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Primeira Parte

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A traição de Ganelon
Em Saragoça - Conselho tomado pelo rei Marsile
I

Carlos Magno, o grande imperador dos Francos, sete anos completos andou pelas Espanhas guerreando os Mouros; até ao mar lhes foi conquistando todas
as terras. Já não há castelo que diante dele resista, já não há muralha para ele destruir, nenhuma cidade para ele tomar; somente Saragoça, que fica no alto de uma
montanha e onde vive, cheio de orgulho, Marsile, o rei das Espanhas, é que se julga ainda segura. Pagão e torpe é este senhor, que não adora o Deus verdadeiro,
mas serve a Maomet e reza a Apollin.
Ouvireis agora a sua triste sorte, contada pela gesta antiga.

II

Marsile, que está em Saragoça, vai passear para um vergel e deita-se à sombra das laranjeiras, sobre uns degraus de mármore azul. A sua volta vêm
sentar-se os seus nobres, porque ele desejava falar-lhes.
Ao todo, vinte mil; uns, duques, outros, condes, todos esperavam, ansiosos, as suas palavras.
- Ouvi, senhores - diz ele - , um grande flagelo cai sobre nós. O imperador Carlos, da doce França, vem para esse país confundir-nos. Eu não tenho um
exército que lhe dê batalha, as minhas hostes são fracas, os meus homens de armas não têm o valor dos seus.
“Aconselhai-me, vós, homens de bom conselho, e livrai-me da morte e da desonra!”
Todos os mouros ficaram pensativos; quebrou o silêncio Blancandrin, do castelo de Vale-Fundo.

III

Blancandrin, bom cavaleiro pela sua valentia, bom conselheiro pela sua prudência, era respeitado entre os pagãos.
Erguendo a voz arrogante, diz ao rei:
- Senhor, não temais! Mandai a Carlos, o orgulhoso, o altivo, palavras de fiel serviço e muita amizade. Dar-lhe-eis ursos, leões e cães amestrados,
setecentos camelos e mil açores saídos da muda, quatrocentas mulas carregadas com besantes de ouro e prata, e cinqüenta carros com que fará um trem de
combate.
“Assim ele poderá pagar generosamente aos seus soldados. Mandai-lhe dizer que, visto já há muito andar guerreando nestas terras tão afastadas, é tempo
de voltar à sua doce França, à sua bela cidade de Aix; que vós aí o seguireis na festa de São Miguel, recebendo a lei dos cristãos, e vos tornareis seu vassalo com

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toda a honra e todo o bem. Quer reféns? Mandai-lhe dez ou vinte, para lhe dar confiança. Mandemos-lhe os filhos das nossas mulheres; mesmo que tivessem de
morrer, eu mandaria o meu. Vale bem mais perderem as suas cabeças, do que nós nossas honras, privilégios e senhorios.”
Tal era o coração cruel dos cavaleiros mouros!

IV
Blancandrin diz:
- Pela minha dextra e pela barba que flutua ao vento sobre esta cota de malha, no mesmo momento vereis desfazer-se o exército dos Francos - continuou
Blancandrin. - Eles têm saudades da França, e, quando estiver cada um no seu domínio e Carlos em Aix, chegará o dia de São Miguel. Será organizada uma
grande festa, uma luzida corte se juntará na sua capela, mas o tempo há de passar e de vós não terá nenhuma notícia. Então, porque o seu coração é arrebatado e
altivo, mandará cortar as cabeças aos nossos reféns. Mas, mesmo assim, será melhor que eles pereçam, do que nós percamos a clara Espanha.
Os pagãos disseram:
- Falou bem.

O rei Marsile reuniu conselho. Chamou Clarin de Balaguer, Estamarin e seu par Eudropin, Priamon e Guarlan, o barbudo, Machiner e seu tio Maheu,
Joüner e Malbien de além-mar, e Blancandrin para falar por todos.
Dez eram os corações traidores e as bocas cheias de meiguice.
- Ireis ter com Carlos Magno - diz-lhes Marsile. - Ele está às portas da cidade de Cordres, à qual põe cerco. Levareis em vossas mãos ramos de oliveira, o
que significa paz e humildade. Se pelo vosso jeito conseguirdes um acordo, dar-vos-ei ouro e prata, terras e feudos quantos quiserdes.

VI

- Pedi-lhe que por seu Deus me faça mercê - prosseguiu o rei. - Dizei-lhe que ele não verá passar este primeiro mês sem que eu me tenha unido á sua fé,
com mil dos meus vassalos, receberei a Lei Cristã e com todo o amor e toda a lealdade o servirei.
Blancandrin, quando isto ouviu, disse:
- Por este meio obterei bom acordo.

VII

Mandou então buscar dez mulas brancas, que lhe tinham sido dadas pelo rei Suatille. Os freios são de ouro, as selas pregueadas a
prata. Os mensageiros montam a cavalo, e, segurando ramos de oliveira na mão direita, vão á procura de Carlos. Este tem a França em seu
bailio, mas não pode defender-se e será enganado.

Em Codres - Conselho tomado por Carlos Magno

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VIII

O imperador está alegre, cheio de riso na boca; Cordres acaba de ser tomada, as muralhas arrasadas, as torres deitadas por terra pelos seus engenhos
bélicos. Grande foi o saque que os cavaleiros fizeram: ouro, prata, armas riquíssimas e preciosas armaduras. Na cidade não ficou nem um só pagão; os que não
quiseram fazer-se cristãos foram passados à espada.
Carlos Magno está num grande vergel, e perto dele sentam-se Roland e o seu amigo Olivier, o duque de Samson e Anseis, o altivo, Gerin e Gerier e
muitos outros: ao todo, quinze milhares. Sobre brancos tapetes de seda os cavaleiros idosos jogam o gamão e o xadrez; os mais novos esgrimem à espada.
Debaixo dum pinheiro, junto duma roseira brava, levanta-se um trono, todo de puro ouro, onde está sentado um senhor a quem pertence a doce França. A
sua barba é branca, o seu corpo belo, a sua presença altiva; quem o procurar não precisa que lhe digam quem é.
Assim, os mensageiros apeiam-se, põem joelho em terra e fazem vênia, com todo o amor e toda a cortesia.

IX

O primeiro a falar foi Blancandrin, que disse ao rei:


- Salve, em nome do Deus Glorioso, que todos devemos adorar! Ouvi o que vos manda dizer o rei Marsile, o bravo.
“Ele está bem informado da lei que salva e, como vos tem grande amor, pede que aceiteis estes presentes magníficos e raros. Neste país há já sete anos
que vos demorais ; é tempo de voltardes à vossa cidade de Aix, onde vos irá o meu senhor procurar.”
O imperador levantou as mãos para Deus, baixou a cabeça e ficou pensativo.
A sua palavra nunca foi rápida, ele nunca falou sem meditar algum tempo. Quando, enfim, levantou a cabeça, o seu rosto estava cheio de altivez.
- As vossas palavras são boas - retorquiu aos mensageiros - , mas o rei Marsile é o meu pior inimigo. Como poderia ter garantia do que dizeis?
- Pelos reféns - diz o sarraceno - dos quais tereis dez ou vinte. Mesmo tendo de morrer, dar-vos-ei o meu filho, e estou certo de que recebereis outros de
mais alto nascimento. Quando estiverdes nos vossos paços soberanos, pela festa de São Miguel, o meu senhor vos irá procurar e, aí, nos vossos banhos deseja
tornar-se cristão.
Carlos responde:
- Ainda está a tempo de alcançar a salvação.

A tarde estava bela e o sol ainda claro. Carlos mandou desaparelhar as mulas, no vergel levantou-se uma grande e rica tenda. E foi aí que hospedou os dez
mensageiros. Doze meirinhos tomaram o cuidado de os servir.
Descansaram assim até que rompesse o dia. Cedo ergue-se o imperador, ouve missa e matinas, depois vai para debaixo do pinheiro e convoca os seus
barões, pedindo-lhes conselho.
Vem o duque de Ogier e o arcebispo Turpin, Ricardo, o velho, e seu sobrinho Henrique, o valente conde da Gasconha Acelin, Thibaud de Reims e seu
primo Milon. Vieram Gerier e Gerin; e com eles o conde Roland e o seu par Olivier, o valente, o nobre. Francos de França são mais dum milhar; Ganelon
também compareceu e foi ele quem traiu. Então, quando estavam todos reunidos, principiou o conselho, do qual iria nascer um grande infortúnio.

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XI

- Senhores barões - proferiu o imperador Carlos -, o rei Marsile manda-me um rico presente de ursos, leões e cães amestrados, setecentos camelos e mil
açores bons para a caça, quatrocentas mulas carregadas de ouro da Arábia, e, além disso, mais de cinqüenta carros. Mas pede que me retire para França; ele irá ter
comigo aos meus paços em Aix, abraçará a nossa lei, que confessa ser a mais santa, tornar-se-á bom cristão e receberá das minhas mãos as suas terras. Mas eu não
sei qual é o fundo do seu coração.
Os Francos disseram:
- Desconfiemos!

XII

O imperador mostrou o seu pensamento. O conde Roland levantou-se e disse ao rei:


- Desgraça, senhor, se acreditais em Marsile! Passados são sete anos nestas terras de Espanha, conquistei-vos Noples e Commibles, tomei as terras de
Pine, Balaguer, Tudèle e Sezille.
“O rei Marsile Fez-vos uma grande traição: mandou-vos quinze dos seus cavaleiros, cada um com seu ramo de oliveira, e todos disseram as mesmas
palavras. Vós reunistes os vossos Francos e eles, loucamente, aconselharam-vos a mandar-lhe dois dos vossos condes, Basan e Basille, com o vosso breve.”
“Nas montanhas, perto de Haltilie, ele cortou-lhes as cabeças. Senhor, fazei a guerra como a haveis principiado, levai a Saragoça o toque dos vossos
clarins, cercai-a ainda que nesse cerco gasteis o resto da vossa vida - assim vingareis aqueles que o traidor matou.”
O imperador baixa a cabeça, alisa a barba, arranja o bigode e ao sobrinho nada responde. Os Francos calam-se, pensativos. Então levanta-se o conde
Ganelon, vem junto de Carlos e diz-lhe, altivamente:
- Desgraça, senhor, se acreditais nesse arrebatado, ou em qualquer outro que não fale para vosso bem.
“Quando o rei Marsile vos diz que, de mãos juntas, se tornará vosso vassalo, que terá toda a Espanha por um dom da vossa graça e receberá a lei que
guardamos , quem vos aconselha a rejeitar semelhante acordo, pouco se importa de que morte poderemos morrer. Um conselho de orgulho não deve prevalecer!”

XIII

Logo que o conde Ganelon se calou, avançou o duque de Naimes; não havia em toda a corte melhor vassalo.
- Senhor - disse ele -, a resposta que deu Ganelon é razoável, nada mais há a fazer senão seguí-la. O rei Marsile foi vencido na guerra; tomastes-lhe todos
os castelos, com os vossos engenhos arruinastes-lhe as muralhas, queimastes as suas cidades, vencestes os seus homens de armas. Hoje, que ele por favor vos pede
clemência, atacá-lo seria pecado. Uma vez que vos quer dar reféns como garantia, esta guerra não deve continuar.
Os Francos apoiaram:
- O duque falou bem.
XIV

- Senhores barões - torna o rei -, quem mandaremos a Saragoça como mensageiro?

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O duque de Naimes respondeu.
- Irei eu com a vossa licença; entregai-me a luva e o bastão.
- Vós não, porque sois homem de grande conselho; por esta minha barba, tão cedo não vos deixarei partir para longe de mim. Voltarei, pois, a
sentar-vos.
- Senhores, quem podemos mandar aos sarraceno, dono de Saragoça?
Desta vez respondeu Roland:
- Irei eu.
- Não ireis - interveio o conde Olivier -, o vosso coração é áspero e impulsivo, as vossas temeridades podem perder-vos. Irei eu em vosso lugar.
- Calai-vos ambos - ordenou Carlos Magno - ; desgraça para quem vos nomear ou a algum dos doze pares!

XV

Turpin de Reims levantou-se, saiu do seu lugar e disse ao rei:


- Senhor, deixai repousar os vossos Francos. Sete anos de fadigas e trabalhos nestas rudes Espanhas gastaram eles já servido-vos. Dai-me o bastão e a
luva e caminharei já ao encontro do sarraceno, pois tenho curiosidade de saber que homem ele é.
Mas o imperador ficou irritadíssimo.
- Ide sentar-vos naquele tapete branco. Não falemos mais nisso, se eu vo-lo não ordenar.

XVI

- Cavaleiros Francos - tornou Carlos Magno -, elegei-me um barão de França que leve a Marsile a minha mensagem.
Roland disse:
- Será Ganelon, o meu padrasto.
- Certamente - concordaram os Francos -, é homem para o fazer; se o rejeitardes, não conseguireis outro mais sábio.
O conde Ganelon sente o sangue subir-lhe às faces e a angústia entrar-lhe no coração. Arranca da gola as grandes peles de manta, ficando na sua veste de
rica seda. Tem os olhos cinzentos, o rosto altivo, o seu corpo é nobre, o peito largo. É tão belo, que todos os pares o contemplam.
- Sois louco - diz a Roland. - Sou vosso padrasto, é certo, todos o sabem, e no entanto designais-me para ir a Saragoça. Se Deus quiser que eu volte,
far-vos-ei tal dano, que durará tanto quanto viverdes!
Roland responde-lhe:
- Eis propósitos de rancor e loucura. Bem sabeis que não temo ameaças, mas como para esta mensagem é preciso um homem prudente, se o rei quiser, irei
no vosso lugar.

XVII

Ganelon responde:

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- Vós não ireis no meu lugar! Não sois meu vassalo, nem eu vosso senhor. Carlos manda que faça o seu serviço, irei pois a corte de Marsile; mas antes
que serene esta grande irritação em que me vedes, arranjarei uma armadilha para vos perder.
Quando Roland ouviu isto, começou a rir.

XVIII

Vendo Ganelon que Roland ria, a sua ira cresceu ainda mais, maior se tornou a sua indignação. Num arrebatamento de furor, disse-lhe:
- Odeio-vos, pois fizestes cair sobre mim esta injusta escolha! Irei a Saragoça, mas não voltarei de lá com vida. Sobre todas as coisas, lembrai-vos de meu
filho Balduíno - continuou, dirigindo-se ao imperador. - Deixou-lhe as minhas terras e os meus feudos. Tomai-o sob a vossa guarda, pois nunca mais o verei.
Carlos, irritado, responde-lhe com desdém:
- Conde, tendes um coração terno demais, parti sem demora. Aproximai-vos, recebei o bastão e a luva.
- Senhor, foi Roland quem tudo tramou. Nunca mais na minha vida o poderei amar, nem a Olivier, por ser seu companheiro. Os doze pares, porque o
amam tanto, desafio-os aqui sob o vosso olhar!
Mas o rei tornou-lhe:
- Deixai-vos desse ódio sem motivo e parti, uma vez que eu vo-lo ordeno.
- Irei, senhor, perecer como Basille e seu irmão Basant.

XIX

O imperador estendeu-lhe a luva da mão direita. Mas o conde estava tão perturbado, que a deixou cair.
Os Francos, aflitos, disseram:
- Meu Deus, que mal sinal é este? Certamente desta mensagem nos virá grande dano.

XX

- Dai-me licença de partir.


O rei então disse-lhe:
- Ide pela licença de Jesus e pela minha!
Com a sua dextra absolveu-o e fez o sinal-da-cruz. Depois entregou-lhe o bastão e o breve, com o seu selo pendente.

XXI

Ganelon afastou-se e foi para o seu acampamento. Dentro da sua tenda vestiu-se com riquíssimos trajes.
Nos pés calça esporas de ouro, aos flancos cinge Murgleis, a sua espada. Monta Tachebrum, o seu cavalo de guerra, enquanto seu tio Guinemer lhe segura
no estribo; nesse momento muitos cavaleiros estavam a chorar, exclamando:

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- Grande piedade, pela vossa proeza! Muito tempo permanecestes na corte do rei e todos vos consideravam um nobre vassalo. O conde Roland não devia
ter pensado em vós, que saístes duma tão alta linhagem!
Depois pediram-lhe:
- Levai-nos convosco!
Ganelon, porém, respondeu-lhes:
- Isso não agradaria ao Senhor Deus!
Vale mais que eu morra só e que vivam tantos bons cavaleiros. Voltareis para a doce França; de meu mando saudai minha mulher e Pinabel, meu amigo e
meu par, Balduíno, meu filho...dai-lhe a vossa ajuda e tende-o por vosso senhor.
Por fim esporeou o cavalo e deixou o acampamento a galope.

XXII

Cavalgando sob altas oliveiras, dentro em breve, Ganelon alcança os mensageiros sarracenos. Logo que Blancandrin o vê chegar, retém a sua montada e
vai pôr-se a seu lado.
Ambos conversam com grande manha. Blancandrin principia:
- É um homem magnífico o vosso Carlos! Conquistou a Pouille e toda a Calábria, passou o mar salgado e ganhou para São Pedro o tributo da Inglaterra.
Que vem ele ainda procurar aqui às nossas Espanhas?
- Tal é o seu bel-prazer - responde Ganelon - Nunca homem nenhum valerá tanto como ele.

XXIII

- Os Francos são gente muito nobre - torna-lhe o mouro -, mas muito mal fazem ao seu senhor, os duques e os condes que o aconselham; esgotam-lhe as
forças, perdem-no, a ele e aos seus.
- Que eu saiba, isso não é verdade, a não ser pelo aguerrido conde Roland, que algum dia pagará caro a sua arrogância. Uma destas manhãs o imperador
estava sentado à sombra, quando dentre os arbustos aparece o seu sobrinho, que das cercanias de Carcasoine traz grande espólio. Na mão ostenta uma maçã
vermelha. “Tomai-a, belo senhor - diz ao tio. - As coroas de todos os reis não valem para mim mais do que essa maçã; dou-vo-la de presente.” O seu orgulho não
tem limites, é bom para o perder, porque todos os dias como presa se oferece à morte. Se alguém o apunhalasse, teríamos finalmente a paz!

XXIV

Blancandrin ficou pasmado:


- Roland é bem digno de ódio - diz ele -, pois quer pôr à sua mercê todas as nações e pretende todas as terras! Para tanto, com quem conta ele?

XXV

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- Com os Francos - responde Ganelon. - Eles amam-no tanto, que nunca querem faltar-lhe. Ele dá-lhes ouro e prata, mulas e cavalos de guerra, panos de
seda e armaduras. Ao próprio imperador ele oferecerá a conquista de todos os países daqui até ao Oriente.

XXVI

Depois de muito cavalgarem, concordaram fazer uma jura sobre as suas crenças; procurariam dar a morte a Roland.
Seguindo sempre por maus caminhos, entre as oliveiras, avistaram, por fim, Saragoça, e apearam-se debaixo dum teixo. À sombra dum pinheiro
levanta-se um trono envolto em seda de Alexandria; aí está sentado o rei de todas as Espanhas. À volta dele, vinte mil sarracenos; nenhum profere palavra ao
verem os dois cavaleiros.

XXVII

Blancandrin aproxima-se de Marsile, levando pelo punho o conde Ganelon.


- Eu vos saúdo - diz o rei - em nome de Maomet e de Apollin, cuja santa lei respeitamos! Apresentei a vossa mensagem a Carlos,
que para o céu levantou as mãos, louvou a Deus, e não deu outra resposta. Mas manda-vos este nobre barão, que é um grande senhor
de França. Por ele sabereis se teremos a paz ou a guerra.
Marsile responde:
- Que ele fale, escutá-lo-emos!

XXVIII

Ora o conde Ganelon já há muito tinha pensado o que devia dizer. Com grande arte começou, tal como um homem que sabe
muito bem falar:
- Eu vos saúdo em nome de Deus Glorioso, que todos devemos adorar.
Eis o que vos manda Carlos Magno, o destemido: tomai a santa Lei Cristã, e recebereis em feudo metade das Espanhas. Se não
quiserdes aceitar este acordo, a vossa cidade será cercada, sereis levado à forca para Aix, onde, depois de julgado e condenado, vos espera
uma morte vergonhosa e vil.
O rei estremeceu, está negro de raiva. Com o dardo empenachado de ouro, que tem na mão, vai para bater no conde, mas
retêm-no.

