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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 11-31 NOV.

2001
DOSSIÊ TRANSIÇÃO POLÍTICA

O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA


DE REGIME POLÍTICO:
O CASO BRASILEIRO1

Carlos S. Arturi
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO
A longa duração e o gradualismo da transição para o regime democrático no Brasil permitiram que esse
processo fosse objeto de diferentes abordagens, constituindo assim um caso privilegiado para a verificação
de hipóteses a respeito da “terceira onda” de democratizações. O objetivo central deste artigo é o de
analisar a transição brasileira, a partir de 1974, relacionando-a com a forte inflexão nas perspectivas
analíticas sobre mudanças de regime político verificada na última década.
PALAVRAS-CHAVE: política brasileira; autoritarismo; transição; democracia; elites; militares..

I. INTRODUÇÃO dências dos generais Ernesto Geisel (1974-79) e


João Figueiredo (1979-85)2.
O processo de transição para o regime demo-
crático no Brasil, a partir de 1974, desenvolveu- O estudo da tentativa que os detentores do
se simultaneamente a uma forte inflexão nas poder fizeram para liberalizar gradualmente e sob
perspectivas analíticas sobre mudanças de regime controle o regime autoritário e institucionalizar uma
político. As análises centradas em variáveis democracia “forte”, na qual os militares mantives-
macroestruturais, que haviam sido predominantes sem um direito de veto sobre a vida política do
até o fim da década de 1970, foram fortemente país, revelou que eles foram relativamente bem-
contestadas por outras perspectivas que privilegia- sucedidos em seus propósitos 3 . Com efeito, o
vam fatores eminentemente políticos e institucio- processo de liberalização política no Brasil foi, entre
nais no estudo das transições de regimes autori-
tários. A longa duração e o gradualismo da tran-
sição brasileira permitiram que esse processo fosse
objeto de análise de diferentes abordagens, consti- 2 A tese Le Brésil: une tentative de démocratisation octroyée (1974-
tuindo assim um caso privilegiado para a verifi- 1985), defendida no Institut d’Etudes Politiques de Paris,
cação de hipóteses a respeito dos processos de foi publicada na França, com o mesmo título, em 2000. A
democratização recentes. Este trabalho pretende principal fonte de dados da pesquisa consistiu em duas
dezenas de entrevistas realizadas com os principais dirigentes
contribuir para o debate teórico sobre o tema ao
do regime autoritário, incluindo os depoimentos dos ex-
apresentar os resultados da pesquisa de doutora- presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo, e com os líderes
mento do autor, que teve como objeto a estratégia mais destacados da oposição no período. Ver Arturi (2000).
de liberalização política implementada pelas presi- 3 O resultado desse longo processo de liberalização política
foi certamente mais democrático do que aquele pretendido
pelos dirigentes autoritários quando o iniciaram em meados
da década de 1970. A eleição indireta do líder da oposição
1 Este trabalho foi originalmente apresentado na mesa- moderada, Tancredo Neves, para Presidente da República
redonda Consolidação da democracia: enfoques teóricos e processos em 1985, contrariava, de fato, os planos iniciais dos dirigentes
político-institucionais, realizada durante o Seminário autoritários, que almejavam eleger para o cargo um de seus
Internacional de Ciência Política: Política desde el Sur, entre 3 quadros civis. A democratização política completa do país
e 5 de outubro de 2001 na Universidade Federal do Rio durante o governo de José Sarney (1985-1990), cujos marcos
Grande do Sul (UFRGS). O evento foi organizado com o foram a proclamação da nova Constituição em 1988 e as
patrocínio do Departamento de Ciência Política da UFRGS, eleições diretas para a Presidência em 1989, também foi
do seu Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e da certamente mais profunda do que aquela preferida pelos
Associação das Universidades do Grupo de Montevidéu. autores do projeto de “abertura” política.

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 17, p. 11-31, nov. 2001


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O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

todos os casos recentes de transição, o mais conduzir o processo político e sua sucessão nos
controlado pelos dirigentes autoritários e aquele últimos anos de seu governo, devido às pressões
em que os membros de sua elite civil garantiram e à mobilização crescente da oposição e de amplos
não só sua sobrevivência política como ampla setores sociais que exigiam a democratização
participação no poder após a democratização. As efetiva e imediata do país. Como hipótese com-
Forças Armadas conseguiram prerrogativas plementar, consideramos que a longa duração e a
políticas extraordinárias, que as mantêm como um evolução extremamente gradual da fase de libe-
dos atores políticos centrais, com grande poder ralização política, assim como a utilização da
informal, sobretudo em momentos de crise competição eleitoral como recurso institucional
política. Os antigos dirigentes autoritários também privilegiado da transição, criaram no mundo
obtiveram a garantia de que não haveria político brasileiro uma percepção de “normalização”
“revanchismo” contra os agentes do Estado que do processo conduzido sob o controle e segundo
cometeram crimes no exercício da repressão as regras impostas unilateralmente pelos detentores
contra a oposição, outro problema candente para do poder. Essas regras foram como que “natura-
a consolidação dos novos regimes democráticos lizadas” nas avaliações, cálculos e elaboração de
instaurados nas duas últimas décadas. estratégias pelos principais atores políticos ao longo
do período4. Esse fator “tempo” revelou-se fun-
A pesquisa da tese, cujos resultados este tra-
damental para o alargamento progressivo do setor
balho sintetiza, buscou compreender esse singular
moderado da oposição e daquele reformista do
fenômeno político: como puderam os dirigentes
regime. Nesse sentido, a perda de controle sobre
do regime autoritário alcançar um resultado tão
a transição, ao final da presidência Figueiredo,
próximo daquele que almejaram quando iniciaram
significou a autonomização da lógica do pro-
o processo de liberalização em meados da década
cesso5, originado por uma estratégia voluntarista
de 1970, apesar do grande crescimento e diver-
dos dirigentes do regime e modelado pelas
sificação da oposição no período, da resistência
características mais tradicionais da vida política
da “linha dura” à abertura política e dos im-
brasileira: uma “práxis autoritária associada a uma
portantes constrangimentos econômicos que
lógica liberal” (TRINDADE, 1985), a centralidade
tiveram que enfrentar?
política dos militares e a tradição de conciliação
A resposta a essa questão implica também uma “pelo alto” das elites políticas.
contribuição ao conhecimento teórico e ao debate
II. O DEBATE TEÓRICO SOBRE TRANSIÇÕES
científico sobre processos de transição de regimes
PARA O REGIME DEMOCRÁTICO
políticos, objeto deste artigo. Com efeito, a produ-
ção acadêmica a respeito dos processos de tran- Uma definição do regime democrático, mesmo
sição política defronta-se com uma série de que restrita à sua dimensão exclusivamente
problemas, originados por insuficiente investigação político-institucional, exige a observância das
empírica e dificuldades metodológicas derivadas seguintes condições: 1) que todos os atores polí-
da ausência de uma teoria geral das mudanças ticos relevantes devem submeter-se à livre com-
políticas (NOHLEN & THIBAUT, 1994). Nesse
sentido, a “terceira onda” de democratizações
(HUNTINGTON, 1991) provocou tanto uma in-
flexão importante nas teorias sobre transições 4 Essa hipótese baseia-se em dois artigos de Bolívar Lamounier

políticas como uma série de generalizações sobre sobre a importância das eleições na transição brasileira. Ver
o tema, que devem ser testadas e afinadas por Lamounier (1985; 1988, p. 110, 194).
estudos de caso, como faremos neste trabalho a 5 Esse argumento foi desenvolvido originalmente por Renato
partir da experiência brasileira. Lessa, a partir da análise dos resultados das eleições de 1982
sobre os rumos da transição (LESSA, 1989, p. 90-103). Por
A hipótese principal do trabalho foi a de que sua vez, Lamounier (1988, p. 111), considera que a
os principais constrangimentos à consolidação do autonomização da transição no Brasil ocorreu após a vitória
regime democrático no Brasil devem-se ao sucesso da oposição nas eleições de 1974. Preferimos, diferentemente,
da estratégia de liberalização do regime autoritário considerar esse processo “autonomizado” apenas a partir do
momento em que nenhum dos atores possua concretamente
implementada com alto grau de voluntarismo e a capacidade de alterar suas regras. No caso em análise, como
controle do processo político pelas presidências aponta Lessa, isso ocorreu após as eleições de 1982, quando
Geisel e Figueiredo. Isso, não obstante as dificul- políticos da oposição foram eleitos governadores nos estados
dades encontradas pelo General Figueiredo para mais importantes do país.

