Você está na página 1de 31

EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) DOUTOR (A) JUIZ (A) DE DIREITO DA ___ª VARA DA

FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE SÃO PAULO (CAPITAL), ESTADO DE SÃO PAULO

XXXX, brasileira, casada, desempregada, portadora da cédula de


identidade RG nº XXX, inscrito no CPF/MF nº XXXX (doc. 01), residente e domiciliada à XXX, n.XX,
XX, XX, São Paulo/SP, CEP: XX e XXXXX, brasileiro, casado, comerciante, portador da cédula de
identidade RG nº XXXX, inscrita no CPF/MF nº XXX (doc. 02), residente e domiciliado à XXX, n.XX,
XX, XXX, São Paulo/SP, CEP: XXX vêm, respeitosamente, perante Vossa Excelência, por
intermédio dos(das) Defensores(as) Públicos(as) que esta subscrevem, dispensados da
apresentação de procuração, nos termos dos(as) disposto no artigo 128, da LC 80/94, propor a
presente

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS

em face do ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público


interno, com sede na capital do Estado, a ser intimado, nos termos do art. 75, inciso II do Código
de Processo Civil, na pessoa do Procurador Geral do Estado, cujo domicílio fica em São Paulo/SP,
na Rua Pamplona, 227, 7º andar, pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
DOS FATOS: A MORTE DE XXXX E A VIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS TRANSGÊNERO E
TRAVESTIS NO BRASIL

XXXX, civilmente registrada como XXXX, é filha dos autores e veio a


óbito no dia 20 de junho de 2015, tendo como causa da morte “insuficiência respiratória/
hemorragia congestão e edema cerebral/ trauma crânio encefálico agudo contundente” conforme
certidão de óbito em anexo (doc. 3). XXX tinha apenas 18 anos de idade quando teve a sua vida
ceifada após uma sequência de fatos desecadeados pela transfobia, violência e despreparo da
polícia.

A jovem transsexual faleceu inadvertidamente quando tinha apenas 18


anos de idade e sua morte deixou profundas marcas na família, que sofre todos os dias com os
efeitos da sua ausência e morte traumática. Pouco antes de sua morte, seus pais haviam montado
um salão de beleza para que a filha pudesse trabalhar. A família sempre esteve muito presente
na vida de XXX, respeitando a identidade de gênero autopercebida e fornecendo todo o apoio
necessário para que ela pudesse crescer e se desenvolver feliz e com saúde, de acordo com a sua
expressão de gênero. Naturalmente, os familiares sempre temeram pelo futuro da filha, não
ignorando o fato de que a prevalência de uma cultura misógina e transfóbica é responsável por
situar o Brasil no topo do ranking de homicídios da população LGBTQI+.

Conforme matéria publicada pela ONG Ponte Jornalismo1, que


entrevistou a família de XXX, “XXX foi a primeira a saber que a irmã era uma mulher trans. Em
seguida, foi a vez de XXX. ‘As minhas roupas sumiam, as minhas bolsas sumiam. Aí quando ela me
contou, eu fui a primeira a sair com ela pra comprar roupa. Saímos, fomos em uma loja e
compramos algumas roupas. Aí ela me perguntou ‘mãe, e o pai?’. Quando chegamos em casa, ela
chamou o pai e disse ‘vou te mostrar a roupa que eu comprei, posso?’. O pai disse que podia, ela foi
no quarto, se trocou e perguntou pro pai o que ele achava”, detalha XXX. Ele perguntou se ela tava
se sentindo bem. E ela disse que se sentia bem com aquela roupa. O pai então disse: ‘Eu só tenho
medo de você do portão pra fora’. A preocupação dele sempre foi essa. O maior medo da
gente era isso. O pai só ficava sossegado quando ela chegava em casa”, recorda a mãe de
XXXX”.

1https://ponte.org/viverei-pela-minha-filha-diz-mae-de-laura-vermont-mulher-trans-assassinada-ha-4-
anos/
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
De acordo com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e
Transsexuais), no primeiro semestre de 2020 foram registrados 89 homicídios de pessoas
transsexuais e travestis no país, o que representa um assustador aumento de 39% com relação
ao mesmo período do ano anterior. Na prática, é sabido que os números são maiores, diante da
subnotificação, já que os dados oficiais a respeito são extremamente frágeis. O Brasil é o país em
que mais morrem travestis e transsexuais no mundo, conforme dados internacionais da ONG
Transgender Europe (TGEU)2.

XXXX faz parte desta triste estatística.

Segundo o Boletim de Ocorrência nº XXX (doc. 4), da XXX, registrado em


20 de junho de 2015, foi relatado pelos policiais militares XXX e XXXX que estes estavam em
patrulhamento quando foram acionados pelo Copom para atendimento de uma ocorrência de
“desinteligência generalizada”.

Ao chegarem no local, desembarcaram da viatura e XXX se aproximou,


ensaguentada. Alegam que ela teria subitamente tomado a direção do veículo e dirigido poucos
metros até colidir com um muro; saiu do carro e correu, até bater a cabeça na lateral de um
ônibus em movimento; levantou, continuou a correr, até que se chocou com um poste, caindo ao
chão. XXX teria sido então encaminhada ao hospital municipal Waldomiro de Paula, onde veio a
óbito. Por fim, informaram que no hospital apuraram que XXX apresentava lesão corto-contusa
no couro cabeludo, hematomas nos membros inferiores e perfurações no membro superior
esquerdo.

No entanto, a morte de XXX não aconteceu exatamente desta forma e os


policiais militares deliberadamente ocultaram a verdade dos fatos, conforme foi apurado nos
autos do IP n. XXXX . Conforme o Boletim de Ocorrência nº XXX (doc. 5), da Vila Jacuí, registrado
em 20 de junho de 2015, após a elaboração do BO XXXX, supra mencionado, os policiais XXX e
XXX retornaram ao distrito policial apresentando uma suposta testemunha presencial dos fatos,
o Sr. XXXX.

2 https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-segue-no-primeiro-lugar-do-ranking-de-assassinatos-de-
transexuais-23234780
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
Tal testemunha relatou que viu XXX em um posto de gasolina às 4:00,
suja de sangue, e teria tentado fugir dos policiais, que foram prestar socorro. Afirma que
presenciou quando XXX tomou a viatura e colidiu com um muro. Ocorre que a delegada de
plantão e o investigador de polícia desconfiaram – por óbvio - da versão apresentada pelo Sr.
XXX pela riqueza de detalhes, pela aparência de encenação e também por tê-lo visto
conversando com os policias XXXX por aproximadamente 30 minutos, antes de ter sido
formalmente apresentado como testemunha dos fatos pelos milicianos.

Suspeitando desta versão, os agentes resolveram ir a campo investigar


melhor a dinâmica dos eventos e não demorou muito para notarem que os policiais militares e a
falsa testemunha mentiram.

Foi possível visualizar manchas de sangue na via pública - em locais não


informados por policiais - e imagens obtidas pela câmera de um edifício mostraram que XXX saiu
da viatura, após colidir no muro, e houve um entrevero com os policiais, que a agrediram com
um chute e, mesmo diante de uma pessoa ferida e desarmada, um dos oficiais atirou em
seu braço esquerdo. Mesmo assim, XXXX conseguiu sair do local, tendo sido encontrado sangue
no asfalto por onde passou. O uso da força e o disparo não foram narrados pelos policiais no
Boletim de Ocorrência nº XXXXX.

Na sequência, os investigadores foram ao IML, onde foi dito que, em


verdade, Laura não apresentava lesões perfurantes, mas contundentes na face, no tronco, nas
pernas e uma lesão pérfuro-contudente provocada por disparo de arma de fogo no braço direito.