A embaixada e o crime de Ganelon

XXIX

Empalidece e abana furiosamente o dardo. Quando Ganelon o vê assim, põe a mão na espada. Arranca-a um pouco da bainha e diz-lhe:

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-Vós sois bela e luzidia... Por muito tempo vos trouxe na corte real, e não poderá dizer o imperador dos Francos que eu morri sózinho, em terra
estrangeira, sem que os mais valorosos por um justo preço vos tenham comprado.
Os pagãos disseram:
- Evitemos a luta.

XXX

Tanto lhe pediram os melhores sarracenos, que Marsile voltou a sentar-se. Seu tio, o califa, disse:
- Ficaremos em má posição se quiserdes atacar o francês; deveis esperar e ouvir.
- São coisas que um mensageiro tem de sofrer - proferiu Ganelon -; porém, nem por todo o ouro que Deus fez, nem por todas as riquezas do Mundo,
deixarei de vos dizer o que Carlos, o rei poderoso, vos ordena, como vosso mortal inimigo.
Trazia um casaco de zibelina coberto a seda de Alexandria. Tirou-o e entregou-o a Blancandrin, mas conservou a mão direita no botão dourado da espada.
Os pagãos exclamaram:
- Que nobre barão!
Depois avança para o rei e com arrogância diz-lhe:
- Irritais-vos sem razão. Carlos, senhor da doce França, se receberdes a Lei Cristã, dar-vos-á em feudo metade das Espanhas. A outra metade tê-la-á
Roland, seu sobrinho. Partilhareis assim as vossas terras com um orgulhosíssimo senhor. Se não quiserdes aceitar este acordo, o rei virá sitiar-vos em Saragoça, à
força sereis ligado de pés e mãos e, não tendo para a jornada palafrém nem corcel, macho nem mula, sereis lançado sobre uma besta de carga e levado para Aix; aí
por julgamento vos cortarão a cabeça. O nosso imperador manda-vos este breve.

XXXI

Marsile espuma de raiva, rompe o selo, lança fora o lacre, olha o breve e depois de ver o que está escrito, profere:
- Carlos diz-me que me recorde da sua dor e da sua cólera por causa de Basan e de Basille, a quem cortei as cabeças nos montes de Haltoie. Se eu quero
resgatar a minha vida, que lhe mande meu tio, o califa; sem isso nunca mais fará as pazes comigo.
Então tomou a palavra o filho de Marsile:
- Senhor, Ganelon falou como um louco. Foi longe demais, não tem mais direito de viver. Entregai-mo, eu farei justiça.
Quando o conde o ouviu, brandiu a espada, avançou para debaixo do pinheiro e encostou-se ao tronco.

XXXII

Porém o rei mouro retirou-se para o vergel e levou consigo os seus melhores vassalos: Blancandrin, o encanecido, Jurfaret, que é seu filho e seu herdeiro,
o califa, seu tio e seu fiel. Foi Blancandrin quem falou:
- Chamai o francês, ele vos servirá, jurou-mo pela sua fé.
O rei disse-lhe:
- Trazei-o, pois.

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E Blancandrin tomou-o pela mão e, através do vergel, conduziu-o ao rei.
Aí, eles combinam a feia traição.

XXXIII

- Belo Senhor Ganelon, tratei-vos com pouca cortesia quando, na minha cólera, quase vos bati. Afianço-vos, por estas peles de marta zibelina, que valem
mais de quinhentas libras, que antes de amanhã à noite ter-vos-ei pago bela indenização.
Ganelon responde:
- Eu não recuso; que Deus, se lhe agrada, vos recompense por isso.

XXXIV

- Conde Ganelon - torna-lhe Marsile -, sabei-o com verdade, do coração desejo amar-vos. Gostaria de vos ouvir falar de Carlos Magno. Será tão velho
como dizem? Tenho conhecimento de que talvez haja ultrapassado já os duzentos anos. Por tantas regiões levou suas hostes, sobre o escudo apanhou tantos golpes,
tantos ricos reis reduziu a mendigar...; quando se cansará ele de fazer a guerra?
- Enganais-vos, Carlos não é quem pensais. Nenhum homem o vê que não diga: eis um valente. Nunca o louvarei bastante; há mais honra nele e mais
virtude do que tudo o que as minhas palavras possam dizer. O seu grande valor, quem ousará descrevê-lo? Deus fez brilhar nele a maior nobreza! É tão leal, que
amaria mais a morte do que faltar aos seus barões.

XXXV

- Deslumbro-me - diz o pagão - e tenho razões para isso. Carlos Magno é velho e encanecido, sei que tem duzentos anos ou mais; por tantas terras e
trabalhos arrastou o corpo, recebeu tantas cutiladas, reduziu à penúria tantos ricos reis...; quando se fartará de conduzir novas guerras?
- Nunca mais - responde Ganelon - enquanto viver o seu sobrinho. Não há ninguém tão corajoso como Roland, sob o manto do céu. Tem por
companheiro Olivier, o valoroso, e os doze pares, que Carlos tanto ama, e que formam a sua guarda avançada com vinte mil cavaleiros. Assim o imperador está em
segurança, não temendo nenhum homem vivo.

XXXVI

- Belo Senhor Ganelon - torna-lhe Marsile -, eu tenho um exército como nunca vereis outro mais belo e no qual há quatrocentos mil cavaleiros; poderei
dar batalha a Carlos e aos seus Francos?
- Não, por certo; veríeis as vossas hostes desbaratadas. Deixai as loucuras, atendei à prudência. Dai ao imperador tão ricos presentes, que não haja francês
que se não deslumbre. Por vinte reféns que lhe mandeis, ele voltará para a doce França. Atrás dele ficarão as tropas da retaguarda, das quais poderá fazer parte o
seu sobrinho, o conde, Roland, e também Olivier, o valente, o cortês; morrerão os dois se eu encontrar quem me escute. Carlos verá o seu orgulho cair, passar-lhe-á
a vontade de vos guerrear e nunca mais voltará às Espanhas.

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XXXVII

- Belo Senhor Ganelon, como poderei eu dar a morte ao conde Roland?


- Eu vo-lo direi: O rei passará a França pelas portas de Cize, atrás dele terá deixado as tropas da retaguarda. Aí estará o seu sobrinho e Olivier, no qual
tem tanta confiança, e na companhia deles vinte mil franceses. Mandai cem mil dos vossos pagãos a dar-lhes uma primeira batalha. Os Francos terão muitas baixas
e muitos feridos; não digo que os vossos soldados não sofram uma derrota. Mas mandai-lhe, da mesma forma, uma segunda hoste; numa ou noutra Roland
perecerá. Então, tereis realizado uma bela cavalaria e em toda a vossa vida não mais tereis guerra.

XXXVIII

- Quem pudesse conseguir que Roland fosse morto nestes combates - prosseguiu Ganelon -, teria conseguido que Carlos perdesse o braço direito do seu
corpo. Assim terminariam os magníficos exércitos francos, Carlos nunca mais juntaria tão grandes levantamentos, a terra dos avós ficaria em repouso!
Quando Marsile isto ouviu, ficou tão cheio de júbilo, que o beijou no pescoço.

XXXIX

- Um acordo sem juramento nada vale - diz o mouro. - Jurais-me trair o conde Roland?
- Seja feito como vos agrada! - respondeu Ganelon, e sobre as relíquias da sua espada Murgleis, jurou a traição; foi, afinal, este o seu pior crime.

XL

Vem um banco todo em marfim, e Marsile manda buscar um livro, onde está escrito a lei de Maomet e Tervagan.
E o sarraceno das Espanhas jura que, se encontrar Roland nas tropas da retaguarda, lhe dará combate com toda a sua gente, até que o conde seja morto.
- Que a vossa vontade se realize! - exclama Ganelon.

XLI

O pagão Valdabron aproxima-se então do rei Marsile, com o riso a bailar-lhe nos olhos, e diz a Ganelon:
- Tomai a minha espada, ninguém tem outra melhor. Por amizade, belo Senhor, dou-vo-la e vos ajudarei de maneira a podermos encontrar na retaguarda o
valoroso Roland.
- Assim faremos - respondeu o conde, e beijaram-se no rosto e no queixo.

XLII

Depois veio o pagão Climorin; em riso claro, diz a Ganelon:

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- Tomai o meu elmo, nunca vi outro melhor em minha vida; que ele vos ajude contra o conde Roland, de tal maneira que nós o possamos desonrar.
- Far-se-á assim - torna-lhe o traidor, e beijaram-se na boca e no rosto.

XLIII

Por fim, chegou a rainha Bramimonde.


- Muito vos amo, Senhor; à vossa mulher mandarei dois colares, todos de ouro, ametistas e pedras preciosas; valem mais do que todas as riquezas de
Roma, e o vosso imperador nunca teve outros tão belos.
Ganelon toma-os e mete-os no cano da polaina.
O rei chama Malduit, o seu tesoureiro:
- Está pronto o tesouro que quero mandar a Carlos?
- Sim, meu Senhor; setecentos camelos, de ouro e prata carregados, e vinte reféns dos mais nobres que existem sobre o céu.

XLIV

Marsile agarra Ganelon pelo ombro e diz-lhe:


- Vós sois valoroso e prudente. Pela lei que tendes por mais santa, não retireis de nós o vosso coração! Quero dar-vos grande cópia das minhas riquezas;
dar-vos-ei cada ano dez mulas carregadas do mais fino ouro da Arábia. Pegai agora nas chaves desta cidade e dos seus grandes tesouros, apresentai-as à Carlos, e
depois consegui que Roland fique à comandar a retaguarda. Se eu alcançar e encontrá-lo, travarei com ele batalha mortal.
Ganelon respondeu:
- Já é tempo de me pôr a caminho.
Montou a cavalo e partiu.

XLV

Carlos Magno levantara-se cedo, ouvir a missa e matinas; diante da sua tenda está, de pé sobre a relva, Roland, e perto dele Olivier, o destemido, Naimes,
o duque, e muitos outros. Aproxima-se Ganelon, o falso, o perjuro, e com a sua manha começa a falar.
- Salve, por Deus! - diz ele ao rei. - Trago-vos as chaves de Saragoça, aqui estão, e eis aqui também este grande tesouro e os vinte reféns. O rei Marsile, o
valente, manda-vos dizer que só não vos pode entregar o califa, seu tio; mas não o deveis censurar, pois diante dos meus olhos vi os quatrocentos mil homens
armados, vestidos de cota de malha. Alguns traziam armaduras e os elmos amarrados, cingidas as espadas com punhos de ouro esmaltado. Fugiam de Marsile, por
causa da Lei de Cristã, que não queriam receber nem respeitar; porém, ainda não tinham navegado quatro léguas ao largo, quando os assaltou uma grande tormenta
- as fustas voltaram-se, houve um grande naufrágio; nunca mais vereis nenhum daqueles mouros. Se o califa estivesse vivo, tê-lo-ia trazido. Quanto ao rei, tende
por verdade que não vereis este primeiro mês passar, sem que ele vos siga para o reino de França; deseja receber a Lei Cristã, de mãos juntas vos prestará
vassalagem e de vós tomará o reino das Espanhas.
- Que Deus seja bendito! Vós me servistes fielmente, tereis grande recompensa.

12
Retinem os mil clarins do exército, os Francos levantam o acampamento, carregam as mulas e os carros de viagem... para a doce França todos se
encaminham.

XLVI

O conde Roland prende à sua lança o gonfalão; do alto dum cômoro, ergue-a para o céu; a este sinal os Francos levantam as suas tendas por toda a região.
Ora, pelos largos vales os pagãos cavalgam com a cota vestida, a espada cingida, o elmo preso, o escudo ao pescoço, a lança em riste. Numa floresta, no
cimo dos montes fazem alto; são quatrocentos mil e esperam a aurora.
Senhor Deus, como é triste que os Francos não o saibam!

XLVII

O dia cai, a noite vem, Carlos dorme e sonha: está nas grandes portas de Cize e entre os seus punhos tem uma lança de freixo. Ganelon agarra-a tão
rudemente, que ela parte-se em mil bocados.
O imperador não acorda e sonha novamente: está em França, na sua capela em Aix. Um leopardo morde-o no braço direito, mas de repente vem do fundo
da sala um alão de matilha, lança-se contra a fera cruel e ambos lutam valorosamente; porém, Carlos não sabe qual deles ficará vencedor.

XLVIII

Passou a noite, a aurora levanta-se clara. Pelas filas do exército o imperador cavalga altivamente.
- Senhores barões, vede as portas e as estreitas passagens; escolhei-me quem comandará a retaguarda.
Ganelon responde logo:
- Deve ser Roland, o meu enteado: não tendes barão de maior valentia.
O rei ouve, olha-o duramente, e depois diz-lhe:
- Algum demônio vos possui a alma...? Se assim fosse, quem comandaria a guarda avançada?

XLIX

O conde Roland, quando se ouviu nomear, falou como verdadeiro cavaleiro:


- Senhor padrasto, tenho motivo para vos querer bem, pois elegestes-me para a retaguarda. Carlos, nosso rei, não perderá, creio eu, palafrém nem corcel,
macho nem mula, cavalo de sela ou carga, sem que primeiro tenha sido disputado à espada.
Ganelon respondeu:
- Dizeis a verdade, sei-o bem.

13
Roland, porém, completou:
- Se imaginais que eu deixarei cair o bastão como vós a luva, estais enganado.
- Reto imperador - continua Roland -, dai-me o arco que tendes no punho. Espero que ninguém me censure por o deixar cair como fez Ganelon à luva da
vossa mão direita.
O imperador tinha a cabeça baixa, alisava a barba, torcia o bigode, chorava, não se podendo conter.
Então vem o duque de Naimes e diz-lhe:
- Ouvistes o conde Roland. Não tendes barão melhor para desempenhar tão alta missão; entregai-lhe o arco e nomeai as hostes que ficarão com ele.
O rei, angustiado, estende o arco, e Roland agarra-o.

LI

Carlos, muito comovido, diz-lhe, com todo o amor:


- Belo senhor sobrinho, ofereço-vos metade dos meus exércitos; conservai convosco essas tropas, elas serão a vossa salvação.
Mas o conde respondeu:
- Não farei isso, Deus me confunda se eu desmentir a minha linhagem. guardarei comigo somente vinte mil francos; com toda a segurança atravessai as
portas. Não tendes razão para temer ninguém enquanto eu for vivo.
LII

O conde Roland monta o seu corcel. Na sua direção avança Olivier, o seu par, e com ele Gerin, o valente conde Gerier, Oton e Bérengier, Astor e Anseïs,
o altivo, Gérard do Rossillon, o velho, e o rico duque Gaifier.
O arcebispo Turpin diz:
- Irei convosco.
- Sou dos de Roland, não lhe devo faltar - pronunciou o conde Gautier.
Depois escolhem vinte mil cavaleiros.

LIII

O conde Roland chama Gautier de Hum e ordena:


- Tomai mil francos de França e vigiai os desfiladeiros e as alturas para que o imperador não perca um único homem dos que estão com ele.
Gaulier responde:
- Assim farei, gracioso Senhor!
Com mil cavaleiros o senhor de Hum sai das fileiras a caminho dos desfiladeiros e das alturas; embora haja más novas, ele não descerá antes que as mil
espadas não tenham sido desembainhadas. Nesse mesmo dia o rei Almaris, do país de Belferne, deu-lhe batalha.

LIV

14
Altos são os montes, tenebrosos os vales, sinistros os desfiladeiros.
Nesse mesmo dia os Francos passam-nos com grande dor; quinze léguas à volta ouve-se o tropel da sua marcha.
Quando chegam à terra dos avós e vêm as Gasconha, recordam os seus feudos, as raparigas da sua terra, e as suas nobres mulheres. Não há um só que de
ternura não chore.
Carlos cavalga cheio de angústia; nas portas de Espanha deixou o seu sobrinho. Uma grande piedade invade-o; chora, não se pode conter.

LV

Os doze pares ficaram nas Espanhas e com eles vinte mil franceses, aguerridos, valentes, sem medo da morte.
O imperador, a caminho da França, sob o manto esconde a sua angústia. Ao pé dele cavalga o duque de Naimes, que lhe diz:
- Senhor, qual é o vosso tormento?
Carlos responde-lhe:
- Porque mo perguntais? Ofendeis-me, desconhecendo-o! A minha dor é tão grande, que
não a posso calar. Por causa de Ganelon a França cairá na ruína. Esta noite tive uma visão: entre os
meus punhos Ganelon quebrou a minha lança e eis que ele elege o meu sobrinho para a retaguarda.
Acabo de o deixar numa difícil missão; se o perder, nunca mais arranjarei outro como ele. Deus, que
grande é a minha dor!

15
LVI

Carlos Magno chora, cem mil franceses têm pena dele e tremem por Roland, cheios dum estranho medo.
Ganelon, o desleal, traiu-o e recebeu por isso do rei pagão grandes dons, ouro, prata, panos de seda, mulas, camelos e leões.
Ora Marsile mandou através das Espanhas barões, condes, viscondes, almirantes e filas de vassalos.
Juntou em três dias quatrocentos mil sarracenos em Saragoça, ao som dos tambores.
Levantaram sobre a torre de menagem Maomet e cada pagão lhe reza e o adora. Depois, em marcha cerrada, todos cavalgam, passam vales, sobem
montes; enfim, vêem os gonfalões dos dos Franceses.

A retaguarda - Roland é condenado á morte


LVII

Avança o sobrinho de Marsile montado num macho e diz ao tio, rindo belamente:
- Senhor Rei, muito tempo vos servi na guerra e por único salário só recebi trabalhos e tormentos! Tantas batalhas ganhas! Dai-me um feudo: o dom de
bater em Roland a primeira pancada! Matá-lo-ei com o meu cortante venábulo, se Maomet me quiser tomar sob a sua guarda; libertarei as Espanhas, desde as
portas de Cize até Durestant. Carlos está cansado, os Francos render-se-ão, nunca mais na vossa vida tereis guerra.
O rei Marsile deu-lhe a luva.

LVIII

O sobrinho do rei veste-a e diz ao tio:


-Vós, Senhor, fizeste-me grande mercê. Escolhei-me, portanto, doze dos vossos barões; com eles combaterei os dozes pares.
Primeiramente ofereceu-se Falsaron, que era irmão do rei Marsile.
-Senhor sobrinho, irei convosco.

LIX

Vem depois o rei Corsalis, que é da barberia e sabe artes mágicas, oferecer-se também.
Chega a galope Malprimis de Brigante, que diante de Marsile exclama em alta voz:
- Levarei convosco o meu corpo a Roncesvalles; se aí encontrar Roland, travarei com ele uma luta mortal.

LX

16
Logo se aproxima outro mouro de Balaguer, que pela sua coragem tem grande nomeada, e diz:
-Em Roncesvalles irei expor o meu corpo; se encontrar Roland, matá-lo-ei, assim como a Olivier e aos doze pares. Um grande luto envergonhará os
Franceses. Carlos, o grande, está velho demais, desatina, fartar-se-á de guerras, e as Espanhas tornarão a ser nossas.
O rei agradeceu-lhe muito.

LXI

Apresenta-se diante de Marsile outro sarraceno de Mariane. Não há maior traidor sobre a terra das Espanhas. Gabando-se, diz:
- Para Roncesvalles conduzirei a minha hoste de vinte mil homens, levando escudos e lanças. Se encontrar Roland, travarei com ele um duelo mortal,
juro-o pela minha fé; todos os dias da sua vida, Carlos o chorará com grande lamúria.

LXII

Doutro lado surge Turgis de Tortelosa; é conde e a cidade de Tortelosa é sua. Aos cristãos deseja má morte. Enfileira diante de Marsile e diz-lhe:
- Nada temais. Mais vale Maomet do que São Pedro de Roma; se o servirdes, a honra do campo de batalha será vossa. Irei combater Roland a
Roncesvalles. Vede a minha bela espada; contra Durendal quero experimentá-la. Qual sairá vencedora? Depois, ouvireis contar! Os Franceses serão derrotados se,
se aventurarem contra nós; Carlos, o velho, sofrerá dor e vergonha; nunca mais sobre a terra usará coroa.

LXIII

Em seguida, chega Escremiz de Valterne e grita dentre a multidão:


- Irei também a Roncesvalles combater o orgulhoso. Se encontrar Roland, atacá-lo-ei, assim como a Olivier; um e outro deixarão de viver. Os Franceses
serão desbaratados, a França ficará deserta, Carlos terá penúria de vassalos.