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petição pacífica pelo poder, seja por valorizarem a em primeiro lugar, à terceira onda de democra-
democracia, seja por cálculo político que indique tizações a partir do início dos anos 1970, que
que os custos e riscos de não a aceitar são maiores surpreendeu a grande maioria dos cientistas
do que seguir suas regras6; 2) que nenhum ator políticos e forneceu uma inegável contraprova
político possua poder de veto quer sobre a par- empírica às teorias que apontavam macrovariáveis
ticipação de outros, quer sobre os resultados da de ordem econômica (grau de desenvolvimento
competição política; 3) que não existam instituições econômico), social (modernização) ou cultural
estatais independentes e autônomas frente ao poder (cultura cívica) como pré-condições para a
político democraticamente eleito. Uma definição existência de democracias8. Efetivamente, como
“minimalista” do regime democrático, como essa, assinala Banegas, “essas abordagens macro-
está longe de obter unanimidade na literatura, mas históricas foram criticadas por seu viés deter-
a definição da democracia como regime político, minista, às vezes finalista e, sobretudo, por sua
cuja base fundamental é a livre competição pacífica tendência a confundir correlações estatísticas com
pelo poder e a garantia das liberdades civis fun- causalidade histórica” (BANEGAS, 1993). No
damentais, possui grande capacidade operatória prefácio à edição brasileira de Polyarchy de Dahl,
no domínio da pesquisa. No caso deste trabalho, Fernando Limongi fez uma apreciação sintética e
a definição político-institucional é suficientemente acurada da influência dos processos de demo-
pertinente, pois ela contempla a mesma dimensão cratização recentes na teoria das mudanças po-
do tema da pesquisa, qual seja, a mudança de líticas: “A constituição deste objeto de pesquisa –
regime político. a transição de regime – foi concomitante à afirma-
ção da autonomia explicativa de variáveis propria-
Os principais enfoques e orientações temáticas
mente políticas. Dito de outra maneira, essa
no estudo das transições foram modificando-se à
literatura foi um dos veículos por meio dos quais
medida que tentavam capturar as rápidas trans-
a ciência política liberou-se da teoria da moder-
formações nos processos em curso (NOHLEN &
nização e de suas explicações calcadas no proces-
THIBAUT, 1994, p. 15). Assim, sob influência da
so histórico de transformação das estruturas so-
“história real”, isto é, do início das “transições
ciais” (LIMONGI, 1997, p. 12). A participação
pactuadas” no Sul da Europa e na América Latina,
de muitos intelectuais como atores políticos
os analistas – muitos deles atuantes como atores
certamente influenciou essa perspectiva de análise
políticos naqueles processos – passaram a privi-
centrada na escolha e na ação política – afinal,
legiar as variáveis tipicamente políticas, como a
“um bom prático precisa desse tipo de ilusão
qualidade das lideranças, as escolhas racionais e
heróica para agir”9.
os recursos dos atores, bem como os efeitos da
interação de suas estratégias na configuração das O enfoque “micropolítico” parte do pressu-
transições para o regime democrático. Essa posto de que a transição de um regime autoritário
mudança de perspectiva, a partir da década de à democracia é um processo que depende pre-
1980, ocorreu em detrimento das explicações dominantemente de variáveis que se referem à
“macro-orientadas”, que privilegiavam a influência intervenção e ao voluntarismo dos atores políticos
das variáveis econômicas e sociais – nível de que participam da transição. Segundo essa pers-
desenvolvimento econômico, estrutura de classes, pectiva, nas “conjunturas fluidas” (DOBRY, 1986)
fases de industrialização – no processo de mudança de transição, quando a incerteza relativa às regras
política7. A radical reorientação analítica deve-se, e à continuidade do jogo político é a característica
central, os condicionamentos do processo político
normalmente determinados pela estrutura eco-
nômica e social encontram-se como que “suspen-
6 Segundo vários autores, essa condição assume expressões
sos” (KARL & SCHMITTER, 1991). Ao siste-
diferentes. Assim, para Linz, a democracia deve ser
considerada para as principais forças políticas como “the only
game on town”; já para Przeworski ela seria considerada “um
mal menor”, e, para Whitehead, esse regime poderia ser o 8 Uma análise crítica dessas teorias encontra-se em Hermet
escolhido “by default” de outros viáveis (cf. MOISÉS, 1995). (1986) e em Heper (1991).
7 Para uma revisão crítica da produção acadêmica sobre 9 Expressão utilizada por Michel Dobry em um seminário
processos de transição e consolidação da democracia, ver sob responsabilidade de Guy Hermet no Institut d’Etudes
Santiso (1993); ver também Banegas (1993) e Moisés (1995). Politiques de Paris, em 16.fev.1994.

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O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

matizarem a abordagem “micropolítica”, ficação de seus interesses e à formação de suas


O’Donnell e Schmitter preconizam que as análises escolhas, há que se ter presente o fato de que a
a respeito das transições dos regimes autoritários racionalidade dos atores é limitada, sobretudo nos
devem orientar-se por uma “teoria da ‘anor- processos de transição, nos quais as regras do
malidade’, na qual o inesperado e o possível são jogo político estão em constante modificação.
tão importantes quanto o comum e o provável. Ademais, os atores políticos e os indivíduos não
[...] [Pois] a ‘metodologia da ciência normal’ não agem exclusivamente em função apenas dos seus
é apropriada em situações de rápida mudança, interesses, identificados racionalmente, mas
cujos parâmetros da ação política encontram-se também são guiados por ideologias, valores e por
em movimento” (1988, p. 18-19). Assim, ganham motivações “simbólicas”. Nesse sentido, a legiti-
relevo decisivo na determinação desses processos, mação constitui um fator muito importante para a
para esses autores, a atuação e a habilidade das estabilidade dos regimes democráticos e um sério
elites políticas e de suas lideranças (a virtù dos obstáculo para o exercício do poder autoritário. A
atores) e os eventos inesperados (a fortuna). Do observação de Przeworski de que a ausência de
ponto de vista metodológico, a investigação política legitimidade não é suficiente para provocar per se
orientou-se para o individualismo metodológico, a crise de um regime autoritário, se não estiver
a teoria das escolhas racionais e a interação associada a existência de uma alternativa de poder
estratégica. viável, é de fato pertinente, contudo nenhum
regime se estabiliza sem esse atributo de valor à
Assim, muitos autores procuraram construir
ordem política. Linz foi pioneiro em apontar o
modelos explicativos das transições de regime
déficit de legitimidade dos regimes autoritários,
baseados na identificação de atores centrais, na
ao estudar o caso brasileiro no início dos anos
formalização de seus objetivos, na distribuição de
1970, como um sério empecilho para sua
suas preferências. Essas abordagens muitas vezes
institucionalização, num momento em que outros
incorrem em formalização e simplificação ex-
autores previam essa possibilidade baseados em
cessivas, misturam níveis de análise, desprezam
análises macro-orientadas11 . Por sua vez, a
a história política e institucional do país estudado,
instalação de regimes democráticos na maioria dos
negligenciam os dados contextuais da transição e,
países latino-americanos, a partir da década de
sobretudo, superavaliam a racionalidade dos atores,
80, coincidiu com a maior crise econômica e com
muitos deles em processo de constituição ao longo
a reforma radical do modelo de desenvolvimento
daquelas conjunturas (BANEGAS, 1993). Alguns
econômico orientado pelo Estado. A sobrevivência
autores, como Di Palma, exacerbam o papel do
da democracia nessas condições adversas sugere
voluntarismo político na construção da democracia
fortemente que o apoio de caráter normativo da
e desconsideram praticamente outras variáveis que
população a esse regime é portanto mais forte que
não se refiram diretamente aos atores políticos e
a crise econômica e social na região (REMMER,
ao contexto das transições (DI PALMA, 1990).
1992-1993, p. 5). Por sua vez, onde o regime
Essa postura ensejou, em muitas autores, a for-
democrático foi derrubado, como foi o caso do
mulação de “receituários” prescritivos e normati-
Peru, isso ocorreu por outras razões, como
vos destinados a orientar o comportamento dos
lembram Nohlen e Thibaut (1994).
atores políticos e a construção de instituições su-
postamente mais adequadas para levar a bom termo
os processos de transição e a consolidação da de-
mocracia. O conjunto de prescrições (guidelines)
elaborado por Huntington para os atores políticos início, o centro de especulações desse tipo. Em meados de
democráticos e o intenso debate acadêmico sobre 1972, Huntington formulou, a convite do Ministro-Chefe
a forma de governo mais adequada para consolidar da Casa Civil do governo Médici, Leitão de Abreu, um roteiro
as novas democracias na América Latina, presiden- de reformas políticas para liberalizar o regime autoritário,
que naquele momento encontrava-se no ápice da repressão
cialismo ou parlamentarismo, são exemplares dessa
política. As sugestões que formulou, talvez a primeira
tendência normativa, inspiradas por tentativas de tentativa de “engenharia política” explícita conhecida, só
“engenharia política”10. No que concerne à identi- foram aproveitadas dois anos mais tarde, pelo General
Golbery do Couto e Silva, o principal estrategista político
do governo Geisel.
10 O processo de transição no Brasil foi, antes mesmo de seu 11 Ver a revisão crítica desse debate em Lamounier (1988).

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O maior risco das análises centradas em liberalização política através do processo eleitoral
escolhas e ações dos atores consiste na raciona- não foi propriamente uma “escolha” do governo
lização retrospectiva e na tendência finalista das Geisel, como se este o tivesse implementado para
tentativas de reconstrução do passado (LINZ & este fim com clareza dos objetivos a atingir. Na
STEPAN, 1995). Os atores políticos agem, na realidade, sua utilização deu-se basicamente pelo
realidade, quase sempre imersos na incerteza sobre fato de que um sistema partidário e um calendário
o contexto de suas ações e sobre o efeito e reações eleitoral estarem disponíveis e em funcionamento.
que elas produzirão nos outros atores, sobretudo A existência de eleições e a sobrevivência de
nos processos de transição nos quais não podem instituições políticas liberais, mesmo durante o
contar com as referências políticas habituais e período mais ditatorial do regime autoritário, deve-
estáveis. A análise não pode portanto subestimar se a uma característica tradicional do sistema
o sentimento de risco e as dificuldades em que político brasileiro, desde a independência do país,
eles incorrem quando agem em “conjunturas qual seja, a competição intraelites pelo poder
fluidas”. A tendência dos pesquisadores, e dos político através de eleições. Todavia, as opções e
próprios atores individuais envolvidos no jogo as ações dos atores “devem ser interpretadas não
político, é todavia reconstruir a motivação das só em função de oportunidades e constrangi-
ações e a lógica dos acontecimentos a partir do mentos pré-existentes, mas também em relação
seu resultado final. O analista político deve portanto as que nascem da própria transição” (BANEGAS,
procurar compreender a avaliação, as escolhas e 1993).
a ação dos atores como eles a viveram no mo-
Em suma, a interação entre a estrutura eco-
mento de sua realização. Apesar das referidas
nômica, social e política pré-existente e a estratégia
limitações e das precauções que devem ser consi-
dos atores políticos permite arranjos institucionais
deradas quando se adota a perspectiva micro-
e comportamentais que condicionam as possibili-
política, essa abordagem provocou um efeito muito
dades de uma consolidação democrática. Nesse
salutar na literatura especializada, ao ressaltar o
sentido, ganham importância as escolhas e deci-
risco da reificação no estudo dos processo políti-
sões realizadas anteriormente para o resultado dos
cos, isto é, o Estado, as Forças Armadas, as clas-
processo de transição, por menor que seja sua
ses sociais e os atores serem considerados “como
significação no momento em que foram tomadas,
um só homem” na determinação de seus interesses
pois elas podem incidir de maneira decisiva nas
e na sua atuação política.
etapas posteriores da democratização, facilitando
As insuficiências das abordagens “macroestru- ou não o êxito desses processos. Por exemplo, os
turais” e da “micropolítica” levou Terry Karl a acordos entre os militares e a oposição, esta-
propor um enfoque mediano, que nos parece bem belecidos na fase de liberalização política, podem
mais promissor para a compreensão dos processos persistir longamente, originando uma democracia
de transição à democracia. A autora elaborou a com “defeitos de nascença” (KARL &
noção de “contingência” para escapar do dilema SCHMITTER, 1991, p. 286). Dessa maneira,
“determinismo das estruturas versus liberdade do traços da cultura política de um país, compor-
ator” e capturar os vínculos entre os fatores tamentos historicamente arraigados e constran-
macroestruturais, a tradição institucional do país gimentos estruturais podem, ou não, ser refor-
e a opções dos atores políticos. É preciso demons- çados pelas escolhas e ação dos atores políticos
trar “como, em dado momento, o leque de opções em uma determinada conjuntura. A persistência
disponíveis é função das estruturas criadas em da conjuntura de crise econômica e a adoção de
período anterior e como essas decisões estão planos de estabilização econômica, muitas vezes
condicionadas pelas instituições estabelecidas no sem discussão prévia com a sociedade e com o
passado” (KARL, 1991, p. 423). Nessa pers- Congresso, agravam aspectos centrais das “demo-
pectiva, as instituições políticas pré-existentes cracias delegativas” da região (O’DONNELL,
realizam a mediação entre a estrutura sócio- 1994). Esse conceito refere-se aos regimes da
econômica e as ações dos atores políticos, pois “terceira onda” de democratizações que são,
elas fornecem os parâmetros do espaço político e segundo O’Donnell, “intrinsecamente hostis aos
os recursos institucionais disponíveis para a ação padrões de representação normais das demo-
dos atores (BADIE & HERMET, 1990). Por cracias estabelecidas, à criação e consolidação das
exemplo, no caso brasileiro, a condução do projeto instituições políticas e, especialmente, à ‘prestação

