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Este livro não pretende ser uma auto-biografia, nem nada que se pareça.
Este livro pretende ser um local de reflexão para pessoas trans e cisgénero
(não trans) sobre a esmagadora maioria daquilo que me passou pela cabeça
durante uma longa parte do processo clínico de transexualidade.
Não se pode ver um texto como uma peça tresmalhada. Todos os textos
faziam sentido para mim na altura em que os escrevi, e todos juntos
compõem uma imagem de mim, e de várias das minhas facetas. Sou muito
imperfeita, mas muito consciente. Sou directa e honesta e nunca deixei de o
ser.
Logo, não esperem ler nestas páginas uma ode à suposta perfeição humana,
de que tudo corre bem, de que basta a nossa força de vontade para
conseguir tudo.
Espero que quando terminarem de ler este livro entendam e percebam que
aquilo que eu sou se resume a uma palavra: Mulher.
Lara Crespo
domingo, Agosto 05, 2007
Hurt...
A inspiração costuma vir-me com a noite. Mas não me parece que seja o
caso de hoje. Estou doente, cansada, e a morrer de calor. Felizmente parece
que o tempo vai arrefecer. O que se conjuga mais com a minha alma, com o
meu coração.
Estou magoada. Estou triste. Estou deprimida. Estou com medo. Estou com
raiva. Estou com ódio. Estou hiper-sensível. Estou fria. Estou dura. Estou
crua.
Estou farta. Farta de ser magoada. Farta da vida que levo, mas não tenho
forças para mudar. Talvez, porque no fundo, tudo está a mudar na minha
vida. Preciso de uma bússola. Preciso que me guiem. Preciso que me tirem
do fundo. Preciso do ar da superfície.
Não quero ver nenhum dos meus pais morrer. Jurei a mim própria que
morreria antes deles. E assim vai ser. Não vou aguentar. Não vou suportar a
dor. Porque de dor, toda esta já me chega.
A dor...
terça-feira, Agosto 07, 2007
Lara, Muta ou Tacita...
Não sabia se existia alguma ninfa ou deusa com o meu nome, mas a
curiosidade levou-me a procurar hoje no Dicionário de Mitologia Grega e
Romana de Joël Schmidt, editado pelas Edições 70, 1997, o significado de
Lara (ou seja, o nome que escolhi para mim e com o qual única e
exclusivamente me identifico).
" Lara . Deusa romana do Silêncio, Lara, que tem por vezes os sobrenomes
de Muta ou Tacita, é a heroína de uma lenda contada por Ovídio nos
Fastos.
Ninfa do Almo, ribeira que desagua no Tibre, ela recusou ceder às ordens
de Júpiter. Ele ordenara às divindades das ribeiras que o ajudassem a
raptar Juturna, por quem estava apaixonado. Pior que isso, Lara foi contar
todos os projectos do galante Júpiter a Juno e a Juturna.
" Larunda (ou Larunde, Laranda, Lara) era uma Náiade ou ninfa, filha do
rio Almo na Mitologia Romana. Ela era famosa tanto pela sua beleza como
pela sua loquacidade - uma característica que os seus pais tentaram
refrear. Ela era incapaz de guardar segredos, e assim revelou à esposa de
Júpiter, Juno, o seu caso com Juturna (ninfa companheira de Larunda, e
esposa de Janus). Por atraiçoar a sua confiança, Júpiter cortou a língua de
Lara e ordenou a Mercúrio, o mensageiro, que a conduzisse a Averno, a
entrada do Mundo Infernal e reino de Plutão. Mercúrio, no entanto,
apaixonou-se por Larunda e fez amor com ela no caminho. Lara então
tornou-se a mãe de duas crianças, conhecidas como Lares, deuses
invisíveis guardiões dos lares. Mas ela teve que permanecer escondida
numa casa nos bosques para que Júpiter não a encontrasse."
domingo, Agosto 19, 2007
De que falamos quando falamos de amor...
Hoje dei por mim a pensar no significado das relações amorosas. Porque
lhes chamamos "amorosas", se na grande maioria nem amor há, e porque
nenhuma deu resultado na minha vida.
Pus o namorar entre aspas, pois não posso chamar namoro a uma relação
que se baseou essencialmente a uma intimidade entre quatro paredes, e a
uma intimidade mais sexual do que emocional.
Foi o único homem que amei na minha vida. Apesar dos pesares, estivémos
juntos mais de um ano. Depois de tudo ter terminado da parte dele, pois, e
passo a citar "tenho vergonha de namorar contigo", e, "não estou
apaixonado por ti, não te amo nem nunca te amei, mas na cama havia
amor". Só porque sou uma mulher Transexual, isso não significa que me
possam magoar da forma e da maneira que lhes apetece. O que significa
não me amar, mas haver "amor" sexualmente??? Mas o que é isto??? E ter
"vergonha" de namorar comigo??? Pois, mas para fazer sexo comigo já não
havia vergonha.
E é isto que eu vejo cada vez mais. Os homens têm vergonha de namorar
comigo. Não por eu ser A ou B. Sim, porque sou Transexual. Pelos vistos
isso faz de mim menos mulher que as outras. Porquê? Porque não tenho
mamas? Porque os meus genitais são iguais aos deles?
Como sou Transexual sou vista apenas para estar de perna aberta entre
quatro paredes. Não interessa se sou inteligente, mais ou menos culta,
sensível, enfim, um ser humano. E foi precisamente o ser humano que sou
que o Jorge de Odivelas não respeitou. Eu amei, ele fodeu. Eu entreguei-
me, ele não. Eu estava pronta (que tonta que eu era!) a ir viver com ele, um
homem que não me amava e que ainda por cima tinha vergonha de mim!
Amor? Não conheço. E duvido que a maioria das mulheres o conheça vindo
do seu companheiro.
Só amei uma vez. E descobri que não vale a pena acreditar em algo que não
existe. Amor é uma quimera. Uma ilusão. E essa dor do sonho desfeito
ficará comigo até à campa.
Lara
sábado, Setembro 01, 2007
"As Tardes da Júlia", e o futuro...
Mais uma semana que passou, e que começou bastante bem, melhor do que
eu esperava. Fui convidada, mais três meninas, a ir ao programa da TVI,
"As Tardes da Júlia", falar sobre a minha experiência pessoal enquanto
Transexual Feminina ou Mulher Transexual.
Confesso que estava muito nervosa, apesar de não ser o meu primeiro
directo, mas fui tão bem tratada por toda a equipa, desde a produção, aos
jornalistas, à maquilhadora e à cabeleireira, e pela própria Júlia Pinheiro,
que tudo se tornou fácil (entre aspas, pois nunca é fácil falar de nós e do
facto de sermos umas proscritas sociais).
Como ainda não tive hipótese de ver como saiu, pois apenas um amigo
gravou, falo apenas da experiência de estar lá, com uma audiência
exclusivamente feminina no plateau. E eu senti-me bem ali, relaxada
quando entrei em directo, plena de consciência e das minhas razões. Apesar
da mágoa que sentia no peito e que todos os dias me faz lembrar de quem
sou. E da minha dor.
Espero que o feedback tenha sido bom e que a minha experiência, bem
como das outras três convidadas, Eduarda, Verónica e Débora, possam
contribuir para ajudar tanta miúda que anda aí perdida em si e no mundo,
sem saber o que fazer. Eu tenho tentado ajudar no que posso. Sei que o meu
caminho nesta vida passa por aí. Ajudar os outros. Só não consigo ajudar-
me a mim própria. O que acho que é natural.
E enquanto o fim da minha caminhada aqui não chega (sei que está
próximo), vou lutando como posso, ajudando como posso. Só espero que a
grande maioria das Mulheres Transexuais que irão ler isto não o vejam
como o assumir de uma derrota. Muito antes pelo contrário. Vocês têm que
lutar o mais que possam pelo vosso direito a uma vida digna, a um amor, a
uma grande felicidade. O que eu escrevo de mim são os desabafos de
alguém que não teve a mesma sorte que vocês irão ter.
Mas lembrem-se sempre: lutem pela vossa felicidade, passe ela por onde
passar, pois se vocês não o fizerem, ninguém o fará por vocês.
Isto é o que se chama passar de "bestial a besta". E como vêem, tenho tido
provas de que isto se passa, mais ultimamente, talvez por causa das
trovoadas, das pancas, do facto de eu ser uma Mulher Transexual pré-
operada, talvez porque não correspondo às expectativas de quem se tenta
aproximar em demasia (you know what I mean...).
Ainda por cima estou debilitada, pois estou com uma tendinite no braço
esquerdo que me tolda os movimentos, e estou prestes a ser operada ao
peito (espero eu!). Na próxima semana já sei quando vai ser, e lá vou eu
para mais alguns exames, análises, etc.
Sei que falo também com uma pequena pontinha de inveja, pois adorava ser
mãe, e esta seria a altura ideal, pois já estou a ficar velha, e quando a
criança fizesse 20 anos, já eu teria 56. Tipo avó-neto/a. Mas também nunca
faria parte dos meus planos ser mãe sem ter um pai para essa criança, que
teria que ser adoptada por motivos óbvios.
E como não existe "pai", vou sendo "mãe" um bocadinho, dos filhos dos
amigos e, principalmente, da minha sobrinha, que já vai com oito
Primaveras. Linda, inteligente e toda arrebitada! Tem a quem sair...
Hoje reparei numa lua pálida quando vinha para casa de carro. A Eduarda
estava alheia nos seus pensamentos, enquanto conduzia, e eu olhava pela
janela do carro, observando as luzinhas lá em baixo, as da ponte, as dos
faróis dos carros, sempre com aquela luz ténue presente.
Presente como a minha dor, que teima em não passar. Uma dor feita de
muita tristeza, de um lar desfeito, de um amor perdido para sempre, mas
que teima em ficar, e de tanta, tanta coisa mais. Hoje chorei. Chorei muito.
As lágrimas caíam como se os meus olhos fossem fontes. Disse à Eduarda
que nunca consegui esquecer o amor que sinto pelo Jorge de quem já falei
aqui.
E a nossa vida é feita de intuições. Eu sempre intui em mim que era uma
Mulher, apesar dos meus genitais dizerem o contrário, e do choque das
transformações na puberdade. Foi uma das piores fases da minha vida.
Desejar que as minhas ancas alargassem, que o meu peito crescesse, que a
minha cintura se afunilasse, e na realidade, tudo correr ao contrário. Chorei
baba e ranho, mas não havia nada que eu pudesse fazer na altura. Nem
sequer sabia o que era a Transexualidade, nem sabia que existia. Era tão ou
mais ignorante que a maioria das outras pessoas, pois sempre houve muito
pouca informação deste(s) assunto(s), talvez por ser um dos grandes tabus
da sociedade judaico-cristã em que vivemos.
Daí surgiu a grande confusão na minha cabeça, e o não saber quem era, na
realidade, nem o que fazia aqui. Só mais tarde e depois de algum
conhecimento pessoal e muita introspecção consegui perceber o que de tão
"errado" se passava comigo. E tratei de mudar essa situação, o que faz de
mim hoje, e apesar de sofrida e escaldada, uma Mulher igual a qualquer
outra, independentemente do que digam. "Vozes de burro não chegam ao
céu".
Mais uma vez voltei a estar uns tempos ausente deste meu espacinho de
histórias e "estórias" da minha vida. A inspiração nem sempre vem, e,
apesar de estar desempregada, acabo por ocupar os meus dias com várias
coisas.
Confesso que apesar de sempre ter desejado ter peito, houve um período em
que reneguei esse desejo, pois não via saídas viáveis. Obviamente que o
facto de eu passar dentro de pouco tempo a ter mamas, não vai fazer de
mim mais mulher. Vai, isso sim, fazer-me sentir melhor e mais feliz comigo
própria, com a minha imagem de mim.
Porque, como sempre digo, "não é uma vagina que faz uma mulher".
sábado, Outubro 27, 2007
Kylie e o flagelo do cancro da mama
Começo este post por agradecer todos os (muitos) emails que recebi e o
comment da Mente Assumida a desejarem-me muitas coisas boas e que
retornasse a estas páginas. Muito obrigada a tod@s sem excepção.
E, nada melhor do que dar as boas vindas ao regresso de uma Mulher que
muito admiro pela sua coragem, postura, profissionalismo e carisma (além
de ser geminiana como eu!), Kylie Minogue .
Recuperada, agora, ela volta com um novo visual, muy Marilyn Monroe, e
uma estética puramente deliciosa dos anos 50, misturada com os novos
materiais do século XXI.
Como podem observar pela foto que se encontra aqui, entre outras no seu
site, (junto com este post estava uma foto promocional da cantora, que por
motivo de direitos de autor não pode ser colocada aqui) Kylie é agora uma
nova mulher, como acredito piamente que qualquer mulher das tantas,
infelizmente, que lutam contra este mal pelo mundo fora, rejuvenesçam a
sua alma quando vencem.
Mas nem todas vencem, e conheço vários casos, como tod@s vocês devem
conhecer, de mulheres DE TODAS AS IDADES a quem foi diagnosticado
cancro da mama. E eu, apesar de não ter nascido biologicamente mulher, já
passei a minha quota parte de terror quando, há uns tempos atrás, fiz a
palpação do meu (pouco) peito e me deparei com dois nódulos: um grande e
um pequeno. Em pânico fui ter com o meu endocrinologista na altura, que
me mandou fazer todos os exames possíveis: análise ao sangue para
detecção de tumores (atenção que tumores podem ser benignos ou malignos
e só neste último caso serão cancro), mamografia e ecografia mamária.
Andei em pânico os dias que duraram até ter os resultados. Mas a médica
que me fez a ecografia mamária avisou-me logo que, não só não lhe parecia
mais nada além das fibroses criadas pelo desenvolvimento das glândulas
mamárias, como no caso das mulheres Transexuais se costuma e deveria
optar por próteses mamárias o mais cedo possível, de forma a decrescer a
quantidade de estrogéneo ingerido, e consequentemente a possibilidade de
desenvolver cancro. Eu tive MUITA sorte. Não era mesmo nada, além de
glândulas inchadas e duras.
Atenção que não sou nem uma falsa virgem, nem uma falsa puritana, nem
me considero uma ressabiada (como muitas e muitos anormais por aí
dizem), apenas acho que há lugar para tudo, e respeito tudo, desde que não
interfira com a minha vida pessoal. E o grande problema é que começa a
interferir, pois não há uma conversa na net (então aí é demasiado óbvio, não
é?), uma conversa de café, uma conversa num bar, em que o olhar de "vou-
te comer" e as palavras "provocadoras" não estejam estampados.
Têm sido uns dias difíceis. A minha primeira cirurgia após o término do
processo vai finalmente ser realizada, e todos os meus medos vieram ao de
cima.
Isso, mais a falta de dinheiro, pois nem pude ainda procurar trabalho por
causa do pós-operatório, que me faz estar constantemente preocupada com
contas para pagar, medicamentos para comprar, dívidas para saldar e por aí
fora.
Queria tanto saber como ele está, se a vida lhe corre bem, por mais que me
custe, se ele está a namorar, se vai ser pai, sei lá, coisas que me passam pela
cabeça. Mas, por mais que o tempo passe, não o consigo esquecer. É algo
de pele, mais forte que eu. Passaram tantos anos e ele continua tão
presente... Já não sei o que fazer.
Tenho que me concentrar no presente. Na cirurgia. Que vai correr tudo bem,
que vou ter um pós-operatório porreiro, sem muitas dores, enfim, que vou
conseguir depois pôr os pés à estrada e ir em busca de um emprego.
Mas, e como uma grande parte das mulheres Transexuais não se prostitui, e
muitas procuram relacionamentos estáveis com um homem (obviamente
refiro-me só às heterossexuais), estas andam em papos de aranha para
encontrar alguém que veja mais além do que um corpo. Sim, porque são
muito poucos os homens que têm coragem para assumir uma relação com
uma mulher Transexual.
Ou seja, para os homens que gostam de Trans, nós somos reduzidas a uma
cara e a um corpo com certas características, claro. Se somos interessantes,
inteligentes, cultas ou não, isso não interessa. Tanto que o que mais se
encontra em chats da net é o eterno e rídiculo "és Trans? Ah, eu adoro
Trans!". Mas o que é isto? Isto significa que eles "adoram" quem não
conhecem, não sabem se física e psicologicamente lhes agrada, apenas
porque é Trans??? No comments ...
