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A INFLUÊNCIA DE CALVINO NO MUNDO: Uma cosmovisão cristã teocêntrica


para toda a vida

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Anderson Paz
Universidade Federal da Paraíba
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A INFLUÊNCIA DE CALVINO NO MUNDO:
Uma cosmovisão cristã teocêntrica para toda a vida

Anderson Barbosa Paz1


Karoline Evangelista da Silva Paz2

RESUMO: No século XVI, surgiu um movimento que transformou todo o mundo: a


Reforma Protestante. Dentre seus líderes, destaca-se João Calvino. Reformador
genebrino, pastor-exegeta, missionário, estadista, influenciou amplamente a história
ocidental. O presente artigo objetiva estudar, de maneira geral, a vida, obra e o
pensamento de Calvino em seus múltiplos aspectos que formam um sistema de
cosmovisão cristã que dignifica o homem ao colocá-lo diante da face de Deus.

Palavras-chave: João Calvino; Reforma Protestante; Cosmovisão Cristã; Teocentrismo.

THE CALVIN’S INFLUENCE ON THE WORLD:


A theocentric Christian worldview for the whole life

ABSTRACT: In the 16th century, a movement emerged and transformed the whole
world: the Protestant Reformation. Among its leaders, John Calvin stands out. Genevan
reformer, ex-pastor, missionary, statesman, largely influenced Western history. This
article aims to study, in a general way, Calvin's life, work and thought in its multiple
aspects that form a system of Christian worldview that dignifies man by placing him
before the face of God.

Keywords: João Calvino; Protestant Reformation; Christian worldview; Theocentrism.

1 INTRODUÇÃO

O século XVI foi um período decisivo da história ocidental. Talvez, o maior


evento transformador da realidade social, religiosa, econômica, jurídica e política foi a
Reforma Protestante. Esse acontecimento foi um ponto de inflexão da política social e
religiosa face ao catolicismo romano. Seus efeitos podem ser percebidos até os dias
atuais. Martinho Lutero foi o iniciador de um amplo movimento que estendeu sua
influência para além das fronteiras germânicas. Em seu ímpeto reformador, Lutero

1
Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Bacharel em LEA Negociações Internacionais
pela Universidade Federal da Paraíba. Graduando de Licenciatura em Filosofia pela Universidade
Cruzeiro do Sul. Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública pela Faculdade Internacional da
Paraíba. Formado em Teologia pelo Seminário Teológico Betel Brasileiro (curso livre).
2
Doutoranda no Programa de Modelos em Decisão e Saúde – UFPB. Mestre em Fonoaudiologia -
PPGFON-UFPB/UFRN. Graduada em Fonoaudiologia pela Universidade Federal da Paraíba. Graduanda
de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Cruzeiro do Sul. Formada em Teologia ministerial -
Seminário Teológico Congregacional do Nordeste (curso livre).
2

contribuiu para o protestantismo como um ponto de curvatura na vida política e


religiosa medieval.
Porém, a partir da vida e obra de João Calvino, reformador de Genebra, de
nacionalidade francesa, que a obra reformadora ganhou forma, sistematicidade,
abrangência e uma estrutura teológica de cosmovisão cristã que impacta em todos as
aspectos da vida religiosa e social.
Se o cisma católico oriente-ocidente no século XI representou uma ruptura da
cristandade em seu âmbito mundial, a separação entre protestantes e católicos romanos
foi um divisor de maior impacto para a história do Ocidente. Com o movimento de
Reforma, foram promovidas aberturas sociais, políticas e culturais até então não vistas.
Como a Igreja Católica Romana abrangia e, em certa medida, submetia outras esferas da
vida social, o ensino reformado, especialmente, em Calvino, possibilitou um processo
de abertura de esferas por meio de uma reinterpretação escriturística do papel do
indivíduo diante de Deus.
Ainda que não se possa superdimensionar a obra de Calvino, é possível dizer
que ele agiu como um estadista – ainda que com pontos críticos em sua teoria sobre a
relação Estado-Igreja e direito-moral – como um missionário, e um primoroso pastor
exegeta bíblico caracterizado por simplicidade, objetividade e praticidade. A partir da
releitura do arquétipo bíblico de criação-queda-redenção, fundamentado no postulado da
soberania divina, Calvino estabelece princípios gerais para todas as áreas da vida social
e da relação do homem com o cosmos.
A tradição que ele dá continuidade – reformada – constitui uma cosmovisão total
da vida e do homem. Importante influenciador da noção de ética protestante, o
reformador de Genebra contribuiu, ainda que indiretamente, com o desenvolvimento
embrionário político-econômico, ainda que não tenha constituído um espírito do
capitalismo. Lido adequadamente, Calvino foi um zeloso pastor-pregador que se
preocupava como Deus pode ser honrado em todas as áreas, de modo que a Palavra de
Deus fosse orientadora e limitadora da ação humana em todas as áreas.
Nesse sentido, o presente artigo objetiva estudar, de maneira geral, a vida, obra e
o pensamento de Calvino em seus múltiplos aspectos que formam um sistema de
cosmovisão cristã que dignifica o homem ao colocá-lo diante da face de Deus. Assim, a
cosmovisão cristã calvinista é teocêntrica para toda a vida. Estudar-se-á João Calvino,
considerando seu pensamento e controvérsias, como um continuador de uma ampla
3

tradição cristã reformada e como sistema de vida geral que oferece aberturas a serem
adotadas e desenvolvidas.

2 VIDA E OBRA DE CALVINO

João Calvino nasceu em Noyon, no norte da França, em 1509. Seu pai era da
classe média e trabalhava como secretário do bispo e procurador da biblioteca da
catedral. Conseguiu para seu filho os benefícios eclesiásticos para custear seus estudos.
Estudou na Universidade de Paris, onde conheceu tanto o humanismo como as ideias
protestantes3. Ainda assim, Calvino permaneceu católico romano. Após concluído seu
mestrado em artes em 1528, foi para a Universidade de Orleans para estudar Direito.
Depois se transferiu para a Universidade de Bourges onde terminou seu curso jurídico
em 1532. Formado em Direito, tinha uma formação humanística que abrangia línguas
clássicas, filosofia, teologia.
Com o comentário sobre De Clementia, de Sêneca, em 1532, com profunda
influência humanística e conservadora, ganhou certa notoriedade. Achava a Reforma
um movimento populista radical. Entre 1532 e o fim de 1533, Calvino se converteu –
ainda que se saiba muito pouco sobre esse momento4 –, adotou as ideias da Reforma,
rejeitou o dinheiro de rendas eclesiásticas. Porém, teve de sair da França em 1534,
devido à colaboração com Nicholas Cop, reitor da Universidade de Paris, na escrita de
um documento que pedia uma reforma bíblica (EARLE, 2008).
Seu objetivo era dedicar-se ao estudo e às obras literárias. Calvino entendia que
sua tarefa era escrever tratados que serviriam para aclarar a fé da igreja em uma época
de confusão. Nesse sentido, migrou para a Basiléia onde publicou a primeira versão de
sua obra As Institutas da Religião Cristã, em 15365, livro em latim de 516 páginas com

