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EM LÉSBICAS E BISSEXUAIS.
RESUMO
INTRODUÇÃO
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Dra Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo/Universidade Federal da Bahia.
Universidade Federal da Bahia. Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana da
Paraíba. gilbertass@gmail.com
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Pós doutorado como Visiting Fellow no Institute of Development Studies (IDS), University of Sussex,
Inglaterra. cecisard@ufba.br
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Muitas trajavam roupas identificadas como masculinas: bermudas largas na
altura do joelho, com camisas largas ou camisetas estilo regata, calçavam tênis,
chinelas vendidas em prateleiras de sapatos para homens ou sandálias havaianas.
Usavam bonés, tinham cabelos bem curtos e, quando longos, presos em forma de
rabo de cavalo. No figurino, adereços masculinos, como relógios, anéis e trancelim
no pescoço. Algumas vestiam calções ou camisas de uniformes de seus times de
futebol. Outras mulheres adotavam performances femininas, usando shorts
apertados e curtos, saias curtas, calças jeans; blusas decotadas e coladas no corpo;
calçavam sandálias baixas; algumas usavam salto alto. Usavam maquiagem; os
cabelos longos e curtos, muitos pintados, usavam brincos longos, colares e outros
enfeites, unhas pintadas. O primeiro grupo era visivelmente mais numeroso que
estas últimas. Todas vestiam roupas de baixo custo, compradas no comércio
popular ou lojas de departamentos.
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O estudo3 buscou entender como se dá a produção das expressões de
masculinidade em pessoas auto identificadas como mulheres, motivado pela
presença majoritária de mulheres com diferentes performances masculinas na
pesquisa, compreendendo-a como uma expressão de gênero entre lésbicas.
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Este artigo resulta da tese “Sapatos tem sexo? Metáforas de gênero em lésbicas, de baixa renda,
negras, no nordeste do Brasil”, defendida por Gilberta Soares junto ao Programa de Pós
Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos do Núcleo
de Estudos da Mulher da Universidade Federal da Bahia.
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Gayle Rubin (1992) foi pioneira no estudo das diferentes configurações em
comunidades lésbicas norte-americanas, demonstrando a presença de pares
butch/femme4. Essa denominação é comumente utilizada em grupos de lésbicas em
reconhecimento a expressão de gênero masculina (butch) e feminina (femme).
Gayle Rubin (1992, p. 467) define: “butch és el término vernaculo para las
mujeres que se sienten más cómodas com los códigos, estilos o identidades de
gênero masculinos que com los femininos”. A autora (1993) identificou diferentes
formas como as butches produzem e significam a masculinidade, podendo utilizar
acessórios (roupas, cabelos), se verem como homens, passarem por homens,
sentirem-se travestis ou ter disforia de gênero.
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Femme é palavra francesa para mulher. Butch é a forma reduzida de butcher, (açougueiro) em
inglês, utilizada inicialmente para se referir à criança briguenta (tough kid). Butch ganhou o significado
de lésbica com jeito masculino nos anos de 1940; é correlata de bicha (gay afeminado) no universo
de lésbicas, gays, travestis e transexuais. Tomboy se refere a uma menina com perfomance de
menino.
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Manteremos os artigos e pronomes femininos como designação gramatical com o uso do sujeito
(nome próprio) masculino para corresponder à forma como elas se autopercebem: mulheres com jeito
masculino, mulheres masculinas que gostam de mulheres, lésbicas masculinas. Poderemos usar o
masculino como designação gramatical já que elas assim o fazem, em momentos de brincadeira ou
quando estão em turma. A ideia é causar estranhamento no texto em analogia aos efeitos da
performance delas frente às normas de gênero.
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convivia. Para ela, a expressão da masculinidade e a atração por mulheres era algo
tão imbricado que não era possível separar uma da outra. Coral6 disse: “tenho tanta
coisa de masculino e não me sinto homem [...]”. Olhando para Coral é inevitável
associá-la ao masculino, pois apresenta-se com signos instituintes da masculinidade
na vestimenta, no cabelo, no jeito do corpo. As mulheres que protagonizaram o
estudo, na sua grande maioria, têm semelhanças com Coral. Elas se nomearam
como lésbicas, entendidas, do sindicato, do sistema, sapatão, bofe, o cara etc.