E termino com o eterno lugar comum: meus queridos homens que gostam
de Trans, nós somos iguais a qualquer outra mulher, e somos bem mais que
um objecto de prazer. Somos dignas de respeito e temos o direito a ser
felizes como qualquer pessoa. Ok?
segunda-feira, Fevereiro 25, 2008
De volta...
Depois de um fim-de-semana calmo e a recuperar forças, eis que me
encontro aqui para escrever umas linhas, acima de tudo para desejar uma
boa semana a toda a gente que aqui vem ler (e ver) aquilo que por aqui se
passa.
Sei que tenho andado longe do blog desde Dezembro, mas isso deveu-se a
uma intervenção cirúrgica a que fui sujeita, e que poderão constatar na foto
em baixo. Agora que já estou bem, eis-me de volta aqui e à minha vida do
dia-a-dia.
segunda-feira, Abril 21, 2008
Afinal, o que querem de mim?
Hoje de madrugada fui tomar um café à bomba de gasolina aqui ao pé de
casa. A Lua Cheia estava linda e brilhante entre farrapos de nuvens.
Comecei novamente a pensar no que querem de mim.
Quando refiro "o que querem de mim?" refiro-me a toda a gente, desde os
meus pais e restante família próxima, que se encontra em Portugal, aos
meus amigos, etc. Parece que toda a gente me cobra algo por ser quem sou.
Parece que eu tenho que ser o que os outros gostariam que eu fosse.
Mas não é essa a realidade. A realidade é que sou uma mulher transexual, já
com próteses mamárias, e isso não é algo que se esconda, como eles
gostariam que fosse. Agora têm mesmo que se confrontar com a dura
realidade.
E isso provoca, desde o Natal do ano passado um mal-estar, uma paz podre
entre nós. O jantar de família foi absolutamente pavoroso. Parecia que havia
algum mal em eu me sentir bem, pois todos os outros se sentiam mal,
incomodados com a minha presença.
Acho que só agora, passados quase oito anos desde o início do meu
processo clínico, é que eles se aperceberam que eu nunca andei aqui a
inventar e a brincar. E é triste que assim seja. Muito triste.
Amigos. Amigos reduzem-se a tantos quanto a minha mão direita tem. Mas
contacto pessoal só tenho com dois ou três. Os outros ficam-se pelos emails
de forwards , e se não for eu a telefonar, nem nos meus anos se lembram de
que eu existo. Isto porquê? Óbvio, não? Desde quando? Desde que me
assumi como sou. Chegou ao ponto de eu encontrar um amigo de muitos
anos num centro comercial, e ele, sabendo de tudo e deparando-se comigo
como a mulher que sou, me cumprimentou com um aperto de mão.
Caricato, né? Mas é a realidade.
Linha mulher fatal, Ava faz sexo com todos, incluindo o próprio "filho",
tem ares de superior e de psicopata, e toda a gente "descobre" que afinal ela
(Ava, transexual operada) é um ele. Além destes predicados, é apresentada
como uma mulher sem escrúpulos nem sentimentos, e cuja "causa" da sua
transexualidade é explicada do seguinte modo: Ava era um homem gay que
se apaixonou perdidamente por um médico cirurgião plástico. O problema é
que o pobre médico era hetero. Então, num acesso de luminosidade interior,
decide fazer a cirurgia de redesignação para poder ficar com o seu amor.
(Deve ter sido desta série que os iranianos foram buscar as suas teorias).
Como se não bastasse, o filho de um dos cirurgiões, que tinha passado pela
cama de Ava, vai a um bar transgénero no qual conhece uma jovem trans.
As coisas evoluem, e eles acabam na cama... Oh, tragédia!!! Ele (ingénuo,
tadinho) descobre que, afinal, a mulher transexual que estava na cama com
ele NÃO era operada!!! Vai daí, prega-lhe uma carga de porrada, além de a
tratar com "mimos" verbais tipo "não passas de um homem de mamas",
"mentiste-me", "não sou gay" (ridículo no mínimo...), etc, etc, etc.
Claro que a desgraçada, que ficou toda negra, decidiu convidar umas
amigas para verem o espécime que lhe tinha feito aquilo. O resto já se sabe,
batem no menino de tal forma que os pais (Nip e Tuck. Não não se trata de
homoparentalidade, um é pai biológico e outro é pai adoptivo) são
obrigados a operá-lo para lhe reconstruírem a face. No meio disto tudo, a
transexual é sempre um gajo. Sempre. Tal como Ava, que desde que teve o
azar de ir para a cama com um dos cirurgiões, foi sempre tratada no
masculino. Claro que cirurgiões deste tipo nem precisam de penetrar para
descobrirem a "marosca". Quando a ia penetrar, viu logo que era uma
neovagina e tudo.
É sempre chique ter uns/umas "freaks" numa série televisiva, mais ainda
quando a transexualidade está na moda, agora reforçar preconceitos e
"gozar" com pessoas, seres humanos, não!
Sendo assim, Nip/Tuck é tudo menos um exemplo seja para quem for. Nem
sequer lhe posso chamar entretenimento, pois não me "entretém". É vulgar,
banal, vazia de conteúdo, e, pior ainda, reforça a ideia e o esterótipo de que
o que importa realmente é como parecemos, não como somos. Out para
mim.
domingo, Junho 01, 2008
As histórias de Amor têm um final triste...
Já há muito tempo que ando para escrever sobre o Amor. Sobre histórias de
Amor. Sobre uma dessas histórias em particular. A de uma linda mulher
Transexual de seu nome Calpernia Addams e de um jovem soldado
chamado Barry Winchell. Esta história deu um filme, de seu nome
"Soldier's Girl", e tornou-se numa referência para todos aqueles que o
viram.
E assim foi para mim também. Sempre acreditei (ou quis acreditar) que as
histórias de Amor existem, que existe a nossa alma-gémea, que um dia
encontramos o nosso príncipe encantado e que somos felizes para sempre.
Infelizmente não é assim a realidade, e Calpernia é uma prova viva do
sofrimento que o Amor nos pode causar. Ela amava Barry. Barry amava-a.
E foi brutalmente assassinado por causa disso. Por amar uma pessoa que
não devia. Uma mulher Transexual.
Não vou adiantar muito mais sobre esta história triste de Amor, pois assim
tiraria quase todo o conteúdo dramático a quem estiver interessado em vê-
lo. Apenas vos adianto que passei emocionalmente de um extremo a outro
enquanto visionava "Soldier's Girl". E sentia o que Calpernia sentia, e no
final, tentava controlar em mim as lágrimas que ela chorava, imaginando se
tal coisa me acontecesse a mim. A mim, Lara, também mulher Transexual.
Barry amava Calpernia tal e qual como ela era. Uma mulher Transexual. Eu
nunca encontrei um homem que me amasse como eu sou. Uma mulher
Transexual. Talvez seja azar meu, mas também é a minha realidade. E é
com ela que morrerei um dia. Dentro de umas semanas passarei a ter 37
anos. Nunca pensei cá chegar. Talvez isso queira dizer algo.
Mas, em relação ao Amor, nada quererá dizer. Porque, tal como o título
deste post, acredito agora que as histórias de Amor têm um final triste...
sexta-feira, Junho 06, 2008
Why it's so hard?...
Tive consulta de acompanhamento com o meu médico psiquiatra, depois
das primeiras cirurgias. Falámos sobre várias coisas, sendo que tudo
"empacou" na questão do ter ou não ter um namorado sério/companheiro.
Que é muito importante, para o meu bem-estar emocional e físico, e que,
depois da CRS (Cirurgia de Redesignação de Sexo) será imprescindível ter
uma vida sexual activa, até para a total recuperação.
A grande questão final foi porque estava eu sozinha. Não lhe dei novidade
nenhuma. Os homens que conheço publicamente ou via internet em nada
são diferentes. Têm um discurso de mais ou menos bom-gosto, mas quando
eu revelo que sou uma mulher Transexual o discurso altera-se totalmente.
Passo de uma mulher como qualquer outra (que é o que sou!) para um
objecto sexual desprovido de emoções. Querem é sexo, e sem qualquer tipo
de compromisso. Revelam o seu pior e mais animalesco lado, de total falta
de respeito e de dignidade para comigo.
Mas fiquei a matutar nas palavras e frases que trocámos. Como não foi
difícil para mim ter uma relação (mais ou menos) séria durante um ano e
tal, e como hoje em dia isso me parece quase impossível. Não há homens
românticos? Não há homens de mente aberta? Não há homens que nos
saibam respeitar e aceitar como somos? Estas são apenas algumas questões
que me fazem pensar a mim, e de certeza, a muitas outras mulheres -
biológicas e Transexuais - que lêem este post.
Apesar de, e ressalvo, seja bem mais difícil para uma mulher Transexual
encontrar um companheiro do que para uma mulher biológica. E, muitas
vezes, quando encontramos "aquele" candidato de "sonho", ele ser ou
casado, ou comprometido com outra, ou (menos grave - risos!) gay.
"I'm old fashioned". Sim, para mim tem que haver um conhecimento mútuo
primeiro, uma amizade que se forma, um "click" quando nos olhamos.
Sexo? O sexo vem depois. Obviamente que o sexo é importante numa
relação amorosa entre duas pessoas. Agora, viver para o sexo? Só pensar
em sexo? Só querer sexo? Isso não faz qualquer sentido para mim.
Apesar de apenas ter tido alguns namoros, sem nada de sério, houve um que
me marcou muito, demais. Aquele que começou numa tarde de Setembro de
2002, com um homem um ano mais velho, chamado Jorge.
Ele ficou comigo até meio da noite. De madrugada, a Eduarda foi ter a
minha casa, para eu não ficar sozinha. Fui trabalhar, como se nada se
tivesse passado. Dois dias depois, ele terminou tudo comigo, magoando-me
o mais que podia com as palavras. Isto foi em 2003.
Passaram quase cinco anos e nunca mais fui a mesma. Entrei em depressão
profunda, que só se revelou no seu esplendor alguns meses mais tarde. Tive
que meter baixa durante dois meses para me recuperar. E aí começou a
minha auto-destruição. Perdi (quase) tudo o que amava, e perdi tudo o que
tinha: casa, trabalho, namorado.
Hoje em dia não sou mais do que um reflexo do que se passou nessa altura.
A auto-destruição é contínua, a auto-estima e o amor-próprio são baixos, e a
tendência depressiva, grande. Vivo porque acho que a vida é uma dádiva.
Vivo porque me foi permitido nascer e viver. Vivo porque hoje sou mais eu
e estou cada vez mais próxima de ser EU fisicamente. Vivo porque o
passado passou, apesar de doer. Vivo apesar de nunca o ter esquecido e não
me esquecer dele. Vivo porque sim. E acho que esta é uma excelente razão!
terça-feira, Julho 08, 2008
Transição? Opção? O quê?
Há uns dias, em conversa telefónica com a minha mãe, ela voltou a tocar
num dos pontos-base da questão da Transexualidade - para ela é uma
"opção" que eu tomei. Assim como será uma "opção" para qualquer outra
mulher ou homem Transexuais. Sim, como se nós escolhêssemos ser assim,
e não nascêssemos com uma identidade de género não correspondente com
o nosso corpo físico.
Voltei, pela milionésima vez, a dizer-lhe que não é opção nenhuma, que ela
sabe muito bem que nasci assim, etc, etc, etc. A resposta foi pragmática:
"Então tinhas-nos dito mais cedo para tomares hormonas masculinas e
ficares "normal", ou então esperavas até nós morrermos. Não era agora que
te havia de ter dado para isso!" Furiosa, respondi-lhe que me bastaram os
DEZ anos em que me castrei e apaguei a mim própria para eles não
sofrerem por eu ser quem sou! Só que um dia já não dá mais! Temos que
dar o grito do "ipiranga" e assumirmo-nos como somos.
Mas é muito triste para mim ouvir este tipo de coisas. Sei que a (muita)
idade deles e a educação que tiveram não ajuda em nada, mas eu não tenho
que pagar por isso. Não deveria pagar. Mas pago. Todos os dias. Não é o
suposto desprezo dos outros que me incomoda. É o dos meus pais,
principalmente o do meu pai, que me magoa. Porque a minha mãe diz estas
coisas, mas apoia-me, ou tenta, à forma dela. Não me despreza. Até me
tenta acarinhar e faz questão que falemos todos os dias ao telemóvel.
Transição. Tentei falar uma vez com a minha mãe sobre a transição. Não
percebeu nada (o que era de esperar), e eu própria dei por mim a gaguejar
em relação ao que é a transição. Uns dizem que a transição começa no
tratamento hormonal e termina depois da Cirurgia de Redesignação de Sexo
(CRS). Outros dizem que a transição começa quando vivemos as 24 horas
no nosso papel de género e pode nunca terminar, caso não façamos a CRS.
Então em que ficamos? Quem não faz a CRS passa o resto da vida em
transição? Mas isto faz algum sentido?
E hoje vou "bater nos ceguinhos" outra vez. E também dizer que é "mea
culpa" grande parte desta situação.
Tenho 37 anos, estou quase como sempre desejei ser fisicamente, tenho
saúde e tenho amigos e amigas que me amam, além dos meus pais, que
esses apesar de tudo amam-me incondicionalmente, eu sei.
Parece que está tudo invertido. Em vez de se começar uma relação por
conversar, tomar café, ir ao cinema, passear, etc, e então, se ambas as partes
se entendem vir o sexo, não, começa-se logo pelo sexo e depois conversa-
se!
Claro que é "mea culpa" muitos deles nem sequer se aproximarem muito.
Talvez porque já estou muito escaldada, talvez porque criei defesas
demasiado grandes, talvez porque já antevejo os panoramas, talvez por tudo
isto, ou nada disto. É muito relativo e subjectivo analisarmos sensações de
quando conhecemos alguém e percebermos se está ou não a dar em alguma
coisa. O melhor é não pensar sequer e deixarmo-nos levar. Pelo menos essa
era a minha teoria.
Hoje em dia já não consigo. Então desde que coloquei as próteses mamárias
é que é. Percebe-se perfeitamente o efeito altamente sedutor e sexual dos
seios nos homens. Não é que antigamente (antes de eu ter mamas) não
mostrassem interesse. A grande diferença é que agora o interesse da parte
deles aumentou muito mais, exponencialmente.
Para a maioria das mulheres biológicas que lerem isto soará estranho, pois
desde sempre estiveram habituadas a este tipo de aproximações. Mas eu
não. Sou uma mulher com seios mais "recente", digamos assim.
Como já referi, pelos vistos não me adapto mesmo a este "weird" século
XXI num país machista de ideais religiosos judaico-cristãos. Acho que
nesse aspecto sou demasiado romântica, feminista e feminina. Coisa que
muitas mulheres se esquecem de ser. Também e principalmente por
educação e vivência neste buraco de país.
E tudo isto me deprime, ponto. E não, não vou aqui dizer que não vou
escrever mais a "malhar" nos espécimes do sexo masculino. "Malharei"
sempre que se justifique, o que foi agora o caso.
Essas ânsias é que me fazem mexer, manter-me viva. O desejo de ser mãe
foi uma delas. Digo foi, porque não só nunca pude ser mãe, nem posso,
como não me vejo agora, aos 37 anos, a adoptar uma criança. Diga-se de
passagem que nem devo poder, visto a Transexualidade continuar a ser o
bicho-de-sete-cabeças que é. E também, para agravar, não há pai para a
criança, mesmo que a adopção me fosse permitida. Esse era outro, ou fazia
parte do mesmo sonho. Ter um companheiro que me amasse, respeitasse e
com quem tivesse uma vida estável e depois adoptar um bebé. Mas tal
nunca se proporcionou.
Essa talvez seja a minha frustração número um. Não poder ser mãe
biológica de uma criança. Talvez por isso me tenha dedicado tanto à minha
sobrinha quando ela era pequena. No fundo, eu sentia-me um pouco mãe
dela também, e a não aceitação dela agora, em relação a mim, fere-me
profundamente.
Faz parte de mim, do meu signo ( G émeos), da minha carta astral. Sou
alguém muito carente, que se sentirá sempre carente e não aceite e que
procurará eternamente o amor e a aceitação. E a realidade é essa, por detrás
das "máscaras" e das defesas.
Sonho muito. Mas os meus sonhos não estão lá em cima nas nuvens. Estão,
ou poderão vir a estar, aqui em baixo, na terra. Sonho em voltar a ter o meu
espacinho, a minha casinha. Sonho em ter o meu trabalho, só peço que seja
minimamente criativo. E sonho em encontrar a agulha especial no meio do
palheiro, o "meu" homem. São só sonhos, eu sei. Mas, tirando o último, os
outros não são assim tão impossíveis.