LXIV

Depois surge Esturgant e seu companheiro Estramariz, ambos desleais e traidores. Marsile diz-lhes:
- Senhores, avançai ! Ireis a Roncesvalles, à passagem das portas; ajudai a comandar a minhas tropas.
Eles respondem:
- Atacaremos Roland e Olivier, levaremos à ruína os doze pares. Nossas boas espadas tingiremos no quente sangue de França. Carlos chorará os seus
homens, a terra dos avós será finalmente vossa. Vinde, Senhor, e vereis a nossa bravura; somos capazes de vos dar de presente o próprio imperador.

LXV

17
Correndo chega Marganiz de Sevilha; é senhor de todas as terras até Cazmarines. Pela sua beleza as damas amam-no, desabrocha-lhes na boca um lindo
sorriso quando o vêem passar. Nenhum pagão é tão bom cavaleiro. Do meio da multidão altera a voz e grita ao rei:
- Nada temais; vede está espada cuja bainha é de ouro; foi o emir de Primes quem me deu; no sangue francês será tingida; as vidas de Roland e Olivier
por ela serão ceifadas. Carlos, o velho de barba florida, terá até a morte, luto e cólera. Antes dum ano teremos a França como um feudo e poderemos dormir no
burgo de São Diniz.
O rei pagão inclina-se profundamente diante dele.

LXVI

Doutro lado surge Chernuble e Munigre; usa duas grandes tranças, tem os olhos tortos e seu aspecto é medonho. Tal é a sua força que pode com carga de
quatro machos albardados. É dum país desolado e maldito. Diz ao rei:
- Cingi a minha boa espada; em Roncesvalles a banharei no sangue de Roland e conquistarei Durendal. Os Francos serão vencidos e a França ficará uma
terra erma.
A estas palavras os cavaleiros infiéis juntam-se; com eles levam cem mil sarracenos, todos ansiosos por se baterem. Vão armar-se para debaixo duma
mata de abetos.

LXVII

Os pagãos armam-se de lorigões sarracenos de grande espessura, de escamas de ferro e malha, prendem os seus elmos de Saragoça, cingem as espadas de
aço luzente. No braço seguram ricos escudos; venábulos de Valença, gonfalões brancos, azuis e vermelhos ostentam na mão. Abandonaram os
machos e palafréns, montam agora corcéis; cavalgam em filas cerradas.
Claro é o dia, belo o sol; não há armadura que toda não flameje. Mil clarins soam para animar os homens de armas. O barulho é grande; os
Francos ouvem-no.
Olivier diz:
- Senhor companheiro, parece que teremos de nos haver com os sarracenos; ouvis acaso este estranho tropel?
- Ah! - diz Roland - que Deus mo conceda! Devemos manter-nos aqui pelo nosso rei. Pelo seu senhor deve o bom vassalo sofrer penúria,
suportar os grandes calores e os grandes frios, perder couro e cabelo. Que cada um procure dar belos golpes, para que de nós não se cante jamais
uma triste canção. A injustiça é dos pagãos, nosso o direito; nunca de mim se dirá nada que não seja exemplar.

LXVIII

Olivier sobe a um alto, olha à direita para o vale relvado e vê aproximarem-se os exércitos mouriscos. Chama Roland, seu
companheiro:
- Vejo chegar dos lados de Saragoça grandes hostes, muitos lourigões brilham, muitos elmos flamejam! Ganelon, o desleal, o traidor,
sabia que os sarracenos nos armariam emboscada; por isso nos designou para esta empresa.
- Cala-te, Olivier, nada digas de mal, pois ele é meu padastro!

18
LXIX

Olivier vê os vales cheios de hostes mouriscas; são os sarracenos que se juntaram em massa. Os elmos com gemas engastadas em ouro, os escudos, os
lorigões e os venábulos brilham; os gonfalões drapejam ao vento.
Não pode sequer calcular o número dos exércitos. Sente-se grandemente perturbado, desce a galope do cimo do outeiro e conta aos Franceses o que vira.

LXX

- Vi os pagãos; nunca homem sobre a terra viu maior exército. Diante de nós, são bem cem mil, de escudo no braço, o elmo laçado, os lorigões brancos
vestidos; os seus venábulos cinzentos brilham com as hastes levantadas. Tereis uma batalha como nunca houve. Senhores Franceses, que Deus vos dê a sua força;
agüentai firmes, para não sermos vencidos!
Os Francos dizem:
- Desonrado seja quem fugir; até à morte nenhum de nós vos faltará!
LXXI

Depois, dirigindo-se a Roland, Olivier pronuncia:


- Os pagãos são muitos, os nossos franceses bem poucos. Roland, meu companheiro, tocai a vossa trompa; Carlos ouvi-la-á; juntos faremos uma boa
vitória.
Mas Roland responde:
-Isso seria loucura; assim, na doce França, perderia eu a minha fama. Num momento descarregarei tais golpes com Durendal, que a sua lâmina mudará de
cor. Os pagãos traidores vieram às portas para sua desgraça. Juro-vo-lo, todos estão marcados para a morte.

LXXII

- Roland, meu companheiro, tocai a trompa! Carlos ouvi-la-á, trará os exércitos, socorrer-nos-á com todos os seus barões.
Roland continua firme na sua determinação:
- Não queira Deus que por mim os meus pais sejam criticados e que a doce França seja desprezada. Com Durendal não temo ninguém; hoje mesmo vereis
a sua lâmina tingida de sangue traidor. Os sarracenos juntaram-se para a sua desgraça. Juro-vo-lo, todos serão passados à espada.

LXXIII

- Roland, meu companheiro, tocai a vossa trompa! Carlos, que está ainda na passagem das portas, ouvi-la-á. Juro-vo-lo, os Franceses voltarão.
- Não queira Deus - insiste Roland, na sua negativa - que qualquer homem vivo, algum dia possa dizer que por causa de pagãos toquei a minha trompa!
Nunca disso os meus pais receberão censura. Quando estivermos na grande batalha desferirei mil e setecentos golpes e vós vereis outros tantos pagãos mortos a
meus pés; os Franceses são destemidos, os Sarracenos caminham para a sua ruína.

19
LXXIV

Olivier torna-lhe:
- Porque vos haviam de censurar? Eu vi os sarracenos; os vales e os montes estão cobertos deles, as colinas e a vasta planície. Grandes são os exércitos
dessa raça estrangeira e a nossa hoste bem pequena!
Roland, porém, não cede, declarando:
- O meu ardor cresce. Não queira o Senhor Deus, nem os Seus anjos, que por minha causa a França perca o seu preço. Prefiro morrer, a cair na vergonha!
Quanto mais lutarmos, tanto mais pelo Imperador nós seremos amados.

LXXV

Roland é ousado, Olivier prudente. Porém, ambos têm maravilhosa coragem. Uma vez a cavalo e com armas na mão, nunca por medo da morte se
esquivarão a dar batalha. Os dois condes são exemplares e retos nas suas palavras.
Os pagãos traidores aproximaram-se à galope, e Olivier diz:
- Roland, vede como é grande o seu número. Estão já perto de nós e Carlos encontra-se longe! Não quisestes tocar a vossa trompa, e olhai, a nossa hoste é
bem digna de piedade; quem tiver feito hoje a retaguarda, jamais a fará.
Roland responde-lhe:
- Desonrado o coração que no peito se acobarda! Aguentaremo-lo firme; nós é que conduziremos as lides e os combates.

LXXVI

Quando Roland viu que, realmente, haveria batalha, fez-se mais altivo do que um leão ou leopardo.
Chama Olivier e diz-lhe, de forma que os outros franceses o ouçam:
- Senhor companheiro, o imperador deixou-nos na retaguarda, porque estava certo de que nenhum de nós era um poltrão. Pelo nosso rei devemos sofrer
grandes males; se for preciso daremos a carne e o sangue. Feri, conde Olivier, com a vossa lança, eu ferirei com Durendal, a espada que o Imperador me deu.
LXXVII

No outro flanco da hoste cavalga o arcebispo Turpin; esporeia o corcel e sobe ao alto dum cômoro.
Faz aos franceses este sermão:
- Senhores Barões, o Imperador deixou-nos aqui; por ele devemos bem morrer. Ajudai a sustentar a Cristandade! Teremos dura batalha; vedes os
sarracenos? Pedi a Deus Suas mercês; Absolver-vos-ei para salvardes vossas almas; se morrerdes, sereis santos mártires e tereis assento no mais alto paraíso.
Os franceses apearam-se dos cavalos e prostaram-se contra a terra. O arcebispo, em nome de Deus, abençoou-os; por penitência ordenou-lhes que
ferissem com valentia.

LXXVIII

20
Em seguida, levantam-se e ficam de pé, bem absolvidos, quites dos seus pecados. Agora montam os seus corcéis corredores, estão armados como convém
a cavaleiros e completamente preparados para a batalha.
O conde Roland chama Olivier:
- Senhor companheiro, dissestes bem, Ganelon traiu-nos. Possa o Imperador vingar-nos! O rei Marsile comprou-nos, mas esta mercadoria só a terá pelas
espadas!

LXXIX

Roland monta Veillantif, o seu corcel corredor; está vestido com todas as suas armas, que bem o adornam.
Eis que ele brande a espada, o valoroso, para o céu vira a ponta, ao ferro cai atado um gonfalão branco, as franjas batem-lhe na mão. Nobre é o seu corpo,
o seu rosto, claro e risonho.
Atrás dele cavalga Olivier.
Roland olha ameaçador, para os sarracenos, depois, humilde e doce, para os franceses, a quem dirige estas palavras cheias de cortesia:
- Senhores Barões, estes infiéis vêm à procura do martírio; antes que a noite tombe, teremos ganho um belo e rico espólio; nunca rei de França teve outro
semelhante.
Enquanto falava, os exércitos juntaram-se.

LXXX

Depois fala-lhes Olivier:


- Senhores Barões, cavalgai com valentia, aguentai firmemente a batalha. Peço-vos, por Deus: estai resolvidos a bem ferir, golpe dado por golpe recebido.
E não esqueçais o grito de armas de Carlos.
A estas palavras todos os franceses gritam:
- Mont - joie!
Quem os tivesse escutado, ficaria com a recordação duma bela bravura. Depois todos cavalgam. Deus do Céus, com que força enterram as esporas nos
flancos dos corcéis!
O verde prado que separa a primeira linha de cada exército cada vez se torna menor.
Os corcéis relincham furiosamente; o tropel é medonho.

LXXXI

À frente do exército mouro vem Aelroth, sobrinho do rei Marsile. Vai dizendo aos franceses feias palavras:
- Perros de França, hoje combatereis contra os nossos. Traiu-vos quem vos devia proteger.
Cada vez estão mais perto cristãos e sarracenos; os cavalos mordem os freios com raiva.
Neste dia, a doce França perderá o seu louvor, e Carlos Magno, o braço direito do seu corpo.

21
Os cavalos chocam-se uns contra os outros, as armas retinem, os pendões ensarilham-se; nuvens de pó confundem mouros e franceses...
Roland, quando ouve os insultos de Aelroth, virando o cavalo com brusco sacão nas rédeas, ataca-o com um ímpeto terrível. Quebra-lhe o escudo,
rasga-lhe o lorigão, fende-lhe o peito. Com o ensanguentado venábulo deita-lhe a alma cá fora; o pagão não pode lançar um ai. Enterra o ferro com força, sacode o
corpo e com a haste da bandeira abate-o. O sarraceno cai morto abaixo do seu ginete. Arfando ainda, Roland diz:
- Filho de servo, não mais dirás que a França perde hoje o seu louvor, e Carlos Magno o seu braço direito.

LXXXII

Perto vem a galope desenfreado um duque, por nome Falsaron; é irmão do rei Marsile e pertencem-lhe as terras de Daltan e de Abiron. Grande dor sente
ao ver cair seu sobrinho e acerca-se, injuriando os franceses. Olivier ouve-o e irrita-se. Com suas esporas douradas esporeia e vai ferir o pagão, rasga-lhe a cota de
malha, enterra-lhe no corpo os panos do seu gonfalão, com a ajuda da haste arranca-o dos estribos e lança-o entre as patas do seu corcel.
Grita alto:
- Mont-joie!

LXXXIII

O ruído das armas, os gritos de guerra, os berros dos feridos, os relinchos desesperados e o tropel dos cavalos metem medo... À terra treme e o sangue
ensopa já a erva verde e as rochas negras. As insígnias mouriscas são calcadas pelos corcéis, os ginetes, sem dono, passam por cima dos cavaleiros que já não
podem lutar.
Acerca-se do rei Corsalis, que é senhor da Berbéria, a terra longínqua, o arce-bispo Turpin de Reims. Enterra as esporas de ouro fino nos flancos do seu
corcel e com um golpe certeiro arranca o pagão da sela e lança-o morto, esvaído em sangue, sobre os rochedos.
- Que os cavalos te pisem e despedacem traidor - profere.
Depois, incitando os franceses, grita alto e muitas vezes:
- Mont-joie!

Segunda Parte
A morte de Roland
*

22
O prelúdio da grande batalha

23
LXXXIV

A luta torna-se cada vez mais rude.


Gerin ataca Malprimis de Brigal; o bom escudo do pagão não vale para ele um dinheiro. Com uma pancada quebra-lhe a fivela de cristal, enterra-lhe no
corpo o bom venábulo, o pagão cai como uma massa.
A sua alma leva-a Satã para os Infernos.
No meio da confusão, entre cavalos feridos e armas quebradas, Gerier ataca um rico mouro de Balguer.
Com um grande golpe rasga-lhe o lorigão e atravessa-lhe os fígados; o mouro dá um grande brado e cai do cavalo.

24
LXXXV

O duque de Samson desfere magníficos golpes à direita e à esquerda. Num momento cai-lhe um mouro de Moriane nas mãos. O duque quebra-lhe o
escudo ornado de florões, fura-lhe o coração, o corpo cai sobre o pescoço do ginete e é por ele levado em louca correria.
O arcebispo diz:
- Este golpe foi dum valente!

LXXXVI

Turgis de Tortelosa é vítima de Anseis, que dum único golpe lhe rasga o duplo lorigão e o trespassa do peito às espáduas. O mouro cai sobre a garupa do
cavalo que, aos coices, o lança longe.
Roland comenta:
- Este golpe foi dum destemido!

LXXXVII

Os Francos estão quase cegos, o suor ensombralhes os olhos, o pó cola-se-lhes às gargantas, a febre invade-lhes os corpos... Engelier, o gascão de
Bordéus, tonto de raiva, esporeia o seu corcel alazão, larga-lhe as rédeas e vai direito a Escremiz de Valterne; num momento o sarraceno rola, trespassado, sobre
um charco de sangue.

LXXXVIII

Os cavalos chocam-se; as rédeas do ginete de Estrugan prendem-se no freio do cavalo de Oton; este fere o infiel na cabeça, o elmo cai partido em
bocados.
A pancada foi grande, o pagão fica derrubado sobre o lado direito do corcel. Então Oton fere-o na garupa; o animal empina-se, dá um relincho de dor e
Estrugan cai entre as patas.

LXXXIX

Berengier lida com Astramariz. Com um golpe forte de venábulo ataca-o no quadril; o sarraceno agarra-se à sela alta, mas o cavalo assusta-se e foge com
ele a rastos.
Dos doze pares, eis que dez já são mortos, só dois vivem ainda: são Chernuble e o rei Margariz.

XC

25
Margariz é um valente cavaleiro, forte, ágil e leve. Esporeia com força o seu ginete e vai atacar Olivier. Quebra-lhe o escudo sob a fivela de ouro puro e
ao longo das costelas rompe-lhe o lorigão. Deus, porém protege-o, e o conde não é ferido.
A haste do venábulo do rei quebrou-se, mas Olivier não foi derrubado.
Margariz, fulo de raiva, toca a trompa para juntar os seus.

XCI

A batalha cresce, e, com o calor do meio-dia, o ardor redobra. O conde Roland desfere golpes tremendos. A décima quinta pancada, quebra-se o
venábulo. Então, desembainha Durendal; o sol dá em cheio na espada e o reflexo ilumina o rosto do conde. Senhor Deus, como é belo!
Vê Chernuble ao longe, esporeia o cavalo e vai no seu encalço. O mouro foge-lhe até junto dum precipício, mas aí pára, pois o cavalo recusa-se. Roland
alcança-o. Com uma espadeirada quebra-lhe o elmo guarnecido de jóias, que se espalham pela relva. Com outro golpe certeiro, rasga-lhe a face entre os olhos, do
peito até ao ventre. O cavalo empina-se e lança-se no abismo.
- Filho de servo - grita-lhe Roland - Maomet não vos dará ajuda; tão cedo não ganhareis uma batalha.

XCII

O conde Roland cavalga pelo campo, levanta ao alto a Durendal, que bem corta e bem talha. Não tem conta os sarracenos que ele derrubou. Lança um
morto sobre outros mortos, o sangue suja-lhe os braços, Veillantif tem o pescoço e as espáduas completamente tingidos.
Olivier não lhe fica atrás; os pagãos, uns morrem, outros desfalecem. O arcebispo diz:
- Abençoada seja a vossa baronia! - E grita, com toda a força: - Mont-joie!

XCIII

Perdido na confusão de cavalos, armas e bandeiras, Olivier nem repara que já só tem um pedaço do seu venábulo. Mesmo assim fere Malon, dá-lhe uma
forte pancada na cabeça, e ele cai estonteado. Mata Turgis e Esturgoz, mas a haste quebra-se completamente até ao punho.
Roland então diz-lhe:
- Companheiro, que fazeis? Onde tendes a vossa espada Hauteclaire, cuja bainha é de ouro e os copos de cristal?

XCIV

Olivier desembainha a sua boa espada e mostra-lha ao sol, chamejante de brilhos. Em seguida, ataca Justin de Valferrée, solta a mão esquerda das rédeas
e com ambas desfere tal golpe sobre o elmo, que o parte.
Rasga-lhe as faces, corta-lhe a cota cor de açafrão, abre-lhe o corpo até à sela, cujas pedrarias são engastadas em ouro. O golpe é tal, que fere ainda o
cavalo.
Corcel e cavaleiro caem mortos.
- Reconheço-vos, irmão - diz-lhe, com ternura, Roland. - Se o imperador vos ama é por semelhantes façanhas.

26
De todos os lados ecoa o grito: Mont-joie!

XCV

O conde Gerin monta o cavalo Sorel; o seu companheiro Gerier, Passecerf. Soltando as rédeas, ambos espetam as esporas e vão ferir o pagão Timozel,
um no escudo, outro no lorigão, os dois venábulos quebram-se, o sarraceno cai morto sobre a relva.
O arcebispo mata Siglorel, o feitiçeiro.

XCVI

A batalha faz-se ainda mais encarniçada e o Sol principia já a baixar. Os francos e os pagãos desferem golpes maravilhosos; uns atacam, outros
defendem-se.
Tantas hastes quebradas e ensanguentadas, tantos gonfalões e insígnias arrancados!
Tantos franceses que perdem as suas jovens vidas! Nunca mais verão as mães nem as mulheres, nem aqueles que em França, nas portas, os esperam.

A Mêlée
XCVII

A luta é magnífica e pesada. Roland está cansado e Olivier também; no entanto, ferem valorosamente.
O arcebispo deu mais de mil golpes e os doze pares não lhes ficaram atrás; os outros franceses fizeram
outro tanto.
Por centenas de milhares, os pagãos morrem.
Quem não fugiu não encontrará refúgio, de bom ou mau grado aí deixará a vida.
Os franceses nunca mais verão os pais e os parentes, nem o seu imperador.
Em França levanta-se uma grande tormenta, as paredes abrem brecha, em pleno dia fazem-se trevas, os
servos da gleba pensam que é o fim deste mundo; todos os franceses se enchem de medo.
É a doce terra da França que se arrepanha, pois já adivinha que está perto a morte de Roland.