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As interlocutoras foram identificadas por nomes de cores para preservar o anonimato das mesmas.
A escolha deu-se em alusão a diferença entre elas e a simbologia do arco Iris.
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relações afetivas sexuais com mulheres7 de camadas urbanas de baixa renda,
encontradas em algum espaço de sociabilidade, a exemplo do percurso realizado
por outros estudos (LACOMBE, 2010) com mulheres lésbicas e bissexuais.
É digno de nota que estudos (MEINERZ, 2008; SOUZA, 2005) sobre
lesbianidades façam extensa discussão sobre as estratégias de configuração do
campo de pesquisa e as dificuldades de abordagem com mulheres lésbicas, sendo
por isto a busca de espaços de sociabilidade, como bares e boates, socialmente
reconhecidos ao público de lésbicas ou homossexual.
Segundo Nádia Meinerz (2007), as pesquisas com mulheres homossexuais
não se dissociam do fato de ser este um grupo marcado como desviante em relação
à sexualidade e sofrer os efeitos constitutivos do estigma, o que não é
necessariamente visível. É difícil encontrar lésbicas em um só canto, pois estão em
lugares variados, se movimentam, e muitas não revelam que são lésbicas. Como diz
Sedwick (2007), na sua admirável descrição sobre o armário, o jogo de mostrar e
esconder, de modo que sempre haja a dúvida, o silêncio, o controle.
A opção metodológica de entrar em uma rede de relação de mulheres
lésbicas e bissexuais de camadas de baixa renda através de espaços de lazer e
sociabilidade não foi eficaz pelo perfil dos espaços encontrados, pelo fato da
pesquisadora ser conhecida das frequentadoras e de ter outras inserções sociais,
como gestora pública e ativista feminista8.
Dessa forma, o campo de pesquisa foi definido através de um grupo ativista,
pelo fato de ter um trabalho com mulheres lésbicas de camadas urbanas de baixa
renda, na Zona Norte da cidade de Natal, de forma sistemática, com variadas
estratégias, ações e atividades. Este levou ao contato com mulheres lésbicas e a
diversos aspectos da experiência da lesbianidade. A inserção como pesquisadora no
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Utilizo as duas terminologias lésbicas e mulheres com relações afetivas sexuais com mulheres por
compreender que existem mulheres que não se identificam com a categoria identitária lésbicas
mesmo que tenham a vivência homoafetiva ou que façam sexo com mulheres. Porém, as
interlocutoras com que tive contato na pesquisa se autoreferiram como lésbicas ou entendidas, ou
seja, com categorias identitárias.
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Foram tentativas feitas na cidade de João Pessoa, onde a pesquisadora residia. O grupo de
mulheres lésbicas de João Pessoa, a época, não desenvolvia ações e atividades sistemáticas.
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campo de pesquisa se deu de forma suave, com encontros baseados na
confidencialidade e na cumplicidade, mediada pelo Grupo Afirmativo de Mulheres
Independentes (GAMI), que se define como entidade de expressão política feminista
de lésbicas e bissexuais do Rio Grande do Norte, no Nordeste do Brasil.
A metodologia do estudo foi qualitativa, de cunho etnográfico, através de
observação participante e entrevistas em profundidade, desenvolvida no período de
15 meses, de novembro de 2011 a janeiro de 2013, com lésbicas e bissexuais de
camadas urbanas de baixa renda, contatadas através do GAMI9.
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As interlocutoras foram identificadas por nomes de cores para preservar o anonimato das mesmas.
A escolha deu-se em alusão a diferença entre elas e a simbologia do arco Iris.
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conflitos e também a perceber que, algumas vezes, a vida real estava um pouco
diferente do que fora dito na entrevista.
A observação tornou-se pertinente por possibilitar o entrosamento com os
códigos e as práticas sociais de forma mais suave, captando aquilo que se expressa
de forma espontânea (GEERTZ, 1997). A observação participante permitiu captar a
lógica de sociabilidade das mulheres lésbicas, inscrita nos códigos e
comportamentos das participantes das festas, naquele contexto interseccionado com
a dimensão de classe social, racial e geracional.