Escrevo para vocês com muito gosto. Posso ter muitos defeitos, mas
também tenho muitas qualidades. E vocês terão que me aceitar tal e qual
como sou: EU. EU e o meu Universo.
segunda-feira, Agosto 11, 2008
As mamas...
É curioso ver como as pessoas nos "vêem". Até há quase um ano atrás, o
meu tratamento hormonal não tinha surtido efeito no meu peito, e então
coloquei próteses. Depois foi o período de recuperação, e logo a seguir veio
a Primavera e agora o Verão.
Obviamente, agora aproveito para usar (não abusar) do que não podia usar
antes, decotes, tops, etc. Mas sempre discreta, como eu sou e gosto de ser.
De qualquer das formas, começo a reparar que se, antigamente e apesar de
não ter mamas, já era assediada, agora é por demais (pelo menos para mim).
Vou na rua e reparo nos olhares "dirigidos" aquele local, oiço algumas
coisas que nem percebo na maioria das vezes, e bastou-me colocar uma foto
recente nos meus perfis para as visitas e pedidos de amizade dispararem.
Não há dúvida alguma que, podendo não ser assim tão importante para nós
em alguma fase da vida, como mulheres Transexuais, os nossos seios
acabam por nos dar um "estatuto social" de "mulheres". Sim, porque as
mulheres têm peito, sim, porque as mulheres não têm pêlos no rosto, sim,
porque as mulheres têm vagina.
Pois, mas eu continuo a ser muito pragmática nesse aspecto. Não são as
características exteriores que nos fazem ser "a" ou "b", homens ou
mulheres. É aquilo que somos, que sempre sentimos que éramos, que conta.
Eu sempre fui mulher. E coloquei as próteses para me sentir melhor comigo
própria, para me sentir mais eu. Não as coloquei para ser ou "mais mulher"
ou "mais desejável".
Não é, em definitivo uma vagina que faz uma mulher, nem um pénis que
faz um homem. Pensem nisso.
quinta-feira, Agosto 21, 2008
Predadores sexuais
Na nossa vida conhecemos todo o tipo de gente. Seja na net, seja na
realidade, há pessoas para tudo, que procuram tudo, ou nada, umas seres
humanos, outras apenas pessoas. E nesta categoria, nas "apenas pessoas"
estão incluídos os chamados predadores sexuais.
Confesso que nunca tive muita consciência do que eram, de que realmente
existiam, até começar a "viver" a sério. E, hoje em dia, sei que já conheci
vários. O comportamento deles é básico e muito semelhante. São, em geral,
homens relativamente bonitos, com muita conversa, e muita mentira.
Mas isso não o impediu de me tentar beijar, ao que eu acedi. Foi um beijo
longo e saboroso. Trocámos alguns carinhos, festas. E fui eu que terminei o
"clima" ao lhe lembrar que tinha que ir buscar o irmão. Dei-lhe um pequeno
beijo e saí do carro. Foi a última vez que o vi.
Ou seja, foi a primeira e última. No fundo, a única coisa que lhe interessava
era uma noite de sexo, ou várias, não sei. Mas não é isso que eu quero e
deixei-o bem claro.
Those are my rules, baby
E, mais uma vez, fiquei deprimida, triste e desiludida. Com ele e comigo.
Comigo essencialmente, porque ainda caio nestas "esparrelas" de pensar
que eles até podem querer algo sério se me conhecerem pessoalmente.
" Lara, este teu texto me fez pensar no seguinte: se somos pré-operadas
dificilmente teremos um relacionamento com um homem que não seja T-
Lover, porque hétero não gosta 'daquilo' a mais. Se somos operadas,
caimos na armadilha de não dizer que somos (ou fomos) uma mulher
'diferente', porque podemos com isso trazer estigmas. Enfim, é uma faca de
dois (le)gumes, rarará. Bjs "
Resumindo, nascemos com um estigma e morremos com ele. Por mais que
façamos, que modifiquemos, que tentemos esquecer, há sempre quem
estigmatize, há sempre o estigma. E termino como escreveu a Femme
Fatale: a nossa vida "é uma faca de dois (le)gumes".
quinta-feira, Dezembro 11, 2008
Transmutação
É curioso pensar na minha vida nos últimos oito anos. Foi uma época de
(re)descoberta de mim, de quem sou, do que almejo para mim, do que
desejo no meu íntimo.
É uma altura de concretizar aquilo que sempre ansiei. De ser a mulher plena
fisicamente como devia ter nascido. Mas é a altura de me deparar com os
outros medos, que acabam, infelizmente, por se tornarem reais.
Parece que só agora sou uma mulher, se afinal sempre o fui. Para mim não
faz sentido, mas para quem não sente como eu, é o mais natural. No início
tinha a noção que eu estava a adorar as mudanças cirurgícas no meu corpo,
agora tenho a noção que não sou só eu que gosto. E confesso que nunca
estive habituada a lidar com assédio sexual.
É tudo mais fácil quando vivemos num limbo andrógino. Torna-se muito
mais difícil lidar com a realidade feminina socialmente aceitável no dia-a-
dia.
Bem, Lara, benvinda ao mundo das mulheres!
quinta-feira, Março 05, 2009
Tristeza Profunda
Estou numa tristeza mais profunda que aquilo que existe de profundo. Ela
galga em mim como uma febre que teima em não passar. É tão grande que
nem um sorriso consigo fazer. Nem um sorriso, nem um esgar
minimamente amistoso.
Lara-Infinitamente-Triste
Por um lado porque não há novidades boas, por outro, porque me sentia (e
ainda sinto) um pouco bloqueada para escrever sobre o que tenho sentido e
passado.
Muito se fala sempre no meio trans sobre o que significamos nós para a
nossa família e vice-versa. Há aquelas que foram pura e simplesmente
postas fora de casa pelos próprios pais, e há aquelas que, por sorte ou
whatever , lá arranjam maneira de dar a volta (o meu caso) ou têm uns pais
(ou uma mãe, em geral) muito compreensivos.
Nos últimos tempos, tive medo de perder a minha melhor amiga, Edu,
devido a uma grave tromboflebite na perna direita, que a obrigou a ficar
internada e em tratamento vários dias. Culpa do tratamento hormonal que
nos pode pregar estas partidas, mas essencialmente culpa agravada do
endocrinologista dela, que como pessoa supostamente experiente em
tratamentos hormonais de subsituição, devia saber que são muito agressivos
e perigosos, principalmente quanto mais avançada é a idade. Ela agora já
está em casa, tratada e a recuperar. Mas o susto foi muito grande e chorei
muito com medo de algo mais grave.
E ontem tive a certeza que a perdi. Fui a casa dos meus pais e ela jantou lá.
Ignorou a minha presença completamente, como se eu não existisse sequer.
Conseguiram o que queriam. Tanto a envenenaram que ela agora reage a
mim sem reacção. Uma espécie de ódio silencioso. Mas não, não me
descarto aqui da minha própria culpa pelo meu afastamento dela também.
Mas esse afastamento deveu-se a me terem pedido para dar tempo, pois ela
estava a reagir mal ao facto de eu ser uma mulher Transexual. E eu dei esse
tempo. Fiz mal. Tenho tantas lágrimas que chorar ainda, que acho que
nunca mais vão acabar.
O problema é que nem toda a gente parece ter direito a ela. Sou uma
Mulher Transexual pré-op (ainda não fiz a cirurgia de redesignação de sexo,
para quem não sabe) e, mesmo aquelas que já a fizeram e já têm os
documentos legais com o nome e género femininos, existe sempre o
estigma.
Ou é o horroroso "shemale" na melhor das hipóteses para as iguais a mim,
ou "a mulher-que-já-foi-um-homem" para as que já se operaram. Nunca
podemos fugir do passado, e esse estigma corta-nos praticamente todas as
hipóteses de sermos (ou termos momentos) felizes.
Sei que já há muito tempo que não escrevia. Mas a minha vida não tem
andando fácil (também nunca o foi) e eu estou com uma depressão, o que
também não ajuda.
Tenho sonhado com o que me poderia fazer feliz. Se passar por mais
cirurgias alterará alguma coisa em mim, no sentido de mais bem-estar.
Porque, como eu sempre afirmei, não é um pénis que faz um homem, nem
uma vagina uma mulher. É a nossa Essência que faz de nós o que somos.
Sou uma mulher Transexual. Mas, acima de tudo, sou uma Mulher. E é isso
que me interessa agora e sempre.
Sou uma nova mulher. Menos complicada, mais decidida, com objectivos,
mesmo que a curto prazo e que podem parecer pouco importantes para
muitos.
Acho que, finalmente, estou a deixar a minha essência falar por mim. Sem
medos. Sem receios. Com coragem.
Há já muito tempo que não vinha aqui postar nada de pessoal. (Tinha
apenas publica do umas notícias que ach ara relevantes e algumas das
últimas fotos. )
2010 não começou da melhor forma, pois 2009 também não foi um bom
ano. Gostava de ser optimista, mas não o sou. Sempre fui pessimista e
negativa. Acho que faz parte de mim. É inerente à minha pele. Mas vou
sobrevivendo como posso, apesar de desejar ou já não estar cá, ou de nunca
ter nascido.
Vim apenas dar um "alô" a quem costuma passar pelo meu cantinho e gosta
de ler o que aqui ponho. Ponho sempre algo de muito meu e lamento que
desta vez não seja positivo.
Até breve.
quarta-feira, Novembro 17, 2010
O estigma e a minha auto-estigmatização
Depois de algumas "décadas" sem postar aqui nada, eis-me de volta com a
brisa do Outono. Aviso já que, como sou uma mocinha nada politicamente
correcta, vou continuar a chamar os bois pelos nomes, e também vou
continuar a escrever português como sempre escrevi, não adaptada ao
chamado "acordo ortográfico".
O estigma é algo que nos marca desde a nossa nascença. Pelo menos foi
assim no meu caso. Tal como nasci com um sinal particular num dedinho do
pé, o tal do estigma veio junto. Desde criança pequenina que tenho
memórias de ser discriminada (sim, porque o estigma leva à discriminação)
tanto pela minha família próxima, como pela outra família, como pelos
miúdos que brincavam na minha rua, como pelas pessoas que me viam na
rua com a minha mãe.
Em pânico e sem poder pedir ajuda, fui tentando afastar as mãos deles do
meu cinto, das minhas calças, do meu corpo. Quatro deles, incluindo o
gordo obviamente, discutiam o que me faziam depois de me despirem. Um,
já com barba e mais tímido, ia pedindo que se afastassem e fugissem, pois
podia aparecer alguém. Conseguiram tirar-me o cinto. Entrei em pânico
enquanto as calças me escorregavam ao longo das ancas. O gordo não
parava de me tocar, enquanto os outros me agarravam. Eu já via o final que
aquilo ia ter. Era óbvio. Mas não. Por algum acaso dos deuses, o barbudo
conseguiu convencê-los, assim que se ouviu o toque para o intervalo.
Poderia, realmente, aparecer alguém. E eu fui, dessa vez, salva pelo gongo.
Vejo os olhares na rua, agora que já vou a caminho dos 40 anos. Vejo as
teorias ridículas e estapafúrdias às quais atribuem a transexualidade. Vejo a
atitude dos tlovers em relação a mim. E tudo isto me estigmatiza ainda
mais.
Circulo muito na net. Como toda a gente que lê este blog sabe, conheci
muitos homens pela net. Com uns tomei café, com um namorei, com outros
tive flirts passageiros. Mas é impressionante a quantidade de preconceito e
pré-conceito que existe na cabeça destes homens e dos outros (aqueles que
só vêem "os bonecos" e não se dão ao trabalho de ler o meu perfil). Para os
tlovers, tudo bem, "fixe que és trans". Na realidade, quando eles se referem
a mim como sendo trans, não é no sentido de mulher transexual, mas sim no
sentido de travesti (homem que se veste de mulher), mas nem eles, em
geral, têm consciência disto. Para os que não lêem, ou não me conhecem de
todo, é incrível como o tom de conversação muda quando eu lhes revelo
que sou transexual. Uma conversa agradável de três horas pode tornar-se
numa pornochanchada de três minutos. E a preocupação é sempre uma:
"mas és operada?", ou então "vais operar-te, não vais?"
O mais ridículo disto tudo é que eles nem sequer sabem se sou operada, ou
o que isso significa: ( meaning : fazer a Cirurgia de Redesignação de Sexo -
CRS ou em inglês - SRS). Não, não sou operada. Sou uma mulher
transexual não-op como os americanos adoram rotular. Ou uma mulher com
mamas e genitália masculina, como escrevem e dizem outros. E depois?
Para esses que não leram o meu perfil, a partir do momento em que eu
refiro a minha transexualidade, passo a ser uma "coisa esquisita",
independentemente de ser operada ou não. Se eu dissesse que sim, mudaria
alguma coisa? Decerto que não, e já tive provas disso, comigo e com outras
mulheres transexuais que se operaram e que, mesmo assim, continuam e
continuarão a ser estigmatizadas.
Primeiro, devo aqui destacar algo do qual ainda não tinha escrito, a lei de
identidade de género, que após dura luta foi mais ou menos para a frente.
Mais ou menos, porque depois de muita confusão e entraves no projecto-lei,
o Presidente da República decidiu vetá-la sem uma justificação
minimamente coerente. Obviamente que aqueles que desde o início eram
apologistas de uma lei em que as pessoas transexuais só poderiam alterar
nome e género após a cirurgia de redesignação de sexo, e que inclui
especificamente os médicos que nos tratam e operam, bem como os
partidos de direita, devem ter jubilado com esta decisão do líder da nação,
na esperança de que ainda se consiga dar a volta e colocar lá essa
obrigatoriedade. Triste, muito triste, e que só me envergonha ainda mais de
ser uma cidadã deste país pequenino de tamanho e de mentes.
O Lara's dreaming terminará, ou não, por aqui, isso só o futuro o dirá, mas
deixará de ser um blog de uma activista transexual, para passar a ser um
blog de uma simples mulher que teve o infortúnio de nascer transexual. Já
aqui escrevi sobre o estigma, e ele mantém-se mais vivo do que nunca. Este
passará a ser um local mais pessoal e intimista ainda, com lugar a reflexões
e pensamentos sobre a importância exacerbada que se dá a um corpo,
quando é dentro dele, no nosso coração e alma/mente, que tudo o que
realmente importa se passa.
Obrigada a todos e todas que leram, lêem ou vão lendo o que aqui escrevo.
Podem sempre comentar, enviar textos vossos se assim o desejarem, que eu
vou mesmo fazer os possíveis para que não me tirem o meu último direito:
o de me exprimir e expressar livremente.
Até breve,
Lara Crespo
quarta-feira, Fevereiro 02, 2011
A vida flui como um rio nos meus olhos
Acho piada a como a vida nos vai pregando partidas. Há pessoas que
entram e saem, sempre, ao longo dela, e nós, muitas vezes, ficamos a olhar
quase que sem uma reacção do tipo "espera", "não vás", "que aconteceu?".
Curioso é ver como tudo tem uma fluidez alcalina, passamos pela vida dos
outros sempre com marcas de ambas as partes, mas muitas vezes, só temos
consciência disso anos e anos depois. Encolhemos os ombros e pensamos
"bem, cada um tem a sua vida" e/ou "as circunstâncias da vida separaram-
nos". Pode parecer lógico mas não é, e de racional não tem nada.
Ora, se eu sou amiga de alguém que também é meu amigo, porque é que
por qualquer circunstância da vida, como referi o lugar-comum, essa pessoa
desaparece de vez, sem deixar rasto? O mesmo se aplica aos namorados,
aos irmãos e até aos pais. Parece que seguimos em frente (ou para outro
lado qualquer) quase sem noção da importância de emoções, sentimentos e
tantas trocas que houve com tanta gente.
Não me considero saudosista, mas tenho pena de ter ficado parada a olhar
quando algumas pessoas sairam da minha vida. Como não acredito em
coincidências sei que essas pessoas passaram pela minha vida porque
tinham que passar, mas não sei é o porquê de terem saído. Será que sou
mais uma que anda à procura do "meaning of life" seja lá o que isso for?
Claro que sou. Sou-o como todos nós somos. Toda a gente procura o
sentido da vida de uma forma ou de outra, num olhar ou num odor, numa
luz ou numa sombra.