Após a realização destas diligências externas, que fizeram cair por terra
as alegações dos milicianos, o policial XXX retornou à delegacia e confessou que havia
mentido perante a autoridade policial, assumindo que XXX fora baleada, ao argumento de que
ela havia apresentado resistência à abordagem e de que, segundo sua avaliação, meios menos
letais não teriam sido suficientes para contê-la. Justificou a mentira alegando medo de sofrer
sanções e de se prejudicar. Também afirmou, quanto à indicação do local onde havia sangue, que
não sabia ao certo qual lugar deveria preservar.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
Já o outro policial, XXX afirmou que foi instruído por XX a não relatar os
fatos e a concordar com seu depoimento. A falsa testemunha XXX também confessou que mentiu
em seu depoimento ao ser pressionada pelo PM Ailton, que inclusive lhe deu um papel no qual
estava escrito o teor do depoimento que deveria prestar. Diante disto, foi dada voz de prisão
aos policiais militares por crime de falso testemunho e fraude processual !!!

Informação recente, prestada pela Corregedoria da Polícia Militar do


Estado de São Paulo, dá conta de que, no âmbito do procedimento administrativo disciplinar,
instaurado para apurar a conduta dos policiais, decidiu-se pela imposição da demissão dos
policiais militares envolvidos na ocorrência (doc.6 ).

Apurou-se, ainda, que, antes de encontrar os policiais, XXXX foi


covardemente agredida por um grupo de cinco homens, motivados por transfobia.
Imagens de câmeras revelam que Laura foi primeiramente agredida por três homens, XXXXX.
Infelizmente, o calvário de Laura não teve fim ali. A perseguição continuou e XXX foi alcançada
pelos algozes e novamente atacada, desta vez por um grupo de 5 pessoas, que incluía, além dos
três agressores acima citados, XXXX. Os acsuados aguardam, em liberdade, até hoje, julgamento
perante o Tribunal do Júri - autos nº XXXXX - (doc. 6).

As cenas de ódio e violência foram presenciadas por populares, que


tentaram ajudar XXX, porém não conseguiram impedir o novo espancamento. Após golpear XXX
brutalmente, os agressores deixaram o local, sob os olhares das pessoas que testemunhavam o
horror. Momentos depois, a vítima é filmada por um pedestre, o Sr. XXXX, e as imagens a
retratam caminhando, sangrando e aflita3.

A polícia foi acionada para intervir, contudo conseguiu piorar a situação.


Ao chegar ao local, encontraram XXX muito ferida e desnorteada, após sofrer tantas agressões.
Laura entra no veículo, dirige poucos metros e colide com um muro. Após sair da viatura, XXXX
foi primeiro chutada e depois vítima de um disparo de arma de fogo, que a atinge no
braço direito e que é provocado pelo policial XXX. Assim, os atos reiterados de violência
brutal a que foi submetida se completam por meio da ação dos agentes públicos, que a

3 Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CxVqQIf5x2s&feature=emb_title


ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
agridem de maneira desproporcional e imotivada. Importante frisar que XXX estava
bastante machucada – lesões que posteriomente causaram sua morte 4- e não estava armada, de
forma que não representava nenhuma ameaça concreta aos policiais. Não há qualquer situação
fática que permita sequer cogitar a configuração de legítima defesa.

Os autores foram alertados pelo Sr. XXX, o mesmo que antes havia
filmado XXX andando ferida, que a filha estava em perigo e imediatamente se dirigiram ao local
do crime, encontrando a filha já desacordada, com a face contra o chão e ensanguentada.

Os policiais os orientaram a não remover XXX e a aguardar o resgate,


contudo a família optou por levá-la imediatamente ao hospital, tendo solicitado ajuda aos
policias para a levarem até o carro. Foram totalmente ignorados neste pleito. Os policiais então
ordenaram que a família seguisse a viatura até o hospital municipal Valdomiro de Paula.
Contudo, existiam outros dois hospitais mais próximos, motivo pelo qual a decisão dos agentes
públicos neste tocante caracteriza omissão de socorro.

Não há dúvida que os policiais agiram com violência arbitrária e


desproporcional contra XXX – pessoa indefesa e desnorteada - , se omitiram do dever
legal de prestar socorro e ainda atuaram para impedir e prejudicar as investigações
policiais, condutas que denotam, não apenas despreparo para o cumprimento do mister
que lhes compete, mas absoluto desprezo pela vida humana. Tamanha ojeriza à Laura,
demonstrada na conduta comissiva e omissiva dos agentes públicos, só pode ser
compreendida à luz dos insidiosos preconceitos e estigmas que recaem sobre pessoas
transgênero e são capazes de mobilizar as atitudes mais desumanas e atrozes.

Não bastasse, no Hospital para o qual XXXX foi conduzida, os autores


foram atendidos por um médico que foi extremamente mal educado (doc. 7 – solicitação de
prontuário). Ele não autorizou que os genitores vissem o corpo da filha após anunciar o óbito,
limitando-se a informar que o corpo de XXX já estava no necrotério. A família teve que procurar
o local, pois não recebeu do médico nenhuma informação sobre o necrotério. Além disso, todos

4 De acordo com o laudo do IML “com base nos achados de exame necroscópico, concluíamos que a morte
foi em consequência de traumatismo craniencefálico e insuficiência respiratória decorrente à ação de
agente contundente”.
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
os agentes públicos com os quais tiveram contato, desde os policiais até os funcionários do
hospital se referiram a XXXX usando pronomes masculinos, em claro desrespeito à identidade de
gênero com a qual se identificava e era reconhecida pela família e pela comunidade.

À época dos fatos, o crime gerou intensa comoção e foi bastante


noticiado (doc. 8). Em homenagem a XXX, foi inaugurado o Centro de Cidadania LBGT XXXX,
localizado na avenida em que sua vida foi brutalmente ceifada.

Ante o exposto, em razão (i) da morte de XXXX sem que fosse prestado o
devido socorro; (ii) das falhas na abordagem policial e pelas injustas agressões perpetradas
pelos policias contra uma pessoa já muito machucada, com chutes e disparo de arma de fogo;
(iii) da negligência em proteger a vítima de violência transfóbica; e, por fim, (iv) da conduta dos
policias que mentiram ao prestar depoimentos, com o intuito de prejudicar a investigação, os
autores fazem jus à indenização pelos danos sofridos, conforme adiante se especificará.

DO DIREITO

I. DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO

A orientação sexual e a identidade de gênero do indivíduo devem


sempre ser protegidas contra qualquer forma de ameaça, opressão e discriminação, pois estão
profundamente ligados à dignidade da pessoa humana. Há, portanto, um dever do Estado de
respeitar, proteger e garantir que toda pessoa possa livremente escolher sua forma de ser e
amar. Inclusive, dentre os deveres, compete ao Estado capacitar seus profissionais para
proteger as minorias sexuais.

Assim, a proteção às minorias sexuais é um tema sensível aos direitos


humanos. Em 2006, na Universidade Gadjah Mada, em Yogyakarta, Indonésia, foi realizada uma
conferência para elaborar um documento que servisse de norte para os Estados em relação à
aplicação de legislação internacional no que toca à orientação sexual e diversidade de gênero - já
que a proteção à vida, segurança pessoal, saúde, vida privada, dentre tantos outros direitos
assegurados por diversos tratados internacionais, também protegem esse grupo vulnerável.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
Conforme consta na introdução do referido documento: “Muitos avanços
já foram conseguidos no sentido de assegurar que as pessoas de todas as orientações sexuais e
identidades de gênero possam viver com a mesma dignidade e respeito a que todas as pessoas têm
direito. Atualmente, muitos Estados possuem leis e constituições que garantem os direitos de
igualdade e não-discriminação, sem distinção por motivo de sexo, orientação sexual ou identidade
de gênero. Entretanto, violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua
orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e
consolidado, que causa sérias preocupações. O rol dessas violações inclui execuções extra-judiciais,
tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, detenção arbitrária,
negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de
outros direitos humanos. Estas violações são com freqüência agravadas por outras formas de
violência, ódio, discriminação e exclusão, como aquelas baseadas na raça, idade, religião,
deficiência ou status econômico, social ou de outro tipo”.