A entrevista em profundidade permite apreender os significados que as
mulheres fornecem às suas experiências. Desta forma, é uma ferramenta
privilegiada para conhecer, de dentro, práticas, relacionamentos, preconceitos,
abjeções e resistências vivenciadas por grupos “[...] o recurso à entrevista em
profundidade comportaria, contudo, a vantagem de permitir não apenas evidenciar o
que as pessoas vivenciam no cotidiano, mas igualmente dar-lhes a palavra [...]”
(POUPART, 2008, p.216).
Muitas vezes, entrevistava as mulheres e seguia acompanhando-as no jogo
de futebol, na sede do GAMI, em bares, festas, nas suas casas, e, desta forma,
continuava a captação de informação, possibilitando o diálogo constante e dinâmico
entre os relatos das entrevistas, a observação e as notas de campo.
A presença majoritária de mulheres com performances masculinas no grupo
estudado aponta para fissuras nas expressões identitárias de gênero vivenciadas
por estas mulheres, agregando uma condição producente de significados. O que
despertou o interesse de entender como a masculinidade se expressa na articulação
da identidade de gênero, das práticas sexuais e do desejo dessas mulheres.
Para as entrevistas aprofundadas, foram consideradas as diferenças etárias,
a ocupação (desempregadas, assalariadas e microempresárias) e a performance de
gênero, com ênfase nas performances masculinizadas. Foram entrevistadas 20
mulheres de faixas etárias entre 16 a 67 anos.
A questão geracional foi transversal ao estudo, revelando diferenças
relacionadas à época em que identificaram que os desejos e práticas sexuais
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estavam dirigidos a mulheres. Desta forma, o foco nas performances masculinas
levou a analisar mais profundamente 15 entrevistas, buscando identificar os
significados e as práticas de resistência e reificação exercidas pelas lésbicas
masculinas em relação à abjeção, provocada pela quebra de padrões hegemônicos
delineados pela heteronormatividade.
[...] eu acho que, quando a gente nasce pra aquilo [...] porque meu
pai comprava saia, meu pai comprava essas roupas mais íntima, a
gente tentava botar e eu não queria. Eu pegava a roupa do meu
irmão, vestia as cuecas dele e tal [...] (CASTANHO).
De acordo com Judith Butler (2008), o gênero prevê a estilização dos corpos
através da repetição de atos, de acordo com o quadro regulatório vigente, com o
intuito de conferir a aparência de substância e de naturalidade. Esta aparência de
substância aparece nos discursos como algo intrínseco à existência, ou que “já se
nasceu daquele jeito”, remetendo às lembranças mais remotas da infância. A
despeito de que tenham quebrado com a circularidade esperada entre sexo, gênero
e práticas sexuais, o processo de construção da (nova) identidade dar-se-á da
mesma forma por repetições, sendo constantemente testada pelas tentativas de
normalização e reiterada nas atitudes de resistência.
[..] quando eu fui pra sapataria, eu fui comprar uma sandália, fui pra
masculina, gostei dessa sandália. Aí o rapaz veio, por favor..., eu
disse: ‘essa sandália, aqui essa, tem número 37?’ Ele disse: ‘é pra
senhora?’ Eu disse: ‘é’. Ele disse: ‘mas é que este é estilo
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masculino’. Eu disse: ‘não, mas eu gostei dela. Sandália tem sexo?
Sapatos, calçados têm sexo?’. Ele riu e disse: ‘não’. ‘Então, eu gostei
dessa, eu gostei’.”
Para Judith Butler (2008), o gênero é performativo o que significa que ações,
gestos comportamentos e vestimentas fazem acontecer o gênero e o sexo, mas não
de uma única e categórica vez. Judith Butler (2008) apoia-se nos conceitos
utilizados por Derrida para dialogar com a ideia do ato performativo, como um
processo contínuo ao longo da vida, que precisa ser reiterado através de atos
repetidos que interpretam as normas de gênero. É na possibilidade do fracasso que
surge o espaço para a subversão dos gêneros e da sexualidade.