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O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

de contas horizontais’ [accountability]” início da dissolução do regime autoritário, a criação


(O’DONNELL, 1993, p. 165). Esses regimes da democracia e a consolidação do novo regime
democráticos não-institucionalizados caracteri- (BERMEO, 1992, p. 273). A longa e gradual
zam-se pela delegação aos governantes eleitos da transição no Brasil permite distinguir com clareza
possibilidade de realizarem tudo que lhes pareça esses períodos. O primeira vai de março de 1974
adequado para minorarem a crise econômica a março de 1985, e abrange os dois últimos
aguda12. Os elementos plebiscitário e personalista governos militares, as presidências dos generais
das “democracias delegativas” teriam suas origens Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985). A
no estilo populista e na baixa institucionalização segunda etapa – a construção da democracia –
que marcaram o passado político da região. desenvolve-se durante o governo civil de José
Sarney (1985-1990). Quanto ao processo de
Ainda no que concerne ao peso das variáveis
consolidação do novo regime democrático, uma
na explicação dos fenômenos de transição dos
espécie de segunda transição, ela inicia-se com a
regimes autoritários, a preponderância dos fatores
presidência de Fernando Collor de Mello em março
políticos e institucionais não deve, entretanto,
de 1990 (eleito por sufrágio universal e afastado
subestimar a influência das variáveis macroes-
do poder por um processo de impeachment em
truturais nesses processos. De fato, como cons-
dezembro de 1992), e encontra-se ainda em
tataram Linz e Stepan (1996), aqueles regimes
andamento. No que diz respeito a este trabalho, é
autoritários que permitiram um pluralismo político
imperativo desenvolver uma análise mais acurada
limitado, assim como a existência de arenas sociais
da primeira etapa, que corresponde ao período
e econômicas relativamente livres do controle do
coberto pela pesquisa. Alguns estudiosos dos
Estado e extensivas, favoreceram a transição para
processos de democratização recentes na América
a democracia e constituíram elementos positivos
Latina destacam uma forte afinidade entre tipos
para sua eventual consolidação. Quanto às
de regimes autoritários precedentes, modos de
microvariáveis políticas que possuem relação com
transição à democracia e dilemas decorrentes das
o regime anterior, esses autores destacam duas
características desses processos para a conso-
centradas em atores: a liderança do antigo regime
lidação dos novos regimes democráticos
e “quem inicia e quem controla a transição”. A
(NOHLEN & THIBAUT, 1994). Essa relação, no
questão aqui é se a transição foi uma iniciativa do
entanto, não é tão imediata como parece à primeira
regime ou da oposição, e se esse processo foi
vista; nesse sentido, uma análise sucinta da
controlado pelos dirigentes autoritários ou por um
significativa mudança política que ocorreu no
governo interino após o colapso do antigo regime.
Brasil nas últimas décadas possibilitará uma
Linz e Stepan mantêm o foco da análise nos atores
avaliação empírica das teses mais correntes sobre
e nas lideranças políticas, mas incorporam na
os processos de democratização e permitirá
explicação variáveis estruturais e históricas. Os
também afinar nossas hipóteses iniciais.
autores querem identificar quais traços prove-
nientes da formação do Estado-nação – práticas e Uma particularidade importante a ser ressaltada
instituições – e paths de processos de transição que diferencia a autocracia brasileira de regimes
(por exemplo, “pactuadas” ou via colapso) fa- similares na região foi o fato de apresentar a mais
cilitam ou dificultam a consolidação da demo- longa duração dentre todos, de ser o mais bem
cracia. sucedido do ponto de vista econômico, o menos
repressivo entre seus congêneres e aquele no qual
III. O REGIME AUTORITÁRIO E O INÍCIO DA
“os militares como corporação, e não um militar,
TRANSIÇÃO
assumiram a responsabilidade pelo poder e
Um processo de democratização totalmente adaptaram as instituições políticas à nova ordem
finalizado envolve genericamente três etapas: o autoritária” (SOARES, 1994, p. 13). De fato, seus
dirigentes sempre consideraram o autoritarismo
como formato político transitório e mantiveram,
praticamente durante todo o período, a existência
12 No Brasil, os planos Cruzado, em 1986, e Collor, em
de partidos políticos, um calendário eleitoral e o
1990, foram exemplares desse tipo de delegação plebiscitária Congresso em funcionamento, embora com
por parte da população, que de fato apoiou a posteriori uma
série de profundas medidas econômicas implantadas de
restrições políticas importantes, como veremos
maneira autoritária. adiante. Essa ambigüidade institucional da ditadura

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no Brasil revela-se extremamente importante para início da transição, mais gradual e controlado seria
a análise, pois as características do regime esse processo e, portanto, maiores seriam as
autoritário precedente podem ser, de fato, dificuldades de consolidação da democracia, em
consideradas como uma macrovariável política virtude da presença de “resíduos autoritários” no
fundamental para a determinação do modo de novo regime (O’DONNELL, 1988). Com efeito,
transição e do tipo de democracia que resultará. quando o governo Geisel deu início à liberalização
O processo de democratização brasileiro apresenta política em 1974, os militares já haviam con-
também como uma de suas características centrais solidado o modelo de modernização conservadora
o fato de ter se desenvolvido através de nego- cujo lema “segurança e desenvolvimento” resumia
ciações sob forte controle dos dirigentes autori- suas características. As altas taxas de crescimento
tários. Sob esse aspecto, ele é similar ao caso do então “milagre econômico” e a dizimação da
espanhol, como ressaltam Share e Mainwaring contestação armada fornecem apoio social e
(1988). No entanto, uma diferença notável entre recursos políticos e econômicos consideráveis ao
os dois países foi a dominância militar no regime novo governo, permitindo-lhe ousar uma estratégia
autoritário brasileiro e na iniciativa de liberalizá-lo, de transição política que ainda não encontrava
ao passo que na Espanha o regime franquista era apoio majoritário no seio da elite dirigente.
bem menos militarizado e a transição foi conduzida
O início da liberalização política acontece
pelas lideranças civis; essa distinção entre os dois
quando os dirigentes de um regime declaram a
casos ajuda a compreender a centralidade do
intenção de promover sua liberalização e são
problema do controle do poder político demo-
acreditados pelos principais atores políticos. No
crático sobre as Forças Armadas como funda-
caso brasileiro, este momento ocorreu no final de
mental para a consolidação da democracia no Brasil
1974, quando o governo Geisel aceitou a ampla e
(AGUERO, 1992). Outra discrepância marcante
inesperada vitória do partido da oposição (MDB)
entre os dois países foi a rapidez do processo
nas eleições de novembro desse ano, para depu-
espanhol e a renovação de suas elites políticas,
tados das Assembléias dos estados, para a Câmara
em contraste com a longa duração, o extremo
dos deputados federais e para o Senado. Com
gradualismo e o enorme grau de continuidade das
efeito, a promessa de Geisel de iniciar uma
lideranças do antigo e do novo regime democrático
“distensão política lenta, gradual e segura”,
brasileiro, que problematizam sobremaneira sua
formulada poucos dias após sua posse em março
consolidação (LESSA, 1989). Esse fato demons-
anterior, encontrou muito ceticismo da parte da
tra por si só os limites das generalizações das teorias
oposição e da sociedade, pois todos os presidentes
de transição13.
militares anteriores haviam também prometido
III.1 A liberação do regime autoritário: volun- restaurar o regime democrático assim que assu-
tarismo e controle sob a Presidência Geisel miram o poder. Todavia, para as eleições muni-
(1974-1979) cipais de 1976, o regime restringiu fortemente a
propaganda eleitoral através de modificações da
Uma das teses mais difundidas na literatura
legislação específica. Em abril de 1977, o governo
especializada, defendida por O’Donnell, argumenta
fechou o Congresso por poucos dias para pro-
que os regimes autoritários nos quais a repressão
mulgar uma série de medidas constitucionais que
foi menos brutal e que conheceram períodos de
alteravam profundamente a legislação eleitoral e
crescimento econômico significativo, seus diri-
constrangiam a oposição democrática, no intuito
gentes possuem recursos políticos que lhes
de garantir a maioria do Congresso para o partido
permitem tomar a iniciativa de “abrir” o regime e
do governo (ARENA) nas eleições de 1978, assim
negociar com a oposição a passagem do poder,
como no Colégio Eleitoral encarregado de escolher
resguardando algumas de suas prerrogativas e sua
o próximo presidente da República no início de
sobrevivência política. Assim, quanto maior o apoio
1979, além de adiar para 1982 as eleições diretas
político com que conta o regime autoritário no
para governadores dos estados, entre outras
medidas arbitrárias. Geisel conseguiu, assim,
controlar firmemente o processo de liberalização,
13 Ver uma crítica sobre o alcance explicativo das teorias
ao golpear alternadamente a oposição, com
reformas pragmáticas visando a manter maioria
sobre transição de regime, baseadas em perspectivas
comparativas, em Hermet (2001). governista no Congresso, e a “linha dura” militar,