Conforme o princípio 4 dos Princípios de Yogyakarta, é garantido o


direito à vida: “Toda pessoa tem o direito à vida. Ninguém deve ser arbitrariamente privado da
vida, inclusive nas circunstâncias referidas à orientação sexual ou identidade de gênero. A pena
de morte não deve ser imposta a ninguém por atividade sexual consensual entre pessoas que
atingiram a idade do consentimento ou por motivo de orientação sexual ou identidade de
gênero”. Já o princípio 5 assegura o direito à segurança pessoal: “Toda pessoa, independente
de sua orientação sexual ou identidade de gênero, tem o direito à segurança pessoal e proteção
do Estado contra a violência ou dano corporal, infligido por funcionários governamentais ou
qualquer indivíduo ou grupo”. Por sua vez, o princípio 10 retrata o direito de não sofrer
tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante: “Toda pessoa tem o direito
de não sofrer tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante, inclusive por
razões relacionadas à sua orientação sexual ou identidade de gênero’.

No caso em apreço, o Estado falhou em assegurar à Laura tais direitos,


assim deve ser civilmente responsabilizado pelos danos causados.

Antes de mais nada, nos termos do §6º do art. 37 de nossa Constituição


Federal:

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
“§6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado
prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

A primeira premissa a ser colocada é esta. O Estado é objetivamente


responsável pelos danos causados a indivíduos por seus agentes. A responsabilidade,
portanto, independe da existência de dolo ou culpa por parte do agente estatal.

Numa digressão mais ampla, uma das justificativas para a previsão de


responsabilidade objetiva do Estado no texto constitucional reside no fato de que o ente público
deve assegurar aos particulares a garantia de que os riscos advindos do exercício de serviços
públicos ou do poder de polícia sejam imputados ao próprio Estado, e não aos cidadãos.

Em outras palavras, se ao exercer as atribuições que lhe incumbem, o


Estado oferece risco aos particulares, também deve aquele garantir a estes que os prejuízos
desse risco serão sempre ressarcidos. É esse o fundamento da denominada Teoria do Risco
Administrativo.

Nesse sentido é a doutrina:

A responsabilidade do Estado baseia-se na concepção de que o agente


administrativo atua como órgão da pessoa jurídica da qual é
funcionário. Por isso, o Estado responde por danos que seus
funcionários, nesta qualidade, causem a terceiros. (CAVALIERI FILHO,
Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ªed. São Paulo: Atlas,
2008, p.236).

Ainda que o inquérito policial militar que investigava eventual


homicídio tenha sido arquivado, é fato que isso em nada afeta a jurisdição civil. Isso porque o
Superior Tribunal de Justiça tem entendimento dominante de que quando se apura danos
causados por agentes estatais a terceiros, como no caso em análise, a reponsabilidade civil do
Estado, por expressa disposição constitucional, é objetiva, sendo despicienda a análise do

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
elemento subjetivo daquele que causou o dano. A busca por sua “culpa” (lato sensu),
portanto, é irrelevante. Confira-se:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. PREQUESTIONAMENTO


IMPLÍCITO. POSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 186 E 927 DO
CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.
PLEITO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. MORTE EM DECORRÊNCIA
DE AÇÃO POLICIAL. TIRO DISPARADO CONTRA A VÍTIMA. INVASÃO
DE DOMICÍLIO. CABIMENTO DA INDENIZAÇÃO.ONUS PROBANDI DO
ESTADO. CORRETA APLICAÇÃO DO DIREITO MATERIAL.
1. Ação de indenização por danos materiais e morais ajuizada em face do
Estado do Rio de Janeiro, em decorrência de falecimento de cônjuge e
genitora dos requerentes, baleada dentro da sua própria residência, em
razão de embate entre polícia e traficantes.
2. A jurisprudência desta Corte tem admitido o prequestionamento
implícito, de forma que, apesar dos dispositivos tidos por violados não
constarem do acórdão recorrido, se a matéria controvertida foi debatida
e apreciada no Tribunal de origem à luz da legislação federal pertinente,
tem-se como preenchido o requisito da admissibilidade.
3. A situação descrita nos presentes autos não desafia o óbice da Súmula
07 desta Corte. Isto porque, não se trata de reexame do contexto fático-
probatório dos autos, circunstância que redundaria na formação de
nova convicção acerca dos fatos, mas sim de valoração dos critérios
jurídicos concernentes à utilização da prova e à formação da convicção,
ante a distorcida aplicação pelo Tribunal de origem de tese
consubstanciada na Responsabilidade Civil do Estado, por danos
materiais e morais, decorrente do falecimento de vítima, ocasionado por
errôneo planejamento de ação policial, que impõe a inversão do onus
probandi.
4. "O conceito de reexame de prova deve ser atrelado ao de convicção,
pois o que não se deseja permitir, quando se fala em impossibilidade de
reexame de prova, é a formação de nova convicção sobre os fatos. Não se
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
quer, em outras palavras, que os recursos extraordinário e especial,
viabilizem um juízo que resulte da análise dos fatos a partir das provas.
Acontece que esse juízo não se confunde com aquele que diz respeito à
valoração dos critérios jurídicos respeitantes à utilização da prova e à
formação da convicção. É preciso distinguir reexame de prova de
aferição: i) da licitude da prova; ii) da qualidade da prova necessária
para a validade do ato jurídico ou iii) para o uso de certo procedimento;
iv) do objeto da convicção; v) da convicção suficiente diante da lei
processual e vi) do direito material; vii) do ônus da prova; viii) da
idoneidade das regras de experiência e das presunções; ix) além de
outras questões que antecedem a imediata relação entre o conjunto das
provas e os fatos, por dizerem respeito ao valor abstrato de cada uma
das provas e dos critérios que guiaram os raciocínios presuntivo,
probatório e decisório". (Luiz Guilherme Marinoni in "Reexame de
prova diante dos recursos especial e extraordinário", publicado na
Revista Genesis - de Direito Processual Civil, Curitiba-número 35, págs.
128/145)
5. Consoante cediço, a responsabilidade objetiva do Estado em
indenizar, decorrente do nexo causal entre o ato administrativo e
o prejuízo causado ao particular, prescinde da apreciação dos
elementos subjetivos (dolo e culpa estatal), posto que referidos
vícios na manifestação da vontade dizem respeito, apenas, ao
eventual direito de regresso, incabível no caso concreto.
6. In casu, as razões expendidas no voto condutor do acórdão
hostilizado revelam o descompasso entre o entendimento esposado
pelo Tribunal local e a jurisprudência desta Corte, no sentido de que nos
casos de dano causado pelo Estado, se aplica o art. 37, § 6º da
Constituição Federal, que trata da responsabilidade objetiva do Estado.
7. A 2ª Turma desta Corte no julgamento de hipótese análoga -
responsabilidade civil do Estado decorrente de ato danoso praticado por
seus prepostos - em sede de Recurso Especial 433.514/MG, Relatora
Ministra Eliana Calmon, DJ de 21.02.2005, decidiu, verbis:

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO –
ATO OMISSIVO – MORTE DE PORTADOR DE DEFICIÊNCIA
MENTAL INTERNADO EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO DO ESTADO.
1. A responsabilidade civil que se imputa ao Estado por ato
danoso de seus prepostos é objetiva (art. 37, § 6º, CF), impondo-
lhe o dever de indenizar se se verificar dano ao patrimônio de
outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do
preposto.
2. Somente se afasta a responsabilidade se o evento danoso
resultar de caso fortuito ou força maior ou decorrer de culpa da
vítima.
3. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina
dividida entre as correntes dos adeptos da responsabilidade
objetiva e aqueles que adotam a responsabilidade subjetiva,
prevalece na jurisprudência a teoria subjetiva do ato omissivo, de
modo a só ser possível indenização quando houver culpa do
preposto.
4. Falta no dever de vigilância em hospital psiquiátrico, com fuga e
suicídio posterior do paciente.
5. Incidência de indenização por danos morais.
7. Recurso especial provido.
8. Deveras, consoante doutrina José dos Santos Carvalho
Filho: "A marca da responsabilidade objetiva é a
desnecessidade de o lesado pela conduta estatal provar a
existência da culpa do agente ou do serviço. O fator culpa,
então, fica desconsiderado com pressupostos da
responsabilidade objetiva (...)", sendo certo que a
caracterização da responsabilidade objetiva requer, apenas,
a ocorrência de três pressupostos: a) fato administrativo:
assim considerado qualquer forma de conduta comissiva ou
omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída
ao Poder Público; b) ocorrência de dano: tendo em vista que a
responsabilidade civil reclama a ocorrência de dano
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
decorrente de ato estatal, latu sensu; c) nexo causal: também
denominado nexo de causalidade entre o fato administrativo
e o dano, consectariamente, incumbe ao lesado, apenas,
demonstrar que o prejuízo sofrido adveio da conduta estatal,
sendo despiciendo tecer considerações sobre o dolo ou a
culpa.
9. Assim, caracterizada a hipótese de responsabilidade objetiva do
Estado, impõe-se ao lesado, no caso concreto, demonstrar a ocorrência
do fato administrativo (invasão de domicílio), do dano (morte da vítima)
e nexo causal (que a morte da vítima decorreu de errôneo planejamento
de ação policial).
10. Consectariamente, os pressupostos da responsabilidade objetiva
impõem ao Estado provar a inexistência do fato administrativo, de dano
ou ausência de nexo de causalidade entre o fato e o dano, o que atenua
sobremaneira o princípio de que o ônus da prova incumbe a quem alega.
11. Deveras, na hipótese vertente, o acórdão deixou entrever que os
autores é que deixaram de produzir prova satisfatória e suficiente de
que o óbito da vítima resultou de imperícia, imprudência ou negligência
do policial militar que invadiu a casa da vítima, consoante se infere do
voto de fls. 184/191, o que inverte o ônus da prova, consoante a
Responsabilidade Objetiva e viola os artigos 186 e 927 do Código Civil.
12. Entendimento doutrinário no sentido de que "não há como
confundir exame de prova para a formação da convicção de
verossimilhança com redução das exigências de prova para a
procedência do pedido ou para a inversão do ônus da prova na sentença.
Decidir sobre a inversão do ônus da prova requer a consideração do
direito material e das circunstâncias do caso concreto, ao passo que a
formação da convicção nada mais é que a análise da prova e dos demais
argumentos. Inverter o ônus da prova não está sequer perto de formar a
convicção com base nas provas. Assim, o recurso especial pode afirmar
que a decisão que tratou do ônus da prova violou a lei, o que
evidentemente não requer o reexame das provas." (grifou-se) (Luiz
Guilherme Marinoni in "Reexame de prova diante dos recursos especial
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
e extraordinário", publicado na Revista Genesis - de Direito Processual
Civil, Curitiba-número 35, págs. 128/145)
13. A Constituição Federal não assegura a inviolabilidade do domicílio
(artigo 5º, inciso XI) de modo absoluto, inserindo, no rol das exceções à
garantia, o caso de flagrante delito, desastre, prestação de socorro ou
determinação judicial, inocorrentes na presente hipótese.
14. Destarte, esta Corte, apesar de adstrita a averiguação de ofensa à
legislação federal infraconstitucional dentro dos estreitos limites da
indicação feita por parte do recorrente, não está com isto impedida de
aplicar o direito à espécie. Esta é justamente a ratio do art. 257 do RISTJ,
in verbis: "Art. 257. No julgamento do recurso especial, verificar-se-á,
preliminarmente, se o recurso é cabível. Decidida a preliminar pela
negativa, a Turma não conhecerá do recurso; se pela afirmativa, julgará
a causa, aplicando o direito à espécie." (grifo nosso)
15. Recurso especial provido para restaurar a sentença de primeiro
grau”. (STJ, REsp nº 737.797/RJ, rel. Min. Luiz Fux, j. 03/08/2006).

CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA.


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DISPAROS DE ARMA DE FOGO
PROVOCADOS POR POLICIAIS MILITARES. LEGITIMA DEFESA
PUTATIVA RECONHECIDA NA ESFERA PENAL. FALECIMENTO DA
VÍTIMA. DANOS MORAIS SUPORTADOS PELO CÔNJUGE SUPÉRSTITE.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELOS DANOS CIVIS.
1. Segundo a orientação jurisprudencial do STJ, a Administração Pública
pode ser condenada ao pagamento de indenização pelos danos cíveis
causados por uma ação de seus agentes, mesmo que consequentes de
causa excludente de ilicitude penal: REsp 884.198/RO, 2ª Turma, Rel.
Min. Humberto Martins, DJ 23.4.2007; REsp 111.843/PR, 1ª Turma, Rel.
Min. José Delgado, DJ 9.6.1997.
2. Logo, apesar da não responsabilização penal dos agentes
públicos envolvidos no evento danoso, deve-se concluir pela
manutenção do acórdão origem, já que eventual causa de
justificação (legítima defesa) reconhecida em âmbito penal não é
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
capaz de excluir responsabilidade civil do Estado pelos danos
provocados indevidamente a ora recorrida.
3. Recurso especial não provido”. (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº
1.266.517/PR, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 04/12/2012)
(grifos nossos).

Assim, os autores fazem jus a uma indenização pelos danos materiais e


morais que sofreram, oriundos da morte da filha Laura.

Todos os requisitos necessários para que restasse caracterizada a


responsabilidade objetiva do Estado estão presentes: i) consumação do dano; ii) ação praticada
por agente estatal; iii) vínculo causal entre o evento danoso e o comportamento estatal e iv)
ausência de qualquer causa excludente de que pudesse eventualmente decorrer a exoneração da
responsabilidade do Estado.

A consumação do dano é facilmente constatada.

XXX faleceu vítima das lesões produzidas pelas agressões praticadas por
cinco homens, que atualmente aguardam julgamento pelo homicídio. Contudo, conforme acima
narrado, os policiais militares que atenderam a ocorrência não só não prestaram o devido
socorro, sendo que os próprios familiares levaram XXX até o hospital, como agrediram XXX
com um chute e um disparo de arma de fogo no seu braço esquerdo. Repita-se: XXX já estava
muito ferida e não estava armada, assim não representava nenhum risco aos policiais. Como se
não bastasse, os policias ainda mentiram em seu depoimento, ocultando a verdade dos fatos e
colocando a investigação em risco.

A desastrosa abordagem releva o despreparo da polícia militar para


atuar na proteção de transsexuais e a natureza transfóbica da ação policial. Assim, a omissão
de socorro, a agressão cometida sem justificativa contra uma vítima de violência e a latismável
conduta dos policiais ao cometer fraude processual e falso testemunho, causaram danos
irreparáveis à vítima e sua família.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
Em relação ao fato de a ação ter sido praticada por agente estatal, o
próprio policial Ailton confessa que foi ele quem realizou o disparo no braço de XXXX e depois
assume que primeiramente omitiu o uso da força por temer sanção, o que é totalmente
incondizente com a postura que se deve esperar de um agente público.