Assim, rompe-se com a norma e explica-se como algo que vem do corpo para
justificar as vestimentas e a estilística corporal. Desse modo, é possível identificar a
coexistência da performatização de atos que questionam o dualismo sexo-gênero e
de atos que reiteram a essencialização da identidade e do desejo para torná-los
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legítimos nesse discurso. Estratégias de resistência às tentativas de adequá-las à
performance feminina foram acionadas e a independência financeira foi almejada
para garantir a possibilidade de construir novos significados de gênero e vivenciar a
lesbianidade, como disse Castanho:
Essa forma de homem, não tem como... Não adianta botar uma saia,
eu sou mulher de nascença, mas eu sou... querendo ou não, tenho
os traços de homem. Se você olhar minhas costas é toda dividida,
questão do interior, de pegar peso... (VERMELHO).
Já havia ouvido que a roupa masculina era uma roupa cômoda entre as
interlocutoras, assim como na literatura sobre o tema (PASCOE, 2006; MEINERZ,
2008). A vestimenta masculina é descrita como uma roupa que facilita a locomoção -
subir em árvores, jogar futebol; apontando o desejo de liberdade de movimento:
“para ficar mais à vontade”, “se sentir livre” - e adequada a certos tipos de trabalho.
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Trabalhos realizados pelas interlocutoras, relacionados à condição
socioeconômica e ao baixo nível de escolaridade, promovem o uso de roupa
masculina. Ocupações como: segurança de festas, cobradora em transporte
alternativo, pedreira, em bares, operária, agente de limpeza em firmas terceirizadas,
vendedora ambulante e office boy. As trabalhadoras de classes populares têm o
corpo modelado pelo trabalho manual, que, muitas vezes exige a força e/ou
mobilidade. A influência da classe social na vestimenta pode ser percebida também
pelo tipo de roupa utilizado, o que inclui o baixo valor investido na aquisição.
Para Amarelo Ouro, a roupa social - uma calça e camisa de tecido fino -
suaviza a masculinidade, torna a mulher masculina menos masculina. Também
encontramos mulheres, em menor número, que gostam da roupa cômoda, mais
associada ao masculino, e não se sentem bofe. Para estas, não há uma restrição
absoluta ao uso da roupa feminina, que também pode ser usada. Caramelo, que se
define com fitinha, disse: “Saia, vestido, eu não gosto [...] Mais calça, short, mas
usava quando era pra festa. Salto não combina comigo [...]”. Para as jovens, o gosto
pela roupa masculina associa-se à prática de esportes, especialmente o futebol.
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O uso da roupa masculina associada à liberdade de locomoção apareceu
como uma proteção para lésbicas em relação à violência sexual, Roxo desabafou:
[...] eu lembro de várias coisas que aconteceu que eu... nunca falei
pra ninguém, eu procurei esquecer um pouco, do que acontecia. [...]
Ele batia muito na minha mãe... batia em mim como se batesse num
homem, eu apanhava muito quando eu ia contra ele. [...] Então, foi
muito difícil, ele não aceitava isso (que gostava de meninas)... ele
dizia que queria ficar comigo... ai começou a perseguição. Foi
quando ele me estuprou... eu pedia para ele sair, eu não tinha força
pra um homem, porque era uma menina, eu tinha 13 anos... eu tinha
menstruado há pouco tempo. Aí, eu me desiludi totalmente (ROXO).
Conclusão
REFERÊNCIAS
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HAGUETE, Teresa M. Frota. Metodologias qualitativas em sociologia. Petrópolis:
Vozes,1987.
RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In:
ABELOVE, Henry; BARALE, Michèle; HALPERIN, David (Eds.). The lesbian and
gay studies reader. Nova York: Routledge, 1993.
______. Of catamites and kings: reflections on butch, gender, and boundaries. In:
NESTLE, Joan (Org.). The persistent desire: a femme-butch reader. Boston, EUA:
Alyson Publications, 1992. p. 466–482.
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SEDGWICK, E. K. A epistemologia do Armário. Cadernos Pagú, Florianopólis, v.13,
n.1. já./abr. 2005.
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