XCVIII

Foge o rei Margariz a todo o galope do seu corcel, os mouros que se sentem com algumas forças
acompanham-no na fuga, os cristãos ficam senhores do campo de batalha.
Porém, têm um luto pesado dentro do coração. O arcebispo apeia-se; uma grande dor tolda-lhe o olhar; de
cabeça baixa contempla os corpos despedaçados de tantos jovens aguerridos, avisados vassalos, nobres

27
senhores...
Deus, como é grande a dor dos franceses!
Os vivos procuram pelos campos os amigos mortos, choram de piedade e luto os parentes; um grande silêncio reina; o vento do fim da tarde faz ondear os
gonfalões espalhados sobre a erva.

XCIX

Margariz cavalga velozmente e vai avisar Marsile, o rei das Espanhas.


- Senhor, a cavalo, os vossos exércitos foram desbaratados, deles só resto eu e estes poucos que vedes. Mas a tarde cai e os francos que ainda vivem estão
mal-feridos. A cavalo, Senhor, vingai os mortos.
Marsile cavalga, com grandes hostes, avança rápido como o vento através dos vales. Formou e contou vinte corpos de batalha. Os elmos, com pedrarias
engastadas em ouro, brilham à luz da Lua, os escudos e as cotas cor de açafrão luzem na noite.
Mal chega a madrugada, sete mil clarins tocam a arremeter; o grande tropel ouve-se ao longe.
Roland diz:
- Olivier, companheiro e irmão, Ganelon, o traidor, jurou a nossa morte. A traição não poderá ficar escondida; o Imperador tirará forte vingança. Teremos
uma batalha áspera e dura; nunca homem algum terá visto semelhante combate. Eu ferirei com Durendal; vós, companheiro, com Hauteclaire. Por tantas terras as
temos levado; com elas, quantas batalhas ganhamos! Que se não cante delas uma má canção.

Marsile vê de longe o grande martírio dos seus, ensombra-se-lhe o coração, manda tocar as buzinas e as trompas e arremete contra os franceses. A frente
cavalga Abisme, mouro cheio de vícios e grandes crimes, que ama o homicídio mais do que todo o ouro da Galiza; nunca ninguém o viu brincar nem rir. Mas é
valoroso e destemido e por isso é bem querido do rei desleal.
Os cavalos aproximam-se, os franceses carregam os sarracenos, os mouros carregam os cristãos.

CI

A frente dos de França vem o arcebispo Turpin. Monta o cavalo que tomou ao rei Grossaile, morto por ele na Dinamarca. O corcel tem a garupa larga, as
pernas finas, a cauda branca, o topete amarelo, as orelhas pequenas e a cabeça ruiva; nenhum animal o iguala na corrida.
O arcebispo vai como um gavião e cai com fúria sobre Abisme.
Fere no escudo carregado de pedrarias, ametistas, topázios e carbúnculos que flamejam; no Vale de Métas um demônio o havia dado ao emir Galafe e este
o dera a Abisme. Parte-lho e trespassa o sarraceno dum flanco ao outro, o corpo cai sobre a terra nua.
Os franceses dizem:
- Eis uma bela valentia! Nas mãos do arcebispo o báculo não será desonrado!

CII

28
Os franceses vêem que os pagãos são tantos, de todos os lados o campos estão tão cobertos, que, perturbados, chamam por Olivier e Roland, os doze
pares, para que os defendam.
Porém, o arcebispo diz-lhes:
- Barões, peço-vos, por Deus, não fujais, para que nenhum valente cante de vós uma má canção. Vale bem mais morrermos combatendo. Certo não
passaremos deste dia; porém duma coisa sou fiador: o santo Paraíso vos está aberto, aí ficareis sentados junto dos inocentes.
Com estas palavras os francos enchem-se de conforto, não há nenhum que não grite:
- Mont-joie!
CIII

Da grande confusão da luta, surge Climborin; metade de Saragoça é sua, foi ele que deu ao traidor Ganelon, por amizade, o beijo na boca, o seu elmo e o
seu carbúnculo.
Monta o cavalo Barbamousche, o qual é mais veloz que uma andorinha; esporeia-o bem, solta-lhe as rédeas e vai ferir Engelier da Gasconha. Nem o
escudo, nem a cota de malha o podem proteger. O pagão enterra-lhe no corpo o seu venábulo, a ponta do ferro atravessa-o de lado a lado e atira-o de costas sobre a
relva.
Depois diz várias injúrias aos cristãos. Os franceses lamentam-se:
- Deus, que valente perdemos!

CIV

O conde Roland chama Olivier:


- Senhor companheiro, eis Engelier morto; não tínhamos mais valente cavaleiro!
O conde responde-lhe:
- Que Deus me permita vingá-lo.
Enterra as esporas de ouro nos flancos do seu cavalo, levanta Hauteclaire e fere o pagão com um terrível golpe.
O sarraceno cai, os demônios levam a sua alma.
Depois mata o duque Alphaien, corta a cabeça a Escababi, desmonta sete árabes que nada mais valem em combate.
Roland diz:
- Companheiro, ao pé de mim valeis um alto preço. Por tais golpes melhor vos quererá o Imperador. - E grita muito alto: - Feri, cavaleiros!

CV

Valdabron cavalga entre os mouros. Foi ele que armou cavaleiro o rei Marsile; sobre o mar é senhor de quarenta centos de dromundas. Tomou Jerusalém,
à falsidade, violou o templo de Salomão e diante das pias batismais matou o patriarca. Foi ele que deu a Ganelon a sua espada. Monta um cavalo chamado
Gramimond, mais veloz do que um falcão. Esporeia-o bem e vai atacar o rico duque de Samson.
Quebra-lhe o escudo, rompe-lhe o lorigão, espeta-lhe no peito os panos das suas insígnias, arranca-o dos estribos e atira-o sobre os rochedos.

29
- Feri, sarracenos - grita, arrogante - a vitória hoje é nossa.
Os franceses lamentam-se:
- Deus! Que luto por semelhante barão!

CVI

O conde Roland, quando viu Samson morto, sabei que teve uma grande dó. Esporeia o cavalo e arremete com ímpeto o pagão. Ao alto leva Durendal, suja
de sangue; parte-lhe o elmo ornado de pedrarias, fende-lhe o couro cabeludo, o peito e o ventre até a sela gemada; atinge o cavalo.
Caem os dois mortos.
Os pagãos dizem:
- Este golpe foi-nos cruel!

CVII

O estrepito das armas é enorme; retinem as esporas, os cavalos tropeçam nos corpos moribundos.
Quem visse esta cruel batalha tremeria de medo.
Dentre os mouros sai Malquiante, o africano. É filho do rei Malcud. As suas armas são riquíssimas, monta um cavalo ao qual chamam “Santo Perdido”,
veloz como o vento do deserto.
Ataca Anseis no escudo, corta-lhe a meio os campos de vermelho e de azul; enterra-lhe o venábulo, ferro e madeira.
O conde morre. Os franceses dizem:
- Barão, grande luto temos de vós.
CVIII

O arcebispo Turpin cavalga valorosamente pelo campo. Nunca tonsurado que cante missa realizou semelhantes proezas. Vê o conde Anseis morto e grita
aos pagãos:
- Perros, mataste-me um que o meu coração lamenta.
Lança o cavalo contra o pagão sobre o escudo de Toledo desfere tal golpe, que o sarraceno cai morto sobre a sela.
O ginete leva-o em louca correria.

CIX

Noutro sítio da batalha campeia o pagão Grandoine, filho de Capuel, rei da Capadócia. Monta um cavalo árabe, ao qual chamam Marmoire, mais rápido
do que uma seta. Larga as rédeas e fere Gerin com um grande golpe, quebra-lhe o escudo vermelho, faz-lho cair do pescoço, enterra-lhe a insígnia azul, o cavalo dá
um salto e foge com o seu cavaleiro moribundo.
Mata Gerier, Beringer e Gui de Santo Antônio; depois ataca o rico duque Austorge, senhor de Valeri e Envers, perto do Ródano, a quem, com um golpe
certeiro, lança por terra, morto.

30
Os pagãos alegram-se e os franceses lamentam-se, dizendo:
- Que declínio nos nossos!
O conde Roland segura a sua espada ensangüentada, vê que os franceses perdem a
coragem; sente tamanho luto, que julga estalar-lhe o coração.
- Que Deus te conceda todos os males - grita ao sarraceno. - Mataste um que eu
conto vender-te caro.
Esporeia o cavalo e vai atacá-lo.

CX

Grandoine nunca tinha visto Roland, mas, logo que este se aproxima, ele
reconhece-o pelo rosto altivo, pelo olhar, pelo seu porte. Sente medo e quer em vão fugir.
O conde fere-o com tão magnífico golpe, que lhe fende o elmo até ao nasal,
corta-lhe a face, o lorigão de boa malha, o botão do punho da espada e o graminho de prata da
sua sela dourada.
O cavalo ajoelha, com o seu dono morto.
Os de Espanha gemem, os de França dizem:
- O nosso fiador fere bem.

CXI

O combate é cada vez mais renhido. Os franceses ferem com vigor e raiva; cortam os punhos, os flancos, as espinhas dorsais, trespassam as roupas, o
sangue corre em fios rubros sobre a erva verde.
Não há nenhum sarraceno que não grite:
- Marsile! Cavalga, rei! Temos necessidade de ajuda!

31
CXII

Se tivésseis visto tanto sofrimento, tantos homens mortos, feridos, ensangüentados, ficaríeis pasmados.
Jazem uns sobre os outros, faces para o céu, faces contra a terra. Os sarracenos não podem suportar mais; de boa ou má vontade fogem, aterrados. Os
franceses perseguem-nos.

CXIII

O conde Roland chama Olivier:


- Companheiro, confessai, o arcebispo é grande cavaleiro; debaixo do céu não há melhor.
O conde diz-lhe:
- Vamos, pois, ajudá-lo!
A estas palavras, os franceses recomeçam. Teria sido belo ver Roland e Olivier ferir e cortar com as espadas!
O arcebispo fere com o venábulo. Dos sarracenos que eles ali mataram, pode calcular-se o número; está escrito, diz a Gesta, nos alvarás e nos breves:
foram mortos mais de quatro milhares. Nos quatro primeiros assaltos eles agüentaram firmes, o quinto foi-lhes pesado; todos os cavaleiros franceses caíram mortos
exceto sessenta, que Deus preservou. Estes venderão muito caro a vida.

CXIV

Quando Roland vê o grande massacre dos seus, chama Olivier:


- Belo senhor, querido companheiro, por Deus, que vos parece? Vede tantos valentes que jazem por terra. Temos bem razão para lastimar a doce França, a
bela! Sem tais barões, como ficará deserta! Ah, rei amigo, porque não estais agora aqui? Olivier, irmão, que podemos nós fazer? Como lhe mandaremos novas?
Olivier responde:
- Como? Não sei. Poderiam falar de nós com vergonha; mais vale morrer!

CXV

- Tocarei o olifante - diz Roland - Carlos, que vai na passagem das portas, ouvi-lo-á. Eu vo-lo juro, os franceses voltarão.

32
Mas Olivier responde-lhe:
- Tocar agora a trompa seria para todos os vossos parentes uma desonra e um opróbio, e essa vergonha ficaria sobre eles toda a vida! Quando vos pedi
para o fazerdes não quisestes; tocar agora o olifante não será dum valente... Mas como os vossos braços estão ensangüentados!

CXVI

- A nossa batalha é dura! Tocarei a minha trompa - torna Roland - Carlos ouvi-la-á.
- É tarde - insiste Olivier - Tocar agora o olifante não seria dum destemido. Se Carlos tivesse estado conosco, não teríamos perdido os que jazem aí por
terra. Que grande dor tinha deles! Por minha espada, se sair com vida deste combate, não deixarei que Alda, minha irmã, se vá deitar em vossos braços.
- Porque estais contra mim tão encolerizado? - exclama Roland, humildemente.
- Companheiro, a culpa é vossa; valentia e jactância são coisas bem diferentes. Se estão mortos tantos bons franceses, foi por vossa imprudência. Nunca
mais faremos o serviço de Carlos. Se tivésseis querido, o meu senhor teria voltado, teríamos ganho esta batalha, Marsile estaria morto ou feito prisioneiro. O
imperador nunca mais terá um guerreiro como vós. Morrereis e a França ficará desonrada. Hoje tem fim a nossa leal amizade; antes desta noite separar-nos-emos e
isso será duro.

CXVII

O arcebispo ouve-os discutir; esporeia o ginete e aproxima-se.


- Conde Roland e vós, conde Olivier - diz -, peço-vos, por Deus, não discutais. Tocar trompa já vos não salvaria. E, contudo, será bem melhor que o rei
volte e nos vingue; é preciso que os sarracenos não tornem alegres, para as suas terras. Os nossos franceses apear-se-ão aqui, e, encontrando-nos mortos e
desmembrados, meter-nos-ão em ataúdes, transportados por animais de carga, e terão grande piedade de nós.
“Seremos enterrados em adros de igrejas e não ficaremos insepultos a dar de comer aos lobos, porcos e cães.”
Roland responde:
- Senhor, dissestes bem.
Roland leva aos lábios o olifante e toca em cheio, com força.
Altos são os montes e longa é a voz da trompa; a trinta grandes léguas ouve-se e prolonga-se. Carlos ouve, ouvem-no todos os corpos das suas tropas. O rei diz:
- Os nossos homens dão batalha!

CXVIII

O conde Roland, com grande esforço, toca dolorosamente o olifante. Pela sua boca, o sangue jorra, claro. A trompa estala. A sua voz estende-se ao longe.
Carlos ouve-a na passagem das portas, o duque de Naimes e todos os franceses, também. O rei torna:
- É a trompa de Roland! Não tocaria se não travasse batalha.
Ganelon responde:
- Não há nenhuma batalha! Vós, Senhor, estais velho e encanecido; por tais palavras pareceis uma criança. Bem conheceis o grande orgulho de Roland; é
maravilha que tanto tempo Deus o tenha sofrido. Não foi ele ao ponto de tomar Noples sem vossa ordem? Os sarracenos fizeram uma surtida e combateram o bom

33
vassalo Roland; para apagar os sinais da luta, ele inundou os prados ensangüentados. Apenas por uma lebre é capaz de todo um dia tocar a trompa. Hoje faz
qualquer brincadeira diante dos seus pares. Quem sob o céu ousaria dar-lhe batalha? Cavalgai, pois! Por que parar? A terra dos nossos avós está ainda longe,
afastada, diante de vós.

CXIX

O conde Roland tem sangue na boca, a sua trompa estalou. Toca-a dolorosamente e com angústia.
Carlos ouve e os franceses também.
O rei diz:
- Aquela trompa tem um longo fôlego!
O duque de Naimes responde:
- É um valente que nela sopra. Trava-se batalha, tenho a certeza. Traiu-nos esse que agora vos pede para seguirdes viagem.
Senhor, armai-vos, soltai o vosso grito de armas, socorrei-os. Bastante já se fizeram ouvir, é porque Roland desespera.

CXX

O imperador manda tocar as trompas. Os franceses põem pé em terra e armam-se de lorigões, elmos e espadas enfeitadas
de ouro. Tem escudos bem trabalhados, venábulos fortes, belos gonfalões. Todos os barões do exército montam corcéis. Não há nenhum francês que não deseje
salvar Roland, a quem todos tem amor.

CXXI

O dia avança, a tarde brilha. Ao sol resplandecem as armaduras. Elmos e lorigões lampejam, os escudos com flores pintadas, os venábulos e os gonfalões
dourados, são ricos e belos. O imperador cavalga cheio de cólera; os francos, pesarosos e enfurecidos. Não há nenhum que de piedade não chore; por Roland todos
vão transidos de angústia.
O rei manda prender o Conde Ganelon. Entrega-o ao cozinheiro da sua casa, chama Bersgon, e diz-lhe:
- Guarda-mo bem, como se deve fazer a semelhante desleal; por traição entregou a minha gente.
Bersgon recebe-os sob a sua guarda, põe perto dele cem moços de cozinha, dos melhores e dos piores.
Batem-lhe e lançam-lhe ao pescoço uma cadeia, como a urso. Vergonhosamente, conservam até ao dia de o entregar a Carlos.

CXXII

Altos são os montes, grandes e tenebrosos, profundo os vales, as águas violentas... Atrás e á frente soam os clarins e todos juntos respondem ao olifante.
Não há francês que não peça a Deus que preserve Roland até as tropas chegarem ao campo de batalha.

CXXIII

34
Irritado, cavalga o rei, sobre a cota flutuam-lhe as barbas. Não há francês que não lamente não estar com Roland, o capitão, quando este combate os
sarracenos das Espanhas. Mal sabem em que angústia se vê o conde! Deus do Céu, que valorosos barões são esses sessenta que ainda restam! Nunca, nem rei, nem
capitão, houve melhores!

CXXIV

Roland olha os montes e as colinas. Dos de França vê tantos mortos que, como gentil cavaleiro, chora-os:
- Senhores barões, que Deus vos faça mercê. Que a todas as vossas almas dê o Paraíso. Que as deite no meio de flores santas. Nunca vi vassalos melhores
do que vós.

CXXV

Marsile, derrotado, fugiu; porém, vem Marganice, dono de Cartago, Alfrere e Garmalie da Etiópia, uma terra maldita.
Na sua senhoria tem a costa dos negros. As suas tropas são formadas por negros de grandes narizes e orelhas largas; vêm chegando mais de cinqüenta mil.
Esporeiam os cavalos, corajosamente, com furor, e soltam o seu grito de armas.
Ao vê-los chegar, Roland diz:
- Aqui receberemos o martírio e sei bem que pouco tempo teremos para viver. Porém, vergonha a quem não se vender caro! Feri, Senhores, com vossas
estafadas armas, disputai os vossos mortos e as vossas vidas, para que a doce França não seja por nós desonrada! Quando Carlos, o meu senhor, vier a este campo e
vir a justiça que aos sarracenos fizemos, por cada um dos nossos encontrará quinze mortos; certamente, que não deixará de nos abençoar.

CXXVI

Roland pasma ao ver semelhante raça tão negra, mais preta que tinta, só tendo brancos o dentes.
- Com verdade - diz -, sei-o agora, morreremos hoje. Feri, Franceses, que eu vos ajudarei.
Olivier exclama:
- Desonrado seja o mais lento!
A estas palavras os franceses embenham-se nas hostes sarracenas.

A morte de Olivier
CXXVII

Os pagãos vêem tão poucos franceses que, cheios de alegria, dizem uns para os outros:
- É porque a injustiça está do lado do Imperador.

35
Marganice monta um cavalo baio. Esporeia-o com força e fere Olivier pelas costas, entre as espáduas. O choque fende o lorigão brilhante e o venábulo
atravessa o peito. Depois diz-lhe, arrogante:
- Apanhastes um golpe rude! Carlos Magno deixou-vos aqui para vossa desgraça, por isso não receberá louvor.

CXXVIII

Olivier sente que foi ferido de morte. Segura Hauteclair, cujo aço está pálido. Fere Marganice sobre o lorigão dourado, faz-lhe cair ao chão os florões e
cristais do escudo, fende-lhe a cabeça até os dentes. O mouro cai do cavalo, morto. O conde diz:
- Se Carlos aqui algo perder, tu agora perdeste a vida; jamais te gabarás a damas e donzelas de me teres dado a morte.

CXXIX

Olivier nunca satisfará o seu desejo de vingança, pois está ferido de morte; mete-se no mais espesso das tropas e fere desesperadamente. Quem o tivesse
visto cortar aos pedaços venábulos e escudos, pés e punhos, selas e espinhas dorsais, desmembrar os pagãos, lançar morto sobre morto, teria grande medo e pasmo.
Mont-joie! - grita a cada instante, mas perde muito sangue e desfalece. Então chama Roland, o seu par e seu amigo:
- Companheiro, vinde perto de mim; com grande dor, hoje ficaremos separados.

CXXX

Roland olha o rosto de Olivier; vê-o descorado, completamente branco... o seu sangue escorre, claro, ao longo do corpo, no chão cai em poças.
- Senhor Deus! - brada de dor o conde. - Amigo, que vos fizeram...?
Sofre tanto, que desmaia sobre o cavalo.