Assim, resta demonstrado o dano, que consiste nas agressões sofridas


por Laura durante a abordagem policial; a omissão de socorro e a tentativa de mascarar a
verdade dos fatos, sendo que o prejuízo decorre diretamente da lamentável conduta dos
policiais XXX (nexo causall). Acrescente-se também que a todo o momento os policiais se
referiram à XXX por meio de pronomes de tratamento masculinos, em nítido desrespeito à
identidade de gênero autopercebida. A conduta transfóbica ainda se repetiu no sistema de
saúde.

Assim, somente poderia a presente ação ser julgada improcedente caso


o Réu viesse a comprovar causa excludente da responsabilidade objetiva, que está restrita
à hipótese de culpa exclusiva da vítima – o que, a toda evidência, não ocorreu.

Com efeito, é essencial frisar que culpa exclusiva da vítima não houve.
Até porque, os policiais são treinados para enfrentar situação de perigo a fim de obter os
menores gravames possíveis à população. No caso concreto, contudo, a conduta gerou o maior
gravame possível, ou seja, gerou maior lesão à vítima, a quem não foi prestado o socorro
necessário.

Importante frisar que, no caso em apreço, a responsabilidade do Estado


é de natureza objetiva. A lição de Carolina Bellini Arantes de Paula mostra com clareza as
diferenças entre as causas que excluem a responsabilidade civil quando ela é subjetiva e
objetiva:

Ao considerar o âmbito dos pressupostos da responsabilidade civil


subjetiva, que engloba a ação ou omissão culposa do agente, o nexo
causal entre a conduta culposa do agente e o dano, bem como a
verificação do dano, a esfera das causas de irresponsabilidade
abrange: (I) as justificativas, que ilidem a ilicitude do ato, também
denominadas causas de isenção, como a legítima defesa, o exercício

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
regular do direito e o estado de necessidade; (II) a ausência de
culpabilidade; e (III) as excludentes do nexo causal.
Assim, o espectro da defesa de eventual responsável subjetivamente é
amplo, podendo ser comprovada a sua inimputabilidade, caso se prove
uma das justificadoras, ao ser impugnada a sua culpabilidade, cujo ônus
da prova é geralmente da vítima, ou, ainda, provar que não foi a causa
do dano, comprovado quaisquer das excludentes do nexo causal.
Já na seara da responsabilidade civil objetiva, as causas de irresp
onsabilidade possuem seu campo de exercício restrito ao nexo causal
entre a conduta e o dano, por não serem pressupostos da
responsabilidade civil objetiva a ilicitude ou a culpabilidade do ato.
Os meios de defesa do responsável objetivamente restringem-se a
provar uma das excludentes do nexo causal, limitando-se a demonstrar
que não foi a causa do fato, ação ou omissão ensejadora do dano que lhe
é atribuído.
(...)
De fato, para afastar a responsabilidade (objetiva) do agente imputado,
deverá ser provado que o resultado danoso é fruto de uma causa
estranha à sua atividade ou às coisas sob sua guarda; ou seja, ou o
acusado deverá identificar e provar que a causa eficiente do dano é
completamente alheia e exterior à sua atividade, pessoa ou coisa sob sua
guarda.
(...)
O rigor da responsabilidade civil objetiva, conforme já foi apresentado
em capítulos anteriores, advém da ausência da apreciação da
voluntariedade do agente, que é responsável pelos efeitos de atividades,
fatos ou coisas pelo mero nexo causal destes com o dano advindos deles.
Portanto, as fronteiras de sua responsabilidade encontram-se no nexo
causal e são traçadas pelas excludentes. (grifo nosso)
(As excludentes de Responsabilidade Civil Objetiva. São Paulo: Atlas,
2007, pp. 88/90)

Não há sequer indício de que Laura tenha dado causa a que os policiais a
chutassem e efetuassem disparos de arma de fogo em sua direção, visto que se encontrava
sozinha no momento da ação, estava bastante machucada, não trazia consigo nenhum
armamento, deste modo não apresentava nenhum perigo iminente. Não cabe ao Estado alegar
que os policiais agiram em legítima defesa. Contudo, sendo a responsabilidade do Estado
objetiva, de todo modo, seria completamente irrelevante esta demonstração.

II. SUBSIDIARIAMENTE: DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO ESTADO PELA


INSUFICIENTE APURAÇÃO E A NÃO-PUNIÇÃO DOS RESPONSÁVEIS

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
Ainda que o entendimento deste D. Juízo seja no sentido de que a
responsabilidade estatal é subjetiva – o que se admite apenas para argumentar --, é certo que,
ainda assim, subsistiria para o Estado o dever de indenizar.

O inquérito que investigava o policial XXX pelo homicídio de XXX foi


arquivado (doc. 9 - XXX – autos n. XXX). Contudo, não houve prosseguimento para
investigação dos policiais pelos crimes de lesão corporal - já que agrediram e atiraram
contra XXX-, falso testemunho e fraude processual, não obstante o inquérito policial de n.
XXX (doc. 10) ter concluído que existiam indícios de materialidade e autoria pelos
últimos dois crimes. Resta caracterizada, portanto, a omissão do Estado em investigar,
processar e punir seus agentes que violam direitos humanos.

Foi retirado dos autores o direito à verdade, o qual decorre do direito


de proteção à vida, impondo-se como sinal de respeito aos mortos e aos vivos. Esse é o
entendimento de André de Ramos Carvalho:

“A proteção à vida abarca também o direito à verdade sobre os fatos que


marcaram o fim da vida de uma pessoa. Nos diversos casos submetidos
às cortes internacionais de Direitos Humanos sobressaem as violações
clandestinas do direito à vida, em especial no caso dos
desaparecimentos forçados ou fruto da ação dos “esquadrões da morte”.
Muitas vezes é negado aos familiares da vítima o direito à verdade sobre
os fatos, restando sempre em aberto o destino dos envolvidos. No plano
americano, o caso célebre sobre o direito à verdade é o Caso Bámaca
Velásquez, no qual a Corte IDH estabeleceu que “el derecho a la verdad,
en última instancia, se impone también en señal de respeto a los
muertos y a los vivos”5

A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em sua


Resolução “O direito à verdade”, de 2006, reconheceu “o direito que assiste às vítimas de
violações manifestas aos Direitos Humanos e violações graves ao direito internacional
humanitário, assim como às suas famílias e à sociedade, em seu conjunto, de conhecer a
verdade sobre tais violações da maneira mais completa possível, em particular a identidade
dos autores e as causas, os fatos e as circunstâncias em que se produziram”6.

5 Manual Prático de Direitos Humanos Internacionais, ESMPU, Brasilia, DF, 2010, Coordenador: Sven Peterke, capítulo
§16 - O direito à vida e a pena de morte- André de Ramos Carvalho , pag 247
6 Resolução AG/RES. 2175 (XXXVI-0/06), O direito à verdade, de 6 de junho de 2006

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez,
desenvolveu sua doutrina sobre o direito à verdade, com base nos fundamentos do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, fundando-o na Declaração Americana de Direitos Humanos
(artigo 1.1 – obrigação de respeitar os direitos; 8.1 – acesso à justiça; 13 – liberdade de
pensamento e expressão e 25 – proteção judicial). Hoje, a comissão define esse direito como o de
“conhecer a verdade íntegra, completa e pública sobre os fatos ocorridos, suas
circunstâncias específicas e quem participou deles”7.

Em realidade, a supressão do direito à verdade estende-se, neste caso


concreto, à falta de comunicação da lesão cometida contra Laura, falha que também acaba por
violar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, da lesionada e de seus familiares,
direitos que são invioláveis segundo o artigo 5º, X, da Constituição Federal, bem como o direito à
informação, previsto em seu artigo 5º, XIV, XXXIII.