O meu sentido da vida não sei qual é. Ninguém sabe. Por isso nos
agarramos a tanta coisa e perdemos outra tanta, como referi atrás. Sei
apenas que nasci menina, sempre me senti assim, desde que me lembro, e
que é estranho que os outros nem sempre me tenham visto assim. De
menina passei a adolescente, de adolescente a mulher, sempre a sentir-me
estranha. Mas houve sempre alguém que esteve lá para me indicar algum
caminho. Fui-o trilhando e agora tenho quase 40 anos. Mas estou tão
perdida como quando era uma menina de 5, 6 anos.
Sei que isto não se passa por acaso. Nada é fruto do acaso. Até aquilo que
mais se banaliza hoje em dia, como o sexo, não é fruto do acaso. Porquê
com este e não com aquele? Porquê amanhã e não hoje? Porquê incluído
numa relação e não espontâneo? Mas o sexo nunca é só sexo. Há sempre
mais qualquer coisa, como em tudo na vida. Há troca, há partilha, há
intimidade da mais pura, mesmo quando nos sentimos horríveis e sujas no
dia a seguir. Olha, se calhar foi com este porque tinha que ser! Com isto
quero afirmar que apesar de não acreditar em coincidências e que tudo
acontece por uma razão, acredito igualmente no nosso livre-arbítrio. Nós
podemos sempre, mas sempre escolher ir por aí ou não. Se tivéssemos ido
pelo outro lado, provavelmente o resultado seria diferente, mas será que
isso realmente importa?
O grave nesta estória é que estes homens (são poucas as mulheres que me
escrevem), são tão ignorantes e estupidificados como esta sociedade em que
vivemos.
Agora vem a estória do "travesty". Meus caros, "travesty" não existe. O que
existe é "travesti" sem Y no final, que nada tem a ver com Transexualidade,
mas que estão constantemente a confundir (mais uma vez). Que uma
esmagadora maioria das brasileiras transgénero que vivem em Portugal e
mesmo no Brasil se identifiquem como tal é lá com elas, mas isso nem aqui
nem na China faz sentido. E isto liga-se à teoria do ser-se "Male to Female
o dia todo ou só às vezes". É que a confusão é tão, mas tão grande, que já
quase ninguém se entende.
E ter-se ou não submetido a uma CRS não faz de uma mulher Transexual.
Não é a cirurgia que torna a pessoa em algo. Essa pessoa é e sempre foi
Transexual. E não é por se operar ou não que vai continuar ou deixar de o
ser. A CRS é um meio para atingir um fim, não um fim em si. Ninguém se
torna mais ou menos mulher apenas porque se operou. E não é por não ser
operada, como é o meu caso, que me sinto ou considero menos mulher.
Muito menos admito que me tratem como "travesti" ou de uma forma
inferior às outras mulheres.
Estou prestes a fazer 40 anos. Há quem diga que um ciclo termina, outro
começa, que é a idade da acalmia, da ternura, da sabedoria, etc, etc, etc.
Por isso, para mim, cada relacionamento que tive, cada homem que
conheci, cada um que eu deixei que tocasse no meu corpo, foi nessa
esperança vã de que, num deles, esse pr í nc i pe tivesse incarnado.
Para mim, sempre senti o meu corpo como o meu santuário. Algo que só eu
e apenas eu guardava, respeitava e defendia. Confesso que entreguei o meu
corpo a pessoas que nunca mereceriam tal coisa. Arrependi-me de casos
que tive. Chorei por causa disso. Tive raiva de mim. Senti-me suja. Agora
vejo as coisas de outra forma. Vejo que tinha que passar por essa
aprendizagem, por essa violação do meu santuário, para me sentir mais
humana, para sentir que o que eu via, essa imagem do pr í nc i pe em cada
um deles, não existia, que eu fui apenas mais uma, apenas mais um caso,
uma queca, algo sem importância.
Para mim, o sexo nunca foi algo natural no sentido em que a maioria das
pessoas o refere. O sexo para mim sempre foi algo místico, algo quase
sobrenatural, uma experiência única e próxima do divino. Era como eu o
via. A realidade é bem menos romântica. O sexo é hoje em dia banal e está
na moda, parece, andar a dar quecas com os amigos e tal. Não concebo tal
coisa.
Amizade é amizade, e na amizade, por mais profunda e íntima que seja, não
há lugar para sexo. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Eu não
gosto, e tentei nunca misturar as coisas. No dia em que isso aconteceu, há
uns tempos atrás, foi mau. Como seria de esperar a amizade acabou. Talvez
porque nunca tenha havido realmente amizade, apesar de eu achar que sim.
Pelos vistos estava enganada. Tanto nisso, como em muitas outras coisas, às
quais eu chego à conclusão agora.
Gisberta poderia ter morrido de qualquer uma das doenças que minavam o
seu enfraquecido corpo. Com o HIV veio a tuberculose, a hepatite B, a
fraqueza geral, a incapacidade de reagir. E essa matilha de animais (peço
desculpa por ofender todos os bichos, mas não me ocorre outra palavra)
matou-a sem piedade que ela tantas vezes pediu ao longo dos três longos
dias, e todos escaparam sem uma condenação, pois segundo o auto, "foi a
água que matou Gisberta".
E é neste mundo que vivemos. Gisberta era uma mulher transexual. Talvez
se não o fosse as coisas tivessem sido diferentes. E eu penso no bul l ying
que sofro desde criança. E o futuro assusta-me. Tenho medo de sair sozinha
à rua. Antigamente enfrentava com mais desfaçatez esse medo. Hoje em dia
a minha consciência da verdadeira natureza humana face ao desconhecido
faz-me temer pela minha integridade física.
"Elas não matam, mas moem", já lá diz o antigo ditado. E o que julgava ter
ultrapassado ao longo dos anos deixou marcas. Muitas cicatrizes naquilo
que sou. Mas não me vão pisar mais como o fizeram ao longo de quase toda
a minha vida. Se cheguei aqui, vou-me esforçar por continuar. Mas não
serei a mesma que fui. Não serei. Nunca mais.
quarta-feira, Junho 22, 2011
Lavar a alma: transfobia misógina
Fiz 40 anos há uns dias atrás. Nesta altura tudo me vem à cabeça, desde
memórias distantes de criança, a coisas muito recentes. Fala-se muito
ultimamente sobre outro assunto, a "linda" estória do polícia canadiano que
afirmou que as mulheres "puxam" pela violação ao se vestirem como umas
"sluts" (vadias, putas, ordinárias). Quando li isto, nem podia acreditar que
em pleno século XXI ainda existissem este tipo de mentalidades (pelos
vistos mais comuns do que eu pensava). O que me leva à questão de: quem
é que tem alguma coisa a ver com a forma como me visto, com a forma
como me identifico, quem dá o direito seja a quem for de me julgar?
Obviamente que quem tem dinheiro e está disposta a isso pode sempre fazer
uma Face Feminilization Surgery (Cirurgia de Feminilização Facial), dar
uns retoques com colagénio e botox, raspar a maçã de adão, fazer depilação
definitiva no rosto (laser ou electrólise) e por aí fora. Quem está
desempregada como eu, que não tem fonte de rendimento e que vive de
ajudas, resta-lhe raspar a cara com uma lâmina, porque já não tem sequer
dinheiro para fazer depilação facial com cera. Claro que também não fiz
nenhuma das cirurgias e/ou tratamentos mencionados atrás, o que faz de
mim uma, obviamente "não (ou nunca) passável".
E quase todos os dias em que saio à rua vejo isso. Olham para mim -
curiosamente são mais elas que olham - e gozam, riem-se, mandam umas
bocas. Sim, afinal eu não sou "passável", não nasci biologicamente mulher,
e elas devem sentir-se melhor e mais mulheres por me rebaixarem. E com
eles poucas são as diferenças. Apenas uma: como tenho mamas, sempre
olham mais para aí e desviam a atenção do rosto e pescoço. A transfobia
misógina está instalada, tanto entre eles, como entre elas.
Em relação aos homens não serem todos uns tarados, concordo. Só são
tarados uns 90 por cento. E ainda por cima são básicos. Na sua maioria.
Não se sabe bem se será da testosterona, mas que são básicos são, o que não
faz, atenção, com que não sejam inteligentes e manipuladores. Já
ultrapassámos aquela ideia antiga do "espalhar a sementinha", e passámos
para a predação pura e dura. Como as situações por que fazem passar a
maioria das mulheres que seduzem com mentiras.
E aqui chegamos ao "só vai para a cama comigo quem quer". Claro. Eu
falei em predadores, não em violadores. Só que as consequências do que
estes homens fazem acabam, muitas vezes, por ser piores do que violações.
Um predador sexual é um mentiroso compulsivo, mas consciente do que
faz. Regra geral é bonito, apresenta-se bem, é extremamente inteligente,
mas denuncia-se ao se mostrar básico.
E sim, elas vão para a cama ter sexo com eles porque querem. Porque estão
apaixonadas por algo que não passa de uma ilusão. Porque ele disse que era
solteiro ou divorciado, ou em processo de separação e afinal é casado.
Porque ele é CEO de uma multinacional e não passa de um empregado de
escritório - o que está aqui em causa é a mentira, não uma profissão ser
melhor que a outra. Que quer começar um relacionamento com ela, sendo
que ela não passa de mais uma numa lista infindável de conquistas num
livrinho preto.
E o sonho acaba tão rápido como começou. Elas envolvem-se e querem
mais. Só que o "mais" não existe. Eles não querem mais nada. Nem nunca
quiseram. Elas serviram um pérfido propósito de os satisfazer durante um
bocado. E nada fica. Para elas. São usadas e abusadas e violadas psicológica
e emocionalmente. Principalmente quando descobrem que tudo era mentira.
Que se entregaram a uma personagem e não a uma pessoa.
E eu sei do que falo, pois sou mulher, e apesar de não ter um conhecimento
exaustivo de predadores sexuais, muitos são os que se aproximam de
mulheres transexuais como eu. E também eu já caí nestas armadilhas. Por
isso sou desconfiada, fria e muitas vezes mesmo insensível. Porque quem
cai uma vez, não vai querer de certeza cair duas. Disso vos dou a certeza.
Por isto tudo e muito mais fazem todo o sentido as Slutwalks . Porque nós
somos mulheres e o corpo é nosso. E porque até podíamos querer, mas
agora já não queremos. Não tenham medo, assumam a vossa posição.
Somos seres humanos, pessoas, não objectos.
sexta-feira, Setembro 09, 2011
Poeira dos tempos
Ultimamente tenho pensado muito no meu percurso emocional até à minha
idade actual, os 40 anos.
Fui uma criança alegre, mas não feliz. Fui uma adolescente confundida com
um mundo em que sentia não se encaixar. Fui uma mulher que se travestiu
de homem durante tempo demais. Sou uma mulher madura, o que me traz
alguns benefícios e também grandes inconvenientes, como ver com mais
lucidez todo este percurso de vida até agora.
Sempre fui demasiado dada segundo os padrões sociais a que, pelos vistos,
a esmagadora maioria das pessoas está habituada. Sempre fui carinhosa
com as pessoas, cultivei muito a cultura do toque, coisa que as pessoas
detestam. E eu aprendi isso e muito mais da pior maneira. Com rejeição,
com agressão, com incompreensão.
Dei demasiada confiança a toda a gente e paguei bem caro por isso. E este é
o fulcro da questão. Não se pode ser sensível aos olhos dos outros. Não se
pode dar sem pedir nada em troca. Não se pode ser e deixar ser. Não se
pode confiar, porque te vão lixar à primeira hipótese. Porque este mundo
não é feito de pessoas que nasceram "naturalmente boas". Acredito e quero
acreditar que as há, mas a maioria nasceram "naturalmente más". E isso faz
com que eu não possa confiar.
Se hoje em dia criei as defesas que criei, foi graças a um sem número de
factores, desde ao facto de ser altamente discriminada por ser uma mulher
transexual até ter dado demasiada confiança e ter acreditado nas pessoas.
Sim, porque poucas são as pessoas em quem se pode acreditar. Poucas são
aquelas que recebem um simples beijo teu na bochecha com um sorriso.
Poucas são aquelas que te deixam chorar no seu colo quando estás triste.
Fui e sou posta de lado só por ser quem sou? "Epá, a gaja tem mau feitio e
tal, e ainda por cima é trans?" Meus amigos, por mim é na boa. Só desejo
ao meu lado quem, na realidade, deseja esse posto. Quanto aos outros,
sinceramente quero lá bem saber. Sejam quem forem.
Com a lucidez da idade vem também esta certeza. Sou, fui e sempre serei a
mesma com a minha verdade, para aqueles que também sempre o foram
para mim. E só esses ficam. O resto é poeira dos tempos na minha memória.
segunda-feira, Outubro 10, 2011
Abraçar os sonhos
Noites turbulentas em que os sonhos transmitem algo de real com a
surrealidade dos mesmos. Penso às vezes em como era bom que, apesar de
tudo, a minha vida fosse mais parecida com os meus sonhos do que com a
realidade.
Pelo menos aquilo a que chamamos realidade. Em que tudo dói, tudo custa,
pouco ou nada se consegue sem sofrimento. A vida em que achamos que
alguém nos ajuda, mas que chegamos à conclusão que afinal estamos
sozinhos. Que a solidão é inerente ao ser humano.
Que ninguém te ajuda sem querer nada em troca. Que, quando podem, te
lixam a vida sem pensar duas vezes. Que te discriminam apenas pelo corpo
que tu tens. Que te tratam com preconceito apenas por seres como és.
O amor é bonito nos livros, nas palavras dos poetas, nas prosas dos
escritores. Esse suposto sentimento só traz sofrimento na vida real. Algo
bem diferente dos poemas de amor. A vida real não é compatível com o
amor. Apenas os sonhos são.
A vida real é insuportável. Pelo menos para mim. Não consigo respirar, não
consigo fazê-la fluir. Não consigo que ela me dê o que eu tanto lhe dou.
Quero dormir e sonhar para sempre. Descansar junto das nuvens. Beber os
oceanos. Ser, finalmente, quem eu sou.
domingo, Outubro 14, 2012
Despatologização e reflexões
No próximo Sábado, dia 20 de Outubro, muita gente por este mundo fora
vai lutar pela despatologização da Transexualidade e das Identidades Trans.
Este é o mote que me leva a fazer aqui uma breve reflexão de 41 anos de
vida.
Nasci como nasci e como me sinto: mulher. A única coisa que não
correspondia era o meu corpo. Os "especialistas" na matéria dão muitas
explicações, mas nenhuma certeza, pois ninguém sabe (e duvido que venha
a saber), porque algumas pessoas nascem como eu. O que é que eu acho?
Que é um erro. Nasci errada. Nasci mulher com características físicas que
não devia ter. Se cirurgias e hormonas te ajudam numa vida tão cheia de
preconceito, discriminação e luta? Sim, ajudam, pelo menos aquelas que
são "visíveis", como a mamoplastia no meu caso. Se a cirurgia de
redesignação de sexo muda alguma coisa na tua vida? Para muitas pessoas
muda, para mim duvido que mudasse. Não é pela minha genitália de
nascença que eu me defino, nem nunca senti um desejo de a mudar, ou tive
um sofrimento horrível com essa genitália, como muitas pessoas
transexuais têm. A transexualidade, para mim, é uma questão de essência
acima de tudo, que não joga com o resto. Mas isso não faz de mim, nem de
ninguém, doente.
Tive uma vida triste, apesar de aparentar quase sempre ser uma pessoa
alegre. Acho que era a maneira de dar a volta à questão de me sentir uma
alien neste mundo de sociedades supostamente tão perfeitinhas e tão
certinhas. Aquele é homem, aquela é mulher. Ok, e no meio disso tudo onde
encaixo eu? Encaixo em mim, porque sou única e não sou igual ou parecida
com nenhuma outra mulher, seja em que parte do mundo for. Lá por nunca
me ter aceite plenamente e nunca ter aceite ter nascido como nasci, sempre
senti que tinha que partilhar com outras pessoas o que se passava comigo.
Podia ajudá-las, pensava eu. Vejo, hoje em dia, que foi partilha feita em
vão. E a maior prova disso foi um curso livre dado nas instalações da
UMAR em Lisboa, em que fui convidada a partilhar parte da minha vida.
Fui acusada de me estar a "fazer de vítima", sendo que apenas relatei factos
da minha vida. Não fiz juízos, não dei a minha opinião, apenas contei partes
da minha vida real. É muito grave e de uma burrice e arrogância enorme,
alguém que não me conhece me acusar numa Associação que apoia
mulheres essas sim, vítimas, de me estar a fazer de vítima. E, pelos vistos, a
opinião dessa senhora deve-se ter espalhado, pois certas reacções de
pessoas que eu julgava que me respeitavam, mostraram o maior desrespeito
por mim, pela minha história de vida e por quem sou.
