás a entrar no meu espaço, no meu
domínio. Independentemente de seres “do meu sangue”, “amigo”,
“namorado”, whatever . Se ultrapassas a linha e vens com tretas tipo tocar-
me e dar beijinhos, ou algo que tal, é porque queres alguma coisa.

Ou seja, não posso dar um beijo ou fazer um carinho numa pessoa que
gosto sem querer nada em troca? Tudo isto é muito triste, mas é a realidade
dura e pura. E aquelas pessoas que nascem diferentes, como é o meu caso, e
cometem o duplo erro de serem socialmente excluídas (porque sou uma
mulher transexual) e sentem carinho e ternura por quem gostam, sem
quererem nada em troca, são maltratadas, humilhadas mais do que cães
abandonados e espezinhadas a vida toda.

Foi para esta merda que eu nasci? Agora, sinceramente, foi? Se foi para
isto, para este mundo de cabras e cabrões egoístas, egocêntricos, frios e com
o mal a florescer em cada poro, então não sei porque nasci. Aliás, nem sei o
que faço aqui ainda.

Há relativamente pouco tempo desejaram-me a morte. Pode ser que,


naturalmente, ou não, lhe(s) faça a vontade. Assim já podem enfatizar ainda
mais com as vossas línguas viperinas e conspurcadas o quão “princezinha”
eu fui e que sempre me armei em vítima.

Querem uma vítima? Querem achincalhar-me ainda mais. Força. Por mim,
sinceramente, FUCK YOU!
quarta-feira, Maio 28, 2014
As duas vidas de uma trans
Há muito tempo que penso no assunto, e acontecimentos recentes fizeram-
me revoltar ainda mais contra a transfobia e transmisoginia de que sou
vítima, bem como muitas outras mulheres trans que conheço (e não só).
Como não posso falar por ninguém a não ser eu própria, vou reflectir um
pouco sobre o facto de, após a minha transição, uma esmagadora maioria de
pessoas não só me continuarem a tratar no masculino (algo que nunca fui)
e, tão ou mais grave, me chamarem pelo nome de baptismo.

Confesso que o que despoletou a minha vontade de escrever directamente


sobre este assunto foi uma peça jornalística que li online, passada em
Inglaterra. Esta peça, apesar de se referir a casos do reino de sua majestade,
reflecte perfeitamente o que se passa por cá, e provavelmente pela maior
parte dos países europeus (e não só). Por um lado, apenas são referidos
casos de mulheres trans com cirurgia de correcção sexual feita, como se o
culminar da transição fosse esse para todas as mulheres trans, fazendo com
que as mulheres trans que não se operaram porque não quiseram, não
puderam por motivos de saúde ou monetários, ou por qualquer outra razão,
são mulheres diferentes das outras.

Ou seja, antigamente tínhamos as mulheres cisgénero de um lado e as


mulheres trans do outro. Agora já temos as cisgénero, as operadas e as
outras. Dentro do próprio universo trans há cada vez mais discriminação
entre as "verdadeiras" transexuais (as operadas) e as "falsas" transexuais, ou
as outras, as que fizeram a sua transição e não fizeram a cirurgia de
correcção sexual. Transfobia de mulheres trans contra mulheres trans. E
isso leva a que as mulheres trans operadas discriminem as outras e achem
que têm mais direitos apenas porque tomaram uma opção (sim, a cirurgia é
uma opção) que as outras não tomaram. Só que todas nós somos mulheres
trans e termos feito a cirurgia ou não não se reflecte em nada na nossa vida
do dia-a-dia. Apenas na vida privada e no bem-estar pessoal.

O título desta crónica, "as duas vidas de uma trans" tenta fazer com que as
pessoas se apercebam e fiquem alerta para vários pontos: ser-se trans não é
uma opção, nem uma escolha; ser-se trans implica que um dia deixamos de
viver num determinado género e transicionamos para o outro; ser-se trans
não implica nunca uma cirurgia de correcção de sexo; ser-se trans implica
que, quando transicionamos, as pessoas nos tratem com o pronome correcto
e pelo nome que escolhemos para nós.

Eu acabei a minha transição ao fim de uns longos 12 anos, quando,


finalmente, pude e consegui mudar o meu nome e o meu género para
aqueles que deveriam ter sido sempre. Mas as pessoas não respeitam isso,
em nada. Se possível, fazem o oposto: desrespeitam-te. Tratam-te como um
homem, porque afinal "nasceste homem" - ninguém nasce homem, nem
mulher. As pessoas nascem bebés. Apesar de já teres feito todas as
alterações que desejavas e oficialmente os teus documentos já respeitarem
quem tu és, quem não os respeita e te desrespeita são os outros. Tratam-te
pelo nome de baptismo, o que, no meu caso, já me dá vontade de desatar
aos palavrões e bofetadas em quem se atrever a voltar a fazê-lo.