3
A Reforma Protestante e o movimento humanista compartilhavam de um objetivo de renovação global
do valor do homem “baseado num retorno às fontes de toda a cultura humana e cristã” (BIÉLER, 2017, p.
43). A Reforma assumirá sua autonomia em relação ao movimento humanista antropocêntrico ao basear
seu humanismo em Deus por meio de sua Palavra revelada.
4
George (1993, p. 172) afirma que Calvino passou por um período de lutas, inquietações e dúvidas antes
de ser convertido, chegando a declara que foi com dificuldade que foi levado a confessar que, por toda a
vida, “eu estivera na ignorância e no erro”. Ele dirá que “como fosse eu tão obstinadamente dominado
pelas simpatias do Papismo, sendo difícil ser tirado deste atoleiro tão fundo, graças a súbita conversão,
Ele (Deus) subjugou meu coração e o dispôs à docilidade” (BIÉLER, 2012, p. 119).
5
Essa primeira versão das Institutas é prefaciada pela carta de Calvino ao rei Francisco I que perseguia os
protestantes devido ao radicalismo de alguns grupos, como os anabatistas comunistas. A carta, que data
de 1535, apresenta a natureza da fé cristã, defende que a política e a verdade espiritual não podem ser
separadas, a Igreja de Cristo não se contenta com a desordem, os cristãos não são revolucionários
políticos mas apenas reformadores da sociedade, e que os cristãos oram por suas autoridades. Calvino
4

formato para caber em bolso. Tinha o objetivo de resumir a fé cristã sob o ponto de
vista protestante. Teve um sucesso imediato e exponencial.
Só em 1559 que essa obra terá sua versão final6. Em geral, até 1536, Calvino foi
um estudante. Já de 1536 a 1564, exceto por um período em Estrasburgo de 1538 a
1541, liderou Genebra. Tornou-se o líder da segunda geração de reformadores. Com
uma saúde frágil, dedicou-se a sistematizar e organizar a teologia e a identidade do
movimento reformado (EARLE, 2008; GONZÁLEZ, 2011).
Guillaume Farel (1489-1565) estabeleceu a Reforma em Genebra, a partir de
1532. Por sua influência, em 1536, teve suas ideias aceitas pela Assembleia Geral dos
Cidadãos7. Genebra possibilitou certa liberdade para o desempenho do movimento
reformado. A Reforma deveria abranger a Igreja e a cidade. Farel conseguiu a ajuda de
Calvino8 que se tornou o principal personagem da vida religiosa da cidade. Os dois
trabalharam em Genebra até o exílio de 1538. Neste ano, os dois reformadores foram
expulsos da cidade por disputas sobre a excomunhão9 e liturgia da Ceia do Senhor.
Entre 1538 e 1541, Calvino pastoreou refugiados franceses em Estrasburgo
(leste da França) – cidade sob a influência reformada de Martin Bucer10 (1491-1551)
(EARLE, 2008). Nesse exílio, Calvino produziu uma liturgia francesa e traduziu salmos
e hinos para os franceses exilados. Ademais, publicou a segunda edição das Institutas, e
se casou com a viúva Idelette de Bure, com quem tem um filho que morre na infância.

“intervém em favor da justiça na sociedade, fundada sobre a verdade do evangelho. Engaja-se


resolutamente no movimento popular de reforma eclesiástica e social” (BIÉLER, 2012, p. 130).
6
González (2011, p. 66) explica que “após a edição de 1536, em latim, surgiu em Estrasburgo a edição de
1539, no mesmo idioma. Em 1541 Calvino publicou em Genebra a primeira edição francesa, que é uma
obra mestra da literatura nesse idioma. A partir de então, as edições surgiram em pares, uma latina
seguida de sua versão francesa, como segue: 1543 e 1545, 1550 e 1551, 1559e 1560. Visto que as edições
latina e francesa de 1559 e 1560 foram as últimas produzidas durante a vida de Calvino, são elas as que
nos dão o texto definitivo das Institutas”.
7
É fundamental entender que os conselhos da cidade já tinham feito certa reforma religiosa e moral,
conforme a influência dos primeiros reformadores. O Estado tinha competência nos domínios da religião
e dos costumes. Calvino agirá no sentido de estabelecer uma igreja independente do poder civil, isto é,
uma igreja livre da ingerência do poder político (BIÉLER, 2012, p. 133).
8
Earle (2008, p. 281) comenta que “para estabelecer a Reforma em Genebra, Farel percebeu que
precisaria de alguém administrativamente mais capacitado. Em uma de suas viagens, Calvino pernoitou
em Genebra certa vez em 1536. Farel foi ao seu encontro e solicitou sua ajuda. Calvino se recusou, pois
gostava da vida de estudioso e escritor de teologia. Farel lhe disse que Deus o amaldiçoaria se não ficasse.
Impelido pelo medo, como Calvino mesmo mais tarde confessou, resolveu ficar”.
9
González (2011, p. 68) explica que “Calvino insistia em que, para que a vida religiosa se conformasse
verdadeiramente aos princípios reformadores, era necessário excomungar os pecadores impenitentes.
Diante do que pareceu um rigor excessivo, o governo da cidade se negou a seguir os conselhos de
Calvino. Posteriormente, o conflito foi tal que Calvino foi desterrado”. Se a excomunhão aplicada não é
suficiente para correção de quem por ela é atingido, “a igreja deve então recorrer ao poder político (...) o
Estado, todavia, não é de forma alguma obrigado a executar os ditames da igreja. Não o fará, a não ser
que os tenha por judiciosos e conformes ao direito” (BIÉLER, 2012, p. 134-35).
10
A natureza da reforma em Estrasburgo é de conciliação entre os movimentos reformados, uma igreja
autônoma e disciplinada, com o cultivo de elementos intelectuais humanistas (BIÉLER, 2012, p. 143).
5