Quando fui em 2007 ao programa que Júlia Pinheiro fazia na altura na TVI,
foi-nos questionado (às quatro convidadas trans) quais as nossas orientações
sexuais. Cometi um erro. Defini-me como uma mulher transexual
heterossexual. O erro não está na definição nem na verdade do que disse.
Está que ninguém percebeu nada, nem a própria Júlia Pinheiro, que é uma
querida. Por um lado, porque as pessoas partem do princípio que as trans
são gays - não são, não são homens, são mulheres, por outro lado, porque a
maioria das pessoas deveria e deve pensar ou supôr que sou lésbica ou
bissexual, o que não corresponde de todo à verdade.
Sei que não viverei muito mais e que o meu "trabalho" neste mundo que
conheço está praticamente feito. Luto e lutarei até ao fim para que não nos
considerem doentes seja mentais, seja de que tipo for, e que nos deixem ser,
apenas isso. No fundo não queremos mais nada a não ser sermos nós sem
preconceitos, discriminações e merdas do género. Não nos continuem a pôr
mais uma etiqueta. Deixem-nos ser pessoas como as outras, que é isso que
nós somos.
É que no fundo, tudo se resume áquilo que tens no meio das pernas (e não
me refiro aos joelhos). Em vez de seres vista como uma pessoa, és vista
como algo indefinido e que só se define se souberem que genitália tens.
Que disparate tão grande! Com este tipo de experiências de conversa e
relações falhadas, além do péssimo ambiente familiar, cheguei à conclusão
que a fonte está toda naquilo que és, não no que aparentas ser, apesar da
suposta concordância da maioria de que assim é. Mas na realidade não é. As
pessoas julgam-te pelo que vêem, não pelo que conhecem de ti. Aliás, na
maioria das vezes nem sequer lhes interessa conhecer, quando se apercebem
que tu és trans.
É como é mais fácil dares-te com uma pessoa que, além de mulher, é
transexual e vive bem com isso, anda sempre alegre e contente, como se o
mundo fosse cor-de-rosa e a maioria esmagadora das pessoas fosse
maravilhosa. Sim, é bem mais complicado falar e conhecer uma pessoa que,
por acaso é mulher e transexual, e que não vive feliz e contente, e que tem
perfeita noção da porcaria que por aí anda e que reage, pensa e, ainda por
cima, é uma pessoa depressiva. E que não gosta que lhe passem atestados
de estupidez, responde à altura a provocações e batalha por aquilo que quer.
Ou seja, e para resumir, nunca correspondi ao que esperavam de mim, nem
correspondo. Mas não é por aí que vou. Vou pelo caminho de poder ser eu
própria, triste, alegre, lúcida, incongruente, depressiva, bem-disposta e por
aí fora.
Sinceramente, estou-me a borrifar para aquilo que os outros esperam de
mim. Julgam-me sem me conhecer e sem me ouvir, não me aceitam como
sou, discriminam-me diariamente. Reagem a mim como estão habituados a
reagir com os animais do zoo ou do circo. Só que eu não sou nem um
bichinho, nem sou igual a ninguém. E, sinceramente, prefiro estar só, a estar
acompanhada apenas para não estar (fisicamente) sozinha.
Só há uma pessoa a quem tens que agradar neste mundo. E essa pessoa és
tu. Não te iludas com os outros, vive a tua vida e age de acordo contigo, não
com o que os outros esperam de ti. Porque, se seguires o caminho que os
outros te indicam, nunca serás tu.
Por isso mesmo, e porque segui o caminho que quis para mim, só me
arrependo das poucas alturas em que não o fiz. E se sou agressiva, fria,
triste, depressiva e tantas coisas agradáveis que me estão conotadas por
pessoas que nem me conhecem, isso só se deve a mim e assumo-o com todo
o gosto.
Nasci como nasci. Ninguém teve culpa. Agora sobrevivo a isso como
posso. Mas não me venham é culpar a mim!
segunda-feira, Dezembro 10, 2012
Amizade é...
Sentimentos e emoções são coisas distintas, mas que apesar de tudo se
tocam.
Cada um de nós terá as suas próprias definições e convicções em relação ao
que é um sentimento ou uma emoção. E a amizade o que é, hoje em dia?
Sempre vi e vejo a amizade como uma relação que pode ir de uma empatia
emocional e racional que se prolonga durante anos, a uma empatia
intelectual que dá aquelas conversas que duram uma noite toda sentados no
sofá com uma chávena de café bem quente.
Nunca misturei amizade com outras coisas. Amizade pode ser uma forma
de amor, como em geral se refere, mas como não acredito que o verdadeiro
amor exista, acho que a amizade vale por si como um sentimento em que
nós escolhemos alguém e alguém nos escolhe. Uma espécie de "segunda"
família, visto que a biológica nós não escolhemos. Mas nunca, nunca
misturei amizade com "amor" ou sexo.
E aquilo que mais é banal hoje em dia, as supostas amizades coloridas, seja
lá isso o que for, não encaixam no meu perfil de ser humano e de mulher.
Uma amizade em que entra sexo deixa de ser uma amizade para mim. Passa
para outro patamar. Um patamar em que a pureza da amizade verdadeira
passa a ser conspurcada por factores que nada têm a ver com isso, como o
ciúme, a confusão entre "somos só amigos, ou não?" e por aí fora.
Também tenho perfeita noção que hoje em dia tudo é descartável e qualquer
macaco diz que quer ser meu "amigo" como se bebesse um copo de água, e
como se a amizade nascesse de geração espontânea. Como se uma
verdadeira amizade não fosse uma escolha de ambos, algo construído com
bases sólidas, em que empatia e respeito são valores básicos.
Ah, já agora agradeço, visto que sou "antiga", que alguém se digne a
explicar-me tintin-por-tintin o que é "amizade colorida" e coisas afins.
Obrigada.
sábado, Dezembro 22, 2012
Ninguém suporta a verdade
Num momento em que um ano termina e já está aí a chegar outro, confesso
que vários assuntos me passam pela cabeça e sobre os quais quero e hei-de
escrever.
Mas há um que me tem "martelado" a cabeça desde há bastante tempo e que
tem a ver com sinceridade e honestidade, mais concretamente com o facto
de dizeres ou não a verdade, independentemente das consequências.
Eu confesso que tenho um grande defeito: sou sincera e digo aquilo que
acho que devo dizer, e que considero ser uma verdade para mim. Resultado:
as pessoas ficam chocadas, ofendidas, melindradas, porque, no fundo,
ninguém gosta da verdade, ninguém a quer enfrentar, ninguém quer lidar
com ela.
Não podes, nem deves nunca, mas nunca ser sincera. Mesmo neste último
exemplo em que és tu que dizes a verdade sobre ti, em que és sincera sobre
ti. Em que és honesta. Pois é, amiga, acabaste de estragar tudo. A pessoa vai
entender isso como fraqueza, falta de amor-próprio, falta de auto-confiança
tua, e vai-se afastar.
Esta é apenas uma pequena reflexão. Vou tentar deixar mais algumas por
aqui nos próximos tempos. Sempre me ajuda e pode ser que ajude alguém a
ver-se reflectido neste espelho que eu (também) sou.
domingo, Maio 05, 2013
Amar e cuidar
Quando te olhas ao espelho vês o quê? Aquilo que realmente tu és, ou
aquilo que tu gostavas de ser? Ou ainda uma imagem do que pensas que os
outros vêem?
Eu, quando me olho ao espelho não vejo, em absoluto aquilo que os outros
vêem. Vejo-me como algo de amorfo, diferente e igual todos os dias,
moldado pelos humores, pelos amores, pelas vicissitudes, pela tristeza.
E cada vez mais se utiliza a palavra amor em vão. Amor serve para tudo,
um bocado como a amizade de que já escrevi aqui. Tudo é amor e faz-se
tudo pelo amor. Agora até se "faz o amor", como dizia o outro. Mas amor,
amor, quem já sentiu? Ou será que todos nós já o sentimos? É um
complemento indispensável à sensação de felicidade ou não? E tudo
começa no amor por nós próprios.
Mas não. Calhou-me nascer assim, numa forma com a qual não me
identifico e com a qual as pessoas que amo lidam mal. Ou não lidam, ponto.
No fundo, andamos (eu e os outros perto de mim), todos a fazer o papel que
está tudo bem, mas não, não está tudo bem. Nunca esteve e parece que irá
ficar sempre ainda pior.
E ninguém, digo eu, se sente feliz por ter nascido transexual. Por ter
nascido num corpo que não deveria ser esse que tem. E isto não implica
cirurgias. Implica aprendermos a con(viver) o melhor possível com o
material físico e biológico que temos.
Mas a tristeza é grande e permanece. Desde criança que sinto que há algo
que não está bem. Nunca percebi é se é comigo ou com o mundo.
Se calhar é com os dois. E por mais que eu tente explicar ou fazer passar a
mensagem do que sinto, cai inevitavelmente em saco roto. Ninguém
entende, nem tenta entender. Acham, aqueles que se dizem mais "abertos",
"normal". O problema é que a normalidade não existe e toda a gente tinha a
obrigação de o saber e de o apreender.
Não sou "normal" nem quero ser. Sou como sou. E, para mim, isso deveria
bastar. Mas não basta. E pé ante pé cheguei ao ponto de não-retorno.
Olho-me ao espelho e vejo alguém que conheço mas que nunca imaginei
assim com esta idade. Vejo, agora, a tristeza no olhar, e a sensação de
impotência perante essas "verdades" que me esmagam.
Estou sozinha. Aliás, sempre estive. Desde que nasci. Fiz uma vida paralela
a este mundo, na ilusão de que conseguisse, um dia, ser feliz.
Não tive essa sorte. Talvez porque a vida não é feita só por nós, é feita pelos
que nos rodeiam e por todas as situações que são criadas à nossa volta.
Sinto raiva. Raiva de mim por ter falhado, por ter tomado tantas decisões
erradas e as aceitar placidamente. Decisões que se transformaram num dia-
a-dia de tristeza. Isolamento.
Não quero ir lá para fora. O único sítio onde me sinto minimamente bem é
na minha zona de conforto. No meu ninho emocional, junto das minhas
coisas, num pequeno espaço psicológico. Não faz sentido, para mim, o que
se passa lá fora. Não faz sentido a crueldade das pessoas, principalmente
das que estão perto de mim. Não faz sentido expor-me a situações que me
são desagradáveis, como tomar um café num local em que tudo se calou
quando entrei e ficou estarrecido a olhar para mim.
Este mundo pode ser teu, vosso. Meu não é. É insuportável e insustentável
ver passar as coisas à minha frente e não poder fazer nada. Ter conversas
vagas, vazias e repetitivas na internet e sair mais triste com a natureza
humana do que já estava. As pessoas não nascem boazinhas. As pessoas
não são boazinhas. As pessoas são do mais frio e cruel que existe. E só
sabem destruir tudo o que têm à volta, principalmente aquilo que dizem que
amam. Mas alguém sabe o que é realmente o amor?
"Bem, tenho que ser feminina, porque sou mulher". O que é que isto quer
dizer? O que é ser feminina? O que eu considero ser feminino
provavelmente não é o mesmo que outra ou outro considere. Eu tenho
padrões (subjectivos, confesso) do que é ser feminino e masculino, mas
apercebo-me que a maioria das pessoas tem conceitos estáticos, são
pragmáticos em relação à feminilidade e masculinidade.
E então se eu for uma mulher trans? Aí é que a porca torce o rabo. Ao longo
dos anos fui vendo que as mulheres trans exacerbam, ou têm tendência para
isso, os traços femininos (ou supostamente femininos) em todas as suas
vertentes. É plástica para cá é silicone para lá, é roupas exageradamente
reduzidas, como se para sermos vistas como mulheres temos que usar
roupas que as próprias mulheres biológicas raramente usam e por aí fora. Se
as estou a julgar? Estou e não estou. Não as critico pejorativamente.
Estamos em sociedades (não me refiro só à portuguesa) em que nos são
exigidos papéis de género como definições daquilo que somos.
E devido a mais este cliché, aquelas mulheres trans que não encaixam neste
perfil são postas de parte. E eu não encaixo no cliché básico da mulher
trans. E sou discriminada por isso. Sou presa por ter cão e presa por não ter.
Tanto sou tratada como homem com mamas, como sou tratada como "meio-
andrógina", seja lá o que essas coisas são. Não faço parte do cliché, nem
quero fazer. Sou como sou, tento conviver o melhor possível com o meu
corpo, mas recuso-me a transformar-me em algo que eu olhe ao espelho e
não me identifique.
Mas as mulheres (trans e bio) não entendem isso. Muito menos os homens,
sempre tão ligados aos lugares-comuns dos papéis sociais e de género.
Então para eles, ser-se trans é quase uma mistura entre uma Barbie humana
e uma Angelina Jolie. As mulheres trans têm que ser lindas, deslumbrantes,
siliconadas, que usem todas tops e mini-saias e saltos-altos agulha. Ridículo
no mínimo.
Se não te encaixas aí, minha amiga, estás mal. Ou não te preocupas com
isso e tens esperança de encontrar algum "iluminado" que se interesse por ti
por quem és e não pelo que aparentas ser, ou investes milhares de euros na
tua imagem para depois conseguires umas quecas secas com todos os
homens que encontrares e te apetecer.
Podia escrever sobre muita coisa. Lá isso podia, mas escrever sobre mim,
sobre o que penso que sou e que sinto, acho que é a única coisa que sei
escrever minimamente bem.
Era uma coisa só minha. Sentia-a desde criança, desde que me lembro, mas
tinha conseguido disfarça-la inconscientemente durante anos, para que
socialmente fosse vivendo mais ou menos. Digo mais ou menos, porque
nunca fui bem aceite em lado nenhum, nem por ninguém, incluindo
obviamente a família próxima.
Mas com o tempo a passar, apercebi-me que não ia nunca conseguir atingir
os meus objectivos. Uma mulher trans como eu não tem, em parte
nenhuma, os mesmos direitos que uma mulher biológica.
Eu queria muito ter sido mãe e não podia biologicamente sê-lo. Eu queria
ter tido um relacionamento emocional estável, mas nunca encontrei um
homem disponível para isso. Eu queria ter casado e não podia. Acima de
tudo, eu queria ser respeitada como qualquer outra mulher e, salvo raras
excepções, nunca o fui nem o sou.
Poderia aparecer mais nos locais onde estão as pessoas que conheço, onde
poderia conviver, conversar, sorrir. Mas não quero. Só saio quando é
imprescindível e mesmo assim, contra a minha vontade.
Sempre ouvi dizer que "para cada panela há um testo". Pelos vistos, ou há
testos a menos ou panelas a mais. Ou, por outro lado, há pessoas que não
têm direito a um testo. Aponto mais para esta última hipótese.
Num tempo não muito longínquo, uma pessoa também me disse algo, neste
caso especificamente sobre mim, que era que eu afastava quem se tentava
aproximar de mim. Que eu tinha um bloqueio emocional. Que tinha medo
de me sentir feliz, de me sentir bem. Como se me sentir incompleta fosse
algo que fazia parte da minha zona de conforto.
Parece contraditório, e não digo que não o seja. Afinal, sou tão estranha,
incongruente e frágil como qualquer outra pessoa. Mas sim, talvez eu não
saiba lidar com a aceitação de alguém-um-pouco-mais-que-estranho e que
mostre interesse em mim. Estou habituada ao estigma. "Já foste homem",
ou "és homem mas com mamas", ou o famoso "já és operada?".
Ou seja, passei toda a minha vida após ter-me assumido sempre a ser
questionada sobre o que tenho no meio das pernas, a ser assediada para
sexo, a não ser respeitada nem como mulher, nem como ser humano. E a
minha zona de conforto não me permite deixar que alguém entre.
Resumindo, sou uma panela sem testo. Ainda para mais agora, que
fisicamente a minha aparência não é das melhores, principalmente quando
abro a boca.
Ah, e aí vou-me sentir tão bem, tão livre! Vou estar em todo o lado!
Tenho escrito sobre vida, morte, tristeza, alegria, depressão, amor, ódio e
por aí fora. Tudo isto faz parte da minha vida, como faz parte da vida de
qualquer outra pessoa. Mas será que estes conceitos, a forma como eu
aprendi a vê-los e vivê-los é, agora, a mesma? Nope, não me parece
definitivamente que seja.