CXXXI

Roland está tombado na sela, sobre Olivier moribundo. O conde leal perdeu tanto sangue, que os olhos perturbam-se. Já não vê claro bastante para
reconhecer ninguém; assim, fere o seu companheiro no elmo ornado de ouro e gemas, mas não lhe atinge a cabeça.
A este golpe, Roland acorda e pergunta-lhe docemente, com amor:
- Companheiro, é por vossa vontade que me feris assim? Sou Roland, aquele que tanto vos ama!
- Agora ouço a vossa voz - responde Olivier -, mas já não vos vejo. Queira ver-vos o Senhor Deus; feri-vos sem saber que éreis vós, perdoai-me.
- Estais perdoado aqui e diante de Deus - declara Roland.
Depois, com grande carinho, apóia Olivier contra o seu peito.

CXXXII

O conde sente a angústia da morte; na cabeça os olhos viram-lhe, deixa de ver e depois de ouvir.

36
Cai do cavalo; Roland deita-o de costas sobre a erva, levanta-lhe e cruza-lhe os braços. O conde lembra-se dos seus pecados, pede a Deus perdão e que
lhe dê o Paraíso. Para a doce França, para Carlos e, sobre todos os homens, para Roland, pede ao Senhor Deus a sua bênção. O valente conde Roland, chora e
geme; nunca verei sobre a terra homem mais desgostoso.
Olivier, seu par e seu amigo, morre.

CXXXIII

Roland vê, aflito, o seu amigo inanimado; os olhos do conde embaciam-se com o bafo da morte.
- Companheiro - diz-lhe, docemente, despedindo-se dele -, passamos juntos anos e dias, nunca me fizestes mal, nunca eu vos fiz mal. O bem entre nós era
a nossa alegria. Agora que morrestes, viver para mim é dor.
Depois esvai-se-lhe o olhar e desmaia, agarrado a Veillantif, o seu bom cavalo. E o animal é tão fiel, que sustém sem se mexer o seu dono desfalecido.

CXXXIV

Antes que Roland se reanime e volte a si, grande dano acontece: os franceses morreram, já só vive o arcebispo e Gautier
de Hum.
Gautier descera das montanhas e contra os sarracenos combatera ferozmente, mas os seus valorosos homens de armas
jazem por terra. Apavorado, chama por Roland:
- Gentil Conde, valoroso senhor, onde estais? Nunca tive medo quando estáveis presente. Sou eu, Gautier, o que
conquistou Maelgut, o sobrinho de Droon, o velho, o encanecido. Pela minha proeza, tu entre os teus homens me querias bem. A
minha lança está quebrada, o meu escudo trespassado, o meu lorigão desmanchado e roto. Conde, a morte vem a mim...
A estas últimas palavras Roland ouve-o, esporeia o cavalo e lança-se para perto dele.
CXXXV

Roland está cheio de dor e cólera, no meio do grande aperto dos mouros volta a ferir. Faz cair vinte mortos, Gautier seis,
o arcebispo cinco. Os pagãos dizem:
- São os últimos francos que chegam. Acautelai-vos, senhores, para que nenhum volte com vida.
Então recomeçam seus berros e gritos de armas; de todos os lados tornam ao assalto.

CXXXVI

O conde Roland é um nobre guerreiro, Gautier de Hum um bom cavaleiro, o arcebispo um homem probo e experimentado. Nenhum dos três quer faltar
aos outros; no maior aperto ferem os pagãos. Mil sarracenos são apeados, alguns nem ousam aproximar-se dos cavaleiros francos, de longe arremessam contra eles
lanças envenenadas e dardos com peçonha.
Aos primeiros golpes acertam em Gautier; ao arcebispo trespassam o escudo, quebram-lhe o elmo, atinge-lhe a cabeça, rompem o lorigão,
trespassaram-lhe o corpo com quatro venábulos. Depois mataram-lhe o cavalo.

37
CXXXVII

Turpin de Reims, quando se viu abatido do cavalo, o corpo espetado por quatro venábulos, rapidamente pôs-se de pé, o destemido. Corre para Roland,
desembainha Almace, a sua espada de aço trigueiro; no mais cerrado aperto, junto com o conde, desfere mil e tantos golpes.
Em breve Carlos dirá que ele não poupou ninguém, pois encontrou à sua volta quatrocentos sarracenos, uns feridos, outros trespassados de lado a lado,
outros com a cabeça cortada. Assim informa na Gesta o barão Gilles , por quem Deus faz milagres, e que esteve nesta batalha; assim se diz no floral do mosteiro de
Laon.

CXXXVIII

O conde Roland combate nobremente, mas o seu corpo está embebido em suor e queima, a cabeça dói-lhe por ter tocado a trompa, as suas frontes
estalam. Mas ele anseia porque Carlos volte. Pega no olifante e toca, mas já débilmente. O imperador pára e escuta.
- Senhores - diz ele -, desgraça para nós! Roland, meu sobrinho, neste dia deixa-nos para sempre. Pela voz da sua trompa sei que não viverá muito. Quem
se lhe quiser juntar, que apresse o cavalo. Tocai os vossos clarins, tantos quantos houver neste exército.
Sessenta mil clarins tocam e tão alto, que os montes retinem e os vales respondem. Os pagãos ouvem, não lhes apetece rir. Dizem uns para os outros:
- Breve Carlos estará sobre nós. Ouvimos o clarins de França. Se Carlos volta, entre nós haverá dano. Se Roland sobrevive, a nossa guerra recomeça; a
Espanha, nossa terra, está perdida.
Juntam-se quatrocentos e dão um duro e áspero assalto ao conde.

CXXXIX

Quando Roland os vê caminhar na sua direção, faz-se mais forte, mais altivo, mais ardente.
Não capitulará enquanto tiver vida. Monta Veillantif, esporeia-o bem com suas esporas de ouro fino, no mais cerrado do aperto vai atacá-los. Com ele, o
arcebispo Turpin faz maravilhas. Os pagãos, então, dizem uns para os outros:
- O melhor é abandonarmos o campo; Carlos já está perto.

CXL

Roland, dirigindo-se ao arcebispo, profere:


- Senhor, juntos receberemos o bem e o mal; não vos deixarei por nenhum homem feito de carne. Vamos dar aos pagãos um novo assalto.

CXLI

Os pagãos dizem:

38
- Nascemos para a desgraça. Que dia doloroso se ergue para nós! Perdemos os nossos senhores e os doze pares. Carlos volta, o valoroso, com o seu
grande exército. Dos de França ouvimos já o grito de armas. O conde Roland é tal como jamais se verá homem algum; lancemos contra ele dardos, venábulos,
lanças e focinheiras empeçonhadas.
Quebram-lhe e furam o escudo, rompem e desmancham o lorigão, mas o corpo não lho atingiram.
Toda via, com trinta feridas marcaram Veillantif que, sob o conde, cai morto. Os pagãos fogem e deixam-lhe a honra do campo. O conde, apeado, não os
pode perseguir.

A última bênção do arcebispo


CXLII

Roland vai para perto do arcebispo, a fim de o ajudar. Desprende-lhe o elmo da cabeça, tira-lhe o branco e leve lorigão. Rasga a sua túnica em tiras e
pensa-lhe as grandes feridas. Depois, toma-o nos braços, aperta-o contra o peito e, docemente, deita-o sobre a erva verde.
Com doçura, faz-lhe um pedido:
- Gentil Senhor, dispensai-me algum tempo; os nossos companheiros, que tão queridos nos foram, ei-los mortos, não os devemos deixar. Quero ir
buscá-los, reconhecê-los, para os deitar em fila, lado a lado, perto de vós.
O arcebispo tornou-lhe:
- Ide e voltai, o campo é vosso, graças a Deus, vosso e meu.

CXLIII

Roland parte. Vai através do campo, completamente sozinho. Procura pelos vales, procura pelos montes.
Ali encontra Ivoire e Ivon, depois o gascão Engelier. Acolá encontra Gerin e Gerier seu companheiro, depois Beringier e Oton. Aí Anseis e Samson,
acolá Gerard, o velho do Rossilhão. Um por um toma-os o valente, e volta com eles para junto do arcebispo.
Diante dos seus joelhos coloca-os em fila. Turpin, sem se poder conter, chora. Levanta a mão, abençoa-os e, em seguida, pronuncia:
- Piedade tenho de vós, Senhores! Que Deus receba todas as vossas almas, o Glorioso! No Paraíso as ponha entre flores santas! O que me pesa mais na
morte que ronda o meu corpo é que jamais verei o Imperador.

CXLIV

Roland volta de novo à procura pelo campo. Encontra o seu companheiro Olivier. Ajoelha-se e contra o peito o aperta, estreitamente abraçado. Carrega-o
com esforço nos seus braços cansados e vem para perto do arcebispo.
Deita Olivier sobre um escudo e o arcebispo absolve-o e marca-lhe a fronte com uma cruz. Então, redobram de dor e de piedade. Roland lamenta-o:
- Olivier, belo companheiro, vós éreis filho do duque Renato que conduzia a marcha do Vale de Rumers. Para partir uma lança, para quebrar um escudo,
para vencer e abater os orgulhosos e para ajudar e aconselhar os homens probos... em nenhum país há cavaleiro melhor do que vós fostes!

39
CXLV

O conde Roland chora, o seu rosto perde a cor. É tão grande o seu luto, que não pode manter-se de pé; quer queira, quer não, cai por terra... O arcebispo
exclama:
- Barão, piedade para vós!

CXLVI

Passado algum tempo, o conde vem a si, põe-se de pé, mas a sua dor ainda se torna maior; olha para nascente, olha para poente, sobre a erva verde para lá
dos companheiros; vê já moribundo o arcebispo, o nobre barão, que Deus tinha colocado em seu nome entre os homens.
Turpin de Reims confessa as suas culpas, volta para o céu os olhos, junta as mãos e eleva-as; pede a Deus que lhe dê o Paraíso. Apaga-se-lhe o olhar, o
brilho da vida passa e uma nuvem ensombra-o. Morre; pelas grandes batalhas, pelos belos sermões pregados contra os pagãos, toda a sua vida, era ele um dos
melhores capitães de Carlos.

CXLVII

O corpo do arcebispo goteja ainda sangue, mas Roland bem vê que ele já está morto; sobre o peito, bem a meio, cruza-lhe as brancas mãos e lastima-o.
Sobre ele profere triste queixume, segundo a lei da sua terra:
- Ah! Grande senhor, cavaleiro de boa cepa, nesta hora encomendo-vos ao Glorioso do Céu. Nunca ninguém com melhor boa vontade fará o seu serviço.
Que a vossa alma não suporte qualquer provação! Que a porta do Paraíso lhe seja aberta!

A morte de Roland
CXLVIII

Roland sente a morte próxima, reza por Olivier, seu amigo, pelos seus companheiros mortos, para que Deus os chame ao Paraíso.
Depois, por ele próprio, reza ao Anjo Gabriel.
Pega no olifante, para que ninguém o censure, e na outra mão em Durendal, a sua espada. Um pouco mais longe, sobe para um outeiro; ali, debaixo de
belas árvores, há quatro degraus feitos de mármore.

CXLIX

Alto é o outeiro. O conde desmaia na subida, cai sobre a erva verde, porque o seu fim vem chegando.

40
Ora um sarraceno estava a espreitá-lo, fingindo-se morto, jazendo quieto entre os outros, tendo com sangue sujo o corpo e o rosto. Levanta-se e corre; é
forte e de bela coragem; o orgulho leva-o a fazer a loucura que lhe dará a morte.
Agarra a espada de Roland e diz:
- Está vencido o sobrinho de Carlos! Esta espada levá-la-ei para a Arábia!
Quando lha tirava, o conde voltou um pouco a si.

CL

Roland sente que lhe pegam na espada, abre os olhos e pronuncia:


- Que eu saiba, não és dos nossos! - Conserva. o olifante na mão esquerda e com a direita dá tal golpe na cabeça do mouro que, quebrando-lhe o elmo,
corta-lhe as faces e abate-o de costas. - Pagão - diz-lhe -, como tiveste a ousadia de me agarrar a espada? Ninguém ouvirá o que fizeste, que não te julgue louco.

CLI

O conde sente fugir-lhe a vista; esforça-se mais do que pode e põe-se de pé. O seu rosto perdeu a cor, diante dele estão os degraus de mármore. Neles
desfere dez golpes cheios de rancor, e luto; o aço range, mas não quebra, nem amassa.
- Ah! Durendal, boa Durendal, piedade tenho de vós! Uma vez que morro, já não tenho a vossa guarda. Convosco em campo raso tantas batalhas ganhei,
por vós tão largas terras domei... aquelas que conserva Carlos, o que tem encanecida a barba. Que nunca vos agarrem mãos de homem que possa fugir diante
doutro! Nunca haverá igual em toda a Santa França.

CLII

Bate outra vez com ela nos degraus de sardónica. O aço range, mas não estala nem amassa.
Quando vê que não a pode quebrar, começa a lastimá-la:
- Ah! Durendal, como és bela, clara e brilhante! Contra o sol, como luzes e flamejas! Carlos estava no vale de Maurienne, quando, dos Céus, Deus disse
para um anjo que te desse a um dos seus condes capitães. Então com ela me cingiu o gentil rei.
“Com ela conquistei-lhe o Ajou e a Bretanha, o Poitou e o Maine, a Normandia, a Provença e a Aquitânia, a Lombardia e toda a Romagne.
“Conquistei-lhe a Baviera, toda a Flandres, a Borgonha, o Saxe e Constantinopla, da qual recebe a homenagem.
“Para ele conquistei a Escócia e a Inglaterra, a sua câmara, como costuma chamar-lhe.
“Por esta espada tenho dor e sofrimento; antes do que deixá-la aos pagãos. Deus, nosso Pai, não consistais que a França sofra essa vergonha!”

CLIII

E novamente bate contra os degraus, dá mais pancadas do que vo-lo posso dizer. A espada range, não estala nem quebra. Quando o conde vê que não a
pode quebrar, muito docemente põe-se a lastimá-la:

41
- Ah! Durendal, com és bela e santa! O teu punho de ouro está cheio de relíquias; um dente de São Pedro, sangue de São Basílio, cabelos de Monsenhor
São Diniz, um pedacinho das vestes de Santa Maria. Não é justo que pagãos te possuam: os Cristãos é que devem fazer o teu serviço. Não tombes jamais nas mãos
dum covarde. Contigo tenho conquistado tão longas terras... O imperador delas é poderoso e rico.

CLIV

Roland sente que a morte o toma todo; da cabeça desce-lhe ao coração. Arrasta-se, tropeçando, para debaixo dum pinheiro, e cai com a face contra a
terra.
Sob o seu corpo deita, com esforço, a sua espada e o olifante. Volta a cabeça vagarosamente para o lado da gente pagã, querendo assim que Carlos e todos
digam como morreu vencedor.
Com pequenas pancadas no peito, confessa as suas culpas; pelos seus pecados para Deus ergue a luva.

CLV

O conde sente que o seu tempo acabou. Deitado sobre um cômoro escarpado, o rosto voltado para Espanha, com uma das mãos bate no peito:
- Deus, pela Vossa mercê, minha culpa, pelos meus pecados, os grandes e os pequenos, que fiz desde a hora em que nasci até este dia, no qual me eis aqui
lançado por terra!
Ergue a custo para Deus a sua luva direita, os Anjos do Céu descem para ele.

CLVI

De muitas coisas lhe vem a recordação: de tantas terras que conquistou, dos homens da sua linhagem, de Carlos, o seu senhor, que sempre o sustentou.
Não se pode impedir de chorar e suspirar:
- Verdadeiro Pai, que nunca mentis, Tu que chamaste São Lázaro dentre os mortos; Tu que salvaste Daniel da cova dos leões, salva a minha alma de
todos os perigos!
Oferece outra vez a Deus a sua luva direita, São Gabriel toma-a na mão. Deixa cair a cabeça sobre o braço, Deus tem piedade dele, manda-lhe o seu Anjo
Querubim e São Miguel do Perigo; todos juntos levam, cantando, a alma do gentil conde para o Paraíso.

CLVII

O imperador chega a Roncesvalles. Não há estrada nem atalho, uma vara, um pé de terra livre, onde não jaza um francês ou um pagão.
Carlos exclama:
- Onde estais vós, meu belo sobrinho? Onde está o bispo? Onde está o conde Olivier? Onde está Gerin e Gerier, seu companheiro, Oton e o conde
Beringier, Ivon e Ivoire, aos quais eu tanto queria?
“Que foi feito do gascão Engelier? Do duque de Samson? Do valente Anseis? E de Gerard do Rosilhão, o velho?
“Onde estão os doze pares?...”

42
Mas ninguém lhe responde e só o vento faz ondear os pendões sobre a erva.
- Deus - brada, cheio de dor, o rei - Senhor Glorioso, porque não estive eu aqui no princípio desta batalha?
Arranca com desespero cabelos das suas barbas, com o coração pesado dum extremo luto. Os barões choram, alguns desfalecem, o duque de Naimes nem
sabe quem merece mais piedade: se os mortos, se os vivos.

CLVIII

Não há cavaleiro ou barão que de dor não chore; lamentam os seus filhos, os seus irmãos, os seus sobrinhos, os seus amigos e os seus senhores. O duque
de Naimes, como homem sensato, foi o primeiro que disse ao imperador:
- Olhai para a frente de vós, a duas léguas de distância podeis ainda ver os caminhos poeirentos da cavalgada do inimigo em fuga. Cavalgai, pois. Vingai
esta acerbada dor!
Carlos chama Oton e Geboin, Tedbalt de Reims e o conde Milon:
- Guardai o campo de batalha pelos montes e pelos vales. Deixai como estão os vossos mortos, que não lhes toque escudeiro ou criado, lobo ou leão! Que
ninguém lhes toque, mando eu, até que Deus nos permita voltar a este campo!
Com doçura eles responderam:
- Reto Imperador, querido Senhor, assim faremos!
Com eles ficam dois mil cavaleiros.

A derrota dos sarracenos

43
CLIX

- Senhor Glorioso - diz Carlos -, consenti que castigue quem, aqui por terra, me prostou a fina flor da minha doce França.
Depois manda tocar os clarins e cavalga, veloz, com o seu grande exército.
Em perseguição dos sarracenos o exército cristão voa. Mas a tarde declina, o imperador, aflito, apeia-se num prado de erva verde; prostra-se por terra e
pede ao Senhor Deus para que o Sol se demore, que o dia dure até alcançar os mouros. Vem a ele um Anjo, aquele que lhe costumava falar, e diz-lhe:
- Carlos, cavalga, não temas, a claridade não vos faltará. Foi a fina flor de França que tu perdeste, Deus sabe-o. É da vontade do Glorioso que tu castigues
essa raça criminosa!

CLX

Deus fez-lhe o milagre, a claridade durou. Os pagãos fogem, os franceses dão-lhes forte caçada. Atingem-nos no Vale Tenebroso, empurram-nos contra
Saragoça; matam-nos com golpes cheios de entusiasmo.
Cortam-lhes as estradas e os caminhos mais longos. O Ebro está diante deles; as águas são profundas, mas não há barco, nem dromunda, nem lanchão.
Os pagãos suplicam o auxílio dos seus deuses, Tervagant em primeiro lugar, mas sem nenhuma ajuda, têm de se lançar às águas. Os que levam elmo e
lorigão, são os mais pesados, vão logo ao fundo. Outros, mais leves, vão flutuando à sorte. Os mais felizes bebem muita água e, por fim, todos se afogam com
grande angústia.
CLXI

Ao ver que os pagãos eram desbaratados, uns mortos com ferros, a maior parte afogados, e que um grande espólio têm já
tomado os seus cavaleiros, Carlos apeia-se e, deitado por terra, dá graças a Deus. Quando se levantou, o Sol tinha-se ido embora. O
gentil rei diz então:
- É hora de acampar, para voltar a Roncesvalles é já muito tarde. Os nossos cavalos estão extenuados; tirai-lhes as selas, das
bocas os freios, e por esses prados deixai-os refrescar. Os franceses dizem:
- Senhor, falais bem!

CLXII

Os franceses apeiam-se, armam as tendas, tiram as selas aos cavalos, da boca os freios dourados e deixam-nos soltos a pastar
a erva fresca dos prados.
Quem está muito cansado dorme no chão.
Esta noite o acampamento ficou sem guarda.