Ela faleceu em 1549 (GONZÁLEZ, 2011). Importa notar que a exigência de Calvino,
em 1537, de sujeição da fé à supervisão do Estado lhe rendeu o banimento de Genebra,
porém, devido à influência de Bucer sobre a organização eclesiástica, a independência
do Estado lhe pareceu a situação mais aceitável (BIÉLER, 2012, p. 183).
Em 1541, Calvino retornou à Genebra11 que já se encontrava sob a influência
dos protestantes. O reformador de Genebra requer a aplicação do princípio da disciplina
eclesiástica e a manutenção do catecismo. No mesmo ano, publicou as Ordenanças
Eclesiásticas, aprovadas pelo governo da cidade, em que o governo da igreja ficava com
o Consistório, formado por pastores e doze leigos que recebiam o nome de anciãos, mas
sob profunda influência de Calvino.
Nesse momento, Calvino já entendia que é possível o Estado impor ao homem
certa moral coletiva, mas a fé é da esfera da igreja. Ainda assim, a relação com o
governo da cidade foi, constantemente, objeto de disputas12 (EARLE, 2008;
GONZÁLEZ, 2011). Da dificuldade “de estabelecer exatamente a distinção entre os
poderes políticos e eclesiásticos, em tudo que concerne aos costumes que surgirão
inúmeros litígios entre a Igreja e o Estado” (BIÉLER, 2012, p. 154).
Na luta contra heresias, Calvino pressupôs a existência de um duplo caráter:
religioso e social. Os hereges ao desprezarem a Palavra de Deus tanto pecavam contra a
verdade e desvivam as pessoas do caminho correto, como causavam uma profunda
desordem política e social. Houve, nesse cenário, o caso de Miguel Serveto. Este era um
médico espanhol, com vários livros de teologia sob influência platônica, que se opunha
à doutrina da Trindade. De passagem por Genebra, já conhecido por suas doutrinas, foi
detido em 1553, por solicitação de Calvino.
Enquanto Serveto acusava o reformador de Genebra de heresia e pedia sua
morte, Calvino fez uma lista de 38 acusações contra ele. As igrejas suíças concordaram
com a alegação de que Serveto era um herege. Quando ele foi condenado a ser
queimado vivo por heresia, Calvino pediu para que fosse por decapitação por ser menos
cruel. Mas isso não foi concedido. Serveto foi queimado vivo em outubro de 1553. Esse
episódio produziu muitas críticas ao reformador de Genebra (BIÉLER, 2012, p. 180).
11
A cidade se encontrava em certa desarmonia com o relaxamento dos costumes e da vida religiosa, e a
perda de autoridade do governo (BIÉLER, 2012).
12
É importante salientar que Calvino não estabeleceu em Genebra uma teocracia, posto que, mesmo
tendo grande influência espiritual e moral sobre a cidade, nunca exerceu mandato político e ensinava a
submissão às autoridades. Até 1555, enfrentou um governo que, em vários aspectos, lhe era hostil.
Ganhou a cidadania de Genebra só quatro anos antes de sua morte. A Reforma calvinista, porém, exerceu
influência política, econômica e social na cidade, mas não estabeleceu um aparato teocrático na mesma
(BIÉLER, 2017, p. 69).
6

Em 1559, fundou-se a Academia de Genebra, sob a direção de Teodoro de Beza,


que formava estrangeiros e possibilitava que o pensamento reformado se espalhasse
pelo mundo. Em 1564, Calvino morreu devido a problemas de saúde. A Academia,
nesse momento, já tinha 1500 estudantes, sendo a maioria composta de estrangeiros.
Não se colocou, por sua vontade expressa, nenhuma lápide sobre sua sepultura, para que
nada obscurecesse a glória de Deus. Teodoro Beza (1519-1605) assumiu a liderança de
Genebra (EARLE, 2008; GONZÁLEZ, 2011).

3 AS FACES DE CALVINO: MISSIONÁRIO, ESTADISTA E EXEGETA

No momento em que Zuínglio já havia falecido, Erasmo de Roterdã estava


morrendo, Lutero mais quieto, a igreja romana retomando sua influência, a reforma
radical fragmentada e desacredita, João Calvino assumiu a liderança do movimento da
Reforma, reformulando, sistematizando e defendendo a teologia reformada. Sua grande
contribuição, nesse momento, foi a de dar uma exposição clara e sistemática dos
elementos centrais da Reforma – sola gratia, sola fide, sola scriptura (GEORGE, 1993,
p. 166).
O reformador de Genebra aproximou os intelectuais do povo, sendo este, com
base no princípio do sacerdócio universal de todos os crentes, que conservou e
transmitiu a doutrina e valores reformados pelo mundo. A Academia de Genebra e as
Institutas, que se espalhavam por terras distantes, foram as que mais contribuíram na
disseminação dos princípios e doutrinas calvinistas pelo mundo, estendendo sua
influência através dos séculos. Ademais, ele comentou quase todos os livros da Bíblia,
salvo II e III João, e Apocalipse. Estendeu sua influência por meio de milhares de
cartas. Produziu aproximadamente mais de dois mil sermões. Criou um sistema de
educação em Genebra. A cidade influenciada por Calvino se tornou modelo de fé
reformada e um refúgio para os perseguidos (EARLE, 2008).
Em termos de obra missionária, Calvino teve grande influência para a Europa e
para o mundo. Genebra se tornou um centro de missões à medida que refugiados eram
preparados com a teologia reformada e voltavam para seu país, a fim de abrir igrejas e
desenvolver as implicações da teologia calvinista em várias áreas da vida. Entre 1555 e
1562, têm-se registros de oitenta e oito missionários enviados por Calvino aos campos
da Europa. Em 1561, chegou-se ao número de centro e quarenta e dois (FERREIRA,
2014).
7