Amor era, para deixar de o ser. Numa altura em que tanta canção, tanto
livro, tanto filme, continuam a falar de amor, as pessoas seguem no
caminho oposto e evitam tocar sequer no assunto. É tudo fast-feeling . Tudo
sem compromisso. Tudo leve, demasiado leve e "sem stresses", como
também é muito habitual ouvir agora.
E aqui entra, no meu caso e acredito que em muitos outros, o passado. Não
sou uma velha carcareja saudosista. Pelo menos não me vejo como tal.
Apenas considero que aquilo que sentimos uns pelos outros é o mais
importante da vida, e que parece já não importar para nada. Passado é
passado. Se há coisa que também aprendi é que quando algo se desvanece, e
passados anos, parece ressurgir, não é verdadeiro. É sempre forçado e não
vai resultar. "Ah, éramos tão amigas". Exacto. Éramos, passado. Já não
somos. Tu seguiste o teu caminho e eu segui o meu. E o mais provável é já
nada termos uma a ver com a outra. O meu universo expandiu-se para um
lado, o teu para outro. Não vale a pena tentar recuperar o que se perdeu no
tempo. As relações entre eu e o outro vêm e vão como as marés. Até que
um dia vão para não mais voltar. Portanto, vamos deixar o passado
sossegado, que é onde ele está melhor.
misoginia
(grego misogunía, -as )
s. f.
1. Aversão às mulheres.
2. Repulsão patológica pelas relações sexuais com mulheres.
E todas nós, mulheres trans, somos afectadas por esta transmisoginia, por
transfobia, e infelizmente, é provável que muitas de nós tenham o mesmo
fim que Gisberta ou Luna (mulher trans assassinada em Lisboa, em 2008).
Mas será que essa transição é assim tão linear? Obviamente que não. Todas
as pessoas são diferentes, têm desejos diferentes e vêem-se a si antes de
uma forma e depois de outra, que muitas vezes não tem sequer que passar
por cirurgia nenhuma. Por isso, e em pleno século XXI ainda andamos
tod@s à porrada a discutir se a transexualidade e, inerentemente, as
identidades trans são uma doença, ou várias.
E para complicar tudo isto ainda mais, umas pessoas trans reagem de uma
forma à transição e outras de outras formas totalmente diferentes. E isto
abrange tudo, desde a hormonoterapia a cirurgias, à própria forma de vestir,
de se estar. Sim, porque identidade de género é uma coisa e papeis de
género outra, não confundamos.
E como o meu caso há, com certeza, muitos mais, principalmente nas mãos
desse senhor. Por estas e por outras é que sou acérrima defensora de que se
crie, em Portugal, e o mais rápido possível, uma lei integral de identidade
de género como aquela que existe na Argentina. Porque a tua transição és tu
que a fazes. Porque o corpo é teu e tens direito a fazer com ele o que
quiseres. Porque se te deram o nome de Manuel mas tu te sentes Maria, não
tens nada que ser obrigada a passar anos a ser "analisada" por quem, a um
nível geral, nem sabe nada de nada. Chegas ao cartório e mudas de Manuel
para Maria, ponto final.
Foi algo que eu fiz na esperança de que o meu exemplo de vida, em que
optei por me anular durante mais de metade da minha vida, e todas as dores
que isso traz, poderiam ajudar de alguma forma quem lesse ou visse as
entrevistas que eu dava. Fui sempre eu, nunca quis (nem quero) representar
uma suposta "comunidade" trans que não existe em Portugal. E por ser eu e
por ser anti e contra-corrente paguei muito caro.
Não foi só o estigma social de passar a ser ainda mais vista como alguém
que não é "normal" (seja lá o que a normalidade é), foi a discriminação
familiar ainda mais forte, foi a crítica implícita de quem era eu para agora
andar a dar entrevistas. Dei entrevistas não porque sou alguém em especial,
mas como uma pessoa que tem algo a dizer e que sofreu na pele (e sofre) os
constantes preconceitos e discriminação de que somos alvo diariamente.
Não quero, nem sou um exemplo para ninguém. Sou apenas alguém que
decidiu dar a cara e sempre que seja necessário voltarei a dá-la. Isso não
implica que sou "perfeita", que não tenho uma profunda rejeição
interiorizada por quem sou, que não gosto de quem sou. Tenho muitos
defeitos e muitas qualidades, e estas lutas são feitas por mim todos os dias.
Eu olho-me ao espelho e vejo algo que nunca deveria ver desta forma. Eu
deveria ter nascido mulher também fisicamente. Devia ter passado pela
sensação e dor do peito a crescer, da identificação imediata de mim como
mulher na rua, o que não acontece. Sinceramente, não me interessa
minimamente que quem leia estas linhas esteja chocada ou incomodada.
Sim, porque as pessoas que escrevem sobre temas trans e são trans, mantém
o grau de sofrimento e discriminação baixo e revelam e enfatizam o que é
bom em ser-se trans.
Mas há alguma coisa boa em ser-se trans??? Confesso que já tenho uma
certa idade e uma certa experiência na matéria, e até hoje não descobri
nenhuma coisa boa no facto de ter nascido trans. Não, não é a estória batida
que muitas gostam de chorar da "coitadinha". Não sou, não me considero de
forma alguma uma coitadinha. Apenas não vejo o que há de bom em nascer
com uma identidade de género não correspondente ao corpo. Quem vir
alguma vantagem que avise, pois eu nunca descobri nenhuma.
E bons exemplos disso são a rejeição por parte da família, dos supostos
amigos, da dificuldade em arranjar um trabalho, em estudar, em andar
anónima na rua, o não ser apontada como uma merda de uma "freak" que
não devia sequer ter direito a respirar.
Um dia destes falava com uma pessoa conhecida ao telefone e essa pessoa
achou muito estranho e chocou-se com o facto de eu nunca ter tido um
relacionamento sério, nem nunca ter ouvido da parte de ninguém um "amo-
te". Não que nós, mulheres trans, não tenhamos o direito a amar e ser
amadas, mas convenhamos que é bem mais difícil que para uma mulher
biológica (que era o que eu devia ser). Mas conheço vários casos de
mulheres trans que têm relacionamentos estáveis há anos, portuguesas e
estrangeiras. Isto prova que é possível. Mas não para todas.
A ideia inicial deste blog era falar, através do que escrevia, das minhas
experiências de vida, daquilo que acho de A ou B, de exprimir os meus
sentimentos e emoções sobre os outros, sobre o mundo, sobre o que me dá
na telha, mas que acho importante partilhar.
Mas a partilha só faz sentido quando é isso mesmo: partilha. Quando
escrevo não sei quem está do outro lado, quem me lê. Independentemente
do que pensa, do que sente, se concorda, discorda ou se se está a cagar para
aquilo. Mas o essencial é que haja partilha. Que eu tenha feedback , retorno,
por parte de quem lê. Que eu partilhe com os outros coisas que foram (ou
são) importantes para mim e que podem de alguma forma ajudar alguém,
fazer alguém pensar, questionar-se, identificar-se (ou não).
Escrevo como falo. Com o coração ao pé da boca. O que sinto é o que
escrevo. Escrever, para mim, não é um processo racional, é algo de
espontâneo, emocional, sentimental. Escrevo como amo. Escrevo como
vivo. Devia ser mais racional, isso sei eu, mas não sou. Acho que aprendi a
sê-lo um pouco mais com a idade e as experiências porque fui passando,
mas continuo eu, emocional.
Cometo erros de uma miúda de 15 anos. Mas sou pragmática com a vida
como uma velha de 65. Isso, felizmente, não me retirou a capacidade de
sentir, de ser eu, de ser emocional, de chorar, de rir, de viver como posso e
como me deixam.
Sermos nós é o mais importante. Não sou perfeita como ninguém é. Estou
profundamente insatisfeita comigo. As lutas internas acontecem
constantemente, intercaladas com períodos de "quero lá bem saber". Mas
tento não deixar de sentir. Sentir-me. Não me deixar ficar anestesiada.
Sentir os outros. Transformar estas linhas numa conversa convosco. Tentar
reflectir sentimentos, sejam eles quais forem, através das minhas palavras.
É a única coisa que me resta. Sentir. Há quem diga que não se conseguem
transmitir sentimentos através da palavra escrita. Não podia estar menos de
acordo. Não sei se os consigo transmitir através das minhas palavras neste
blog, mas espero que sim. Resta-me agradecer a todas as pessoas que me
vão lendo. E agradecer também a todas aquelas pessoas que me dão um
retorno. Obrigada a tod@s.
terça-feira, Dezembro 17, 2013
Ser mulher trans é... Uma dissertação
É sempre complicado escrever. Seja sobre mim, sobre os outros, sobre um
assunto que me toca. Principalmente porque é um exercício de
concentração, de me despir em relação a quem lê, de me mostrar como sou
e não como os outros gostariam ou esperariam que eu fosse. Ser uma
mulher trans é apenas uma parte de mim. Uma parte de um todo. Não é ser
trans que me define. Ser trans ajuda a definir-me, como o facto de ser
inteligente, alegre, triste, racional, emotiva e por aí fora.
E, como se vê, não é apenas um estigma. São vários. Vários que nos
perseguem ao longo de toda a vida e que, ou nos deixamos levar, ou
lutamos contra isso. Confesso que a conversa parva das pessoas que acham
que sabem o que eu sinto ou pelo que eu passei e passo já me mete nojo.
Ninguém que não nasça como eu sabe avaliar minimamente o sofrimento
porque passei e que se prolonga ao longo da vida, muito graças aos outros.
Travar duas guerras em simultâneo é, no mínimo, cansativo. Temos que
lutar contra os outros e há essa luta enorme sempre dentro de nós.
Mas elas, que são todas pessoas iluminadas, sabem perfeitamente aquilo
que nós passamos. Já não há humanidade nas pessoas. Só egoísmo.
Ninguém te ajuda se não ganhar nada com isso. Portanto, essas batalhas são
solitárias, eternas, desgastantes. Estou cansada. E chego ao fim de 2013
com a sensação estranha que vivo em pleno século XIX, no mínimo. A
mentalidade das pessoas está cada vez mais fechada, e isso sente-se e vê-se
em tudo.
2013 foi um ano para esquecer e sinto que o que vem será igual ou pior.
Resta-me esperar para ver. E esperar que a poeira assente.
Sou mulher e é assim que quero não só ser tratada, como vista. Habituem-se
e, acima de tudo, respeitem-me.
Quer queiramos, quer não, o pré-conceito das pessoas cai aqui. Não somos
homens nem mulheres, somos algo no meio, independentemente de sermos
“operadas” ou não. Se escrevo muito sobre esta temática, tem não só a ver
com a desmistificação do que é uma mulher trans (que é o meu caso), como
para clarificar que nada é fácil na vida de ninguém, sendo que para as
pessoas trans essas dificuldades elevam-se ao dobro, pelo menos.
Muitas vezes tenho escrito sobre o estigma que temos. Somos uma minoria
dentro das minorias, o que leva as pessoas a olharem para nós com
estranheza no mínimo, e com ódio na maioria das vezes, o que leva a tantas
mortes de mulheres trans em todo o mundo todos os dias.
As pessoas afastaram-se de mim. Quem eu pensava que era amigo, não era.
Passei a ser tratada de outra forma por toda a gente, mesmo em casa. Foi
muito complicado. E foi aí que não só comecei a lutar contra a maré, como,
sem ter ainda grande consciência disso, comecei a auto-destruir-me.
Essa dicotomia do ser mulher e ter que lutar para que o mundo me visse e
aceitasse como tal, e a minha luta interior para me aceitar como era,
acabaram por, ao longo dos anos, me corroer por dentro, o que se reflectiu
por fora. Isto é algo que partilho com naturalidade, pois é um risco que
qualquer mulher que nasça como eu corre. As pessoas gostam muito de
dizer “ah, eu não me arrependo de nada”, pois fica sempre bem e dá uma
imagem de autoconfiança que na maioria das vezes é falsa. Mas eu digo o
contrário: arrependo-me de muita coisa.
Arrependo-me de não me ter assumido como mulher antes. Arrependo-me
de não ter tido nem força nem coragem para enfrentar tudo e todos para ser
quem sou… Isto soa completamente esquizofrénico, não é? Eu ter que lutar
para ser quem sou. Ridículo. Ninguém deveria ter que lutar para ser quem
é! Eu sou assim e é assim que as pessoas me deviam aceitar, sem sequer
questionar isso. Mas não, como todos sabemos. A realidade é bem mais
dura e o oposto disto.
Que o estigma que nós, mulheres trans temos, já muito tenho escrito aqui,
mas nunca é demais vincar bem essa realidade. Que o estigma que persegue
os casais homossexuais, apesar do casamento civil já ser legal e real,
também sabemos que existe. E agora, ao vermos esta tristeza, esta vergonha
de tentar retirar direitos básicos, direitos humanos a todo um espectro de
gente, vemos bem que Portugal nunca saiu da cepa torta, e que os
preconceitos e a discriminação é real e sempre será.
Esta minha reflexão não pretende ser mais nada do que isso. É um grito de
revolta. É um estado de luto. É uma tristeza imensa por ver que o país onde
nasci, cresci e vivo não merece uma grande maioria das pessoas que ainda
aqui vivem. Sinto uma vergonha e um nojo imenso por esta "juventude" que
se acha no direito de destruir a liberdade que os seus avós e os seus pais
tanto lutaram para ter.
Estou de luto igualmente por tantas famílias do mesmo sexo que por esse
país fora foram e continuam a ser afectadas e prejudicadas porque não
temos uma lei de adopção e co-adopção, que é um direito fundamental num
dito "estado de direito". Tenho assistido a esta palhaçada, a esta nojeira que
um "governo" e uma "maioria" muito supostamente democráticos têm
vindo a representar na assembleia da república e nos diversos "discursos"
de pessoas (não seres humanos) que se acham no direito de decidir o futuro
e os direitos das pessoas que deveriam estar desde sempre consagrados em
lei, não só na constituição.
Estou de luto por mim, por ti, por nós. Tenho vergonha de ser portuguesa e,
na falta de palavras, resta-me mandar isto tudo à merda, e agradecer por me
terem morto em vida.
Obrigada a tod@s aquel@s que me têm lido. Se voltar a escrever, não será
tão breve e, se o fizer, já não será aqui.
Não vou escrever sobre ser mulher. Não se é mulher, aprende-se, como
escreveu e afirmou Simone de Beauvoir. Eu aprendi a ser mulher, como
todas nós. Sou mulher, feminista, activista e muito mais. Sou tudo isto, mas
o que me define é o que sou para ti. Tu é que me defines enquanto aquilo
que és para mim, com o que me ensinas, com o que me dizes, com o que me
escreves. Eu sou um espelho de ti e tu reflectes-te em mim.
Aqueles que me tocam de alguma forma, que me fazem sentir que vale a
pena estar viva, esses sim, são a minha família. São afectos, são cores, são
odores, são toques. É a festa da tua mão na minha, o riso quando eu digo
um disparate, ou apenas porque sim. É o olhar e saber o que pensas. É o
silêncio que se faz palavras. É estar e saber que estás ali. São tantas coisas e
tudo tão simples. Tudo tão válido para eu ser quem sou. Este universo que
partilho com algumas pessoas faz delas alguém para mim, e eu alguém para
elas. Este é o meu universo onde a tua alma entra.
Aprendi a ser mulher com tanta coisa que passei, com o meu corpo em
convulsões e a minha mente noutro mundo. Colhi aqui e ali pequenas coisas
que juntei num complexo puzzle que sou eu. Muita gente passou pela minha
vida. Muita já foi, outra tanta ficou. Mas se não fossem todas estas pessoas,
eu nunca seria quem sou. Sem vergonha do que sou, a saber quem sou, a
saber que sou um bocadinho de todas estas pessoas, da experiência delas,
do universo delas, que me fez aprender a ser eu.
Ser-se assim é ser-se livre. Podem tentar fazer o que quiserem, que eu serei
sempre eu. Humilhar-me, conspurcar-me, rebaixar-me. Mas na minha
mente, na minha alma não entram. Porque essa é minha. Essa sou eu. E aí
não entram.
Quando eu morrer, não morro. É este corpo que morre. Se a minha alma
fica algures, se o meu espírito voa para outro lado não sei, não quero saber.
Basta o meu amor ficar na memória de alguém, que eu não vou morrer. É
apenas esta casca que se desvanece. O brilho do meu olhar ficará eterno no
meio das estrelas. Eu sei que é assim. Por isso não tenho medo de morrer.