17
O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

sobretudo quando demitiu o Ministro do Exército, foi muito próximo daquilo havia sido projetado
no final de 1977, que almejava sucedê-lo. A partir pelos mentores da transição “lenta, gradual e
desse episódio, todos os atores políticos envol- segura”.
vidos na transição perceberam que havia uma
III.2 A autonomização da transição durante a
segurança relativamente alta na continuidade do
Presidência Figueiredo (1979-1985)
processo. Outro fator de importância capital para
sua aceitação foi a hegemonia dos setores liberais O General Figueiredo assumiu a Presidência
e conservadores no interior das forças de oposição. da República em março de 1979 apregoando a
O fato mais significativo do alinhamento das democracia como objetivo final da “abertura
esquerdas em geral às regras da transição política” que promoveria durante seu governo.
negociada impostas pelo regime foi o seu apoio Entretanto, a ausência da principal legislação
efetivo à candidatura do General Euler Bentes autoritária (AI-5), abolida meses antes de sua
Monteiro, pelo MDB, contra o candidato do regime, posse, a recessão econômica e o surgimento de
General Figueiredo, no Colégio Eleitoral no final movimentos sociais, como o “novo sindicalismo”,
de 1978. Nessa mesma época, Geisel extinguiu o aceleraram fortemente o processo político, tor-
principal instrumento jurídico e o símbolo maior nando a tentativa de sua condução pelo governo
da ditadura militar, o Ato Institucional n. 5, que cada vez mais problemática. Apesar desses
lhe permitia alterar unilateralmente as regras do constrangimentos, o governo Figueiredo prosse-
jogo político. A transição passou a ter, então, uma guiu com a estratégia gradual das reformas
dinâmica própria, no sentido de que as primeiras políticas. No final de 1979, o regime propôs e fez
medidas liberalizantes outorgadas constituíram-se aprovar pelo Congresso uma anistia ampla e
em novas regras do jogo político, tornando quase politicamente inteligente, pois seu alcance
impossível um recuo institucional, sob pena de concernia tanto aos prisioneiros e exilados de
desmoralizar os partidários do projeto de esquerda como, preventivamente, a todos aqueles
liberalização e minar sua “legalidade autoritária” indivíduos ligados aos órgãos de segurança do
(SANTOS, 1988). regime que cometeram crimes durante as
atividades repressivas. Todavia, o surgimento de
Em suma, durante a presidência do General
um vigoroso movimento sindical, que teve seu
Geisel (1974-1979), o processo político foi
marco inicial nas grandes greves dos operários
dominado pelo governo e restrito, de fato, às forças
metalúrgicos paulistas no final da década de
conservadoras e à oposição parlamentar –
setenta, foi fundamental para acelerar a “abertura
aglutinadas, respectivamente, na ARENA e no
política” do governo Figueiredo e constituiu uma
MDB – conforme previa o projeto de “distensão”.
novidade no sistema eleitoral brasileiro. De fato, o
Durante a presidência Geisel, a existência de um
“novo sindicalismo” introduziu um ator político
apoio político significativo ao regime, a fragilidade
estranho ao conjunto das forças conservadoras e
da oposição frente aos recursos coercitivos do
liberais que, até então, eram os únicos prota-
governo e a virtù dos dirigentes autoritários
gonistas da transição.
permitiram que estes últimos fossem muito bem-
sucedidos na implantação e no controle de seu No que concerne à utilização do processo
projeto de democratização outorgada. Geisel legou eleitoral para pautar a transição, esse recurso
a seu sucessor, por ele escolhido, General João praticamente se esgotou com a última reforma
Figueiredo, a tarefa de aprofundar a liberalização institucional do regime autoritário: a extinção dos
do regime e, como parte de sua estratégia de dois partidos existentes (ARENA e MDB) e a
transição, passar o poder ao término de seu implementação do multipartidarismo, em 1979. A
mandato, em 1985, a um político civil proveniente anistia e a reforma partidária se inscreviam na
do partido do regime. Os caprichos da fortuna estratégia do regime de dividir a oposição para
realizaram essa tarefa por vias tortas, pois, com a acabar com o caráter plebiscitário crescentemente
morte de Tancredo Neves, assumiu o poder José desfavorável ao regime, das eleições bipartidárias.
Sarney, que havia sido um dos quadros civis mais Esta manobra foi parcialmente vitoriosa, pois a
proeminentes do regime autoritário. Assim, apesar oposição dividiu-se, com efeito, entre vários
do governo Figueiredo ter perdido o controle do partidos e os quadros do regime permaneceram
processo político nos últimos anos de seu governo, majoritariamente no novo partido governista, o
o resultado final da fase de liberalização política PDS (Partido Democrático Social). A oposição,

18
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 11-31 NOV. 2001

por sua vez, percebeu que diminuíam as voto vinculado a um mesmo partido para todos
possibilidades de profundas alterações na ordem os cargos eletivos, sob pena de sua anulação, entre
institucional e acomodou-se às regras vigentes, outras medidas. O Pacote de Novembro, como
com a atenção voltada para as eleições de 1982 ficou conhecido, inviabilizou a sobrevivência do
para governadores de estado, a serem realizadas Partido Popular, de Tancredo Neves e de outras
pela primeira vez desde 1966. A estratégia das lideranças conservadoras da oposição demo-
diversas correntes oposicionistas orientou-se, crática. Ora, a manutenção do PP como eventual
desde então, para a consolidação dos novos força auxiliar do partido do regime, o PDS, para
partidos e para a disputa eleitoral, colocando em eleger no Colégio Eleitoral em janeiro de 1985 um
um plano secundário outras questões políticas que quadro civil do regime fazia parte dos planos de
não se referissem aos temas exclusivamente Golbery. As medidas adotadas por Leitão de Abreu
partidários e eleitorais, como a convocação de uma forçaram a reincorporação do PP ao PMDB no
Assembléia Constituinte, por exemplo. A divisão início de 1982 e enrijeceram o quadro partidário,
da oposição em vários partidos antes mesmo do ocasionando o retorno do caráter plebiscitário, pró
final do regime autoritário facilitou a reacomodação ou contra o regime, que as eleições expressavam
das elites políticas, permitindo que a transição desde 1974. Nesse caso, ficou mais uma vez
“pactuada” se realizasse exclusivamente em termos estabelecida a importância da qualidade das
institucionais, sem pactos explícitos e substantivos lideranças políticas na condução de um processo
entre os atores políticos, como no caso espanhol. de transição (ARTURI, 2000, cap. 5).
Essa característica foi responsável pela sobrecarga
Os resultados das eleições para Governador
da agenda política no período posterior, principal-
de estado e para deputados estaduais e federais
mente durante os trabalhos da Assembléia Nacional
em 1982 deram uma vitória política expressiva às
Constituinte (LESSA, 1989).
oposições e foram diretamente responsáveis pela
O ano de 1981 foi fundamental para o processo perda do controle do processo de transição pelo
de transição no Brasil. De fato, a explosão de uma regime. Graças aos senadores escolhidos indire-
bomba no interior de um automóvel ocupado por tamente em 1978, o partido governamental
militares, no estacionamento do Riocentro em 31 manteve ainda a maioria no Congresso e no Colégio
de abril, teve conseqüências múltiplas e impor- Eleitoral que se reuniu em janeiro de 1985 para
tantes para o futuro político do país. Em primeiro eleger o Presidente da República seguinte. Mas, a
lugar, o episódio significou o fim dos atentados partir da eleição de 1982, quando os partidos de
perpetrados pela extrema-direita inconformada oposição conquistaram dez governos estaduais
com o processo de transição, que ocorriam desde entre os mais importantes do país e a maioria das
o final de 1979. Isso forneceu a todos os atores cadeiras na Câmara dos Deputados, o governo
políticos a certeza de que o processo de transição teve que administrar o país negociando diretamente
não mais corria o risco de ser interrompido por com poderosos governadores da oposição e fazer
um golpe proveniente dos setores “duros” do face ao crescente desgaste político. Essa situação
regime. O segundo efeito importante do caso marcou o retorno de uma das características mais
Riocentro foi a demissão do General Golbery do duradouras do sistema político nacional: o poder
Couto e Silva de seu cargo de Ministro-Chefe da dos governadores de estado e a centralidade da
Casa Civil, que ocupava desde o início da política regional na formação de alianças no
presidência Geisel, já que ele exigia a apuração Congresso (ABRUCIO & SAMUELS, 1997). A
completa dos fatos e a punição dos responsáveis oposição partidária e a sociedade civil organizada
pelos atentados. A substituição do estrategista-mor começaram, assim, a tolher gradativamente a
da “abertura política” pelo ex-Ministro do governo margem de manobra do regime e a inverter o
Médici, Leitão de Abreu, um homem público domínio político da transição, sempre na estrita
respeitado no interior dos círculo dirigente do observância da legislação política-eleitoral imposta
regime, mas que não era afeito às manobras pelos governos militares. Esse quadro político
político-parlamentares, constituiu uma ruptura com complexo, somado ao sentimento de segurança
o projeto estratégico do General Golbery. Logo da oposição quanto à irreversibilidade da transição,
após assumir, Leitão de Abreu fez aprovar pelo notadamente após a neutralização da extrema-
Congresso, no final de 1981, um “pacote” eleitoral direita militar devido ao caso Riocentro em 1981,
que proibia as coligações partidárias, impunha o provocaram uma multiplicação de estratégias