Inclusive, calvinistas procedentes de Genebra tinham a intenção de criar no


Brasil uma comunidade de um novo tipo. Em 1557, refugiados franceses calvinistas,
enviados por João Calvino, desembarcaram no Brasil, visando a estabelecer uma
colônia francesa que professasse a fé reformada em que todos vivessem em pé de
igualdade. Nos relatos do calvinista Jean de Léry, constata-se a valorização do índio e a
oposição à escravidão que Calvino entendia como contrária a ordem natural de Deus.
Apesar dessa influência não ter se estendido a essa época, a influência da oposição
protestante à escravidão alcançará o metodista William Wilberforce que, na Inglaterra,
levanta-se contra o tráfico de escravos e vê as Câmaras britânicas decretarem sua
extinção em 1807 (BIÉLER, 2017).
Além disso, o reformador genebrino é considerado o maior exegeta da Reforma.
Legou à igreja uma hermenêutica bíblica que buscava fidedignidade ao original, clareza
e simplicidade, buscando o sentido dado pelo autor em seu contexto13 – método
histórico-gramatical. Feita uma boa exegese, é possível partir para uma teologia que
interprete a exegese, a fim de se chegar à pregação que é a aplicação da teologia e
exegese à vida diária. Afirmou também a autoridade, inspiração e inerrância bíblica
como doutrina, ao passo que entendia que a razão, mesmo caída, podia ser iluminada
para a compreensão das verdades divinas. Nesse sentido, a revelação era suficiente, mas
não exaustiva, logo o cristão podia atuar em várias áreas da vida, aplicando a razão, para
a glória de Deus (FERREIRA, 2014).
Contudo, não se pode superestimar seu papel no que toca à formulação teológica
reformada. A teologia de Calvino é extremamente influente, mas ele não é o único
ponto de referência da teologia reformada14. O reformador de Genebra se enxergava
como um continuador de uma tradição mais antiga e mais abrangente. Ele era mais um
pastor-teólogo – ainda que destacado e notável – em uma longa tradição reformada.
Nesse sentido, calvinismo ou tradição reformada não se constitui como um construto
dogmático uniforme. Calvino contribuiu, ampliou e sistematizou doutrinas de uma
tradição que pode remontar aos pais da Igreja, inclusive Agostinho de Hipona. É por

13
George (1193, p. 187) acrescenta que o objetivo de Calvino “era penetrar na mente do autor tão concisa
e claramente quanto possível, evitando demonstrações profusas de erudição e digressões a assuntos
secundários”.
14
Há um amplo debate sobre se os seguidores de Calvino corromperam seu ensino. Haveria para muitos
estudiosos uma antítese entre Calvino e os calvinistas. Nesse sentido, R. T. Kendall defende que houve
uma modificação puritana, na teologia de Beza e de Perkins, da teologia de Calvino (p. 204-222, In.:
REID, W. Santford. Org. Calvino e sua influência no mundo ocidental. São Paulo: Cultura Cristã, 2014).
Em contrapartida, Heber Campos Jr. argumenta que houve mudanças de ênfases e desenvolvimentos
teológicos, mas não ocorreu ruptura (In.: Calvino e os Calvinistas da pós-reforma, 2019).
8

isso que essa tradição reformada está sujeita a ser constantemente desenvolvida e
aprimorada15 (CAMPOS JR., 2009).
Apesar de Calvino não ser um teórico ou filósofo da política, ele estabeleceu
alguns princípios gerais para o ofício do magistrado civil e se colocou como um
estadista. Considerava que a autoridade civil das autoridades se encontrava sob a
soberania de Deus, sendo a autoridade derivada e a responsabilidade perante o divino
por meio do controle do povo de Deus como um todo. Ele não defendeu a revolta
popular contra a tirania, mas sim a busca de uma solução constitucional.
Assim, “o problema político deve ser tratado de forma política e a resposta deve
vir do próprio corpo político, que se situa direta e imediatamente sob a soberania de
Deus” (KOYZIS, 2014, p. 271). Calvino defende uma igreja autônoma do Estado e
governada representativamente, isto é, “a igreja devia ser independente espiritualmente
do Estado e soberana em todas as suas supremas decisões. E a sociedade civil devia ser
organizada e pensada a partir do modelo democrático da igreja” (BIÉLER, 2017, p. 67).
Em sua relação com o Estado, Genebra sofria a pressão de vários movimentos
civis de caráter revolucionário que ameaçavam a harmonia social. Anabatistas queriam
uma revolução que retirasse a autoridade humana por meio do desmoronamento das
estruturas sociais para que se pudesse viver apenas pelo Espírito. Libertinos, por sua
vez, queriam liberdade absoluta para seu comportamento moral.
Sob a influência de Calvino, que era contrário à insurreição de grupos sociais
contra o rei e favorável à submissão paciente às autoridades, ao passo que defendia o
regramento moral dos indivíduos conforme a ética e moral cristã, Genebra foi
estabilizada. Mesmo rejeitando os meios de ações brutais e ilegítimos, Calvino adotou
os meios legais possíveis, como a busca de ajuda de príncipes protestantes na proteção
de cristãos perseguidos (BIÉLER, 2012, p. 174-77).
Ainda assim, Calvino defendeu que o magistrado ou governante deveria ser fiel
à igreja, emprestando-lhe o braço armado para a preservação da Palavra de Deus,
quando ameaçada. Como a fonte da desordem moral e social provinha da desordem da
fé, o Estado podia reprimir o delito de crença, como também o delito moral (BIÉLER,
2012, p. 182). Nesse sentido, sua obra inicia o processo de separar direito e moral. Sua

15
Herber Campos Jr. (2009) explica que “os teólogos da Pós-Reforma tinham novos desafios intramuros
que exigiram um refinar da teologia. Eles estavam protegendo a igreja de desvios dentre o próprio corpo
de protestantes. Para isto, discutiram assuntos que não haviam sido abordados em meados do século
dezesseis. Este tipo de descontinuidade não precisa ser visto como negativo, contanto que se entenda que
um período não duplica o outro. O desenvolvimento teológico é sadio à luz de novos desafios
eclesiásticos”.
9