Se esperas que a cirurgia de correcção sexual altere alguma coisa, como já


referi atrás, não, nem por isso. Ninguém sabe o que tens no meio das
pernas, e convém frisar bem que ninguém tem nada com isso a não seres tu
própria, logo levas por tabela na mesma, a não ser os poucos casos em que a
mulher é "passável" (implica, supostamente, que "ninguém diria que não
nasceste mulher", apesar de eu discordar deste termo). Ou seja, és
discriminada socialmente por seres quem és, e és discriminada pelas outras
mulheres trans, porque elas são operadas e tu não. Elas são mulheres, tu
deves ser qualquer coisa "inbetween".

O que as pessoas têm que perceber é que tu não és aquela pessoa que estava
nos antigos documentos, naquelas fotos, e que aquele nome nunca te disse
nada, nunca te identificaste com ele. A única coisa que tu tens em comum
com a identidade antiga é a essência. Eu continuo a ser a mesma pessoa na
minha essência. Não me transformei noutra pessoa só porque assumi quem
eu era: uma mulher trans.

É imperioso que as pessoas, sejam família, antigos colegas ou colegas de


trabalho, conhecidos, etc., aprendam a olhar para ti como tu és e te
respeitem como és agora. Aquela outra pessoa foi noutra vida, não
corresponde a ti. O que corresponde a ti é como estás agora, o nome e o
género que constam do teu cartão do cidadão. As pessoas têm que aprender
a respeitar. Porque elas estão habituadas a ser respeitadas, mas não estão
nem aí para respeitar uma pessoa que acham, no mínimo, estranha, e que
julgam sem conhecer tudo o que está por detrás da história de vida dessa
pessoa.

Já escrevi e frisei aqui imensas vezes que, acima de tudo, nós, eu, exigimos
respeito. Mas, na prática, o que existe é desrespeito, preconceito e
discriminação. Vindos de todos os lados.

Eu sou a Lara, 42 anos, 12 de transição, mulher transexual. E é assim que


quero e tenho o direito a ser tratada. O passado passou. Acabou. Morreu.
Foto © Pedro Medeiros
Projecto AGUARELA - Combate à Discriminação pela Orientação
Sexual e Identidade de Género
Campanha de arte pública, a decorrer de 17 de Maio a 30 de Junho de
2014
Organização: Saúde em Português
q uarta-feira, Junho 04, 2014
Universo T - uma reflexão
A minoria dentro das minorias. É assim que podemos, de forma
simplificada, definir as pessoas trans. Somos mulheres e homens em que o
género – seja a identidade ou expressão – se encontram sempre fora da
suposta “norma”.

O binarismo de género, ou seja a dicotomia homem-mulher não se aplica a


grande parte das pessoas trans. Há pessoas trans que não se sentem nem
homens nem mulheres, há pessoas trans que se identificam como mulheres
mas nada ou pouco alteram o seu corpo e vice-versa, há pessoas trans que
alteram todo o seu corpo para caberem na sua sentida identidade de género
masculina ou feminina.

Tanto se tem falado, escrito, discutido sobre o universo T, e tão pouco se


sabe ainda, ou se quer saber. Um dos últimos estudos feitos sobre pessoas
trans detectou pelo menos 500 tipos diferentes de identidades de género.
Como falar então numa simples dicotomia mulher-homem?

Há quem se sinta mulher. Há quem se sinta homem. Há quem não se sinta


nada dentro destes dois géneros. O género é um longo caminho de tons de
cinza entre o preto e o branco. E cada um de nós se encaixa algures dentro
desse imenso espectro, o que raramente é visto com bons olhos.

A comunidade LGB existe por si só e discrimina muitas vezes a


comunidade T. Ou seja, o T está lá mas é como se não estivesse. Por isso
também se discute cada vez mais se o T lá deveria estar, ou se deveria ser
uma categoria à parte. Afinal, identidades trans não são orientações sexuais.
Uma pessoa trans pode ter qualquer orientação sexual. Uma mulher trans
pode ser hetero, lésbica ou bi. O mesmo se passa com um homem trans.

Acima de tudo há que ter a noção plena de que muitas pessoas que se
identificam como transexuais não sentem necessidade de fazer a cirurgia de
correcção de sexo. Chega de genitalocentrismo. Esta cirurgia pode ser uma
consequência de se ser transexual, nunca uma causa. Chega de nos
considerarem doentes mentais.

Nós não somos doentes. Somos diferentes. Como cada pessoa é da outra.

Chega de transfobia dentro da comunidade LGBT.

Só no dia em que nos aceitemos uns aos outros como somos realmente
alguma coisa mudará. O respeito verdadeiro e honesto verá a luz do dia, e
então poderemos falar de uma verdadeira Comunidade. Até lá, a
intolerância e a falta de respeito imperarão, como agora se passa.

A transfobia mata. Cada vez mais. Qual será o nosso futuro então?

Lara Crespo, 3 de Junho de 2014


Este meu depoimento foi escrito para a apresentação que Ana Rita Brito,
Coordenadora do Projecto AGUARELA - Plano de Iniciativas para o
Combate à Discriminação pela Orientação Sexual e Identidade de Género,
da ONG Saúde em Português, fez na tertúlia "Transformar", realizada em
Coimbra.
sábado, Junho 28, 2014
A pílula (nunca foi) dourada
Chegamos a uma fase da nossa vida em que nada mais interessa do que dar
valor a quem realmente o merece e a quem demonstrou e/ou demonstra que
nos aceita, que gosta de nós e nos respeita. E, conforme os anos vão
passando, as décadas da nossa vida vão passando, apercebemo-nos que a
paciência é necessária em muita coisa, mas por outro lado, já nos falta para
quase tudo.