Os autores também têm a plena convicção que a filha não recebeu os


primeiros socorros que poderiam ter poupado sua vida. Ao agredir e disparar contra XXX, os
policiais militares colocaram a saúde de XXXX em acentuado risco, ao invés de prestar socorro.
Foram os próprios familiares que levaram XXX ao hospital, após encontrar a filha estendida no
chão, enquanto era simplesmente observada pelos policiais, que se mantinham totalmente
inertes sem prestar qualquer tipo de auxílio. E, ao invés de terem direcionado a família ao
hospital mais próximo, conduziram a família a um hospital mais distante.

O Estado, portanto, deve ser responsável por reparar a violação aos


direitos dos autores, nos três eixos acima apontados (responsabilidade pelas falhas na
investigação e julgamento dos crimes de falso testemunho, fraude processual, lesão
corporal e omissão de socorro, cometidos pelos policiais).

Assim, ainda que se pudesse afastar a responsabilidade objetiva do


Estado no caso vertente – o que se admite apenas por amor ao argumento --, não há dúvida que
houve uma evidente culpa dos policiais, que foram negligentes ao não socorrer a vítima, bem
como do Estado, ao deixar de investigar e punir seus agentes, agindo, portanto, com deliberada

7 Informe n. 37/00, de 13 de abril de 2000, caso 11.481, Monsenhor Oscar Romero.


ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
culpa. Mesmo com as fartas provas reunidas no IP XXXX, não há notícia de que o Ministério
Público tenha oferecido denúncia em relação às acusações de falso testemunho e fraude
processual. O mesmo se diga em relação à acusação de homicídio simples contra o policial XXX
(processo nº XXXX)
Com a devida vênia, atuando-se desta maneira, deixou-se de dar
cumprimento efetivo à função institucional do Ministério Público de conduzir a investigação por
meio da requisição de providências faltantes para elucidar todas as circunstâncias do ocorrido,
conforme o disposto no artigo 129, VIII, da Constituição Federal, no artigo 26, IV da Lei nº
8.625/93 e no artigo 104, V da Lei Complementar Estadual nº 734/93.

Também se deve ter em mente que, após passados 5 anos do homicídio


XXX, tanto os agentes policiais quanto os civis que espancaram XXX ainda não foram
responsabilizados pelos seus crimes, o que agrava o sofrimento psicológico dos familiares.

Vale ressaltar trecho da sentença proferida pela Corte Interamericana


de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasil vs. Brasil: “A Corte considerou, em vários casos,
que os familiares das vítimas de violações dos direitos humanos podem ser, simultaneamente,
vítimas.O Tribunal considerou violado o direito à integridade psíquica e moral de familiares de
vítimas, por motivo do sofrimento adicional que padeceram em consequência das circunstâncias
particulares das violações cometidas contra seus seres queridos, e em decorrência das posteriores
ações ou omissões das autoridades estatais frente aos fatos. No presente caso, a Corte observa que
a falta de investigação dos fatos e a continuada impunidade podem ter provocado danos e
prejuízos aos familiares das vítimas. A esse respeito, a Corte dispõe de prova nos autos relacionada
com os danos e sofrimentos por que passaram alguns dos familiares das pessoas mortas nas
incursões policiais. Com base nas declarações testemunhais escritas e presenciais, bem como nos
relatórios sobre o impacto psicossocial aos familiares das vítimas, torna-se evidente que viram sua
integridade pessoal afetada de uma ou outra maneira”.

A desídia e falta de interesse demonstrada durante as investigações da


morte de XXXX acaba por violar os direitos humanos dos autores, como já mencionado,
consistente no direito à Justiça, à verdade e à reparação da violação, que, naquele âmbito penal,
se daria através da busca da verdade real e da punição dos responsáveis, como veremos abaixo.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
III. DA INDENIZAÇÃO

Com a violenta morte de XXXXX, sua família ficou extremamente


desestabilizada. XXX residia com seus familiares quando veio a óbito e seus pais haviam acabado
de montar um salão de beleza para que a filha pudesse exercer uma profissão e auxiliar o
sustento da família. Impactados pela tragédia, os autores inclusive mudaram de casa e seguem
lutando por justiça, já que, até hoje, nenhum dos envolvidos na morte de XXXX foi
reponsabilizado pelos seus atos.

A perda inflingida à família de XXX, já que não foi evitada, merece, no


mínimo, reparo pelo dano material e pelo dano moral associados, de acordo com o art. 5º,
inciso X da Constituição Federal, in verbis:

“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das


pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação”

Para a aferição do quantum a título de dano material, a legislação


ordinária estipula que deve a indenização ser composta daquilo que foi perdido, bem como
daquilo que se deixou de ganhar, compreendendo, pois, o dano emergente e o lucro cessante,
cobrindo todo o dano patrimonial experimentado e a ser experimentado pelos lesados. Dispõe o
art. 402 do Código Civil que:
“Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos
devidos ao credor abrangem, além do que efetivamente perdeu, o que
razoavelmente deixou de lucrar”.

O objetivo da indenização por dano material é a reconstituição total do


estado anterior, “restitutio in integrum”.

Nesse sentido, o Código Civil é claro ao determinar ao menos o direito


dos familiares a receber uma pensão alimentícia mensal, levando-se em conta a duração
provável da vida da vítima, assim como o ressarcimento das despesas com seu funeral:

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras
reparações:
I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o
luto da família;
II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia,
levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.

Outrora, importante citar que a jurisprudência do Eg. STJ sedimentou


o entendimento de que há uma PRESUNÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO NO SUSTENTO DA FAMÍLIA
DE BAIXA RENDA, sendo o pagamento da pensão devido aos genitores do falecido:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO


ORDINÁRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE
DETENTO NO INTERIOR DE PRESÍDIO ESTADUAL. PRESUNÇÃO DE
CONTRIBUIÇÃO NO SUSTENTO DA FAMÍLIA DE BAIXA RENDA. PENSÃO
PÓS-MORTE EM FAVOR DOS GENITORES DA VÍTIMA.POSSIBILIDADE.
PRECEDENTES DO STJ.
(...)
2. O recorrente, nas razões do recurso especial, somente impugnou a
condenação ao pagamento da pensão mensal, alegando a impossibilidade
de se transferir obrigação personalíssima (prestação de alimentos do filho
aos seus pais) para a Administração Pública Estadual, bem como pelo fato
da condenação estabelecer pensão mensal para os ascendentes de vítima
falecida que não percebia renda mensal.
3. A Corte de origem não transferiu para o ente público a obrigação de
pagar alimentos, pois fixou a pensão mensal, com fundamento no art. 948,
II, do CC, como forma de indenização devida aos genitores da vítima, em
razão da morte do detento em presídio estadual, já que perderam o
direito de serem auxiliados pelo filho em seu sustento.
4. É pacífico o entendimento desta Corte Superior no sentido de que é
legítima a presunção de que existe ajuda mútua entre os integrantes
de famílias de baixa renda, ainda que não comprovada atividade
laborativa remunerada.
5. Recurso especial não provido.
(REsp 1258756/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA
TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe 29/05/2012) (grifo nosso)

O que foi materialmente perdido se compõe ainda dos gastos com o


velório, transporte e sepultamento, mesmo que tais gastos não fiquem comprovados, uma vez
que se trata de gasto notório e inevitável:

“Os custos com o funeral são aqueles consequentes da morte e ligados


diretamente ao sepultamento, como o serviço funerário, autópsia e etc.,
conforme o caso; velório; aquisição e urna, flores, coroa; igualmente a
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
realização de cerimônia de luto e a publicação do óbito na imprensa,
usualmente jornais. Caso não se logre comprovar as despesas
fúnebres, a jurisprudência tende a fixa-la em cinco salários-
mínimos, por se tratar de gasto inevitável, pois o respeito à
dignidade humana exige um sepultamento merecedor de respeito.”
(Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de
Salvo Venosa/ Otávio Luiz Rodrigues Junior, Gladston Mamed, Maria
Vital da Rocha. São Paulo, Atlas, 2011).