maior preocupação é com a moral, ao passo que considera o direito secundário. Seu
objetivo era submeter a vida do cristão à lei moral contida nas Escrituras Sagradas.
Devido ao pecado, a razão natural humana está danificada em seu acesso à
moral. Logo, a ética e moral deveriam ser submetidas à revelação das Escrituras
Sagradas. Esse sistema, diferente dos anteriores, não apenas atingia um clero religioso,
mas visava à vida dos laicos em toda sua extensão temporal, ao mesmo tempo que
excluia o ensino dos filósofos. O reformador de Genebra libertou os cristãos das cadeias
religiosas romanas com base em uma nova interpretação da liberdade cristã. Assim, a
moral “consiste na submissão literal aos mandamentos de Deus, às leis divinas
positivas, oriundas da vontade de Deus, promulgadas na Sagrada Escritura” (VILLEY,
2009, p. 348).
O direito, por sua vez, pouco desenvolvido por Calvino, estava intimamente
ligado à moral e tinha por fonte as disposições do príncipe. E os cidadãos deveriam
estar submetidos ao governo temporal. O reformador de Genebra parecia até defender
que o regime monárquico como o melhor regime, porém algumas de suas teses deram
aberturas liberais que seriam adotadas e desenvolvidas por seus seguidores no longo
prazo.
Tanto a fonte do direito quanto a noção de submissão ao príncipe promoviam as
leis positivas humanas que deveriam estar limitadas às Escrituras Sagradas. Dessa
maneira, a justiça deveria ser buscada pela razão humana que tem uma graça comum na
reflexão sobre a política e economia, ainda que não sirva como fonte do direito por
conta do pecado, e deve respeitar as situações de fato. Logo, o fato é fonte de direito, e
este preserva aquele. O direito é, portanto, “respeito ao fato histórico que procede da
Providência” (VILLEY, 2009, p. 361).
Essa perspectiva é um equívoco ao não diferenciar as esferas sociais submetidas
à soberania divina. Mas importa considerar que, em sua fase inicial, Calvino estabelecia
certa relação da Igreja com Estado. Ao mesmo tempo em que defendia uma liberdade
religiosa da ingerência estatal nos assuntos eclesiásticos, mantinha aberturas para uso do
poder do Estado no estabelecimento da religião e moral reformadas na sociedade. Os
magistrados, por exemplo, podiam, excepcionalmente, intervir para examinar a fé real
dos cidadãos, podendo “requerer do cidadão a confissão da fé sustentada pela igreja”
(BIÉLER, 2012, p. 135).
Calvino, contudo, nunca conseguiu subtrair completamente a Igreja de Genebra
do domínio das autoridades. Com o tempo, o pensamento calvinista assumirá uma
10

característica de reconhecimento de que as esferas da Igreja e do Estado são diferentes


entre si e tem sua própria soberania. Essa ideia será mais bem desenvolvida por
Johannes Althusius (1557-1638), sob o conceito de associações simbióticas, e Abraham
Kuyper (1837-1920), que refina a noção de soberania das esferas sociais.

4 O PENSAMENTO DE CALVINO COMO UMA COSMOVISÃO

A Reforma Protestante foi um movimento em busca da restauração de um


cristianismo fiel a suas origens bíblicas que visava a reabilitar o conhecimento humano
com base nas Escrituras Sagradas. Logo, o ser humano completo – em suas
responsabilidades individual e coletiva, religiosa e cívica, sua produção cultural, sua
liberdade pessoal, política e econômica – era o objeto do movimento protestante
(BIÉLER, 2017).
Porém, a reforma de Lutero não construiu uma doutrina política e social
abrangente, como também dispôs de apenas uma doutrina eclesiástica embrionária. O
reformador das 95 Teses descobriu a fé primitiva da igreja e a comunhão pessoal com
Deus, e limitou-se a isso (BIÉLER, 2012, p. 62). Foi o pensamento de Calvino que
desenvolveu e sistematizou a doutrina cristã em seus aspectos teológicos, eclesiástico e
social. O sistema de pensamento do reformador de Genebra constituiu uma ampla
cosmovisão cristã sobre a vida. Calvino declarou que “nós somos de Deus: a Ele, como
único legítimo alvo, sejam dirigidas nossas vidas em todos os seus aspectos” (Calvino
apud Ferreira, 2014, p. 217).
Nesse contexto, a cosmovisão calvinista foi fundamentada na soberania de Deus.
O teocentrismo de Calvino foi fundamentado na estrutura criação, queda e redenção.
Deus é o Senhor soberano que criou todas as coisas segundo sua vontade, permaneceu
soberano mesmo em face à queda da criação representada por Adão, e se compromete
livremente em salvar sua criação do pecado por meio de Seu Filho. O Senhor é Aquele
que se dignou em se revelar ao pecador por meio de Sua Palavra e da sua revelação
natural. Deus balbuciou Sua Palavra em linguagem humana, revestindo-a de autoridade,
ao passo que enviou Seu Espírito Santo para testemunhar as Escrituras como verdade
divina e auxiliar em sua interpretação e aplicação.
Assim, no teocentrismo calvinista, a revelação de Deus é objetiva nas Sagradas
Escrituras e o Espírito Santo dá testemunho confirmador e iluminador no coração do
crente. Nesse sentido, a doutrina da Trindade é central no pensamento de Calvino, já
11

que “era um testemunho da divindade de Jesus Cristo e, assim, da certeza de salvação


obtida por ele” (GEORGE, 1993, p. 200). Deus é o Senhor que intervém para salvar e
providenciar o curso de todas as coisas. Nem é um relojoeiro que colocou engrenagens
autônomas na criação e a abandonou, nem é uma mão invisível impessoal que mantém a
sociedade independente de si. Deus é o Senhor de toda a terra que soberanamente,
pessoalmente e providencialmente governa todas as coisas segundo sua vontade.
A partir desse pressuposto, o pensamento de Calvino se apresentará como um
sistema completo sobre a vida. Em suas famosas palestras – Stone Lectures (1898) –
Abraham Kuyper defendeu que o calvinismo forma uma cosmovisão, um sistema de
vida. Em um mundo moderno que busca construir um mundo próprio a partir do homem
natural, e construir o próprio homem a partir da natureza, a fé cristã é a concepção de
vida e de mundo que dá sentido a todas as coisas.
É o calvinismo a tradição que melhor oferece um sistema teológico para
compreender a vida e agir em todas as coisas,

O Calvinismo está enraizado em uma forma de religião que era


peculiarmente própria, e desta consciência religiosa específica desenvolveu-
se primeiro uma Teologia peculiar, depois uma ordem eclesiástica especial, e
então uma certa forma de vida política e social, para a interpretação da ordem
moral do mundo, para a relação entre a natureza e a graça, entre o
Cristianismo e o mundo, entre a Igreja e o Estado, e finalmente para a Arte e
a Ciência; e em meio a todas estas expressões de vida ele continuou sempre o
mesmo Calvinismo, à medida que, simultânea e espontaneamente, todos estes
desenvolvimentos nasceram de seu mais profundo princípio de vida
(KUYPER, 2014, p. 25-26).