19
O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

visando à sucessão presidencial, com um objetivo Figueiredo, praticamente já não mais existiam nem
político igual ao do governo: eleger o futuro os radicais da oposição, nem a “linha-dura” do
Presidente no Colégio Eleitoral em janeiro de 1985. regime, os quais os moderados de ambos os lados
deveriam teoricamente isolar para levar a bom
Foi nesse contexto que surgiu a surpreendente
termo a transição. O continuísmo e o excesso de
mobilização pelas eleições diretas à Presidência da
“garantismo” tornaram-se as marcas da demo-
República em 1984, conhecida como movimento
cratização outorgada brasileira, cujo êxito deve-
“Diretas-Já”. Ela foi a reivindicação mais forte e
se à combinação entre a estratégia voluntarista do
concreta pela democratização do país após 1964
regime autoritário e o auto-enquadramento da
e pôs em cheque, momentaneamente, a estratégia
maioria da oposição na lógica e nas regras im-
política do regime e os planos das lideranças
postas pelo regime autoritário. A lentidão, o
oposicionistas mais conservadoras, que já nego-
gradualismo e o controle exercido nesse período
ciavam possíveis alianças com setores do partido
pelos detentores do poder legaram “resíduos
governista. O movimento pelas eleições diretas para
autoritários” e reforçaram práticas políticas tradi-
Presidente da República mobilizou milhões de pes-
cionais do país que problematizaram fortemente a
soas por todo o país, mas não conseguiu impedir
fase seguinte de democratização, sob o governo
a rejeição, em abril de 1984, do projeto de emenda
Sarney, e constrangeram o processo de conso-
constitucional que a implantaria. Entretanto, esse
lidação do novo regime democrático a partir de
movimento foi fundamental para estimular e
1990.
justificar o apoio da dissidência do regime, a Frente
Liberal, ao candidato do PMDB à presidência, IV. O REGIME DEMOCRÁTICO E OS FATO-
Tancredo Neves. A grande campanha pelas “Di- RES DE SUA CONSOLIDAÇÃO
retas-Já”, e sua impotência para alterar as regras
O deslocamento do interesse das pesquisas da
impostas pelo regime autoritário, foi paradigmática
fase inicial da transição para a problemática da
da liberalização “pelo alto” através de acordos e
consolidação da democracia acelerou-se quando
cisões no seio das elites políticas no Congresso;
a instauração desse tipo de regime revelou-se mais
pois, se por um lado ela facilitou a dissidência
auspiciosa do que inicialmente previsto pelos
governista e impediu um hipotético recuo político-
especialistas. Nesse momento, emergiu uma crí-
institucional, por outra lado ela foi incapaz de dar
tica aos limites da democracia política e/ou às
um desfecho verdadeiramente democrático ao
chances de sua consolidação na ausência de
processo de transição, pelo simples fato de que a
profundas reformas econômicas e sociais. Esses
maioria das lideranças oposicionistas e do próprio
questionamentos centram-se quer nas limitações
governo estavam, naquela conjuntura, satisfeitos
propriamente políticas do regime democrático –
com a “legalidade autoritária” e com os ganhos
“delegativas”, cidadania de baixa intensidade
políticos vislumbrados. Os eventos posteriores são
(O’DONNELL, 1993), “low democracy” (GILL
bem conhecidos: a eleição da chapa Tancredo
& ROCAMORA, 1992), “liberalismo democrático”
Neves e José Sarney em janeiro de 1985; a in-
(NUN, 1994) – quer definindo a democracia através
ternação hospitalar de Tancredo gravemente
de variáveis socialmente substantivas, isto é, como
doente na véspera de sua posse em 15 de março;
um tipo de sociedade específica (“democracia so-
sua morte em 21 de abril. Assim, a fortuna e as
cial”, “democracia popular” etc.). Ora, a conside-
opções dos príncipes tornaram José Sarney, o ex-
ração de variáveis sociais, econômicas e culturais
presidente do PDS e líder das forças governistas
(alto grau de desigualdade social, crise econômica,
na derrubada da emenda pelas eleições diretas
cultura política autoritária, transformação do papel
meses antes, o primeiro Presidente civil desde
do Estado, ofensiva ideológica neoliberal etc.) é
1964.
pertinente, sobretudo, para a identificação dos
O pacto político, que certamente ocorreu, dilemas e constrangimentos à consolidação da nova
entre o candidato oposicionista e os militares, para ordem política. Com efeito, a consolidação da
impedir qualquer turbulência política na reta final democracia é uma espécie de segunda transição e
da liberalização, garantindo àqueles últimos a avaliação da estabilização e enraizamento desse
prerrogativas e salvaguardas políticas, foi facilitado regime em um determinado país requer um
pelo gradualismo e pela longa duração do processo, considerável recuo temporal. A consolidação da
o que permitiu o transformismo político de muitos democracia, como afirma Morlino, “não se trata
atores. Assim, nos últimos anos do governo de um processo inovador. Ao contrário, é caracte-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 11-31 NOV. 2001

rizado pelo estabelecimento sólido de estruturas e movem a democracia precisam ser prudentes ex
procedimentos que pretendem durar. [...] A fase ante e desejam ser resolutas ex post. Mas as
de transição é bastante distinta da de consolidação. decisões tomadas anteriormente criam condições
Trata-se, basicamente, da diferença entre fluidez que são difíceis de reverter depois, pois elas
e estabelecimento sólido” (MORLINO, 1992, p. preservam o poder das forças associadas ao
152-153). regime autoritário” (PRZEWORSKI, 1994, p.
111). Em suma, a exigência do abandono daquelas
Fundamentalmente, a consolidação da demo-
instituições e arranjos que facilitaram a transição,
cracia exige que a incerteza em relação à com-
mas que são consideradas antidemocráticas e que
petição pelo poder torne-se aceitável para os
podem acarretar uma “morte lenta” da democracia,
principais atores políticos; em outras palavras, que
é pouco viável.
eles concordem que os vencedores de eleições,
independentemente de quem sejam, assumam o Houve também alterações significativas na
poder que estava em disputa, e os derrotados não hierarquização do valor explicativo das variáveis
tentem um recuo político-institucional para alterar, segundo a fase do processo de democratização.
a posteriori, as regras do jogo. A importante O foco temático das pesquisas deslocou-se das
contribuição de Przeworski para a identificação condições de emergência das transições - crise
desse elemento central das regras do jogo dos regimes autoritários, causas da liberalização
democrático deve contudo ser relativizado. De política, alianças e conflitos entre atores - para os
fato, a incerteza quanto aos resultados da com- dilemas relativos à consolidação da democracia -
petição política só é aceitável para os antigos diri- prerrogativas militares, construção de instituições
gentes do regime autoritário e para as classes democráticas, reforma do Estado sob conjunturas
dominantes se vier acompanhada de outras “cer- de grave crise econômica etc. Durante a transição
tezas” que restrinjam o alcance de eventuais refor- propriamente dita do regime autoritário à
mas econômicas, sociais e políticas que possam democracia, as variáveis mais influentes seriam
ser implementadas por qualquer das forças aquelas concernentes à qualidade da ação dos
políticas que venham a vencer a disputa pacífica atores políticos e à interação de suas estratégias.
pelo poder (PRZEWORSKI, 1984). É necessário, Inversamente, após a instauração do regime
portanto, distinguir a incerteza típica das tran- democrático, as variáveis macrossociais (nível de
sições, relativa à possibilidade de recuos do pro- desigualdade social, tipo de política econômica,
cesso e às regras do jogo em constante fluxo, da influência de fatores internacionais, grau de
incerteza limitada quanto aos resultados da disputa reforma do Estado etc.) e institucionais (sistema
eleitoral que caracteriza uma democracia conso- de governo, sistema eleitoral-partidário etc.)
lidada. Assim, a incerteza é um elemento central constituiriam os fatores mais importantes para o
das transições, mas não do regime democrático, sucesso ou fracasso da consolidação do novo
como argumenta Mainwaring (1992). Nessa regime.
perspectiva, toda transição bem-sucedida para a
Essas mudanças bruscas de enfoque refletem
democracia seria basicamente conservadora, pois
a ausência de modelos explicativos a partir da
implica acordos e pactos, quer sejam públicos quer
seqüência regime autoritário-modo de transição-
sejam implícitos, que garantam a propriedade
tipo de democracia. Nesse sentido, Nohlen e
privada, assegurem os dirigentes autoritários e os
Thibault afirmam que os maiores problemas para
militares de que eles não serão perseguidos no novo
a consolidação do regime democrático não se
regime democrático e, como no caso brasileiro,
originam da crise econômica ou das contradições
terão garantida sua sobrevivência política
entre pactos de elite e demandas sociais por
(PRZEWORSKI, 1992). Todavia, esses elementos
reformas, mas de mecanismos institucionais, tais
que favorecem a transição – moderação e objetivos
como a relação entre Executivo e Legislativo ou a
minimalistas por parte da oposição, oportunismo
perda de capacidade de agregação e representação
e controle por parte dos reformistas do regime –
dos sistemas políticos (NOHLEN & THIBAUT,
e facilitam o bom termo do processo revelam-se,
1994, p. 26). Por sua vez, Przeworski (1992)
posteriormente, obstáculos e constrangimentos
destaca que o repertório de arranjos institucionais
para a consolidação da democracia. Como salienta
para construir a nova ordem política é bastante
Przeworski, a estratégia ótima para as transições
limitado e os atores refugiam-se, freqüentemente,
“pactuadas” é contraditória: “as forças que pro-
nas práticas e instituições tradicionais para con-

21
O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

figurar o novo regime. De fato, na opinião de do presidente Sarney. A aceitação da eleição de