CLXIII

44
O imperador deitou-se na erva. O valente pôs perto de si o seu venábulo. Nessa noite nem se quis desarmar; conserva o lorigão branco acolchoado, o elmo
amarrado, a sua magnífica espada cingida. Joyeuse se chama, cada dia a sua cor muda trinta vezes. No punho de ouro tem encrustada a ponta da lança que feriu
Nosso Senhor na Cruz e por causa da grande honra é que recebeu o nome de Joyeuse. Os barões de França, não o devem esquecer, desse fato tiraram o seu grito de
armas: Mont-joie. É por isso que nenhum povo pode contra eles levar a melhor.
CLXIV

Carlos dorme como um homem que um tormento aflige. Deus manda-lhe São Gabriel, recomendando-lhe que preserve o imperador. O anjo todo a noite
está à sua cabeceira. Por uma visão anuncia-lhe que uma batalha lhe será dada. Carlos eleva os olhos para os céus, neles vê as trovoadas, os ventos agrestes, os
gelos, as tempestades - todo um conjunto de fogo e de chamas, que de repente cai sobre o seu exército.
As lanças de frixo e macieira estalam, partem-se os escudos até às fivelas de ouro puro. As hastes dos venábulos rangem, os lorigões e os elmos de aço
torcem-se; Carlos vê os seus cavaleiros em grande aflição.
Depois, ursos e leopardos, serpentes, dragões e demônios tentam devorá-los. Mais de trinta mil grifos caem sobre os franceses. "Carlos Magno,
ajudai-nos!" gritam os francos. O rei quer ir, cheio de dor e piedade, mas impedem-no. Duma floresta vem contra ele um leão, cheio de cólera, de orgulho e de
valentia e atira-se sobre o seu corpo. Ambos lutam, mas Carlos não sabe quem está por cima, nem quem está por baixo. O imperador não acorda.

CLXV

Depois desta visão vem-lhe outra. Carlos está em Aix, sobre uns degraus tem um urso preso por duas cadeias. Do lado das Ardenas vê vir trinta ursos.
Cada um fala como um homem. "Senhor, restitui-lhe a liberdade! Não é justo que o conserveis por mais tempo. É nosso parente, devemos-lhe socorro."
Do seu palácio vem um galo, corre sobre a erva verde e ataca o maior dos ursos. Então, aí, o rei assiste a um maravilhoso combate, mas não sabe quem
vencerá nem quem ficará vencido. Eis o que o Anjo de Deus mostrou a Carlos, que dorme.

CLXVI

Cheio de pânico, o rei Marsile fugiu para Saragoça. Apeou-se sob uma árvore, à sombra.
Dá aos seus homens de armas a espada, o elmo e a cota: sobe a erva verde deita-se miseravelmente.
Perdeu a sua mão direita cortada rente; pelo sangue que lhe foge, desmaia de angústia. Diante dele a sua mulher, Bramimonda, chora, grita, lamenta-se em
alta voz. Com ela mais de vinte mil homens que amaldiçoam Carlos e a doce França. Correm para Apollin, entram na cripta, desonram-no, feiamente o ultrajam:
- Ah! Mau deus! Porque nos fazes tu semelhantes vergonhas? Porque sofres assim a ruína do nosso rei? A quem te serve bem dás um mau salário!
Depois tiram-lhe o cetro e a coroa, lançam-no por terra a seus pés, batem-lhe, quebram-no com fortes pancadas. Arrancam o carbúnculo a Tervagan, lança
Maomet num fosso; os porcos e os cães mordem-no, calcam-no.

CLXVII

45
Havia já muito que Marsile mandara breves selados a Baligant, senhor de Babilônia. O emir é velho, carregado de dias, já viveu mais do que Virgílio e
Homero. Pede-lhe que venha a Saragoça socorrê-lo; se não o fizer, Marsile renegará os seus deuses e todos os ídolos que adora; receberá a Lei Cristã, tratará a paz
com Carlos Magno. O emir é duma terra longínqua; muito tem tardado. Porém, de quarenta reinos chama os seus povos, faz aprontar grandes dromundas, navios
ligeiros, barcas e naus . Em Alexandria, perto do mar, há um porto; aí junta toda a sua frota.
É em Maio, no princípio do Verão, que ele lança ao mar todos os seus exércitos.

CLXVIII

Grandes hostes dessa raça odiada. Os pagãos singram à força de grandes velas e de pesados remos. Na ponta dos mastros, sobre as altas proas, brilham
lanternas, tantas que a claridade que lançam do alto torna o mar mais belo. Quando se aproximam da terra de Espanha, a costa ilumina-se e resplandece.
A nova chega aos ouvidos de Marsile.

CLXIX

A raça pagã não pensa em descansar; deixa o mar e entra nas águas doces. Passam Marbrise, passam Marbrose, sobem o Ebro com todas as naus.
Lanternas e carbúnculos brilham, sem número, e toda a noite dão grande claridade. De dia chegam a Saragoça.

CLXX

O dia é claro, o Sol brilhante. O emir desce do seu navio. À sua direita avança Espaneliz; dezessete reis seguem-no; depois vêm os condes e os duques
cujo número não sei.
Sob um formoso loureiro, no meio dum prado, lançam sobre a relva uma rica alcatifa e aí levantam um trono, todo em marfim. Nele se senta o pagão
Beligant; todos os outros ficam de pé.
- Escutai, cavaleiros destemidos - diz-lhes o emir -, o rei Carlos, imperador dos Francos, não pode comer se eu não o mandar. Por todas as Espanhas fez
uma grande guerra; à doce França eu quero ir desafiá-lo. Não terei descanso em toda a minha vida enquanto ele não for morto ou não se confessar vencido.
Como garantia da sua palavra bate no joelho com a luva.

CLXXI

Com muitas palavras firmemente promete, por todo o ouro que existe sob o céu, ir a Aix, lá onde Carlos tem as suas audiências. Os seus homens de armas
louvam-no e são do mesmo conselho. Então chama dois dos seus cavaleiros; um é Clarifan, o outro Clarien.
- Vós sois filhos do rei Maltraien, que tinha por costume de bom grado levar mensagens. Ordeno-vos que vades a Saragoça. Da minha parte anunciaríeis a
Marsile que contra os Francos o vim ajudar. Se a ocasião proporcionar, sofrerão uma grande derrota. Em penhor dai-lhe dobrada esta luva bordada a ouro, para que
com ela enluve o seu punho direito! Levai-lhe também este bastonete de ouro fino e que venha até mim para receber o feudo!
"Irei a França guerrear Carlos. Se não implorar as minhas graças deitado a meus pés, se não renegar a Lei Cristã, tirar-lhe-ei da cabeça a coroa."

46
Os pagãos respondem:
- Senhor, falastes bem.

CLXXII

Baligant ordena-lhes:
- Barões, a cavalo, que um leve a luva, outro o bastão.
Eles respondem:
- Senhor, assim faremos!
Tanto e tanto cavalgaram, que sempre chegam a Saragoça. Passam dez portas,
atravessam quatro pontes, costeiam as ruas onde vivem os burgueses.
Quando se aproxima do alto da cidade, ouvem um grande rumor, que vem do palácio.
Aí está junta toda a raça pagã; uns choram, outros gritam, todos têm grande luto.
Lamentam os deuses Tervagan, Maomet e Apollin, aos quais ultrajaram.
- Desgraçados - dizem -, que será de nós? Um grande flagelo nos oprime; perdemos o
rei Marsile; ontem o conde Roland cortou-lhe o punho direito, Jurfaleu, o loiro, não o teremos
mais. Toda a Espanha de hoje em diante estará às suas ordens!
Os dois mensageiros apeiam-se na escadaria.

CLXXIII

Deixam os cavalos debaixo duma oliveira; dois sarracenos agarram-nos pelas rédeas.
Os dois cavaleiros sobem ao mais alto do palácio. Quando entram no quarto abobadado, fazem
a sua saudação:
- Maomet, que nos tem em seu balio, Tervagan e Apollin, nossos senhores, salvem o
rei e guardem a rainha!
Bramimonda, porém, responde-lhes:
- Ouço palavras loucas. Esses deuses que agora invocais foram-nos falsos. Em
Roncesvalles fizeram feios milagres; deixaram massacrar os nossos cavaleiros; ao meu senhor,
que aí vedes, abandonaram na batalha. Perdeu o punho direito, cortou-lho Roland, o poderoso
conde. Carlos ficará senhor de toda as Espanhas. Que será de mim, tão fraca e dolorosa? Ah!
Não haverá quem me dê a morte!

47
Carlos Magno se aproxima
CLXXIV

Clarien diz-lhe:
- Senhora, nós somos os mensageiros de Baligant, o grande pagão. Ele defenderá Marsile, promete-o; como garantia, manda-lhe a sua luva e o seu bastão.
“Sobre o Ebro temos quatro mil lanchões, navios, barcas rápidas, galés e tantas dromundas, que as não sei contar. O emir é forte e poderoso; irá a França
em busca de Carlos Magno, espera matá-lo ou obrigá-lo a pedir misericórdia.”
Bramimonda responde-lhes:

48
- Para que iria ele tão longe? Mais perto daqui podereis encontrar os Francos, há sete anos que o imperador está neste país, é destemido e valoroso
guerreiro; mais depressa morreria do que fugiria do campo de batalha; sob o céu não há rei ao qual tema mais do que a uma criança. Carlos não teme homem vivo.

CLXXV

- Basta! - berra, colérico, o rei Marsile; e aos mensageiros: - Senhores, é a mim que deveis falar. Vede, a morte espera-me e eu não tenho filho, nem filha,
por herdeiro.
“Tive um, foi morto ontem à noite. Dizei ao meu senhor que me venha ver. Dou-lhe todos os meus direitos sobre as Espanhas, mas que as defenda contra
os Francos. Acerca de Carlos Magno, dar-lhe-ei um bom conselho; de hoje a um mês tê-lo-á por prisioneiro. Vós levar-lhe-eis as chaves de Saragoça. Depois,
dizei-lhe que, se me acredita, não deve partir.”
Eles responderam:
- Senhor, falastes bem.

CLXXVI

Marsile continua:
- Carlos, o imperador, matou os meus homens de armas; assolou a minhas terras, forçou e violou as minhas cidades. Esta noite deitou-se nas margens do
Ebro, a sete léguas, apenas destes paços. Dizei ao emir que para aí conduza o seu exército. Mando-lhe dizer, por vós, que aí dê uma batalha. Dou-lhe as chaves de
Saragoça.
Ambos os mensageiros se inclinam, despedem-se e voltam ao encontro de Baligant.

CLXXVII

Depressa saem os cavaleiros as portas da cidade, para o emir cavalgam, confundidos. Apresentam-lhe as chaves de Saragoça. Baligant pergunta-lhes:
- Que soubestes? Onde está Marsile, a quem eu dei ordens?
Clarien responde:
- Está ferido de morte. O imperador estava na passagem das portas, queria voltar para a doce França. Tinha formado uma retaguarda capaz de o honrar,
porque nela ficara o conde Roland, o seu sobrinho, Olivier e todos os doze pares e vinte mil cavaleiros.
"O rei Marsile deu-lhe batalha; encontraram-se os dois. Roland vibrou-lhe com Durendal um tal golpe, que lhe cortou a mão direita. Matou seu filho, ao
qual tinha um tão grande amor, e muitos outros cavaleiros. Marsile fugiu por não se poder agüentar mais; o imperador perseguiu-o violentamente. O rei pede-nos
socorro; com franqueza vos entrega o reino das Espanhas.
Baligant fica pensativo, sente um tão grande pesar, que quase enlouquece.

CLXXVIII

49
- Senhor - diz Clarien -, em Roncesvalles uma batalha foi travada. Caíram mortos Roland, o conde Olivier, e os doze pares, tão amados de Carlos; dos
seus franceses, vinte mil sucumbiram também. O imperador, cheio de cólera, perseguiu Marsile com violência; nesta terra não ficou um cavaleiro que não fosse
morto pelas armas ou afogado no Ebro. Os franceses acamparam na margem. Estão tão próximos de nós, nesta região, que, se quiserdes, a retirada ser-lhes-á dura.
O olhar de Baligant tornou-se altivo, o seu coração encheu-se de alegria e ardor. Do seu trono levanta-se direito e exclama:
- Senhores, não tardeis, saí das naus; montai cavalgai! Se Carlos não fugir, o rei Marsile será completamente vingado; pelo seu punho cortado
entregar-lhe-ei a cabeça do imperador.

CLXXIX

Os pagãos de Arábia saem das naus e montam os seus cavalos rápidos. O emir manda chamar Gemalfim, um dos seus fiéis, para os comandar.
- Deixo-te todos os meus exércitos - diz-lhe. - Espero que os saibas bem comandar.
Depois, monta o seu corcel baio e parte para Saragoça, acompanhado por quatro duques.
Rapidamente, chega à cidade, apeia-se; os quatro duques seguram-lhe no estribo. Sobe a escadaria e entra no palácio. Bramimonda corre ao seu encontro
e diz-lhe:
- Fraca sou, nasci para a desgraça. Perdi o meu senhor e tão vergonhosamente!
Chorosa, a pobre rainha cai aos pés do emir; Baligant levanta-a e ambos, cheios de dor, sobem para o quarto abobadado.

CLXXX

O rei Marsile, quando vê entrar Baligant, chama dois dos seus criados para o levantarem, com o punho esquerdo pega na luva e diz ao emir:
- Senhor, dou-vos todas as minhas terras; Saragoça e o feudo que dela depende. Perdi-me e perdi todo o meu povo.
O emir responde-lhe:
- Sinto uma grande dor. Não poderei, porém, conversar muito tempo; sei que Carlos não está longe de nós. Todavia recebo a vossa luva.
Aflito, chorando, afasta-se do rei. Desce os degraus do palácio, monta a cavalo, e volta para as suas tropas, à força de esporas. Cavalga tão velozmente,
que ultrapassa a sua comitiva. De instante a instante, exclama:
- Vinde, pagãos, porque eles já apressam a fuga!

CLXXXI

De manhã, ao romper da aurora, o imperador acorda. São Gabriel, que de mando de Deus o guarda, levantou a mão e sobre ele fez um sinal. O rei
levanta-se e depõe as armas; os cavaleiros desarmaram-se. Monta a cavalo e por longos caminhos, e estreitas veredas, cavalga a todo o galope. Vai ver o prodigioso
desastre, a Roncesvalles, ao campo da grande batalha.

CLXXXII

Carlos Magno chega a Roncesvalles. Pelos mortos que encontra põe-se a chorar. Diz aos franceses:

50
- Senhores, segui a passo, porque quero eu próprio ir adiante de vós à procura do meu sobrinho. Um dia, em Aix, pela altura duma festa solene, quando os
meus valorosos cavaleiros se gabavam de grandes batalhas e fortes assaltos, ouvi Roland dizer que, se tivesse de morrer em reino estrangeiro, que o havíamos de
encontrar longe de seus companheiros, com a cabeça voltada para o inimigo, para assim mostrar, o valente, que acabaria vencedor.

CLXXXIII

O imperador sobe a um cômoro, procurando o corpo do gentil conde. Aqui e além, pelo prado fora, erguem-se as flores manchadas de sangue francês.
Chora o grande imperador, não se pode conter. Chega ao lugar que duas árvores ensombram, vê os três degraus de sardónica e neles nota os três golpes. Sobre a
erva reconhece o seu sobrinho.
Quem se admira que Carlos estremeça de dor? Apeia-se e vai como um louco para ele, correndo. Estende para o seu corpo os braços, aperta-o e desmaia,
tal é a sua dor.

CLXXXIV

Carlos volta um pouco a si, o duque de Naimes, o conde Acelin, Godofredo de Anjou e seu irmão Thierry tomam-no, e ergue-no. Depois sentam-no
debaixo dum pinheiro.
Ele olha para o seu sobrinho inanimado e, muito docemente, diz-lhe o seu adeus:
- Amigo Roland, que Deus te conceda a Sua Glória! Nunca nenhum homem viu cavaleiro como tú para começar as grandes batalhas e ganhá-las. A minha
honra começa a declinar!
Tomba-lhe a cabeça e desfalece pela segunda vez.

CLXXXV

Os barões o reanimam com carinho, agarram-lhe pelas mãos e sentam-no.


O imperador abre os olhos e fita o sobrinho; o seu corpo conserva-se belo, mas as faces perderam a cor, os olhos vítreos estão cheios de trevas.
O grande Carlos soluça e, cheio de amor, solta sobre ele o seu doloroso lamento:
- Amigo Roland, que Deus ponha a tua alma entre as mais belas flores do Paraíso, junto dos gloriosos! Que mau senhor seguiste nas Espanhas! Nem um
só dia se erguerá no horizonte sem que eu por ti não sofra. Como vão cair a minha força e o meu ardor! Já não tenho ninguém que sustente a minha honra;
parece-me não ter mais um só amigo sob o céu. Tenho parentes, mas nenhum como tu.
Cheio duma dor desesperada, arranca os cabelos; cem mil franceses sentem uma dor tão forte como nunca sentiram.

CLXXXVI

- Amigo Roland, valorosa e bela juventude, quando eu estiver em Aix, na minha capela, os meus vassalos virão pedir-me novas e terei de lhes dizer:
"Morreu o meu sobrinho, aquele que me conquistou tantas terras". Então contra mim se revoltarão os Saxões, os Húngaros, os Búlgaros e tantos povos malditos, os
Romanos, os de Poille, todos os de Palermo, os da África e os de Califerne.

51
“Quem conduzirá com tanto valor os meus exércitos, quando é morto aquele que sempre os conduzia? Ah! França, como ficas desamparada! O meu luto é
tamanho que eu antes queria morrer!”
Com ambas as mãos puxa pela barba, arranca com desespero, os cabelos da cabeça.
Mil franceses desfalecem de angústia.

CLXXXVII

- Amigo Roland, voltarei para França. Quando estiver em Laon, o meu domínio privado, de muitos reinos virão vassalos estrangeiros. Todos me
perguntarão: “Onde está o vosso conde capitão?” Dir-lhes-ei que ele morreu nas Espanhas, e só na dor terei abrigo; não viverei nem mais um dia sem chorar e
gemer.

CLXXXVIII

- Amigo Roland - repete, desesperadamente, o imperador -, que Deus te faça graça e que a tua alma ascenda ao mais alto Paraíso. Matando-te, lançaram a
França na penúria. Estou em tamanho luto, que quereria não mais viver! Oh! queridos cavaleiros, que por mim tão bem soubestes morrer! Peço a Deus, Filho de
Santa Maria, que a minha alma, antes de eu atingir as portas principais de Cize, se separe do meu corpo e que ao pé das vossas seja colocada, e que a minha carne
se enterre junto dos vossos corpos!
O imperador brada e chora, o duque de Naimes lamenta-o:
- Senhores, Carlos sofre uma angústia mortal; procuremos consolá-lo!

CLXXXIX

- Senhor - diz Godofredo de Anjou -, não vos entregueis tão completamente a semelhante dor. Por todo o campo mandai procurar os nossos; aqueles que
os de Espanha mataram em batalha. Mandai que os enterrem com amor numa única sepultura.
O rei manda:
- Tocai a vossa trompa para dar essa ordem.

CXC

Godofredo toca a trompa; os franceses apeiam-se. Carlos manda juntar todos os seus amigos que se encontram mortos no campo e abrir uma grande
sepultura.
Há no exército bispos, muitos abades, monges, cônegos e padres tonsurados; dão-lhes, do mando de Deus, a absolvição e a bênção. Acendem mirra e
incensam-nos com todo o zelo; depois enterram-nos com grande honra.

CXCI

52
O imperador não quer separar-se de Roland, de Olivier, nem do arcebispo Turpin.
Na sua presença, manda-os abrir, recolher seus corações num lençol de seda e fechá-los depois dentro duma urna de mármore branco.
Pegam em seguida nos corpos dos três gentis senhores e lavam-nos com aromas e vinho; em seguida deitam-nos em peles de veado. O rei chama Tedbalt
e Geboin, o conde Milon e Oton, o marquês, a quem ordena:
- Levai-os cuidadosamente sobre três carros.
Cobriram os corpos com panos de seda de Galaza, o mais honradamente que puderem.

CXCII

O imperador cavalga a caminho de França, com a alma angustiada por uma dor nunca vista.
Ouve-se, porém, um aguerrido tropel.
Dois mensageiros chegam a todo o galope e anunciam-lhe, da parte do emir, uma grande batalha:
- Rei orgulhoso, não trateis de voltar para França. Baligant cavalga atrás de vós! Grandes são os exércitos que traz da Arábia. Antes que a noite tombe,
ele deseja ver a vossa coragem!
Carlos leva a mão à barba, recorda-se do seu grande luto e do que perdeu.
Lança sobre todas as suas tropas um olhar altivo, depois berra alto e forte:
- Barões de França, às armas...!