Com efeito, o enfraquecimento do cristianismo frente ao modernismo se deu por


falta de um sistema que integrasse a fé cristã com a vida ordinária. O calvinismo é esse
sistema de princípios todo abrangente da vida que, fundamentado no passado, pode se
fortalecer no presente e ser tomado de confiança ao encarar o futuro. Diferente de
Lutero, que baseou seu sistema de pensamento no princípio soteriológico da justificação
pela fé, restringindo-se a um caráter eclesiástico e teológico, o calvinismo baseia todo
seu pensamento na soberania de Deus, de modo que a Igreja está nos próprios crentes
tendo sua importância em cada departamento da vida.
No pensamento calvinista, há resposta na integração da relação do homem com
Deus, dos homens entre si, e em sua relação com o mundo. Em primeiro lugar, Deus
entra em comunhão com a criatura por meio de seu Espírito Santo, dando plena
12

segurança da salvação eterna. Desse postulado deriva o sistema de vida restante


calvinista (KUYPER, 2014).
Sobre a relação dos homens entre si, o calvinismo entende que todos os seres
humanos são criaturas e pecadores, sendo, portanto, iguais diante de Deus e iguais como
seres humanos. É preciso reconhecer apenas as diferenças que o próprio Deus colocou
entre os homens. Opõe-se a toda forma de opressão, orgulho ambicioso,
autoengrandecimento, ao passo que defende a democracia, proclama a liberdade e
defende a dignidade intrínseca do ser humano. Consequentemente, o calvinismo
modifica a estrutura da sociedade elevando a ética do trabalho e proclamando a
igualdade ontológica dos indivíduos (KUYPER, 2014).
Ademais, na relação do homem com o mundo, o pensamento calvinista
reconhece o valor do mundo como criação divina e a graça comum pela qual Deus
intervém. A Igreja não pode reger o mundo e deve ser a congregação de crentes que
prega a Palavra e administra os sacramentos. Nesse sentido, o calvinismo emancipou o
mundo do domínio da Igreja, mas não do governo de Deus. Logo, é preciso servir a
Deus no mundo, em cada posição da vida, realizando as potências da graça comum de
Deus.
Dessa forma, no pensamento reformado,

A vida doméstica recobrou sua independência, os negócios e o comércio


atualizaram suas forças em liberdade, a arte e a ciência foram libertas de todo
vínculo eclesiástico e restauradas à sua própria inspiração, e o homem
começou a entender a sujeição de toda natureza, com suas forças e tesouros
ocultos, a ele mesmo como um santo dever, imposto sobre ela pela ordenança
original do Paraíso: ‘Tenha domínio sobre eles’ (KUYPER, 2014, p. 39).

Em suma, o calvinismo contribuiu na formação do constitucionalismo moderno


com seus direitos civis, promoveu a elevação da ciência e da arte, possibilitou novas
aberturas para um livre comércio e negócios, trouxe beleza à vida doméstica e social,
elevou a classe média e seu trabalho, produziu filantropia, e enobreceu a vida moral
(KUYPER, 2014). Essa ampla abertura principiológica permitiu o desenvolvimento
moderno da cultura, da vida religiosa, e do mundo do trabalho, mas será que constituiu
uma ética inspiradora de um espírito capitalista?

5 A ÉTICA PROTESTANTE É O ESPÍRITO DO CAPITALISMO?


13

Do século XVI ao XVII, a influência de Calvino se estendeu a Suíça, Escócia,


Holanda, parte da Alemanha, Hungria, Polônia, Inglaterra, França, até chegar a Nova
Inglaterra com os pais peregrinos (FERREIRA, 2014). Por meio do movimento
puritano, que buscava uma reforma da Igreja Anglicana que, por sua vez, tinha se
separado da Igreja Católica Romana, mas preservara alguns aspectos tradicionais desta,
o pensamento calvinista remodelou a face do ocidente.
Os puritanos estiveram ativamente engajados em três importantes revoluções
ocidentais, a saber,

A primeira grande revolução democrática ocidental, na Grã-Bretanha. Em


seguida, a primeira revolução anticolonial importante, na América, contra os
ingleses. Depois, a primeira revolução industrial que se desenvolve desde o
século XVIII na Grã-Bretanha. Ela se estendeu, pouco a pouco, para todo o
Ocidente e depois para o resto do mundo a ritmos variáveis (BIÉLER, 2017,
p. 72).

Pela primeira revolução, os puritanos contribuíram na descentralização do poder


monárquico ao reforçarem o papel do Parlamento como representantes do povo. Na
Nova América, por sua vez, estabeleceram uma colonização que objetivava desenvolver
o país moralmente, socialmente e espiritualmente sob a regência de governantes
limitados pela Palavra de Deus16. Tal concepção é a base para o substrato material à
Carta Constitucional e ao sistema federativo posterior.
E possibilitou o desenvolvimento de atividades industriais que produzissem bens
em massas que beneficiariam as grandes massas populacionais. Mesmo que em todos
esses movimentos tenham havido injustiças e erros importantes, como também houve a
contribuição do pensamento liberal-democrático, a influência da ética calvinista
possibilitou aberturas históricas dentro de limites morais e humanísticos que levaram a
um progresso social.
Há, assim, uma profunda relação entre os fatores religiosos, culturais e
econômicos. Em países em que os princípios da Reforma penetraram as estruturas legais
e culturais, constatou-se uma ruptura com a tutela de direito divino, uma maior
confiança dada aos indivíduos e aos grupos sociais, o gosto pela ciência e pela técnica,
como também o interesse pela livre iniciativa econômica. Ao se somar os princípios da
responsabilidade inalienável, dignidade na igualdade intrínseca do ser humano, o valor

16
Para os pais fundadores, “a legitimidade do governo vem de seu respeito às leis de Deus, às leis da
natureza, aos direitos inalienáveis dos homens. E o poder está a serviço dos Direitos do Homem, limitado
por eles, o que exclui todo absolutismo” (BIÉLER, 2017, p. 83).
14

do trabalho, a liberdade produtiva, e a solidariedade social, chegou-se a uma ética que