A indenização pelos gastos deve ser fixada, seguindo-se a


jurisprudência, em cinco salários mínimos. Já o que se deixou de ganhar consiste no ordenado
que Laura trazia para casa para contribuir no sustento da família.

Deste modo, a indenização por danos materiais deve ser fixada em


um salário mínimo mensal a ser pago aos pais de XXX, com quem residia, referente ao que
se deixou de ganhar com sua morte. Este salário mínimo mensal deve ser pago até a data em
que XXX completaria 65 (sessenta e cinco) anos de idade.

Já a respeito do dano moral, a forma como ocorreu a morte XXX e a


terrível abordagem policial gerou, gera e gerará nos autores da ação evidentes sentimentos de
dor, perda, saudade, angústia, desproteção, injustiça, medo e revolta.

Tais sentimentos caracterizam os chamados danos morais, aqueles


danos provocados na alma, nas lembranças.

Esses danos, como quaisquer outros, merecem e necessitam ser


reconhecidos e reparados, para que a sensação de impunidade, injustiça e prostração não se
protraiam no tempo e retroalimentem os sentimentos já provocados pelo evento lesivo original.

Ou seja, o reconhecimento e a reparação dos danos morais sofridos


pelos autores servem, por si só, para minorá-los, embora jamais vá anulá-los ou apagá-los; não
reconhecê-los e não repará-los, ao contrário, vai agravá-los.

Por outro lado, o causador dos danos morais, no caso, o Réu, precisa ser
responsabilizado pelos atos de seus agentes, responsabilização que tem o condão de impor

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
reflexão sobre o comportamento passado e futuro de seus agentes e a absoluta intolerância da
sociedade e do Estado como um todo a eventos como esses.

A jurisprudência pátria, com suporte em sucessivas interpretações


sistemáticas do ordenamento jurídico, veiculadas por notórios doutrinadores, sedimentou o
entendimento que acena para a plena reparabilidade dos prejuízos emergentes dos danos
imateriais, independentemente da existência de reflexos patrimoniais do evento.

O colendo Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado


de que é devida a indenização por dano moral, mesmo nos casos em que não há comprovação da
dor e sofrimento, quando houver ofensa à dignidade da pessoa humana.

Julgamento neste sentido foi publicado no informativo de jurisprudência


nº 513 daquela Corte, datado de 6 de março de 2013:

DIREITO CIVIL. DANO MORAL. OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA


HUMANA. DANO IN RE IPSA.
Sempre que demonstrada a ocorrência de ofensa injusta à
dignidade da pessoa humana, dispensa-se a comprovação de dor e
sofrimento para configuração de dano moral. Segundo doutrina e
jurisprudência do STJ, onde se vislumbra a violação de um direito
fundamental, assim eleito pela CF, também se alcançará, por
consequência, uma inevitável violação da dignidade do ser humano. A
compensação nesse caso independe da demonstração da dor,
traduzindo-se, pois, em consequência in re ipsa, intrínseca à própria
conduta que injustamente atinja a dignidade do ser humano. Aliás,
cumpre ressaltar que essas sensações (dor e sofrimento), que
costumeiramente estão atreladas à experiência das vítimas de danos
morais, não se traduzem no próprio dano, mas têm nele sua causa
direta.
REsp 1.292.141-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/12/2012.

Ou seja, o dano moral, quando fundado em alguma violação a direito


fundamental é presumido, sendo desnecessária (porque impossível) a prova efetiva da
ocorrência dos danos.

Como se percebe, o direito dos autores à indenização por danos morais


é inquestionável sob o pálio não só das diretrizes jurisprudenciais supracitadas, como, também,
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
da garantia consagrada no já mencionado inciso X, do artigo 5º da Constituição Federal, que
sedimentou em si toda a tendência pretoriana que informava a matéria.

Resta-nos, agora, estabelecer os critérios para a estipulação do quantum


inerente à vindicada reparação.

Maria Helena Diniz em sua obra Curso de Direito Civil Brasileiro, ao


tratar do dano moral, ressalva que a reparação tem sua dupla função, a penal "constituindo uma
sanção imposta ao ofensor, visando a diminuição de seu patrimônio, pela indenização paga ao
ofendido, visto que o bem jurídico da pessoa (integridade física, moral e intelectual) não poderá ser
violado impunemente", e a função satisfatória ou compensatória, pois "como o dano moral
constitui um menoscabo a interesses jurídicos extrapatrimoniais, provocando sentimentos que não
têm preço, a reparação pecuniária visa proporcionar ao prejudicado uma satisfação que
atenue a ofensa causada." (7º v. 9ª ed., Saraiva).

Assim, o quantum deve, pelo Juiz e só por ele, ser contemplado à luz da
equanimidade e a par de critérios que, além de uma solução ponderada, consigam satisfazer o
dogma constitucional da mais completa indenização.

Não são ignoradas as dificuldades práticas para se estabelecer o


montante indenizatório. Porém, deve-se destacar a força motriz que os impulsiona, cingida na
busca de um quantum reparatório que sirva como fator de desestímulo, para que malefícios
como os aqui retratados não mais ocorram.

Ou seja, a fixação de um valor indenizatório ínfimo, além de não


acalentar, ao menos um pouco, o sofrimento dos familiares dos mortos, deixaria de culminar na
necessária reflexão do Poder Público sobre a urgente necessidade de reformulação da política
pública de segurança, sendo um de seus pilares a melhor formação e treinamento dos policiais.

Frente a essas dificuldades na fixação do quantum indenizatório,


doutrina e jurisprudência criaram fórmulas práticas, extraídas de casos semelhantes, e que
servem como diretrizes ao juiz no momento do arbitramento do quantum indenizatório.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
Carlos Alberto Bittar, dentre tantos outros, ensina:

“(...)a indenização por danos morais deve traduzir-se em montante


que represente advertência ao lesante e à sociedade de que se não
aceita o comportamento assumido, ou o evento lesivo advindo.
(...)
Consubstancia-se, portanto, em importância compatível com o vulto dos
interesses em conflito, refletindo-se de modo expressivo, no
patrimônio do lesante, a fim de que sinta, efetivamente, a resposta da
ordem jurídica aos efeitos do resultado lesivo produzido. Deve, pois, ser
quantia economicamente significativa, em razão das potencialidades do
patrimônio do lesante.”
(Reparação Civil por Danos Morais, RT, São Paulo, 1993, págs. 215/220)

A doutrina de vanguarda, portanto, assume, como elemento


importantíssimo na fixação do quantum indenizatório, que seja ele um desestímulo a novas
práticas semelhantes.

Vale frisar que há muito o nível social dos lesados não é mais entendido
majoritariamente como uma das circunstâncias a serem analisada pelo julgador na fixação da
indenização. A ideia de que aqueles que pertencem às classes menos favorecidas
economicamente devem receber uma indenização menor do que os integrantes das elites
demorou para ser rechaçada, embora seja completamente descabida. Sofrimento pela morte de
um filho ou de um pai é sofrimento da mesma forma entre ricos e pobres.

Assim, independentemente da classe econômica, deve-se analisar na


fixação do quantum indenizatório primordialmente a conduta daquele que praticou a lesão ao
bem jurídico protegido e a extensão do dano causado. Quanto mais reprovável sua conduta e
maior o dano, maior deverá ser a indenização.