Share e Mainwaring a maneira pela qual a Tancredo pelos militares foi baseada, quase que
democracia é instalada não determina totalmente exclusivamente, na sua “confiabilidade” política
seu desenvolvimento posterior, mas estabelece as pessoal, que garantiria tanto o cumprimento das
regras do jogo, as modalidades de interação e os prerrogativas políticas oferecidas às Forças Arma-
limites ao comportamento dos atores e às mu- das, como as promessas de que os interesses
danças políticas; em suma, o mais importante econômicos fundamentais das classes dominantes
seriam as condições iniciais do regime democrático não seriam atingidos por eventuais reformas.
(SHARE & MAINWARING, 1988). Isso posto, Sarney herdou ainda um ministério que era fruto
em nosso entender, os dilemas enfrentados pelo de acordos políticos realizados por Tancredo com
regime democrático constituem-se em obstáculos vários setores isoladamente, e cujo teor era pra-
políticos que ou originaram-se do modo de tran- ticamente ignorado pelo novo Presidente. Enfra-
sição do regime autoritário (path dependency) ou quecido por essa situação e pela tentativa do
são características tradicionais do sistema político PMDB e de seu Presidente, Deputado Ulysses
brasileiro que foram reforçados pelo processo de Guimarães, de dirigir a administração do país e
transição gradual e controlado. orientar as reformas políticas, o Presidente da
República reagiu apoiando-se politicamente nos
V. A NOVA REPÚBLICA (1985-1990) E OS
militares e utilizou-se fartamente de práticas
DILEMAS PARA CONSOLIDAÇÃO DO
clientelistas para aliciar individualmente parlamen-
REGIME DEMOCRÁTICO
tares de vários partidos, bem como articulou alian-
A fase de democratização no Brasil desenvolveu- ças com governadores de estado para que influen-
se durante a presidência civil de José Sarney (1985- ciassem suas bancadas federais. Ambos os estra-
1990), intitulada “Nova República”, quando foi tagemas enfraqueceram os partidos políticos e o
levantada a proibição dos partidos comunistas e deu- Congresso, e só foram exeqüíveis porque essas
se a expansão máxima do sufrágio com a permissão instituições já se encontravam fragilizadas em
ao voto dos analfabetos, em 1985. Posteriormente, decorrência do modo de transição e de seus efeitos
verificou-se a redação e aprovação da nova sobre a legislação eleitoral, os partidos e as práticas
Constituição democrática em 1988, e ocorreu a políticas.
realização de eleições diretas para Presidente da
A orientação conservadora impressa pela
República em 1989, pela primeira vez desde 1961.
Presidência da República encontrou nas caracte-
Com a posse do vencedor dessas eleições em dois
rísticas e práticas tradicionais do sistema partidário
turnos, Fernando Collor de Mello, em março de 1990,
brasileiro um instrumento privilegiado para sua
teve início o regime democrático propriamente dito.
efetivação. Nesse sentido, Sarney utilizou-se do
Durante a presidência Sarney, os constrangimentos
apoio dos governadores para isolar a ala mais
postos à construção e consolidação do novo regime
progressista do PMDB, recompor o perfil de sua
foram múltiplos e interdependentes: persistência da
administração e obter o apoio parlamentar neces-
crise econômica com forte crescimento da inflação,
sário para governar. Ele administrou o país com
fragilidade política da “Aliança Democrática”, falta
uma forte presença dos membros mais conser-
de legitimidade do Presidente Sarney aos olhos da
vadores da Aliança Democrática e de outros par-
maioria da população e presença de importantes
tidos, a maioria dos quais provenientes da Frente
resíduos autoritários oriundos da transição “pelo alto”.
Liberal, a dissidência de undécima hora do regime
O conjunto desses obstáculos relacionou-se
autoritário. A maioria liberal-conservadora no
estreitamente com a transição “através de eleições”
Congresso em 1985, que incluía os senadores
durante os dois últimos governos militares e com a
“biônicos” designados pelo regime em 1978, a
dinâmica do sistema partidário e eleitoral na Nova
vontade da presidência da República e as pressões
República. Com efeito, a ausência de pactos públicos
dos militares impuseram uma Assembléia Consti-
durante a fase de liberalização política provocou, com
tuinte formada pelos membros da Câmara dos
a morte de Tancredo, uma situação de transição “à
refaire”14, que agravou as dificuldades políticas

uma conferência ministrado no Institut des Hautes Études


de l’Amérique Latine (IHEAL), em Paris, no dia 8 de março
14 Esta expressão foi utilizada por Philippe Schmitter em de 1993.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 11-31 NOV. 2001

deputados e do Senado que seriam eleitos em 1986, trabalho, a campanha e os resultados da eleição
derrotando assim a proposta da esquerda que em dois turnos marcaram o início efetivo do
almejava uma Assembléia composta de repre- regime democrático no país e o final do longo
sentantes eleitos exclusivamente para redigir a processo de transição política que começara 15
nova Carta. Estas mesmas forças pressionaram anos antes. Essa eleição também apontou alguns
com êxito a Assembléia Constituinte a limitar o constrangimentos importantes sobre o sistema
alcance das reformas econômicas e sociais, sobre- partidário, provocados pelo modo de transição,
tudo no que diz respeito à Reforma agrária, fixar sobretudo inquietantes indícios de deslegitimação
em cinco anos o mandato presidencial de José dos partidos políticos e o baixo grau de identifi-
Sarney e a adotar o sistema presidencialista de cação partidária do eleitorado. Efetivamente, os
governo. No que concerne especificamente ao candidatos dos dois maiores partidos em 1989,
sistema partidário-eleitoral, a Constituinte congres- PMDB e PFL – que juntos detinham mais da meta-
sual foi responsável, primeiro, pela manutenção de do número de cadeiras do Congresso –, Ulys-
da super-representação dos estados do norte e ses Guimarães e Aureliano Chaves, não ultrapas-
nordeste do país e a sub-representação daqueles saram, respectivamente, 4% e 2% dos votos no
do sul e sudeste na Câmara dos deputados. Em primeiro turno da eleição. Ora, esses candidatos
segundo lugar, a redação da nova Constituição pelo eram os líderes da Aliança Democrática, que
Congresso ocorreu sob grande influência dos possibilitou a eleição de Tancredo no Colégio
governadores sobre as bancadas federais de seus Eleitoral em 1985 e a instauração do primeiro
estados, o que reforçou a tradicional articulação governo civil após 1964. Por sua vez, os dois
da política nacional via acordos regionais, em candidatos mais votados e que disputaram o
detrimento das relações interpartidárias e do segundo turno da eleição foram Fernando Collor
fortalecimento interno dos partidos políticos. de Mello (25% dos votos), do inexpressivo PRN,
Finalmente, a Constituinte congressual foi em parte que detinha apenas 21 cadeiras na Câmara em 1989,
responsável por cisões partidárias que deram e Luiz Inácio “Lula” da Silva, do PT. Ambos os
origem a novos partidos – como é o caso do PSDB, candidatos representavam a oposição e a rejeição
que surgiu a partir de uma dissidência do PMDB. da maioria da população aos políticos tradicionais
Em suma, reproduziu-se um traço característico e ao governo15. O processo de impeachment de
do sistema partidário brasileiro que sempre o Collor e a posse de Itamar Franco em dezembro
fragilizou, qual seja, a da que os partidos quase de 199216, que ocorreram rigorosamente dentro
sempre surgem de cisões intraelites nos períodos dos preceitos constitucionais, constituem indubi-
de mudanças de regimes (LIMA JR., 1993). tavelmente um signo de vitalidade do regime
democrático. Esses eventos não afastam, todavia,
A sobrecarga da agenda econômica e social
os indícios de uma ordem política ainda precária,
da Constituinte – em razão da ausência de pactos
na qual o sistema partidário apresenta-se como
substantivos entre os atores sociais no período
um dos elementos mais frágeis.
anterior de liberalização política – e as pressões
corporativas de quase todos os setores organi- A revalorização dos fatores institucionais na
zados do país produziram, por sua vez, a indefinição análise dos processos de transição e consolidação
de muitos dos princípios políticos e econômicos da democracia aponta, no caso brasileiro, para
contemplados pela nova Carta, que foram reme- duas características importantes da tradição
tidos para a regulamentação posterior através de política do país, que se revelaram centrais na
leis ordinárias. A ambigüidade do PMDB e de seu configuração do processo de transição e para os
Presidente Ulysses Guimarães – que era também, constrangimentos do atual regime democrático: a
simultaneamente, Presidente da Câmara de Depu- tutela dos militares sobre o sistema político, con-
tados e da Assembléia Constituinte –, dilacerados
entre assumir a condição de partido no poder e a
condição de herdeiro da oposição ao autoritarismo, 15 Leonel Brizola, que ficou em terceiro lugar no primeiro
constituiu um fator importante para o descrédito turno, com 13,6 % dos votos, também encarnava a oposição
das forças democráticas que lideraram o processo à Nova República e foi candidato por um partido
de transição. Nesse sentido, a eleição presidencial relativamente pequeno (PDT).
por sufrágio universal de 1989 possui múltiplas 16 Para uma análise mais detalhada das múltiplas implicações
significações. No que concerne ao tema deste políticas do impeachment, ver Monclaire (1994).