alicerçou a democracia e o desenvolvimento da sociedade permeada por esses valores
(BIÉLER, 2017).
A partir desses fatos históricos, desenvolveu-se uma conhecida tese de Max
Weber de que a ética protestante e o espírito do capitalismo tinham uma importante
relação de causalidade entre si, sugerindo-se que as populações protestantes eram
constituídas por indivíduos que se dedicavam às técnicas comerciais e financeiras mais
espontaneamente do que os de outras tradições. O cristão deveria trabalhar exercendo
sua vocação para a glória de Deus e benefício do próximo. Deveria também ser sóbrio e
poupador (BIÉLER, 2017).
Logo, na leitura weberiana, os protestantes eram os maiores detentores de capital
e tinham preponderância entre as atividades técnicas e comerciais. O fundamento para
seu desenvolvimento se dava por seu espírito capitalista. Sobriedade, apreço ao
trabalho, pontualidade e retidão formavam a ética protestante que proporcionava maior
lucro como um fim em si. O amor ao trabalho e o sentimento de dever profissional,
entendidos como uma vocação com valor moral e religioso, possibilitariam o
desenvolvimento capitalista.
Para Weber, o calvinismo era o movimento que estendia a acepção da vocação
profissional a todas as atividades lucrativas. Essa tradição, que influenciou movimentos
puritanos, pietistas, metodistas, alcançou a vida social comum e lhe atribuiu uma nova
percepção sobre o labor. Por meio do dogma da predestinação, o homem vocacionado
foi chamado por Deus para desenvolver todas suas atividades para sua honra. Essa
noção permitiu a comunhão individual com Deus e a crença de que todos os atos tinham
um valor religioso. Uma fé exclusiva e inabalável em Deus permitia o desenvolvimento
de um espírito individualista (BIÉLER, 2012).
Com o desenvolvimento dessa ética pelos puritanos, houve, conforme entende
Weber, um aprofundamento moral e religioso do trabalho. Este ajudava na luta contra a
degradação sexual, e passou a ser um fim a que Deus destinou o homem. Deveriam-se
evitar a perda de tempo inativa, a ociosidade, e a preguiça. O trabalho deveria ser
dividido conforme o desígnio providencial de Deus. Havia mútua dependência dos
homens do resultado do labor. A especialização profissional promovia aprimoramento
que desabrochava no bem comum. Isso faz parte da ordem de Deus.
Um cristianismo bem desenvolvido se dava dentro do exercício profissional que
ajudava no progresso moral e espiritual. O cristão deveria procurar tão-somente o que
15

contribui na edificação do indivíduo e para a glória de Deus. Esse ascetismo puritano


possibilitou que o capitalismo desenvolvesse sua ética do trabalho no sentido de
estimular a produção e o enriquecimento social, ao passo que freava o consumo de
riquezas já adquiridas e conduzia ao acúmulo de capital. O enriquecimento é uma
consequência de tal ética (BIÉLER, 2012).
Com o tempo, porém, o ímpeto puritano pelo trabalho cede a um estilo de vida
secularizado, esvaziado da ética e das preocupações espirituais religiosas. Lentamente,
deu-se lugar a um espírito puramente utilitarista caracterizador da moral burguesa.
Consequentemente,

A secularização e a racionalização deste espírito puritano acabaram criando,


em definitivo, este gênero de homens de negócios frios e lúcidos que
comandam o Capitalismo e de quem se pode dizer, em resumo, que são
tecnocratas sem alma e hedonistas sem coração (BIÉLER, 2012, p. 596).

A essa tese de Weber é possível tecer algumas críticas. Em primeiro lugar, o


sociólogo alemão parece ter ignorado a distância entre o século XVIII e a época da
Reforma – com o marcante interlúdio da Revolução Industrial. Mesmo que se concorde
que o pensamento reformado trouxe uma virada histórica na ética social, atribuir-lhe
uma relação de causa e efeito entre sua ética e o capitalismo é uma ligação que não resta
provada.
Calvino e o movimento protestante não podem ser responsabilizados por, ao
objetivarem ser fiéis à ética do trabalho bíblica, defenderem princípios adaptados às
tendências da burguesia moderna, pois

Conferiu Calvino, incontestavelmente, ao trabalho, ao labor econômico e ao


dinheiro, um lugar que não tinham até então e que devia permitir aos
calvinistas aí engajar todas as virtualidades humanas e sociais. Mas, pelo fato
de que distinguia ele na vida da fé e da obediência o que há de permanente, a
decorrer do desígnio de Deus, de um lado, e de outro o que há de relativo e
passageiro, a provir das conjunturas e das estruturas políticas do mundo onde
devem exprimir-se esta fé e esta obediência, Calvino não se fez prisioneiro de
um sistema fechado de moral econômica e social (BIÉLER, 2012, p. 618-19).

Ademais, parece ter havido no argumento weberiano uma confusão ao


identificar a influência de Calvino com a de movimentos religiosos de origem calvinista
que, já à época, tinham-se deformado e secularizado17. O puritanismo considerado já

17
Villey (2009, p. 347) comenta que os exemplos da tese de Weber se baseiam mais na moral puritana do
que na do próprio Calvino.
16

estava distante do calvinismo de Calvino. Além disso, o dogma da predestinação em


Calvino era secundário, não condicionante de todo seu sistema teórico.
A isso soma-se que na teologia reformada, a ascese do trabalho e a busca de
lucro eram ponderadas à luz de outros princípios limitadores que não permitiam tornar o
reformador de Genebra responsável pelos excessos e efeitos trazidos pela secularização
desses princípios18. Dessa forma, a evolução histórica do capitalismo moderno não
deriva do pensamento calvinista. Houve um afrouxamento da doutrina e da moral
reformadas que levaram o capitalismo a abandonar a ética protestante (BIÉLER, 2012).
Para Calvino, a livre iniciativa estava em certa medida atrelada à vocação divina
de o homem exercer e desenvolver um trabalho particular. Por outro lado, ele insistia
nos corretivos sociais que visavam a evitar os abusos da absolutização da liberdade. O
Estado deveria proteger os mais frágeis por meio da lei, a fim de que tanto o indivíduo
quanto o tecido social não fossem solapados por um mercado absolutamente livre
(BIÉLER, 2017).
O trabalho humano, porém, tinha sua validade advinda diretamente de Deus,
mas não era um fim em si mesmo. Deus era visto como o significante heterorreferente
que dignifica o labor humano. Ademais, o trabalho individual deveria receber sua justa
retribuição, vinculava as partes aos contratos, não permitia o lucro abusivo ou a
exploração gratuita daquele que emprega a força do trabalhador em seu benefício.
Esse trabalho deveria ter algum grau de divisão, a fim de que todos pudessem ser
beneficiados pela multiforme produção de bens, gerando solidariedade e reciprocidade
entre os indivíduos. O mercado era um bem por meio do qual se estabeleciam as trocas
de produtos e serviços. Assim, no pensamento de Calvino, “a liberdade do comércio, a
livre troca, é um grande bem, mas sob a condição de que se lhe combatam os abusos”
(BIÉLER, 2017, p. 119).
Uma leitura mais adequada perceberá que, historicamente, a partir da
Renascença e da Reforma Protestante, o capitalismo moderno como força autônoma de
crescimento econômico e tecnológico expandiu as relações de produção. Porém, esse
avanço ganhou a marca de secularizar a noção de providência divina ao se crer que o
18
De fato, foram Calvino e Bucer os primeiros teólogos cristãos modernos a legitimarem a prática do
empréstimo a juros, ainda que sob várias precauções e restrições para que não se destruíssem as relações
sociais e as liberdades humanas. Em primeiro lugar, os juros do empréstimo assistencial são injustos.
Contudo, quanto ao empréstimo produtivo pelo qual se expande os mercados e se criam novos produtos,
cobrar-lhe juros não é injusto. O custo do dinheiro fomenta a economia, o aumento da produção, a
ampliação da oferta de trabalho. Ainda assim, não pode haver uma liberalização absoluta das relações de
mercado para não se gerar novas injustiças. É preciso uma ética que possibilite o desenvolvimento e iniba
os abusos (BIÉLER, 2017, p. 119-20).
17