CXIII

O imperador é o primeiro a armar-se, rapidamente veste a cota, aperta o elmo, cinge Joyeuse, cuja claridade o próprio Sol inveja, pendura ao pescoço um
belo escudo de Baderna. Agarra o venábulo e brande-o.
Depois monta Tecendur, o seu belo corcel. Conquistou-o a Malpalin de Narbona, quando, nos vaus de Marsonne, o arrancou do arção e lançou morto por
terra.
Larga as rédeas, esporeia com golpes apressados, e a galope passa revista às suas tropas.
Invoca Deus e o apóstolo de Roma.
Cem mil homens o olham contentes.

CXCIV

Por todo o campo, os de França se armam. Têm vivos corcéis e belas armas. Montam a cavalo. Os gonfalões pendem até tocar nos elmos.
Quando Carlos acaba de passar em revista as suas tropas, chama Jozeran da Provença, o duque de Naimes, Antelme de Mayence, e declara:
- Com tais valentes, penso, poderemos confiar. Se os Árabes não renunciarem à luta, vender-lhes-emos caros a morte de Roland.
O duque de Naimes exclama:
- Que Deus no-lo conceda!

53
CXCV

O rei chama, depois, Rabel e Guinemat.


- Senhores, ordeno-vos, ide para os postos de Roland e Olivier; que um leve a espada, o outro o olifante; cavalgai na vanguarda, convosco irão quinze
mil francos, todos valentes, entre os mais valentes.
A seguir irão outros tantos comandados por Giboin e Lorant. O duque de Naimes, e o conde Jozeran, com estes dois corpos de batalha, farão um belo
trem de combate. Quando chegar a vossa hora, a luta será grande.

CXCVI

Os dois primeiros corpos de batalha são formados por franceses. Depois organiza-se o terceiro; nele tomam parte os vassalos da Baviera; calcula-se o
seu número em vinte mil cavaleiros. Não há sob o céu gente a quem Carlos tanto estime exceto os de França, que lhe conquistaram os seus reinos. O conde Ogier,
o dinamarquês, será seu comandante.

CXCVII

O duque de Naimes organiza o quarto corpo do exército, do qual fazem parte os barões da Alemanha, ao todo calculamos em vinte mil. Possuem bons
cavalos e armas magníficas. Herman, duque da Trácia, comanda-lo-á.

Terceira Parte

As represálias

54
*
O castigo dos sarracenos

55
CXCVIII

Em seguida, o duque de Naimes e o conde Jozeran formam com normandos a quinta hoste; os franceses calculam em vinte mil os seus homens de armas.
Ricardo, o velho, será o seu comandante.
Têm boas armas e belos corcéis.

56
CXCIX

O sexto corpo de batalha fez-se com bretões. São trinta mil cavaleiros, levam lanças com as pontas tingidas e os seus gonfalões presos nelas. O seu senhor
é Eudon. Chama o conde Nevelon, Tedbalt de Reims e Oton, o marquês, e diz-lhes:
- Guiai vós a minha hoste, dou-vos essa honra.

CC

O duque de Naimes organiza então o sétimo corpo dos exércitos. Forma-o com poitevinos e com barões do Auvergne. Ao todo, quarenta mil cavaleiros.
Juntam-se à parte, num vale sob um cômoro; com a mão direita o imperador abençoa-os. Jozeram e Godselme serão os seus capitães.

CCI

O oitavo corpo de batalha é formado por flamengos e barões de Frize. São mais de quarenta mil cavaleiros.
O rei tão aguerrido os vê, que lhes diz:
- Vós, certamente, fareis bem o meu serviço.
Rembalt e Hamon da Galiza são os seus comandantes.

CCII

Logo a seguir, Naimes e Jozeran formam o nono corpo de batalha. São ao todo cinqüenta mil cavalos da Lorena e de Borgonha. Thierry, duque de
Argonne, será seu capitão.

CCIII

A décima hoste é formada por barões de França. São cem mil dos nossos melhores capitães.
Os seus corpos são graciosos, o seu porte altivo, os seus semblantes risonhos, as suas barbas nevadas.
Revestiram-se de lorigões, tecidos de dupla malha, cingiram belas espadas de França e de Espanha. Os seus escudos, bem trabalhados, são ornados com
belas insígnias. Depois, montam a cavalo e gritam: Mont-joie! Com eles vai Carlos Magno. Godofredo de Anjou leva a flâmula dourada, que tinha estado em São
Pedro e se chamava Romana; porém, os Francos mudaram-lhe o nome e, agora, Mont-joie se chama.

CCIV

O imperador, quando vê tudo preparado, apeia-se e deita-se sobre a relva, a face contra a terra.
Vira o rosto para o nascente, e com todo o seu coração invoca o Glorioso:

57
- Pai verdadeiro, neste dia defende-me, Tu que salvaste Jonas e o retiraste vivo do bucho da baleia, Tu que preservaste o rei de Nínive e livraste Daniel do
horrível suplício do fosso onde ele estava com os leões, Tu que protegeste os três meninos na fornalha ardente, nesta jornada, assiste-me com o Teu amor. Pela Tua
mercê, se assim for da Tua vontade, concede-me que hoje mesmo possa vingar a morte do meu querido sobrinho Roland!
Quando se pôs de pé benzeu-se e montou a cavalo; o duque de Naimes e Jozeran seguraram-lhe no estribo.
Depois cavalga firme.
À frente e atrás soam os clarins e mais alto do que eles a voz do olifante.
Quando os franceses ouvem a trompa do gentil conde, ensombra-se-lhes a alma e volta-lhes a doer a antiga dor.

CCV

O imperador, sobre o peito, por fora da cota, estende a sua barba. Por seu amor os outros fazem o mesmo; assim se reconhecerão os cem mil franceses do
seu corpo de batalha. Passam os montes e as alturas rochosas, os vales profundos, os desfiladeiros sombrios.
Saem das portas e da região inculta.
Penetram outra vez na Espanha e estabelecem-se no meio duma planície. Para Baligant voltam a guarda avançada.
Eis que um sírio traz novas dos Francos:
- Senhor, vi o orgulhoso rei Carlos; os seus homens são altivos, não lhe faltarão. Armai-vos, pois; de certeza, tereis batalha.
Por todo o exército árabe ressoam os tambores, as trombetas e as trompas, alto e claro. Os pagãos apeiam-se para se revestirem das armas.
O emir apronta-se rapidamente, veste uma cota cor de açafrão, amarra o elmo enfeitado de ouro e pedrarias. Cinge ao flanco a sua espada; no seu orgulho
quis dar-lhe também um nome; imitando Carlos Magno, chama-lhe “Preciosa” e “Preciosa” ficou, assim, a ser, em batalha, o seu grito de guerra.
Manda gritá-lo por seus cavaleiros; “Preciosa”, ouve-se de todos os lados.
Depois, põe ao pescoço um escudo oval, a fivela é de ouro e cristal, a correia dum tecido de seda com círculos bordados. Agarra no seu venábulo, ao qual
chama Maltet; a haste é grossa como uma moca, o ferro, pesadíssimo. Monta o seu corcel; Mércules de além-mar segura-lhe no estribo.
Quem vê a cavalo o emir, cuja valentia já muitas vezes mostrou, diz:
- Senhor Deus, que grande barão este seria se fosse cristão!
Pica o cavalo, o sangue mancha de rubro os flancos. Parte a galope e salta um fosso (pode-se bem medi-lo por cinqüenta pés de largo).
Os pagãos exclamam:
- Senhor, foste feito para os combates não haverá francês a quem vós não possais dar a morte. Carlos foi bem louco em não ter fugido.
CCVI

A barba do emir é branca como uma flor. Na sua lei é clérigo sábio, na batalha altivo e destemido. Seu filho Malpramis é também grande cavaleiro. Forte
e alto de espáduas, assemelha-se aos seus antepassados. Pergunta ao pai:
- Então, senhor meu, quando veremos Carlos Magno?
Baligant responde-lhe:
- Brevemente. Reconhecê-lo-emos com facilidade, pois o seu aspecto e valentia são invulgares. Muitos anais tecem-lhe grandes louvores. Mas ele agora
já não tem o seu sobrinho Roland; Não terá forças para nos vencer.

58
CCVII

- Belo filho Malframis - continua Baligant -, com Roland, são mortos também Olivier, o corajoso, o destemido, e os doze pares que Carlos amava tanto.
“Vinte mil franceses, ao todo, foram passados à espada. Todos os outros, dou-lhes o valor duma luva. Em verdade, o imperador volta; o sírio, meu
mensageiro, já mo anunciou. Dez grandes corpos de batalha aproximam-se. O que toca o olifante é valente. Numa trompa com som claro o seu companheiro
responde-lhe e ambos cavalgam na vanguarda. Trazem com eles quinze mil franceses, todos donzéis; Carlos chama-lhes seus filhos.”
Malpramis implora:
- Senhor pai, concedei-me que seja eu a desferir o primeiro golpe!

CCVIII

- Sim, o que me pedis eu vo-lo concedo. Contra os franceses nesta hora, ireis ferir. Levareis convosco Torleu, o rei persa, e Dapamort. Se puderdes vencer
o orgulho dos cavaleiros cristãos, dar-vos-ei um pedaço do meu país, desde Cheriant até ao Vale Marchis.
Malpramis responde:
- Senhor, eu vos agradeço.
Avança e recebe por dom as terras que eram do rei Flurit; porém, em má hora as toma, pois nunca será investido nesse feudo, nem dele será senhor.

CCIX

O emir passa revista às tropas, cavalga entre as fileiras. Seu filho segue-o. O rei Torleu e o rei Dapamort estabelecem rapidamente trinta corpos de
batalha; têm cavaleiros em maravilhoso número; o corpo mais pequeno conta cinqüenta mil. O primeiro é formado pelos de Butentrot; o segundo pelos de Mines,
que têm grandes cabeças; o terceiro é formado por núbios e por blos; o quarto, de bruns e de esclavons; o quinto, de sorbres e de sors; o sexto de armênios e
mouros; o sétimo, dos de Jericó; o oitavo, de Nigres; o nono, de Gros; e o décimo de Balide-la-Forte, uma raça que nunca quis o bem.
Esta é a primeira hoste com dez corpos de combate. O almirante jura, pelos milagres e corpo de Maomet, que Carlos de França é louco aceitando o
combate e nunca mais ostentaria a sua coroa de ouro.

CCX

Depois estabeleceram-se dez outros corpos de batalha. O primeiro era formado pelos feios cananeus, vindos de Vale-Fuit, por um atalho; o segundo, de
turcos; o terceiro, de persas; o quarto, de petchenègues; o quinto, de Solteras e de Avers; o sexto, de Ormaleus e Eugiez; o sétimo, do povo de Samuel; o oitavo,
dos de Bruise; o nono, de Clavers; o décimo, dos de Occian deserto.
Jamais ouvireis falar de piores traidores; tem o couro duro como ferro, por isso não lhes dá cuidado o lorigão nem o elmo; em batalha são rudes e
obstinados.

CCXI

59
Mas Baligant ainda não está satisfeito e ordena que se organizem mais dez outros corpos de combate.
O primeiro é formado por gigantes de Malprose; o segundo, por hunos; o terceiro, por húngaros; o quarto, pelos de Baldise, a longa; o quinto, pelos de
Vale Peneuse; o sexto, pelos de Marose; o sétimo, pelos de Leus e Astrimoines; o oitavo, pelos de Argoilles; o nono, pelos de Clarbonne; e o décimo, pelos de
Fronde, de longas barbas, uma raça que Deus nunca amou.
Os anais de França contam assim trinta corpos de batalha nos exércitos árabes.
Tocam as trompas, os exércitos são imensos.
Os pagãos cavalgam como valentes.

CCXII

À sua frente manda Baligant que levem o seu dragão, o estandarte de Tervagan e Maomet e uma imagem do falso Apollin.
À volta cavalgam dez cananeus, que vão fazendo um sermão em voz alta:
- Aquele que pelos nossos deuses quiser ser salvo, que lhes reze e os sirva com toda a humildade.
Os pagãos baixam as cabeças e os seus elmos brilhantes inclinam-se para o chão.
Os franceses, bem ao contrário, dizem:
- Brevemente, vagabundos, sereis mortos. Desta jornada saireis confundidos. Vós, Senhor Deus, defendei Carlos, que esta batalha seja dada em seu nome.

CCXIII

O emir é um homem prudente. Chama seu filho e os dois reis:


- Senhores, vós cavalgareis na vanguarda. Guiareis todos os corpos na batalha, mas que se reservem três dos melhores: o primeiro, dos turcos; o segundo,
dos ormaleis; o terceiro, dos gigantes de Malprose. Comigo estarão os de Occian; são eles que combaterão Carlos e os seus franceses. Se com o imperador
conseguir um combate singular, tirar-lhe-ei a cabeça de cima das espáduas. Que o saiba bem, não se lhe fará outra justiça.

CCXIV

Grandes são os dois exércitos, belos os campos de batalha.


Entre os francos e os pagãos não há monte nem vale, cômoro, floresta ou bosque que possa esconder as tropas; vêem-se completamente, sobre as terras
descobertas.
Baligant diz:
- É tempo de nos lançarmos no ataque.
Amborre de Oluferne leva a insígnia. Vendo-a, os pagãos gritam o seu nome: “Preciosa” ecoa entre eles.
Os francos gritam: Mont-joie. O imperador manda tocar os clarins e o olifante, que a todos dá coragem.
Os pagãos pensam:
- A gente de Carlos é bela. Teremos áspera batalha.

60
CCXV

Larga é a planície, longa e descoberta é a região. Os elmos, com pedrarias engastadas em ouro, os escudos, as cotas cor de açafrão e os venábulos brilham,
e as insígnias, seguras aos ferros, drapejam. Os clarins ressoam, as suas vozes são muito claras; porém, mais alta é a voz triste do olifante. O emir chama seu irmão
Canabeu, o rei de Floredée; era o dono do país até ao Vale Sevrée:
- Vede o orgulho da louvada França. O imperador altivamente cavalga. Vem atrás com os velhos, que trazem sobre as cotas estendidas as barbas tão
brancas como a neve sobre o gelo. Atacarão bem com espadas e lanças. Teremos batalha dura e encarniçada, nunca se terá visto outra semelhante.
Depois, cavalga mais para diante e diz aos seus:
- Vinde, pagãos; breve teremos a vitória...
- Brande o seu venábulo, voltando a ponta para a hoste de Carlos.

CCXVI

Carlos, senhor dos Franceses, ao ver aproximarem-se o emir, o dragão, a insígnia e os estandartes, e verificar como é grande a força dos árabes,
cobrindo todas as redondezas, exclama, em voz muito alta:
- Barões, meus bons vassalos, que tão longas batalhas haveis sustentado! Vede, os pagãos são traidores e medrosos: toda a sua lei não vale um dinheiro.
Se o número dos seus exércitos é grande, que importa? Quem hoje não quiser combater comigo, pode retirar-se!
Depois esporeia o cavalo. Tencendur salta quatro vezes.
Os franceses dizem:
- O nosso rei é um valente! Cavalguemos, nenhum de nós faltará.

CCXVII

O dia é claro e brilhante. A vanguarda dos dois exércitos lança-se no ataque. Entre elas o prado que as separa é cada vez menor. Os cavaleiros desfraldam
os gonfalões, os cavalos relincham, abanando as caudas no galope rápido.
O conde Rabel e o conde Guinemant vêm à frente.

CCXVIII

A verdura do prado é já só uma nesga, e ei-los que embatem com fúria uns contra os outros. Misturam-se e baralham-se cristãos e árabes, com um
estrondo medonho. Rabel ataca Torleu, o rei persa; nem o escudo, nem a cota resistem ao golpe. Enterra-lhe na carne o seu venábulo dourado; o rei cai morto.

CCXIX

Guinemant luta com outro rei árabe; quebra-lhe por completo o broquel antigo, onde flores estão pintadas, rasga-lhe a cota e enterra-lhe no corpo o seu
gonfalão.

61
O cavalo foge às upas com o cavaleiro moribundo.

CCXX

Os pagãos ferem maravilhosamente. Deus! Tantas hastes quebradas, tantos escudos partidos, tantas cotas desmanteladas! A erva verde e florida está
juncada de destroços.
A batalha é dura e obstinada.

CCXXI

O emir grita aos seus:


- Feri, pagãos; dar-vos-ei mulheres nobres e belas; dar-vos-ei feudos, domínios e terras.
À força de pancadas à toa, muitos dos seus venábulos quebraram-se; então desembainham mais de cem mil espadas. É uma confusão dolorosa e horrível.

CCXXII

O imperador fala à sua hoste:


- Senhores Barões, eu vos amo, eu tenho fé em vós. Por mim feristes tantas batalhas, conquistastes reinos, destronastes reis; reconheço-o bem, devo-vos
um salário. Dou-vos a minha vida, as minhas terras, as minhas riquezas. Vingai os vossos filhos, os vossos irmãos, os vossos herdeiros, que foram mortos em
Roncesvalles. Sabei-lo bem, nesta luta com os pagãos, o direito está do nosso lado.
Vinte mil cercam-no e juram a seus pés, não o traírem nem por morte, nem por angústia.
A batalha fica mais maravilhosa e encarniçada.

CCXXIII

Malpramis cavalga pelo campo; nos de França faz grande carnificina. O duque de Naimes olha-o com olhar altivo fere-o com valentia.
Quebra-lhe a bordadura do escudo, rompe-lhe os dois panos de lorigão; com a sua insígnia amarela lança-o morto abaixo do cavalo.

CCXXIV

Quando isto vê, o irmão de emir, o rei Canabeu, espeta fortemente as esporas nos flancos do corcel; tira a espada, cuja maçaneta é de cristal, e fere o
duque sobre o elmo.
O capacete parte-se, a coifa fende-se até à carne. O golpe foi tão rude, que Naimes fica como fulminado.
Vai cair, mas Deus ajuda-o; com os dois braços agarra-se ao pescoço do seu corcel. Se o pagão redobrasse, o nobre vassalo estaria morto. Carlos vem e
socorre-o.

62
CCXXV

O rei diz ao pagão:


- Perro, foi por tua desgraça que atacaste este meu vassalo...
Avança para ele, quebra-lhe o escudo, rasga-lhe a cota no lugar do coração e abate-o morto. A sela do cavalo fica vazia.

CCXXVI

O duque de Naimes está numa grande penúria. Carlos, quando vê o seu sangue que cai claro sobre a erva, enche-se duma grande dor.
- Belo Senhor de Naimes, cavalgai a meu lado. Morto está o aleivoso que vos violentava.
O duque responde:
- Senhor, descanso em vós.
Depois, com todo o amor, vão lado a lado; com eles vinte mil franceses talham e batalham.

CCXXVII

O pó levantado pelo tropel dos cavalos cola-se aos olhos e às gargantas. A vozeria dos feridos, os brilhos das armas e
as cores vivas dos gonfalões, tudo se entrechoca e confunde numa misturada medonha.
O emir cavalga, desferindo golpes à direita e à esquerda. Encontra o conde Guinemant e fere-o.
Quebra-lhe o escudo branco, golpeia-lhe o peito e atira-o morto abaixo do cavalo.
Depois passa à espada Geboin e Lorant, Ricardo, o velho, senhor dos Normandos.
Os pagãos exclamam:
- Preciosa vale um alto preço. Feri, pagãos, temos um fiador!

CCXXVIII

É bonito ver como os cavaleiros da Arábia, os de Occian, de Argoille e de Bascle, ferem com os seus venábulos! Os
franceses não lhes ficam atrás.
Franceses e pagãos, muitos morrem. Até à noite, o furor da batalha cresce.

CCXXIX

Franceses e árabes combatem com extraordinário valor.