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O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

solidada após 1964, e a utilização da competição cular, dos líderes do PMDB, que não se conforma-
eleitoral, mesmo que limitada, para regrar os vam em submeter-se politicamente a um Presidente
conflitos entre as elites políticas. Com efeito, se- que há muito pouco tempo saíra do interior do re-
gundo Rouquié, os países que sofreram um longo gime autoritário. Além de seu passado como qua-
período de autoritarismo sob direção dos militares, dro importante do antigo regime, a fragilidade
como no caso do Brasil, devem satisfazer ainda política do Presidente era agravada pela frustração
duas condições políticas indispensáveis à conso- da população com o fracasso da campanha pelas
lidação da democracia: 1) o efetivo controle civil eleições diretas e pela morte inesperada de Tancredo
sobre os militares, e 2) a real possibilidade de alter- Neves; Sarney era assim considerado como um
nância das forças políticas no poder (ROUQUIÉ, “usurpador” pela maior parte da população. Se-
1986). Ora, no caso brasileiro, a primeira dessas gundo Eliézer de Oliveira, Sarney aproximou-se
pré-condições ainda não se verificou e a segunda do “aparelho militar que, ao apoiar o presidente,
ainda não foi verdadeiramente testada. Por um lado, indica-lhe também diversos limites para as po-
as atuais prerrogativas constitucionais e o poder líticas de governo” (OLIVEIRA, 1994, p. 111). O
informal dos militares brasileiros são extremamente aspecto mais visível da atuação política dos milita-
amplos, o que lhes acarreta um alto grau de auto- res foi a forte pressão que exerceram sobre a As-
nomia em relação ao aparelho de Estado (MO- sembléia Constituinte, no sentido de impor a forma
RAES, 1987; STEPAN, 1991; OLIVEIRA, 1994; de governo presidencialista, a duração de cinco
ZAVERUCHA, 1994; SOARES, D’ARAÚJO & anos para o mandato do Presidente Sarney, a
CASTRO, 1995). Essa situação configura-se co- limitação da anistia aos militares de esquerda
mo praticamente incompatível com um regime punidos ao longo do regime autoritário, e o veto a
democrático (ZAVERUCHA, 2000). Os acordos reformas sociais que poderiam provocar conflitos
da oposição com os militares, que permitiram a graves, em particular a reforma agrária. Há autores
passagem do poder sem maiores riscos, foram de que acreditam que os militares no Brasil perderam
fato centrados numa série de garantias quanto à muito do poder político que detinham no momento
não-punição dos crimes cometidos pelos órgãos da posse do Presidente Sarney em 1985. Wendy
de segurança do antigo regime e a manutenção de Hunter (1997), em um trabalho recente, sustenta
prerrogativas das Forças Armadas que lhes permi- que a razão dessa erosão do poder e das prerro-
tiram ampla autonomia em relação às instituições gativas políticas dos militares durante os governos
políticas e influência sobre o processo de constitui- Sarney, Collor e Itamar Franco foi o desenvol-
ção da nova ordem democrática. A tutela militar vimento de uma dinâmica política eleitoral típica
sobre o sistema político vigorou durante o governo dos regimes democráticos no período. Esse pro-
Sarney17, quando os ministros militares, sobretudo cesso, associado ao fim da Guerra Fria e à falência
o do Exército, pressionaram fortemente o Presi- da esquerda radical, teria provocado um esforço
dente e o Congresso constituinte no sentido de dos políticos para reduzir tanto o orçamento como
restringir as reformas sociais e políticas exigidas as esferas de influência dos militares, transferindo
por setores do PMDB, que detinha mais da metade recursos econômicos e de poder para a arena parti-
dos ministérios, e da oposição de esquerda. A gran- dário-eleitoral18. Essa pesquisa pode ser questio-
de influência das Forças Armadas nesse período nada, em primeiro lugar, pela evidência empírica
decorreu da baixa legitimidade do Presidente
Sarney aos olhos da opinião pública e, em parti-
18 Hunter defende a tese de que, no Brasil, “a dinâmica
competitiva da democratização produz irresistíveis incentivos
para os políticos civis contestarem a influência militar”, o
17 Zaverucha (1994) qualificou a ascendência militar sobre que seria responsável pela atenuação do poder e das
a presidência Sarney de tutela “amistosa”. Em sua obra mais prerrogativas políticas das Forças Armadas após a 1985
recente, Frágil democracia (2000), esse autor, ao analisar a (1997, p. 6). A autora contudo reconhece que os militares
atuação política dos militares nos governos democráticos de permanecem como fator de poder no cálculo dos atores,
Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique sobretudo em crises, e naquelas ocasiões em que falta apoio
Cardoso, reafirma que “há ainda um longo e tortuoso caminho popular ao Presidente da República. Cremos, assim, que
a percorrer rumo à democratização das relações civil-militares Hunter identificou excessivamente o afastamento das Forças
no Brasil. O ponto de não-retorno ao autoritarismo ainda Armadas do centro de decisões políticas como erosão
não foi atingido pela frágil democracia brasileira” (p. 313). significativa e duradoura da influência política militar (idem,
p. 144).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 11-31 NOV. 2001

relativa a “tutela” que os militares brasileiros efeti- instituições políticas democráticas, sobretudo do
vamente exerceram ao longo do governo Sarney. sistema partidário. Com efeito, Hagopian (1992)
Em segundo lugar, Zaverucha demonstra que o destaca a grande migração de lideranças políticas
controle civil democrático sobre os militares não do regime autoritário para a oposição durante seus
existe ainda no Brasil, onde as Forças Armadas dois últimos anos de existência (1983-1985).
continuam detendo largas prerrogativas e consi- Segundo a autora, esse “transformismo” foi
derável autonomia política até os dias de hoje, e induzido pelas lideranças oposicionistas e, efeti-
alerta que a dimensão militar na transição e na vamente, facilitou a transição ao propiciar o
consolidação democrática tem sido subestimada surgimento de uma dissidência organizada (Frente
pelos analistas políticos (ZAVERUCHA, 2000)19. Liberal) no seio do partido do governo na época
para formar com o maior partido da oposição
Ainda no que concerne às dúvidas quanto à
(PMDB) uma aliança política. A chamada Aliança
consolidação do regime democrático, a derrota do
Democrática apresentou as candidaturas de
candidato das forças de esquerda nas eleições
Tancredo Neves (PMDB) para Presidente da
presidenciais de 1989 impediu que a transição
República e de José Sarney (PFL) para vice junto
brasileira vivesse sua verdadeira prova de fogo,
ao Colégio Eleitoral encarregado de escolher a
isto é, a eventual transferência do poder das forças
nova presidência em janeiro de 1985. A morte de
que até então o detinham para aquelas que repre-
Tancredo Neves foi responsável pela maior
sentavam os seus adversários históricos. Essa
vicissitude que sofreu um processo de transição
condição é importante no caso brasileiro, assim
na América Latina: a ascensão à Presidência da
como no argentino, pois nesses dois países a pas-
República daquele que fôra Presidente do partido
sagem de poder sempre foi problemática. O retorno
do regime autoritário até poucos meses antes.
sistemático do tema de uma eventual adoção do
regime parlamentarista de governo no país, bem Assim, tanto os militares como as elites civis
como a tramitação sem percalços de um projeto conservadoras que haviam sofrido um forte
parlamentar nesse sentido, constitui um indício desgaste político e eleitoral, a partir de meados da
de que parte das elites políticas não admite, de década de 1970, mantiveram boa parte de suas
fato, a alternância no poder na presidência da posições no interior do Estado após o afastamento
República, salvo se este for diminuído. dos militares do poder em março de 1985. Como
a eleição de Tancredo Neves e José Sarney rea-
Quanto aos constrangimentos à consolidação
lizou-se num Colégio Eleitoral no qual a maioria
da democracia oriundos do processo de transição
de seus membros pertencia ao partido governista,
recente, destaca-se o alto grau de continuidade
a oposição e seus aliados “dissidentes” tiveram
entre as elites do regime autoritário e do novo
que negociar os votos, em boa parte através de
regime. Esses traços marcantes da democratização
arranjos clientelísticos que produziram um elevado
no Brasil devem-se aos acordos e coalizões entre
continuísmo político. Posteriormente, as forças
as lideranças moderadas da oposição e reformistas
conservadoras civis aumentaram mais ainda sua
do antigo regime, realizados basicamente no
presença no Congresso ao trocarem de etiqueta
interior do Congresso, através da divisão de cargos
partidária, favorecidas por uma grande liberalidade
e recursos políticos entre esses atores no novo
da legislação partidário-eleitoral no que concerne
governo civil iniciado em 1985. Essas condições
à formação de novos partidos e à livre troca de
foram responsáveis, ao lado de outros fatores que
legendas dos parlamentares. O alto grau de con-
examinaremos adiante, pela fragilidade das novas
tinuísmo das elites autoritárias na Nova República
pode ser ilustrado pelo fato de que, por ocasião
das eleições gerais de 1986, que formou a As-
19 Outros autores têm uma opinião mais nuançada que sembléia Constituinte, foram eleitos 217 deputados
Zaverucha a respeito do poder dos militares após a transição, que pertenciam ao antigo partido de apoio ao
pois, embora reconheçam que as Forças Armadas mantiveram regime autoritário (ARENA) e apenas 212 prove-
prerrogativas da época dos regime autoritário e muito poder nientes da antiga oposição democrática (MDB)
informal, destacam os avanços democratizantes que durante o período do bipartidarismo imposto
ocorreram nas relações civil-militares nos últimos anos, como (1966-1979). Esse resultado também deve-se ao
a criação do Ministério da Defesa, e também o despreparo e
o descaso das elites civis em relação aos assuntos militares e
prestígio e apoio significativos de que ainda des-
de defesa. Ver Oliveira (2000) e D’Araújo e Castro (2001). frutavam o regime autoritário e suas lideranças na

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O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