No outro dia teclava com um "amigo" (está entre aspas, pois até acho que
ele gosta de mim e me considera amiga, mas tem preconceitos demais para
eu o considerar amigo a sério) quando ele me diz que eu, apesar da idade,
"ainda estava um naco" e que "os gajos não se aproximavam porque os
preconceitos são muito grandes e eles não têm coragem". Ou seja, algo que
para ele era dado como adquirido, era algo que eu sei desde sempre, seja eu
"um naco" ou não.

Obviamente que ele também falava por si. Afinal, eu e ele andámos anos
até nos envolvermos e tudo ficou por aí, pois ele depois desapareceu
durante mais de um ano. Resumindo, eu "sou um naco" (o que está
implicitamente ligado à minha sexualidade) e é apenas para isso que sirvo,
tal como o estereótipo típico da mulher trans. E "descobri" que eles até para
darem uma queca com "o naco" têm receio de se aproximar porque alguém
pode ver, saber, etc., porque os "preconceitos são muito grandes" e eles não
os conseguem ultrapassar.

Portanto, eu, mulher transexual de 43 anos, mesmo que quisesse ter um


relacionamento com um homem nunca iria conseguir, pois eles nem para
uma queca têm coragem, seguindo o raciocínio do meu "amigo". E na
realidade ele até tem razão. Por diversos motivos, as mulheres trans estão
intimamente ligadas a "taradas sexuais", "objectos sexuais" e prostituição,
nunca como a vizinha do lado, a mulher que vai ao teu lado no metro, a
executiva, etc. Por mais que se lute para mudar as mentalidades e se mostrar
que nós, mulheres trans, somos mulheres, ponto, a visão social que existe
de nós é exactamente a que ele me deu como feedback .
E eu, sinceramente, já estou muito cansada de andar a batalhar contra este
tipo de imposições sociais, pelos vistos sem algum sucesso. A
discriminação é diária, o assédio é mais que muito e de uma agressividade
que não a mesma utilizada com as outras mulheres, e no meio de todas estas
imposições é praticamente impossível ter uma "vida normal" como
qualquer outra pessoa. Numa frase: és uma mulher trans não tens direito a
ser quem és, ou refraseando, és uma mulher trans logo não tenhas essas
ideias que podes ter um companheiro e ter uma vida comum (o caso das
mulheres trans lésbicas é diferente).

É triste, pelo menos para mim, mas a vida de alguém que não se encaixa
nem se consegue encaixar de forma alguma numa sociedade como esta, em
que não somos aceites nunca, apenas toleradas e só em certas ocasiões,
chegar a esta idade e deparar-me com a "verdade" que me perseguiu toda a
vida. Relacionamentos falhados, noites que poderiam ser dias e nunca
foram, paixões nunca correspondidas apenas porque sou quem sou,
humilhação, agressão verbal e física, assédio ordinário e vulgar, perda total
de autoestima e o fechar-me dentro da minha concha, reduzindo-me à
minha insignificância.

Este podia, e se calhar devia, ser um post alegre, feliz, mas não é. Andei
demasiados anos a tapar o sol com a peneira para agora dourar a pílula. Ela
não é, nem nunca foi dourada. Cabe a cada uma de nós tomar consciência
disso cedo, e aprender a viver com este handicap, ou, como eu fiz, passar
uma vida inteira e muito complicada, para chegar à conclusão que as coisas
são como são, e mesmo que eu me descabele toda, não as vou mudar em
relação a mim.

Mas sinto necessidade de escrever e reflectir sobre elas aqui, para as


objectivar, e com alguma sorte, alertar e ajudar alguém que me leia. É para
isso que serve o meu blog, quer gostem, quer não.
Créditos:

Capa: © Inês Torres da Silva – designit

Foto de Capa: © Pedro Medeiros

Ma ke Up Artist : Pedro Miguel Silva

Textos © Lara Crespo

Fotografias de: Pedro Medeiros, Clara Azevedo, Inês Torres da


Silva, Pedro Miguel Silva, Eduarda Alice Santos, Cristina
Piçarra e Ricardo Castelo Branco

Agradecimentos:
A toda a gente que me tocou de alguma forma ao longo destes anos, o meu
muito obrigada e o meu amor e carinho incondicional. Seria impossível
listar aqui toda a gente, mas vocês sabem quem são. Deixo apenas alguns
agradecimentos especiais, e que não poderia deixar de fazer.

Eduarda Alice Santos , por tudo

Sérgio Vitorino , pelo apoio incondicional

Sandra Gomes , por estar sempre lá

Ana Rita Brito , pela oportunidade e ajuda

Pedro Medeiros , pelo inesgotável talento e apoio

Jó Bernardo , pelo meu desabrochar

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