Senhor Deus, tantas hastes quebradas, tantos gonfalões esfarrapados, tantas armas partidas!
Quem tivesse escutado o ranger dos escudos contra os elmos, o tinir das esporas... quem tivesse visto os cavaleiros por terra, tantos homens berrando
entre as patas dos cavalos, guardaria na alma uma dolorosa recordação. A batalha torna-se cada vez mais pesada. O emir invoca Apollin, Tervagan e Maomet:

63
- Senhores deuses, muito vos tenho servido... Se me ajudardes, as vossas imagens farei de ouro puro!
Diante dele chega Gemalfin, seu fiel; traz-lhe más novas.
- Baligant, meu senhor, aconteceu uma grande desgraça. Malpramis, vosso filho, e Canabeu, vosso irmão, jazem mortos. Dois franceses venceram-nos. O
imperador, segundo penso, foi um deles. Carlos é um barão de alta estatura, o seu porte é dominador, os seus gestos de chefe, tem a barba cor de flor de espinheiro.
O emir baixa a cabeça que o elmo torna pesada, o seu rosto escurece; a sua dor é tão forte, que ele pensa morrer.
Chama Jangleu de além-mar.

CCXXX

- Jangleu - diz-lhe o emir -, avançai. Vós sois valoroso e prudente, sempre ouvi o vosso conselho. Que vos parece, quem terá hoje a vitória?
Jangleu responde:
- Desgraça, senhor, os vossos deuses não vos defenderão. Carlos é altivo, os seus homens são valorosos. Nunca vi raça tão destemida em combate.
Chamai em vossa ajuda as hostes de Occian, dos turcos, dos enfruns, dos árabes e dos gigantes. Aconteça o que acontecer, não tardeis!

CCXXXI

O emir está rubro de cólera. Toma a buzina e toca tão alto, que todos os pagãos a ouvem; por todo o campo as suas tropas acodem a juntar-se.
Os corcéis da haste de Ociant relincham e zurram, os de Argoille saltam como cães.
Provocam os francos com que temeridade! Lançam-se entre as suas fileiras, separam-nas, em pouco tempo matam sete milhares.

CCXXXII

O valente conde Ogier, quando viu romperem-se as fileiras dos franceses, chama Thierry, duque de Argonne, Godofredo de Anjou e o conde Jozeran.
Muito altivamente exorta Carlos:
- Senhor, vede os pagãos como os vossos homens! Não agrada a Deus que a vossa cabeça use coroa se não atacamos nesta hora, para vingar a nossa
honra!
Ninguém proferiu palavra; todos esporeiam e lançam a toda a brida os corcéis contra o inimigo.

CCXXXIII

Carlos Magno, o rei, fere maravilhosamente. Com ele estão o duque de Naimes, Ogier, o dinamarquês, Godofredo de Anjou, aquele que leva a insígnia.
Ogier ataca o árabe que segura o dragão, dá-lhe tal golpe, que logo o lança morto de costas sobre a relva. Cai por terra o dragão e a insígnia do senhor de
Babilônia. Baligant vê o seu gonfalão cair e ser abatido o estandarte de Maomet; então o emir começa a ver que não tem razão e que o direito está do lado de
Carlos Magno.

CCXXXIV

64
A manhã termina, a tarde chega. Ouvem-se os Francos gritos do emir: Preciosa! e de Carlos: Mont-joie! e pagãos combatem à espada.
Pelas vozes, altas e claras, reconhecem-se.
Aproximam-se do meio do campo, desafiam-se e mutuamente se ferem. Com grandes golpes de venábulo partem os broquéis, quebram-nos por cima das
largas fivelas; os panos dos dois lorigões rasgam-se.
As cilhas rebentam com a força dos choques, as selas viram e os dois cavaleiros caem abaixo dos cavalos. Em terra, depressa se põem de pé; este
combate será mortal.

CCXXXV

Carlos é destemido, corajoso, valente; o emir não teme. Erguem as espadas nuas e sobre os escudos desferem grandes golpes. Cortam os couros e as
tábuas que são dobradas, os pregos caem, as fivelas voam em bocados. Depois, a corpo descoberto, ferem-se sobre as cotas; dos seus elmos claros saltam faíscas.

CCXXXVI

O emir diz:
- Carlos, resolve-te a mostrares-me o teu arrependimento. Na verdade, passaste à espada o meu filho e é sem razão que me disputas reinos. Torna-te meu
vassalo. Vem servir-me para o Oriente, como meu criado.
Carlos responde:
- Seria, quanto a mim, cometer forte vilania. A um pagão não posso conceder nem paz nem amor. Recebe a Lei Cristã e logo te amarei; depois serve e
confessa o Rei Todo-Poderoso.
Baligant torna-lhe:
- Pregas um mau sermão.
Então, recomeçam a ferir-se à espada.

CCXXXVII

O emir é vigoroso, fere Carlos sobre o elmo de aço moreno, quebra-lho, a lâmina desce até ao couro cabeludo, o osso da cabeça fica à mostra. Carlos
cambaleia, quase cai. Mas Deus não quer que seja morto nem vencido. São Gabriel volta para junto dele e pergunta-lhe:
- Rei dos Francos, que fazes?

CCXXXVIII

Quando Carlos ouviu a santa voz do Anjo, retoma logo o vigor e o conhecimento. Descarrega sobre o elmo do emir um tão tremendo golpe, que lhe abre
o crânio e o abate morto. Grita: Mont-joie! para que a sua hoste se junte. Ao grito vem o duque de Naimes, que segura pela rédea Tecendur; o rei monta a cavalo.
Os pagãos principiam a fugir.

65
CCXXXIX

Os árabes debandam por Deus assim o querer. Os franceses, com o imperador à frente, perseguem-nos.
O rei diz-lhes:
- Senhores, vingai vossos lutos, que a vossa cólera passe e que os vossos corações clareiem, porque ainda esta manhã vi chorar vossos olhos.

CCXL

O calor é forte, levanta-se muita poeira. Os pagãos fogem, os franceses esfalfam-nos. A caçada dura até às portas de Saragoça.
Para o alto da torre de menagem foge Bramimonda, com os sacerdotes da sua falsa lei.
- Maomet, ajuda-me! - diz ela - Ah! Rei vencido, eis que chegam mal-feridos os poucos árabes que restam dessas vastas hostes e que o emir é tão
vergonhosamente morto!
Quando Marsile ouviu isto, virou-se para a parede, os seus olhos verteram muitas lágrimas, deixou cair a cabeça; morreu de dor, carregado de pecados.

CCXLI

Os poucos pagãos que chegaram vivos a Saragoça foram passados à espada; Carlos ganhou a batalha.
Arrombou as portas de Saragoça, apoderou-se da cidade; as suas tropas, por direito de conquista, nela dormem essa noite.
O rei da barba encanecida está cheio de altivez. Bramimonda entrega-lhe as torres. As dez grandes e as cinqüenta pequenas.

CCXLII

Cai a noite, a Lua é clara, as estrelas brilham.


O imperador toma Saragoça, por mil franceses manda explorar a cidade, as sinagogas e as mesquitas. A golpes de maças de ferro e de machados
quebram-se as imagens e todos os ídolos; têm fim todos os sortilégios, todos os malefícios.
O rei crê em Deus, quer fazer o seu serviço. Assim, os bispos abençoam as águas. Levam os pagãos até às pias batismais. Se há algum que resista, Carlos manda-o
enforcar, queimar ou passar à espada.
Mais de cem mil são feitos verdadeiros cristãos; fica só a rainha por batizar.
Ela será levada para a doce França cativa: o rei quer que ela se converta por amor.

CCXLIII

A noite passa, o dia levanta-se risonho. Nas torres de Saragoça Carlos coloca uma guarnição. Aí deixou mil cavaleiros bem experimentados - eles farão
guarda à cidade em nome do imperador.

66
O rei monta a cavalo, o mesmo fazendo todos os seus homens e Bramimonda. Esta é levada cativa; mas Carlos apenas deseja o seu bem. Eles voltam a
caminho de França, cheios de alegria e altivez. À força ocupam Narbona. Carlos chega a Bordéus, sobre o altar do barão S. Seriun coloca o olifante cheio de ouro e
pedrarias; os peregrinos ainda hoje aí o poderão ver. Atravessa o Gironda em grandes naus e conduz o seu sobrinho até Blaye, juntamente com Olivier, seu nobre
amigo, e o arcebispo Turpin, que foi tão prudente e valoroso.
Em ataúdes brancos manda meter os três graciosos senhores; é em S. Romain que eles jazem para sempre.
Os franceses entregam-nos a Deus.
Pelos vales, pelos montes, Carlos cavalga sem descanso, até que chega a Aix, ao seu palácio soberano.

O castigo de Ganelon
CCXLIV

Junto dos paços o imperador apeia-se, sobe os degraus e entra nas vastas salas; ao seu encontro vem correndo uma donzela, cuja beleza à Lua e às estrelas
faz inveja.
É Alda, a irmã de Olivier, a frágil menina de tranças louras e gestos de gazela.
- Senhor - diz ela ao rei -, onde está Roland, o vosso conde capitão, que jurou ser meu noivo?
Carlos fica mudo de dor e de aflição, chora, puxa com desespero as suas barbas brancas...
- Alda, querida sobrinha, adivinho a tua angústia! Dar-te-ei em troca Luís, o meu próprio filho; de hoje em diante será ele que comandará as minhas
marchas.
Alda responde:
- Senhor, agora que já não vive aquele a quem eu tanto bem queria, só me resta morrer.
A bela donzela perde a cor e cai sobre os degraus. Carlos sustenta-a nos braços; julga-a apenas desfalecida.
É tão frágil, tão bela, tão leve, que o imperador agarra-a trêmulo, com medo de a molestar.

CCXLV

Vêm aias e seguram nela, todos pensam que Alda é viva, mas ela morreu.
O imperador tenta erguê-la, toma-a pela mão; sobre as espáduas a linda cabeça cai como flor fenecida.
Quando Carlos vê que ela está morta, tapa com a mão; sobre as faces, retira-se para que ninguém veja a sua desmesurada dor.
Quatro condessas a levam para um convento de freiras e até à madrugada a velam com carinho.
Por fim, enterram-na sob um altar, com grandes honras, por ela ser aquela a quem Roland muito queria.

CCXLVI

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Com o coração sombrio por mais esta dor, Carlos manda chamar por mensageiros os seus justos juízes, bávaros, saxões, lorenos e frisões, convoca os
alemães, os borguinhões, os poatevinos, os normandos, os bretões e os de França, entre todos os mais prudentes.
Assim começa o pleito de Ganelon.
O traidor, carregado de cadeias de ferro, está na cidade diante do palácio. Servos tiram-lhe os cadeados, prendem-lhe as mãos com correias de couro e
ligam-no a um poste. Depois batem-lhe fortemente com lanças e paus. Não mereceu outras benfeitorias.
Com grandes dores aí espera o seu julgamento.

CCXLVII

Está escrito na gesta antiga que de muitos países Carlos mandou vir vassalos. Juntaram-se em Aix, na sua capela, pela festa solene do Barão São
Silvestre.
O imperador, vendo tudo preparado manda arrastar Ganelon para junto de si.

CCXLVIII

- Senhores Barões - diz Carlos Magno -, julgai-me Ganelon segundo o direito. Acompanhou-me às Espanhas, traiu vinte mil franceses, o meu sobrinho
Roland que nunca mais verei, Olivier, o valente, o cortês, e os doze pares; por tão feia ação recebeu dinheiro.
Ganelon responde:
- Vergonha sobre mim se eu fizer mistério! Roland prejudicou-me no meu ouro e nos meus bens; foi por isso que quis a sua morte e a sua ruína. Que
tenha havido traição, não é verdade!
Os franceses dizem:
- Nós daremos a nossa opinião.

CCXLIX

Diante do rei, Ganelon está de pé. O seu corpo é forte, o seu rosto belo; se fosse leal, julgá-lo-íamos um valente. Olha todos os franceses, todos os juízes,
trinta dos seus parentes que são por ele, e exclama em voz alta e forte:
- Ouvi, Barões, por amor do Senhor Deus! Eu estava no exército com o imperador; sempre o servi com toda a fé e todo o amor. Roland, seu sobrinho,
odiava-me e condenou-me à morte e à dor. Eu fui mandado por mensageiro ao rei Marsile; pela minha esperteza consegui salvar-me. Vinguei-me mas não foi com
traição.
Os franceses responderam:
- Vamos reunir conselho.

CCL

68
Ganelon confia em Pinabel, do castelo de Sorence; é seu amigo e seu par. Fala bem, sabe dizer as suas razões como convém, é valente para manejar as
armas.
Ganelon pede-lhe:
- Amigo, salvai-me da morte! Retirai-me deste pleito!
Pinabel diz:
- Breve sereis salvo. Se aparecer um francês para julgar que devais ser enforcado, que o imperador nos ponha ambos em luta corpo a corpo; a minha
espada desmentirá a sua palavra.
O conde Ganelon inclina-se a seus pés.
Entram no conselho bárbaros e saxões, os poatevinos, os normandos e os franceses. Alemães e thiois estão presentes em grande número; os do Auvergne
são os mais corteses. Falam em baixa voz por causa de Pinabel.
Dizem uns para os outros:
- Mais conviria ficarmos por aqui. Deixemos o pleito, digamos ao imperador que proclame Ganelon quite por esta vez; e que para o futuro ele o sirva com
toda a fé e todo o amor. Roland morreu, nunca mais o veremos, nem todo o ouro e toda a prata do mundo lhe tornariam a dar vida.
Todos aprovam, exceto Thierry, o irmão de monsenhor Godofredo.

CCLI

Para Carlos Magno voltam os seus barões e dizem-lhe:


- Senhor, pedimos isto: proclamai Ganelon quite e que ele no futuro vos sirva com todo o amor e toda a fé. Deixai-o viver, pois é um grande senhor. Nem
todo o ouro, nem toda a prata do mundo nos tornariam a dar Roland.
O rei fica rubro de cólera; depois, abana com desalento a cabeça e diz-lhes:
- Até vós me traís!

CCLII

O imperador baixa dolorosamente a cabeça, pois todos lhe falharam.


- Como sou desgraçado!- diz ele.
Então, eis que chega Thierry, duque de Argonne.
Tem o corpo magro, frágil, alto, os cabelos negros, o rosto bastante moreno.
- Belo senhor, não sofrais assim! Servi-vos muito tempo, bem o sabeis. Pelo bom nome dos meus antepassados, em tal pleito, sustento a acusação.
"Roland era vosso vassalo, servia-vos no exército; isso era o bastante para o fazer respeitar. Ganelon traiu, foi contra vós que perjurou e fez todo o mal.
"Assim, julgo que deve ser enforcado e o seu corpo tratado como o dum traidor. Se há aqui algum seu parente que me queira desmentir, eu proponho-me,
nesta hora, pela espada sustentar este julgamento."
Os francos responderam:
- Dizeis bem!

69
CCLIII

Quando Thierry vê que haverá combate, entrega a Carlos a sua luva direita.
O imperador dá-lhe a licença para o desafio singular.
Manda buscar bancos, neles se sentam os que vão combater. Ogier da Dinamarca lança o duplo desafio.
Depois pedem os seus cavalos e as suas armas.

CCLIV

Logo que se vêem armados, os dois cavaleiros confessam os seus pecados, são absolvidos e abençoados.
Ouvem suas missas e recebem a Hóstia Santa.
Deixam nas igrejas grandes oferendas.
Depois ambos voltam para a frente de Carlos.
Calçam as esporas, vestem os lorigões brancos, fortes e leves, amarram os elmos, cingem as espadas cujas bainhas são de ouro puro, põem ao pescoço os
escudos onde estão pintados os quartéis das suas nobrezas, agarram com o punho direito seus venábulos cortantes e montam os seus aguerridos corcéis. Cem mil
cavaleiros sofrem; por amor de Roland, têm piedade de Thierry.

CCLV

Perto de Aix há uns prados muito belos; é lá que se vai travar o combate! São ambos destemidos e de grande intrepidez, os seus cavalos rápidos e
ardentes.
Esporeiam-nos com força, largam as rédeas, com todo o vigor, um contra o outro, vão atacar-se. Os escudos quebram-se, voam em bocados, as cilhas
estalam, os lorigões rompem-se, as borrainas rasgam-se, as selas caem ao chão.
Cem mil homens sofrem ao vê-los.

CCLVI

Pinabel diz:
- Thierry, reconhece-te vencido! Serei teu vassalo com toda a fé e todo o amor. Dar-te-ei das minhas riquezas o que quiseres, mas encontra para Ganelon
um acordo com o imperador!
Thierry responde:
- Não pensarei muito. Vergonha sobre mim se isso acontecer! Que entre nós dois, neste dia, Deus mostre o direito. Pinabel, és muito destemido, grande e
forte, os teus pares pelo teu valor te conhecem: renuncia, pois, a esta batalha! Eu te encontrarei um acordo com Carlos Magno. Quanto a Ganelon, a justiça será
feita de tal sorte, que todos os dias seja lembrada.
- Não o queira Deus! - replica Pinabel. - Tenho o dever de acudir por Ganelon, que é meu par e meu amigo. Não me renderei a nenhum homem vivo.
Prefiro morrer, a suportar a censura.

70
Então, recomeçam a ferir com as espadas os elmos, os quais são incrustados em ouro; para o céu voam claras as chispas. Separá-los, ninguém é capaz,
aquele combate será um combate mortal.

CCLVII

Pinabel de Sorence é de grandes proezas: fere Thierry sobre o seu elmo da Provença, os pedaços caem na relva, a ponta da espada desce pela face direita,
que fica ensangüentada. Fende-lhe o lorigão até ao cimo do ventre; porém, as feridas não são mortais.

CCLVIII

Thierry vê que está ferido no rosto. O seu sangue cai claro sobre a erva o prado. Enche-se de coragem, descarrega sobre Pinabel tal golpe, que lhe fende o
elmo até ao nasal. O cavaleiro cai moribundo.
Por este golpe a batalha ficou ganha.
Os franceses dizem:
- É de direito, Ganelon deve ser enforcado juntamente com os parentes que responderam por ele.

CCLIX

Carlos aproxima-se de Thierry, acompanhado de quatro dos seus barões: o duque de Naimes, Ogier da Dinamarca, Godofredo de Anjou e Guilherme de
Blaye.
O rei toma Thierry nos braços, com as grandes peles do seu casaco de marta limpa-lhe as faces; muito ternamente desarmam o duque, montam-no numa
mula árabe e trazem-no com alegria para Aix.

CCLX

Carlos chama os seus duques e os seus condes:


- Que me aconselhais? Que faremos aos trinta parentes de Ganelon?
Os francos respondem:
- Nenhum tem o direito de viver.
O rei manda vir o senescal e diz-lhe:
- Vai e enforca-os todos na árvore do bosque maldito. Por esta barba, se algum escapar estarás perdido!
O senescal responde:
- Senhor, farei como ordenais! - E com cem meirinhos leva-os à forca.

CCLXI

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Então os bavareses, os alemães, os poatevinos, os bretões, os normandos e principalmente os franceses, concordam em que Ganelon deve morrer em
maravilhosa angústia. Trazem quatro corcéis, amarram-no de pés e mãos às caudas, quatro meirinhos batem-lhes, os cavalos partem cada um em sua direção.
Sentem-se presos e querem liberta-se; assim se distendem os músculos e os nervos do traidor, assim os seus membros se partem, sobre a erva espalha-se o seu
sangue.
Ganelon morre duma morte medonha.

CCLXII

Depois que o imperador fez justiça, chamou os seus bispos de França, os da Baviera e os da Alemanha.
- Na minha casa tenho uma nobre prisioneira. Ela ouviu tantos sermões e parábolas, que acredita em Deus e pede para se fazer cristã. Batizai-a para que o
Glorioso tenha a sua alma.
Eles respondem:
- Senhor, arranjai-lhe madrinhas.
Nos banhos de Aix foi batizada a rainha das Espanhas e deram-lhe o nome de Juliana.

Fim da Canção
CCLXIII

Quando o imperador serenou a sua grande cólera e fez cristã Bramimonda, a noite
fez-se negra.
O rei deita-se no seu quarto abobadado.
Do mando de Deus, São Gabriel vem, falar-lhe:
- Carlos, levanta as tuas tropas por todos os teus reinos. Parte para a terra de Bire,
socorre o rei Vivien que na cidade de Imphe está cercado pelos pagãos. Lá, os cristãos chamam
por ti a cada momento.
O imperador volta-se no catre e suspira:
- Senhor Deus quão trabalhosa é minha vida!
Os seus olhos enchem-se de lágrima, puxa com desespero a sua barba branca.

(FIM DA CANÇÃO DE ROLAND)

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