Aprendi a ser assim. Nasci sozinha e vou morrer sozinha. Mas o meu amor
ficará cá. E é isso que me importa, que me dá alento, que me faz seguir em
frente, mesmo quando me cortam a carne e me esmagam o coração. Com as
lições que todas estas pessoas me deram sei andar. Já não gatinho. O que é o
mais difícil neste mundo. Obrigada a toda a minha verdadeira família. Sem
vocês nunca teria conseguido.
Sem vocês não tinha aprendido a ser a mulher que sou. Aquela que é fraca e
forte. Sensível e bruta. Bonita e feia. Aquela dos opostos e compostos que
vocês conhecem. Com este universo tão inconfundível e complexo que é,
afinal, tão simples: é ser a Lara.
Nesta minha reflexão sobre o que se passa no mundo, não estão de fora o
crescimento dos preconceitos contra as pessoas LGB e Trans, e a
inequívoca discriminação que daí advém. Exemplos: no país do mundo em
que mais mulheres trans são assassinadas, o Brasil, viu-se esta semana o
primeiro beijo entre dois homens numa novela de horário nobre e foi a puta
da loucura. É como se tivesse vindo tudo ao de cima. O preconceito e o
recalcamento de tanta gente, tanto lá como cá, leva as pessoas a
supostamente conspurcarem um momento bonito com palavras sem
argumentos, com a religião (como não podia deixar de ser) em que nós
todos, pessoas trans, lésbicas, gays, bissexuais vamos todos arder no inferno
e tal.
Por outro lado, há algumas mulheres trans que estão a dar cartas e que são
um orgulho para todas nós, como Laverne Cox, que interpreta uma mulher
trans na série "Orange is the new black" e Carmen Carrera, que além de
actriz é modelo e tem excelentes hipóteses de ser o próximo "anjo" da
conhecida marca de lingerie Victoria's Secret. Aliás, são estas duas
mulheres trans que têm dado que falar nos EUA, desde que foram
entrevistadas num programa de televisão onde a entrevistadora estava mais
interessada em saber que genitais elas tinham entre as pernas do que com a
importantíssima relevância e destaque que estas duas mulheres estão a ter
em todo o mundo.
Por cá, nada de novo. Neste país à beira-mar plantado nós, mulheres trans,
continuamos todas a ser vistas como aberrações, freaks e algo de que se tem
que fugir, pois (parece-me) que isto se pega. As pessoas falam, falam muito
e falam demais. Ninguém sabe a dificuldade que é para uma mulher trans
arranjar um emprego ou um trabalho. Ninguém sabe como nós somos
tratadas numa urgência de um hospital, ou após uma cirurgia. Ninguém
sabe o que nós sentimos quando vamos tomar um café e, de repente, tudo
fica em silêncio e se acende um holofote em cima da nossa cabeça. Só nós
sabemos isso. Mas não custa nada tentar entender, tentar compreender.
Tentar ser humano connosco, como nós tentamos ser com os outros.
Mas não. Cada vez há mais intolerância. Nós nem direito a amar temos. Por
mim falo. Não tenho o direito a amar. Teria se "fosse mulher", como já me
disseram várias vezes. Como sou "trans" sou merda, sou uma boneca
insuflável, não tenho nem nunca terei os mesmos direitos que "as
mulheres". Ou seja (pela última vez), eu não sou uma mulher. Sou algo que
está num limbo. Tipo pareces mas não és, ou és mas não pareces, ou não és
carne nem peixe, ou, ou, ou... Resumindo, e fazendo desta triste estória uma
estória curta, eu, como mulher trans, não o sou, não tenho sequer o direito
de ser, dizem eles.
Pois, mas era só o que faltava. Não passei por tudo o que passei na vida, e
passo, para chegar agora e desistir. Isso nunca. Porque o que eu sou, sou.
Não é ninguém que me vai julgar, rebaixar e muito menos dizer-me o que
sou. Sou eu que me defino. Sou eu que sou. Não és tu, nem tu, nem o outro.
Já fui muito tolerante. Agora não sou. Já respeitei quem nunca me
respeitou. Agora não. Já tentei agradar, apenas na ilusão de que iria ser
aceite. Agora não. Podem retirar-me todos os direitos que acham que eu
tenho e não devia ter. Mas só por cima do meu cadáver. Porque nunca
ninguém vai saber o que eu sou. Só eu.
A Rússia está na ordem do dia com as suas recentes leis contra a suposta
"propaganda gay", e isto tem tomado tais proporções, que o presidente da
câmara da cidade organizadora dos JOI, Sochi, afirmou à comunicação
social que "não há, nem haverá, gays e lésbicas nos Jogos Olímpicos e na
cidade". Bem, isto soa-me tão disparatado como perigoso. Eles vão
controlar a orientação sexual e a identidade de género dos milhares de
visitantes e de todos os atletas? Mesmo daqueles que já assumiram
publicamente serem gays ou lésbicas? E o que fazem a estes atletas?
Expulsam-nos? Prendem-nos? Matam-nos? Sinceramente não entendo
como é que a entidade internacional que seleciona onde se vão realizar os
JO e os JOI, depois de toda esta polémica manteve a Rússia como país
anfitrião. Devia, isso sim, retirar a candidatura da Rússia e entregá-la a um
país que respeite as pessoas e, acima de tudo, a dignidade, a liberdade, e a
imensa diversidade do ser humano.
E da Rússia, onde deveria ter havido um boicote geral aos JOI, passo para
os EUA. Depois da "barracada" da entrevista televisiva realizada à actriz
Laverne Cox e à modelo e actriz Carmen Carrera, em que o enfoque da
senhora que as entrevistou foi o que é que, afinal, as duas tinham entre as
pernas, eis que mais uma vez, uma mulher trans é vítima de transmisoginia
na televisão americana. Janet Mock, mulher trans, activista e escritora,
acabou de ver sair para as livrarias o seu livro "Redefining Realness", onde,
segundo sei, entremeia a sua história de vida com várias questões
pertinentes para as pessoas trans, como a visibilidade, o coming out , a
transição e o mais importante: a identidade de género.
Com uma mente aberta e sempre atenta à realidade das mulheres trans, em
particular, Janet tem escrito crónicas deveras interessantes para jornais
americanos e para diversos sites e blogs. Com este livro, ela pretende dar a
volta à transmisoginia que cada vez mais existe por todo o lado, e dar um
enfoque humano, positivo e lutador às questões ligadas à transexualidade.
Pois bem, Janet deu uma entrevista a um programa da cadeia CNN, na qual
o seu entrevistador é um senhor que vem de pasquins de histórias que têm
tanto de cor-de-rosa como de escandaloso, logo não seria de esperar que a
entrevista fosse correr muito bem.
Após a entrevista, tudo o que é activista trans nos EUA se levantou contra a
forma como Janet foi tratada e a própria Laverne Cox, que já tinha passado
por algo semelhante, veio dar um basta neste disparate global da fixação
nos genitais, do preconceito estigmatizado do "era homem e agora é
mulher", cingindo-nos sempre a questões preconceituosas e secundárias e
relevando constantemente para segundo plano o nosso valor como
mulheres, sejamos actrizes, escritoras, modelos, trabalhadoras sexuais,
mulheres a dias, etc., etc. Realmente, meus amigos, já chega de bater nas
ceguinhas, porque acho que já estamos todas fartas da mesma conversa.
Eu não sei o que é o amor, no sentido amoroso do termo. Sei o que é amor
por um amigo, amor por um pai ou uma mãe, mas não sei o que é sentir
amor por outro que também o sente por mim. Aliás, acho que toda a estória
do enamoramento e de tudo o que cerca o amor entre duas pessoas é
altamente perturbador e causa ânsia, ciúme, desconfiança, torpor dos outros
sentimentos, e afastamento das outras pessoas, coisas nada positivas, na
minha modesta opinião.
Nas (muito) poucas alturas em que estive enamorada (não falo em amor,
mas sim em enamoramento), sentia aquela faísca, havia aquela atracção,
existia aquele torpor mental. Obviamente que esta é a minha experiência, e
não quer dizer que seja a dos outros. Afinal, este blog serve única e
exclusivamente para eu escrever sobre mim e sobre as minhas visões,
reflexões e experiências neste mundo. É-me indiferente que pensem ou
afirmem que este é um acto egoísta, de vitimização, ou de algo do género. É
para isso que serve a caixa dos comentários.
Não escrevo isto com amargura. Nunca estive realmente aberta aquilo que
se chama amor, acho. Tenho medo de me entregar, tenho medo de ser
magoada, sou humana, chiça! No final disto, fujo a sete pés de algo que
pode (ou poderia) transformar-se em algo mais. Por isso fiquei-me (apenas)
pelos enamoramentos, como se se tratasse de algo mais inócuo. Algo que
não deixa marcas. Algo que começa e acaba assim, sem mais nem menos.
Obviamente que estava enganada.
Porquê? Porque, como mulheres trans, temos que lutar contra esse estigma
do que é ser-se trans, temos que combater preconceitos e pré-conceitos e a
discriminação diária. Logo, se alguém se aproxima, ou tenta, é natural que
nós estejamos bem mais de pé atrás do que uma mulher cisgénero que não
tem que passar por nada disto. Há aquelas que aproveitam o próprio estigma
e estereótipo para irem tendo uma vida amorosa, apesar de me parecer que
não se sentirão muito felizes ao fim do dia. E há aquelas que, como eu, se
afastam de tudo o que possa ter a ver com a palavra "amor" e se tornam
inócuas, assexuadas, e sim, muito provavelmente, bacocas.
O amor é algo que exige de nós muita coisa que não estamos dispostos a
dar. Provavelmente a recompensa será um bem-maior, mas aquilo que
ganhamos pode não superar o que perdemos. Não estou aqui a julgar
ninguém, muito antes pelo contrário. Estou apenas a verbalizar o que me
passa pelas células cinzentas. Há quem ame sempre a mesma pessoa ao
longo da sua vida, e há quem ame cem. Também sabemos que o príncipe
encantado e a princesa encantada não existem a não ser nos contos infantis.
Então porque é que umas pessoas "têm sorte no amor" e outras não?
Provavelmente por tudo aquilo que já aqui escrevi, talvez porque há quem
nasça para isso e outras não, talvez porque, como se diz, cada um de nós
tem a sua alma-gêmea e ela estará algures no mundo. Confesso que esta
ideia me agrada. De ter uma alma-gêmea. Posso, ou não, encontrá-la e ela a
mim.
Para quem "oh, l'amour c'est l'amour" só tenho que me sentir feliz porque,
em tantas partes do mundo e entre tanta gente ele existe. E existe porque o
amor é eterno.
Temos pena, mas eu não sou assim. Eu não penso assim, nem vejo o mundo
assim. Sinto-me abençoada por ter nascido num mundo tão belo, mas onde
a esmagadora maioria das pessoas não presta. Mas a quantidade das que
prestam fazem-me sentir uma pérola perdida num oceano de mentes
mentecaptas e retrógadas. E isto tudo é emoção, é sentir. E é sobre o sentir
que este post fala.
Todas as mulheres sabem o que é sentir-se atraídas ou sentir que são o alvo
da atracção de alguém. Sejamos mulheres trans ou cisgénero, a estória é a
mesma. Todas nós reagimos é de forma diferente. Não posso falar ou
escrever sobre as outras, sobre a experiência delas. Apenas me posso cingir
à minha experiência sobre as famosas regras da atracção. Esta atracção que
é um sentir tão especial, tão leve, tão sub-reptício.
É algo que nos entra pela alma quase sem darmos por ele. Um olhar, um
gesto, uma palavra, um toque de raspão da mão dele na minha. Qualquer
coisa destas e muitas mais podem estar na base de algo muito forte, que nos
pode levar, ou não a algum lado. Todas temos esquemas mentais
emocionais pré-definidos para lidar com isto, quer tenhamos consciência ou
não. Eu, pelo menos tenho. E não tomei conhecimento disso há muito
tempo atrás.
Mas fugir porquê, perguntei-me anos mais tarde. Porque eu não me sentia
uma mulher como as outras. Porque eu me sentia diminuída em relação às
outras mulheres, fossem trans ou cisgénero. Sempre achei, no fundo, que eu
não estava à altura de um grande amor, que teria que começar, logicamente,
por uma atracção. Como não me sentia digna de tal, fugia. Mas sem ter a
real noção do que se passava comigo.
Obviamente que estas baralhações mentais e emocionais se devem muito ao
facto de uma mulher ou homem trans serem obrigados a viver praticamente
duas vidas numa só. Eu fui obrigada a comportar-me como "homem", algo
que nunca fui, e que rejeito liminarmente e sempre rejeitei. E com esta
"obrigação" social veio a revolta. Da minha aparente calma saía uma revolta
monstruosa contra tudo o que me estavam a tentar impingir. Valores sociais
que nunca me disseram nada, comportamentos que não correspondiam ao
que eu era, formas de estar e até de sentir que não eram meus. Nunca foram.
Quando dei o grito de revolta e parti a loiça toda, tudo isto se esboroou
como um castelo de areia. Virei uma terrível página da minha vida, uma
página de lavagem cerebral, e comecei do zero, a aprender a ser eu. E isto
reflectiu-se na minha relação com os outros. Deixei de aparentar para ser.
Mas era (e ainda sou) extraordinariamente naive em muita coisa ao que os
sentimentos e emoções dizem respeito. Aprendi que não há regras. Eu sou
única, como tu também. E eu reajo como eu, tu reages como tu. O problema
são as cicatrizes que ficaram.
E além destas cicatrizes emocionais ficou muita culpa. Muita mea-culpa por
ser quem sou. A santa ignorância e estupidez natural que paira socialmente
por aí diz que nós somos assim por "opção", ou então que é uma "escolha".
Se as pessoas tivessem um mínimo de tino na cabeça veriam
automaticamente que nada disto faz algum sentido. Mas em frente, pois não
vale a pena bater mais nos ceguinhos, já deu para ver que muito ou nada
muda ou mudará. E que mais tarde ou mais cedo, ainda acredito que as
pessoas vão entender quem somos. Caramba, está-me a dar um ataque de
optimismo!
Porque fujo? Não sei. Se calhar tenho medo de ser feliz, como já me
disseram. E os medos fazem parte de cada momento da nossa vida. Cheguei
onde cheguei porque os fui vencendo, um a um. Mas há medos que não só
nunca se perdem, como crescem com as más experiências. E eu confesso
que não consegui ainda ultrapassar muitos. Talvez por isso esteja viva. O
que não implica que esteja mais feliz, contente ou alegre.
Nada contra uma relação começar na cama. Tantas e tantas começam assim.
Mas comigo é difícil que tal aconteça. Principalmente, e lá vou eu outra
vez, porque já estou escaldada com o estereótipo da mulher trans
ninfomaníaca, prostituta, oferecida, dada, tudo com conotações mais que
negativas, sendo que somos vistas e transformadas em bonecas insufláveis.
E, se eles nos vêem assim, temos pena, eu não compactuo nem nunca vou
compactuar com isso.
Claro que os homens amam. Cada um ama à sua maneira. Mais correcta ou
mais errada. Mas para alterar este tipo de mentalidades teríamos que
começar de novo e educar os miúdos a serem eles, livres, sem restrições
negativas, ensiná-los a lidar com os seus sentimentos e não agir por defeito.
A mim fez-me ver quem eram as pessoas realmente importantes para mim,
na minha vida real. Algumas acompanharam a minha transição, outras
surgiram durante, poucas vieram depois. É como se fôssemos leprosas nos
tempos do antigamente. Não me interessa que discordem, pois a realidade é
mesmo esta. E, pior, pessoas que deveriam saber perfeitamente pelo que
estamos a passar, outras pessoas trans, essas são capazes de nos discriminar,
humilhar e maltratar ainda mais do que os outros.
Chego à conclusão que o ser humano não consegue viver sem competição.
Diariamente tem que se competir com os outros para sermos nós próprios.
E, realmente as pessoas mudam. Regra-geral para pior. Mas esta é apenas a
minha opinião baseada na minha experiência de vida. As pessoas, por
razões que muitas vezes desconhecemos, passam de nos tratar bem a tratar-
nos abaixo de cão. E inventam supostos factos sobre a nossa vida que
parecem estórias mirabolantes saídas de um filme. E fazem-nos mal,
prejudicam-nos, e nós não podemos fazer nada. Nada a não ser fecharmo-
nos.
As coisas acontecem todas na nossa vida. Essa mania que as pessoas têm
que tudo só acontece aos outros é uma forma de tentarem vencer o terrível
medo que isso lhes aconteça também a elas. Cheguei a uma fase na minha
vida em que já posso fazer um pequeno balanço. Aquilo que consideramos
e sabemos ser mau está aqui ao nosso lado, como está ao lado dos outros.