época, em virtude do desenvolvimento econômico autoritário reforçou, assim, um traço secular no


alcançado e das posições de poder que mantiveram sistema político brasileiro, caracterizado pela com-
após seu término. Aliás, a presença no poder da binação de uma “lógica liberal” com uma “práxis
elite política civil do regime autoritário após a ins- autoritária” (TRINDADE, 1985), e que é, em
tauração da democracia é maior atualmente do que parte, responsável por uma cultura política que
no governo Sarney. De fato, o PFL, a partir de resiste à democratização da esfera pública e à
1990, passou a ser o principal partido de sustenta- expansão da cidadania. O regime autoritário, ao
ção dos governos Collor e Itamar Franco e, em perseguir o controle do processo político, produziu
1994, formou com o PSDB (Partido da Social De- três sistemas partidários distintos em seus vinte e
mocracia Brasileira), a aliança que elegeu o atual um anos de existência. O grande intervencionismo
Presidente Fernando Henrique Cardoso e, como estatal e a fraca institucionalização do sistema
vice-Presidente, Marco Maciel (PFL), ex-Senador político provocaram a erradicação completa da
e ex-líder do governo Geisel na Câmara dos Depu- identificação partidária anterior ao golpe de 1964,
tados. Em suma, os reformistas do regime autoritá- caso único entre todos os processos de transição
rio foram os herdeiros políticos privilegiados do ocorridos na América Latina.
processo de transição.
Uma série de outros fatores problematizam
A institucionalização do sistema partidário é igualmente a atual ordem política e constituem
fundamental para a consolidação do regime demo- constrangimentos importantes à consolidação da
crático20. A incipiente institucionalização do siste- democracia. Em relação aos obstáculos provo-
ma partidário brasileiro contrasta com a grande cados por fatores econômicos e sociais, a enorme
importância que os partidos políticos e as eleições desigualdade de renda e a ausência de reformas
exerceram na democratização do regime auto- sociais prometidas pela antiga oposição ao auto-
ritário. O sistema partidário é a instituição que sofre ritarismo fazem que a maioria da população associe
maior influência dos pactos realizados entre as a ineficácia das sucessivas políticas governa-
elites políticas, como afirma Hagopian, pois se as mentais à vigência do regime democrático. Essas
pressões dos movimentos sociais e populares cons- variáveis macroestruturais incidem no processo
trangem o regime autoritário e podem ser decisivos político constrangendo a consolidação da demo-
na instauração da democracia, eles entretanto não cracia de diversas maneiras. A grande concentra-
elaboram o desenho institucional do novo regime. ção da renda no Brasil provoca indiretamente
Em relação aos fatores concernentes à fragilidade graves efeitos políticos, tais como o encolhimento
do sistema partidário que deitam suas raízes na da comunidade política, a dificuldade de manu-
história política do país, destacam-se a estreita tenção da ordem pública, a falta de confiança nos
dependência dos partidos em relação ao Estado e políticos – fatores que minam a legitimidade do
a centralidade da política regional na formação de regime democrático a longo prazo (REIS &
alianças partidárias e eleitorais, características que, CHEIBUB, 1993). Com efeito, o Estado não con-
segundo Campello de Souza (1988), possuem segue exercer o monopólio da violência e impor a
maior valor explicativo que o propalado “conti- ordem política no conjunto do território nacional,
nuísmo” conservador. Nessa perspectiva, um dos onde subsistem por exemplo trabalho escravo e
constrangimentos mais duráveis à democracia justiça privada, sobretudo nas áreas rurais. Por
oriundos do golpe de 1964 foi, justamente, a inter- sua vez, as agências estatais resistem em atender
rupção do sistema partidário do período 1945- com eqüidade e reconhecer os direitos da popula-
1966, que demonstrava uma tendência de forte ção mais pobre e das minorias sociais; especial-
identificação eleitoral. A influência do regime mente os órgãos de segurança pública, que persis-
tem no emprego de métodos arbitrários e violentos
sobre esses setores. No caso brasileiro, esse padrão
de atuação, desrespeitoso com os direitos huma-
20 “Um sistema partidário institucionalizado implica a nos fundamentais, tem sua origem no passado
estabilidade da competição entre os partidos, a existência de escravista do país, mas foi reforçado pelo longo
organizações fortemente enraizadas na sociedade, o período autoritário. O’Donnell utiliza-se do con-
reconhecimento dessas organizações partidárias e das eleições ceito de “cidadania de baixa intensidade” para
como instituições legítimas na escolha dos governantes e a
vigência de partidos que comportam regras e estruturas
descrever a curiosa situação na qual “se respeitam
estáveis” (MAINWARING & SCULLY, 1994, p. 44). os direitos participativos e democráticos da

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 11-31 NOV. 2001

poliarquia, mas se viola o componente liberal da 1997). Ora, a investigação empírica da liberalização
democracia. [...] Essa bifurcação constitui o do regime autoritário no Brasil permite qualificar
reverso da moeda da complexa mescla de melhor essa proposição, ao demonstrar que
componentes democráticos e autoritários nesses naqueles processos de transição que se realizam
estados” (O’DONNELL, 1993, p. 173). de maneira muito gradual e controlada, as mu-
danças de regime político podem ocorrer sem alte-
VI. CONCLUSÕES
rações importantes no padrão institucional e nas
A literatura especializada destacou a forte práticas políticas tradicionais. No caso em análise,
afinidade que existiria entre o tipo de regime a única possibilidade, em mais de uma década de
anterior, o modo de transição e os constran- liberalização política, que poderia ter resultado
gimentos à consolidação da democracia, como foi numa ruptura institucional com o antigo regime -
discutido na “Introdução” deste trabalho. As no início de 1984 quando se desenvolveu a grande
características do regime autoritário, a tradição campanha por eleições diretas para Presidente da
política e o padrão institucional adotado confi- República – foi abortada porque os principais
guram e delimitam o processo de transição. Por atores políticos já estavam satisfeitos com “legali-
sua vez, embora não sejam imutáveis, os com- dade autoritária”. Assim, a opção dos atores mais
portamentos políticos e o padrão institucional relevantes nesse período reforçou a tradição brasi-
estabelecidos ou reafirmados durante esses pro- leira de conciliação “pelo alto” das elites políticas,
cessos são responsáveis por uma herança durável a utilização da competição eleitoral para mensurar
que afeta o novo regime democrático e as chances o poder dos dirigentes face a seus opositores
de sua consolidação (MUNCK & LEFF, 1997). (contra-elites) e a presença dos militares como
Esses efeitos do modo de transição sobre o novo um dos atores centrais no sistema político.
regime incidem sobretudo sobre o padrão de
A aceitação e a incorporação nas estratégias
competição e interação entre as elites e sobre as
dos atores políticos, inclusive da maior parte das
regras institucionais e os limites que são postos à
forças da oposição, das regras impostas pelo
mudança política, isto é, afetam as condições
regime foi também facilitada porque a abertura
iniciais do novo regime democrático. No que
política posta em marcha pelos dirigentes auto-
concerne às fases do processo de transição, nos
ritários adquiriu gradualmente uma dinâmica
casos em que elas podem ser distinguidas, fe-
própria que gerou a autonomização desse processo
nômeno semelhante também ocorre. Nesse sen-
em relação a seus autores, já em meados da
tido, a fase de liberalização do regime autoritário
presidência Figueiredo. De fato, a extinção da
brasileiro desenvolvida gradualmente através de
legislação mais arbitrária (AI-5) em 1978, a anistia
eleições e acordos não-públicos entre os principais
e o retorno ao sistema multipartidário no ano
atores legou uma série de constrangimentos
seguinte, a neutralização da extrema-direita militar
políticos que dificultam a consolidação da demo-
em 1981 por ocasião do caso Riocentro, as elei-
cracia.
ções diretas para governadores de estado em 1982,
Este trabalho procurou demonstrar que a surtiram efeitos cada vez mais democráticos e
adoção de uma determinada via institucional para dificilmente reversíveis, sob pena de um recuo
conduzir a liberalização política – a competição definitivo do processo de transição. A oposição
eleitoral limitada pela legislação autoritária –, com moderada, sob a liderança de Tancredo Neves,
grande afinidade com a tradição política do país, construiu sua estratégia de alcançar a presidência
provocou gradativamente a autonomização do da República tendo em vista as regras autoritárias
processo e a “naturalização” de suas regras pelos em vigor, e aproveitou os efeitos perversos pro-
principais atores políticos. Nessa perspectiva, o duzidos pela estratégia de liberação imposta pelos
caso brasileiro confirma a hipótese da path detentores do poder. A tentativa de “democra-
dependency, isto é, uma vez adotado determinado tização outorgada” escapou ao controle destes últi-
padrão institucional, ele tende a estabilizar-se e a mos e o desenvolvimento do processo autono-
enquadrar a atividade política. A possibilidade de mizou-se (LESSA, 1989), estruturando o jogo
modificações significativas na tradição política e político, o qual nem os dirigentes do regime nem
no padrão institucional de um país dar-se-ia em a oposição poderiam unilateralmente alterar, a
certas “conjunturas críticas”, como é o caso dos menos que houvesse uma ruptura institucional,
processos de transição de regime (HUNTER, hipótese já altamente improvável. Assim, quando

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O DEBATE TEÓRICO SOBRE MUDANÇA DE REGIME POLÍTICO

surgiu a possibilidade de uma saída verdadei- tradicional do país, reforçando suas características
ramente democrática, que significaria uma verda- que tornam o sistema político brasileiro resistente
deira ruptura com o regime autoritário (a campanha tanto à ditaduras clássicas quanto à sua demo-
“Diretas-Já”), os líderes moderados da oposição cratização estável (LAMOUNIER, 1989). Aos
não a julgaram conveniente, pelos riscos que im- dilemas políticos para a consolidação da demo-
plicava de um veto militar, mas também porque cracia que se originaram do processo de transição,
contrariava seus objetivos estratégicos, que era devem ser acrescentados aqueles concernentes à
obter a Presidência da República no Colégio crise econômica e à desigualdade social, bem
Eleitoral segundo a legislação em vigor. como os decorrentes da profunda mudança no
papel do Estado, pela qual passa atualmente a
Concluindo, cremos que ficou comprovado que
sociedade brasileira21. Em suma, a consolidação
o modo de transição exerce grande influência no
da democracia no país ainda é apenas uma
resultado dos processos de transição e na confi-
possibilidade alvissareira.
guração dos constrangimentos para a consolidação
do novo regime democrático. No caso estudado, Recebido para publicação em 8 de outubro de 2001.
a perda de controle dos dirigentes autoritários Artigo aprovado em 23 de novembro de 2001.
sobre sua tentativa voluntarista de democratização
outorgada não provocou um resultado muito
diferente daquele que almejaram. De fato, a 21 Ver Sallum Jr. (1996). Para uma análise da transição
autonomização da transição, ao invés de provocar brasileira de uma perspectiva temporal mais dilatada,
uma ruptura institucional com o antigo regime, envolvendo ciclos de mobilização política e reformas
enquadrou esse processo no padrão institucional institucionais, ver Rodrigues (2001).

Carlos S. Arturi (arturi@zaz.com.br) é Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Políticos de
Paris e Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).

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