Outrossim, para nortear a fixação da indenização neste caso concreto, há


alguns parâmetros jurisprudenciais que podem ser utilizados:

- R$1.140.000 (um milhão, cento e quarenta mil reais) para policial


baleado em serviço, com danos permanentes (REsp 797.989/SC, Rel.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em
22/04/2008, DJe 15/05/2008);
- R$ 500.000 (quinhentos mil reais) pela tortura e morte de cidadão,
ocorrida durante a 2ª Guerra Mundial (REsp 797.989/SC, Rel. Ministro
HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/04/2008, DJe
15/05/2008).
- 2.000 (dois mil) salários mínimos pela morte de filho perpetrada por
agentes do Estado incumbidos de zelar pela Segurança Pública.

Pela semelhança deste último com o caso concreto, vale a pena a


transcrição de sua ementa:

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS


MATERIAIS E MORAIS. QUANTUM INDENIZATÓRIO.
- Quando o quantum fixado a título de indenização por danos morais se
mostrar irrisório ou exorbitante, incumbe ao Superior Tribunal de
Justiça aumentar ou reduzir o seu valor, não implicando em exame de
matéria fática. Precedentes deste Sodalício.
- A perda precoce de um filho é de valor inestimável, e portanto a
indenização pelo dano moral deva ser estabelecida de forma
eqüânime, apta a ensejar indenização exemplar.
- Ilícito praticado pelos agentes do Estado incumbidos da
Segurança Pública. Exacerbação da condenação.
- Recurso desprovido.
Indenização por dano moral mantida em R$ 486.000,00 (quatrocentos e
oitenta e seis mil reais), 2.000 (dois mil) salários mínimos.(REsp
331.279/CE, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em
23/04/2002, DJ 03/06/2002, p. 150)

Ora, tratando-se de caso semelhante, onde a indenização fixada fora de


2000 (dois mil) salários mínimos, temos que a mesma lógica pode ser usada neste caso concreto.

Veja-se que, conforme vimos, as circunstâncias primordiais para decidir


o valor da indenização são a análise da conduta de quem praticou o dano e a extensão do dano
causado.

Ora, a conduta praticada pelos agentes do Réu é extremamente


reprovável. XXXX foi agredida por policias militares, que tentaram ocultar os fatos e fraudar as

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
investigações. A sociedade não tolera mais a violência policial que a cada ano cresce ainda mais,
somada à indiferença estatal no seu enfrentamento, conforme mostramos no desenvolver desta
inicial, o que torna a conduta muito reprovável.

Ademais, in casu, também deve ser levada em conta a circunstância


agravante de que houve inúmeras falhas na responsabilização dos policias e dos civis que
mataram XXX pelos crimes cometidos.

O fato é que, somados os sofrimentos, sua existência torna-se mais que


palpável, bastando-nos para essa percepção um mínimo de alteridade – capacidade de nos
colocarmos no lugar dos autores, pais que perderam o que tinham de mais importante, sua filha,
ainda jovem, com uma vida pela frente, contrariando a cronologia natural da vida, na qual os
filhos enterram os pais, não o contrário. A dor de um pai que enterra um filho é indescritível –
alguns pais jamais conseguem se recuperar do luto - e a anomalia social desse evento é tão
grande que sequer há uma palavra no vocabulário para designar o pai ou mãe que perde um
filho. Chamamos viúvo(a) a pessoa que perde um companheiro(a), órfão(ã) a criança que perde
os genitores, mas nosso vocabulário não abrange uma denominação para os genitores que
perdem um(a) filho(a). Trata-se de uma perda e de uma dor inomináveis.

A morte de XXX surrupiou de forma irreversível o bem maior de nosso


ordenamento jurídico e inverteu o curso natural da vida, trazendo a morte para quem é jovem e
o calvário da vida para seus pais, familiares e amigos, marcados para sempre pelo sofrimento,
tendo retirado a possibilidade de amparo material e afetivo deles por Laura.

O objetivo maior deste pleito é o de evitar que novas barbáries se


repitam. Fica aqui vindicado, a título de reparação das pungentes dores experimentadas pelos
autores, a quantia equivalente a 2.000 salários mínimos, valor ínfimo diante do destinado à
Segurança Pública no orçamento estadual.

Tal verba indenizatória, por sua natureza alimentar, deve mesmo ser
paga de uma só vez, consoante iterativo entendimento pretoriano a respeito da matéria, afinado,
aliás, com o disposto nos arts. 33 e 100 do Ato das Disposições Transitórias da CF/88,
representando a posição prevalente na doutrina e na jurisprudência sobre o assunto.
ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE
E-MAIL
DOS PEDIDOS

Ante o exposto, requer-se a citação do Réu, na pessoa de seu


representante legal, para, querendo, oferecer resposta, sob pena de revelia.

Ademais, requer-se seja julgada procedente a presente ação, para


condenar o Réu:

a) ao pagamento, a título de danos materiais, do pensionamento mensal


de 1 (um) salário mínimo aos autores, até a data e que XXX completaria 65 anos de idade;

b) ao pagamento, a título de danos morais, da quantia de 2.000 (dois


mil) salários mínimos a cada um dos autores, devendo, por sua natureza alimentar, ser paga de
uma só vez,

Outrossim, requer-se:

c) a concessão aos autores dos benefícios da assistência judiciária


gratuita, por estar caracterizada hipossuficiência econômica;

d) a sujeição do Réu aos ônus da sucumbência, com reversão dos


honorários advocatícios para o Fundo Especial de Despesas da Escola da Defensoria Pública do
Estado, nos termos do art. 3º, inciso II da Lei estadual nº 12793/08;

e) seja concedida a possibilidade de provar o alegado por todos os meios


de prova em direito admitidos.

f) com amparo no artigo 128, inciso I, da Lei Complementar Federal nº


80/94, que a Defensoria Pública seja pessoalmente intimada através de seus órgãos de execução
de todos os atos praticados no feito, contando-se-lhe em dobro os respectivos prazos.

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
g) a remessa de cópia integral do processo de nº XXXX da 4ª Vara do
Júri, que está em segredo de justiça, relativo à apuração da polícia na ocorrência;

Com base no artigo 425, inciso VI, do Código de Processo Civil, declara-
se que são autênticas as cópias dos documentos que instruem a presente ação.

Atribui-se à presente causa, para efeitos fiscais, o valor de R$


2.679.380,00.

Termos em que, pede deferimento.

São Paulo, 29 de outubro de 2020.

ISADORA BRANDÃO ARAUJO DA SILVA


Defensora Pública do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial

VINICIUS CONCEIÇÃO SILVA SILVA


Defensor Público do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial

DAVI QUINTANILHA FAILDE DE AZEVEDO


Defensor Público do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos

FERNANDA PENTEADO BALERA


Defensora Pública do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos

LETÍCIA MARQUEZ AVELLAR


Defensora Pública do Estado de São Paulo
Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL
ROL DE DOCUMENTOS:

Doc. 01 – Cédula de identidade RG de XXXX


Doc. 02 - Cédula identidade RG de XXX;
Doc. 03 - Certidão obito XXXa;
Doc. 04 - Boletim de Ocorrência nº XXX
Doc. 05 - Boletim de Ocorrência nº XXX
Doc. 06 - Extrato do E-SAJ dos processos do Júri
Doc. 07 - Solicitação de prontuário
Doc. 08 - Notícias da imprensa sobre a morte da XXX
Doc. 09 - Cópias da decisão de arquivamento do processo XXX contra o policial;
Doc. 10 - Cópias do Inquérito Policial XXX;
Doc. 11 – Ofício à Corregedoria e Resposta sobre a expulsão dos policiais.
Doc. 12 - Denúncia ao Disk 100
Doc. 13 – Avaliação Financeira
Doc. 14 – Declaração dos Familiares à Defensoria
Doc. 15 - Doc. Declaração de necessidade

ENDEREÇO DA UNIDADE - TELEFONE


E-MAIL

Você também pode gostar