Aquela sensação de invencibilidade, de super-poderes que eu tinha até há
uns anos, já não a tenho. Sou vulnerável, sinto-me vulnerável. Porque nós
sentimos tudo na vida, mesmo que o tentemos negar. E o que sentimos mais
é o que dói. Precisamente porque é a dor que nos marca mais.
Seja a dor de perder alguém, seja a dor de estar doente, seja a dor da
solidão. Estou vulnerável, mas na realidade sempre o fui. Não tinha era
sequer a noção disso. Mas a vida, com os factos a decorrerem fez-me ver
que eu era como os outros em tudo, até na dor. Diferente, mas igual. Porque
toda a gente sente a dor. E, infelizmente, a vida é mais feita de dor do que
de alegria, ou momentos de felicidade.
E esta vulnerabilidade fez-me mudar. Revelo-me apenas a quem quero.
Mostro apenas aquilo que desejo. Mas a Lara que escreve estas linhas é já
muito diferente da Lara que escrevia há quatro, cinco anos atrás num outro
blog qualquer. Estou mais consciente do que me rodeia. Tento dar mais
importância ao que realmente a tem. Já não me deslumbro por nada.
Porque, tal como referi acima, as aparências não são nada. Não se consegue
viver de aparências se queremos ser verdadeiros connosco próprios.
Não descobri nenhuma verdade. Cresci e descobri mais questões. Deve ser
a isto que chamam de maturidade.
Algo tão natural como ter pais - e pais aqui são, além de ter um pai e uma
mãe, ter duas mães ou ter dois pais - é negado a um enorme segmento da
população por criaturas que não têm nem consciência, nem vergonha na
cara e muito menos coluna vertebral.
Desde sempre que deveria ser normal (odeio esta palavra, mas não encontro
outra) e natural duas mães terem bebés, dois pais terem bebés, como é
"normal" um pai e uma mãe terem. Todo o "complicadíssimo" processo que
leva a isto é tão simples como respirar. Faz parte da natureza humana
querer-se ter filhos. Não é a nossa orientação sexual que define isso. E este
direito inalienável a qualquer pessoa, qualquer casal, deveria estar
consagrado naturalmente e na constituição de qualquer país.
É incrível e totalmente absurdo ainda estarmos a falar de direitos humanos
em pleno século XXI. Como o meu direito a ser quem sou, a exprimir-me
como quero, sem ser humilhada, achincalhada, e tratada como uma
aberração só porque sou uma mulher trans. Nasci assim, assumi e assumo
quem sou, sofri bullying a minha vida toda e continuo a sofrer. A diferença
agora é que o bullying que me aplicam se reveste de formas diferentes, mas
não menos cruéis e humilhantes que aquelas de que eu era vítima na altura
do liceu e por aí fora.
Sendo uma mulher madura nada muda. E se muda, muda para pior. Não há
nada pior que o ser humano, que a sua crueldade, egoísmo e pura maldade.
Seja por que motivo for, há sempre alguém pronto a tratar-me como "o
senhor", a rir-se de mim com a cumplicidade de outra quando entro no café,
a olhar-me de cima a baixo com desdém quando vou ao supermercado. É
que eu não sou, para esta sociedade de merda, tão pessoa, tão mulher, tão
digna como qualquer outra.
Ninguém as olha nos olhos e lhes dá a entender que tem nojo delas.
Ninguém lhes estende a mão para lhes dar um aperto de mão, ou lhes
pergunta se têm mesmo mamas ou se aquilo é um soutien almofadado.
Obviamente que isto não acontece, porque elas "parecem mesmo
mulheres". Ok, entendi a mensagem há muito tempo.
Não quero tirar o mérito a ninguém, nem dizer que A é melhor que B ou
que C. Apenas que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. E
que, só nos EUA, há grandes talentos trans que nunca tiveram a
oportunidade de serem escolhidos para papeis relevantes, ou até para papel
algum. Candis Cayne, Calpernia Addams, Laverne Cox são apenas alguns
dos nomes de três grandes actrizes trans que raramente tiveram
oportunidade de ter um papel de relevo. Depois de Candis Cayne ter feito
um papel na (fraca) série televisiva "Dirty, Sexy, Money", eis que, pela
primeira vez, uma actriz, Laverne Cox, tem um papel de relevo e é elogiada
por toda a crítica e grandes audiências na série "Orange Is The New Black".
Em ambos os casos, temos duas actrizes trans a fazer o papel de mulheres
trans.
Uma actriz é uma actriz e deve fazer que tipo de papel for. O outro lado da
moeda. Sim, uma actriz que seja uma mulher trans também deve
poder fazer o papel de uma mulher cisgénero. Mas não é, para mim, a
mesma coisa. O tipo de experiência de vida de uma mulher trans confere-
lhe um know-how que uma mulher cisgénero não tem. Nós, como eu
própria já referi várias vezes aqui, nos meus posts, vivemos, pelo menos,
duas vidas numa só. Uma mulher cisgénero não.
Agora, os (tristes), regra-geral, papeis atribuídos a actrizes e actores
cisgénero sobre pessoas trans. Raramente não são genitalocentrados. Ou é a
mulher trans que ainda não é operada e vai ser, ou é a que esconde que não
é operada e quando se descobre cai o carmo e a trindade, ou é, no horrível e
triste caso real de "Boys Don't Cry", o caso do homem trans que é violado e
brutalmente assassinado quando se descobre que ele não é operado, ou seja,
não nasceu com pilinha.
Nós somos mulheres e homens. O que pode interessar aos outros é quem
nós somos, o que temos para dar, o nosso talento, a nossa opinião, o nosso
choro, a nossa alegria. Já chega de se imiscuírem na nossa intimidade e
fazerem um esforço para nos conhecer como somos e acima de tudo de nos
respeitarem, independentemente do que temos no meio das pernas. Porque
não um filme com personagens trans que explore a riqueza do ser humano e
não caia no eterno e sinistro interesse genital?
Começo este post por colocar uma palavra que, apesar de não estar nos
dicionários de Língua Portuguesa há muito tempo, faz parte da minha vida e
de tanta gente como eu. Aliás, sempre fez parte, a partir do momento em
que me assumi como mulher transexual.
Falar de transfobia daria para um livro daqueles bem calhamaços, pois são
tantos os casos, desde o bullying transfóbico, à agressão verbal, física e, em
grande parte dos casos em assassinato brutal.
Basta ver o Brasil. País próspero, enorme, e em que não há um dia em que
uma mulher trans não seja assassinada. Neste momento o Brasil encontra-se
na frente da contabilidade de mortes por transfobia. Na frente pelas piores
razões. Infelizmente. E esta transfobia existe também aqui, apenas
suavizada pela aparente "aceitação" de um povo que sempre foi conhecido
pelos seus "brandos costumes". Mas, cada vez mais, deixa de ser assim. Os
costumes já não são brandos, e a transfobia e todo o tipo de preconceitos e
discriminações aumenta e torna-se cada vez mais visível.
Confesso que admiro cada vez mais Laverne Cox, actriz norte-americana,
que numa entrevista em que se falava da série em que ela participa, "Orange
Is The New Black", assumiu que não se considera "passável" como mulher.
Fiquei espantada e orgulhosa pela sua sinceridade. Nunca tinha lido ou visto
uma entrevista com uma mulher trans em que alguma assumisse tal coisa. O
que me colocou a questão do ser "passável" como mulher.
Esta expressão implica que nós temos que ser identificadas como mulheres
biológicas quando olham para nós. Mas isto também implica que ser-se
"passável" pode ser qualquer tipo dentro do imenso espectro de mulheres
que nasceram mulheres que existe. E Laverne orgulha-se de ser uma mulher
trans e mostra-nos que não temos que ter vergonha, que tentar ser algo que
não somos, apenas para nos auto-identificarmos como mulheres. Somos
como somos e assim, podemos chegar onde quisermos. Basta querermos e
lutarmos por isso.
E, para ela e tantas mulheres trans negras numa América racista e xenófoba,
deve ter sido com toda a certeza bem mais difícil do que para outras
mulheres trans. O "passável" significa para nós, pessoas trans, algo muito
difícil, mas também muito importante. Pelo menos sempre o foi para mim.
Mas a vida, as experiências por que passamos, moldam-nos. Modificam-
nos. E, se olham para mim e não vêem uma mulher, não é um problema
meu, é um preconceito dessa pessoa. Sou como sou, "passável" ou não, e as
pessoas têm que me aceitar e respeitar como sou.
Isto até podia dar vontade de rir, se eu não me tivesse sentido tão "estranha"
no meio daquela relação sui generis . E que só durou o que durou porque o
sexo entre nós era muito bom, tenho que reconhecer. E não, ele não é gay, é
h e tero, e não, não me tratava como "o", aliás, nunca teve um acto falhado
e sempre me tratou como a mulher que sou. Pelo menos numa coisa aquela
abécula acertou. Eu gostava dele. Não vou dizer que o amava, porque não
podes amar quem não conheces. Eu não o conheci porque ele não o quis.
Tudo aquilo teve sempre uma morte anunciada. Eu é que não queria ver.
Era demasiado inexperiente. Ainda via tudo cor-de-rosa. Era parva e naive.
Pensar nisto tudo agora traz-me alguma tristeza. Porque conheci várias
pessoas ao longo da minha vida, conheço hoje em dia algumas pessoas, mas
a minha transexualidade é um impedimento para algo mais se desenvolver.
Mesmo que um diga que não, que gosta de mim como sou, que me aceita e
me respeita como sou. Isso não é, de todo, verdade. A verdade, no meio
disto tudo, é que socialmente, familiarmente, amorosamente e por aí fora,
vou sempre ser vista como alguém que nem devia existir. Que devia morrer
de vez e ser esquecida. Esta é a realidade.
Vivem todos numa bolha que se encheu através do seu umbigo e as aflições,
tentativas de desabafo, carícias, carinhos, beijos, toques, são-lhes
repugnantes, não conseguem conceber a ideia de que isso lhes aconteça a
eles.
Não. Isso não existe. Como a eterna treta do Homem, quero dizer
Humanidade, ser um animal social é o maior embuste de sempre. O Homem
é mau, frio, capaz das maiores atrocidades mesmo a quem, supostamente
deveria gostar, estimar. Famílias não existem. Existem pessoas que, por
acaso, se entendem bem na sua frieza. Mas não há, nunca há, empatia real,
amor, carinho.
Porque tu tens que estar aí, senão estás a entrar no meu espaço, no meu
domínio. Independentemente de seres “do meu sangue”, “amigo”,
“namorado”, whatever . Se ultrapassas a linha e vens com tretas tipo tocar-
me e dar beijinhos, ou algo que tal, é porque queres alguma coisa.
Ou seja, não posso dar um beijo ou fazer um carinho numa pessoa que
gosto sem querer nada em troca? Tudo isto é muito triste, mas é a realidade
dura e pura. E aquelas pessoas que nascem diferentes, como é o meu caso, e
cometem o duplo erro de serem socialmente excluídas (porque sou uma
mulher transexual) e sentem carinho e ternura por quem gostam, sem
quererem nada em troca, são maltratadas, humilhadas mais do que cães
abandonados e espezinhadas a vida toda.
Foi para esta merda que eu nasci? Agora, sinceramente, foi? Se foi para
isto, para este mundo de cabras e cabrões egoístas, egocêntricos, frios e com
o mal a florescer em cada poro, então não sei porque nasci. Aliás, nem sei o
que faço aqui ainda.
Querem uma vítima? Querem achincalhar-me ainda mais. Força. Por mim,
sinceramente, FUCK YOU!
quarta-feira, Maio 28, 2014
As duas vidas de uma trans
Há muito tempo que penso no assunto, e acontecimentos recentes fizeram-
me revoltar ainda mais contra a transfobia e transmisoginia de que sou
vítima, bem como muitas outras mulheres trans que conheço (e não só).
Como não posso falar por ninguém a não ser eu própria, vou reflectir um
pouco sobre o facto de, após a minha transição, uma esmagadora maioria de
pessoas não só me continuarem a tratar no masculino (algo que nunca fui)
e, tão ou mais grave, me chamarem pelo nome de baptismo.
O título desta crónica, "as duas vidas de uma trans" tenta fazer com que as
pessoas se apercebam e fiquem alerta para vários pontos: ser-se trans não é
uma opção, nem uma escolha; ser-se trans implica que um dia deixamos de
viver num determinado género e transicionamos para o outro; ser-se trans
não implica nunca uma cirurgia de correcção de sexo; ser-se trans implica
que, quando transicionamos, as pessoas nos tratem com o pronome correcto
e pelo nome que escolhemos para nós.
O que as pessoas têm que perceber é que tu não és aquela pessoa que estava
nos antigos documentos, naquelas fotos, e que aquele nome nunca te disse
nada, nunca te identificaste com ele. A única coisa que tu tens em comum
com a identidade antiga é a essência. Eu continuo a ser a mesma pessoa na
minha essência. Não me transformei noutra pessoa só porque assumi quem
eu era: uma mulher trans.
Já escrevi e frisei aqui imensas vezes que, acima de tudo, nós, eu, exigimos
respeito. Mas, na prática, o que existe é desrespeito, preconceito e
discriminação. Vindos de todos os lados.
Acima de tudo há que ter a noção plena de que muitas pessoas que se
identificam como transexuais não sentem necessidade de fazer a cirurgia de
correcção de sexo. Chega de genitalocentrismo. Esta cirurgia pode ser uma
consequência de se ser transexual, nunca uma causa. Chega de nos
considerarem doentes mentais.
Nós não somos doentes. Somos diferentes. Como cada pessoa é da outra.
Só no dia em que nos aceitemos uns aos outros como somos realmente
alguma coisa mudará. O respeito verdadeiro e honesto verá a luz do dia, e
então poderemos falar de uma verdadeira Comunidade. Até lá, a
intolerância e a falta de respeito imperarão, como agora se passa.
A transfobia mata. Cada vez mais. Qual será o nosso futuro então?
No outro dia teclava com um "amigo" (está entre aspas, pois até acho que
ele gosta de mim e me considera amiga, mas tem preconceitos demais para
eu o considerar amigo a sério) quando ele me diz que eu, apesar da idade,
"ainda estava um naco" e que "os gajos não se aproximavam porque os
preconceitos são muito grandes e eles não têm coragem". Ou seja, algo que
para ele era dado como adquirido, era algo que eu sei desde sempre, seja eu
"um naco" ou não.
Obviamente que ele também falava por si. Afinal, eu e ele andámos anos
até nos envolvermos e tudo ficou por aí, pois ele depois desapareceu
durante mais de um ano. Resumindo, eu "sou um naco" (o que está
implicitamente ligado à minha sexualidade) e é apenas para isso que sirvo,
tal como o estereótipo típico da mulher trans. E "descobri" que eles até para
darem uma queca com "o naco" têm receio de se aproximar porque alguém
pode ver, saber, etc., porque os "preconceitos são muito grandes" e eles não
os conseguem ultrapassar.
É triste, pelo menos para mim, mas a vida de alguém que não se encaixa
nem se consegue encaixar de forma alguma numa sociedade como esta, em
que não somos aceites nunca, apenas toleradas e só em certas ocasiões,
chegar a esta idade e deparar-me com a "verdade" que me perseguiu toda a
vida. Relacionamentos falhados, noites que poderiam ser dias e nunca
foram, paixões nunca correspondidas apenas porque sou quem sou,
humilhação, agressão verbal e física, assédio ordinário e vulgar, perda total
de autoestima e o fechar-me dentro da minha concha, reduzindo-me à
minha insignificância.
Este podia, e se calhar devia, ser um post alegre, feliz, mas não é. Andei
demasiados anos a tapar o sol com a peneira para agora dourar a pílula. Ela
não é, nem nunca foi dourada. Cabe a cada uma de nós tomar consciência
disso cedo, e aprender a viver com este handicap, ou, como eu fiz, passar
uma vida inteira e muito complicada, para chegar à conclusão que as coisas
são como são, e mesmo que eu me descabele toda, não as vou mudar em
relação a mim.
Agradecimentos:
A toda a gente que me tocou de alguma forma ao longo destes anos, o meu
muito obrigada e o meu amor e carinho incondicional. Seria impossível
listar aqui toda a gente, mas vocês sabem quem são. Deixo apenas alguns
agradecimentos especiais, e que não poderia deixar de fazer.