progresso, sob uma mão invisível, é um curso inevitável que dirige as relações sociais
adiante em um sistema fechado.
O deísmo passou a ser predominante e tornou-se a última porta antes de a
sociedade se tornar profundamente secular. O Iluminismo foi o movimento que fechou
ainda mais a vida social e econômica ao divino, tornando lugar comum a fé no
progresso, o racionalismo, e a crença na perfeição humana. Elementos esses que
fundamentaram as revoluções que viriam a ocorrer (GOUDZWAARD, 2019).
Toda essa abertura propiciou que o capitalismo moderno se formasse. A
Revolução Industrial ampliou o sistema capitalista e desenvolveu certas consequências.
Contra essa nova conjuntura, o movimento socialista bravejou. Ainda assim, o
capitalismo e o marxismo permaneceram irmãos que se odeiam, mas que cultivam a fé
no progresso19.
A partir de 1850, com a influência da crença positivista e evolucionista, a fé no
progresso se aprofundou ainda mais, possibilitando que as empresas começassem a se
formar como grandes conglomerados e que partidos políticos e movimentos trabalhistas
surgissem no cenário reivindicando direitos. Desse modo, a dialética do progresso que
colocou em antítese irreconciliável a liberdade e a natureza mostrou sua vulnerabilidade
como ambiente, como sistema e no assujeitamento do homem à máquina e a tecnologia
(GOUDZWAARD, 2019).
Assim, a tentativa de vincular a ética protestante ao movimento capitalista, que
secularizou os valores judaico-cristãos é, no mínimo, duvidosa. O processo de
secularização que resultou no espírito capitalista – glorificação do trabalho, poupança e
lucro como fins em si – rejeitou a ética protestante calvinista que lhe estabeleceria uma
série de limites. Esse espírito capitalista voltou-se, por vezes, contra a ética protestante.
O individualismo como um novo credo religioso se afastou dos valores cristãos
em prol da busca do progresso. Dessa forma, é possível dizer que mesmo que se entenda
que a fé reformada contribuiu para o desenvolvimento da econômica mundial, é preciso
afirmar que essa última se atomizou progressivamente da influência da ética protestante,
deixando-se “empolgar por ideologias profanas contraditórias que a subjugaram
sucessivamente” (BIÉLER, 2017, p. 130).

19
Como comenta Biéler (2017, p. 112), “essa fé no progresso espontâneo da humanidade caracterizará a
ideologia do liberalismo integral assim como a dos diversos socialismos”. Logo, “é uma fé no progresso
espontâneo, que se tornará a base de todas as ideologias políticas progressistas modernas, da direita ou da
esquerda” (BIÉLER, 2017, p. 133).
18

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Reforma Protestante redefiniu a história moderna em todos os seus aspectos.


Figura central desse acontecimento foi João Calvino. Reformador genebrino, pastor-
exegeta, missionário, estadista, influenciou amplamente a história ocidental.
Personagem de um movimento reformado anterior, que buscava o retorno às Escrituras
Sagradas em todas as coisas, formulou um sistema abrangente de ver, interpretar,
conhecer e se relacionar com o mundo. Seu papel de sistematizador, teólogo prático, e
um humanista cristão modernizador lhe tornaram uma figura notável na histórica
ocidental.
Isso, porém, não o isenta de erros. Seu entendimento sobre a relação Igreja e
Estado, como também sobre a relação direito e moral, constituem pontos inadequados
teologicamente e inaplicáveis pós-Revolução Francesa no mundo ocidental. Ainda
assim, observando na prática as consequências dos próprios erros, Calvino teve a
humildade de, por meio de princípios gerais, buscar – ainda que limitadamente – uma
distinção de esferas sociais que abriram o mundo à modernidade e possibilitaram que o
direito ganhasse sua autonomia da moral no curso da história. Ademais, sua valorização
do trabalho humano, feito diante de Deus e para Sua glória, dignificou o homem em seu
âmbito laboral, revalorizando sua criatividade e sua busca de desenvolvimento através
de uma ética cristã limitadora dos excessos capitalistas.
É possível dizer que o maior desafio de estudar o pensamento e obra de Calvino
é distinguir o que é, de fato, seu ensino de eventuais rupturas causadas por seguidores
descuidados. Atribuir-lhe, por exemplo, uma inspiração de um espírito capitalista é,
nesse sentido, inadequado e uma leitura imprópria de seu ensino principal. Efeitos
colaterais e uso de suas doutrinas em benefício próprio devem ser distinguidos do
doutrinador de Genebra.
Em verdade, Calvino promoveu aberturas sociais, políticas e culturais não
conhecidas à época. A partir da soberania de Deus, Calvino postulou princípios gerais
para todas as áreas da vida e da relação do homem com o cosmos, entre si e com o
divino. O pensamento de Calvino deve ser visto como uma força renovadora. Por isso,
deve continuar sendo repensado e aplicado em cada contexto específico. Portanto, o
estudo da obra, vida e pensamento de Calvino como formador de uma cosmovisão cristã
completa oferece ao homem um ponto arquimediano heterorreferente pelo qual pode se
mover, viver e existir.
19

REFERÊNCIAS

BIÉLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino. 2ª ed. – São Paulo:


Cultura Cristã, 2012.

______. A força oculta dos protestantes. – São Paulo: Cultura Cristã, 2ª ed. 2017.

CAMPOS JR., Heber. Calvino e os calvinistas pós-reforma. 2019. Disponível em:


https://cpaj.mackenzie.br/calvino-e-os-calvinistas-da-pos-reforma/. Acesso em 28 de
agosto de 2019.

EARLE, Cairns. O cristianismo através dos séculos – São Paulo: Vida Nova, 2008.

FERREIRA, Franklin. Servos de Deus: espiritualidade e teologia na história da igreja.


São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014, p. 215-229.

GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993.

GONZÁLEZ, Justo L. História ilustrada do cristianismo: A era dos reformadores –


parte 6. 2 ed. revisada – São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 64-70.

GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade


ocidental. – Viçosa: Ultimato, 2019.

KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias
contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2014.

KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. – 2ª ed. – São


Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

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